1 INTRODUÇÃO
Redes sociais virtuais, como o Facebook e o Instagram, inegavelmente já fazem parte do cotidiano das pessoas. Vivemos em um contexto no qual existe uma abundância de informações sendo propagadas por essas redes, que se tornaram espaçostempos4 de interações pessoais, acadêmicas e profissionais; nelas é possível seguir pessoas famosas, retroalimentar laços e ampliar redes de amizades, manter-se informado sobre os passos de familiares, acompanhar o dia a dia de políticos e de outras figuras públicas, assim como se tornar alguém conhecido ao partilhar opiniões, gostos e imagens com conteúdo diverso, a exemplo dos memes.
Geralmente atrelados ao humor, os memes pertencem ao cotidiano da internet e marcam presença nas redes sociais; são usados como meio de comunicar sentimentos, preferências, gostos e desgostos, extrapolando diferentes campos da vida e temáticas. Arriscamos dizer que repetição é uma palavra que remete ao que é um meme, pois sua sobrevivência está diretamente atrelada à propagação em massa; por isso, na cultura cibernética, diz-se que algo fez sucesso porque viralizou. Assim, as percepções de mundo são (re)construídas e potencializadas pelos memes, que passam a ser utilizados para propagar diferentes posições, muitas vezes ridicularizando situações ou pessoas.
Entendemos que as redes sociais são marcadas pela complexidade característica dos cotidianos virtuais e das pessoas que a compõem. No entanto, a divisão mundo virtual versus mundo real ainda é bastante comum e, por vezes, usada para enfraquecer o peso de ações, posições políticas e/ou preconceitos que “bombam” na rede. Por outro lado, as redes têm se tornado espaços para que resistências às opressões diárias sejam ampliadas e alcancem, em minutos, grande número de pessoas que partilham das mesmas ideias. Portanto, poderíamos afirmar que nesses espaçostempos propagados por meio da cultura digital, em que há uma pluralidade de informações, é possível observar processos sociais, visões de mundo etc. Logo, a ideia de uma perspectiva isenta de posição política é de fato (im)possível, pois as redes enquanto construções sociais vão funcionando como lugares onde se (re)produz (des)conhecimento, partilha-se intercâmbios de significados, exigências de opiniões e posições ante aos temas em relevo em determinado momento.
As redes sociais virtuais têm ganhado força e se tornado territórios de disputas com potência para mobilizações sociais, reflexões e não apenas para a reprodução de velhas lógicas. Podemos observar que o espaço virtual tem (re)unido praticantespensantes de religiões ligadas às matrizes africanas e que tem crescido o número de perfis dedicados aos conteúdos de tais religiões. São perfis de babalorixás e yalorixás, centros/terreiros espirituais ou dedicados à publicação de imagens e memes, relacionados ao humor, engajados na legitimação da fé e no enfrentamento ao preconceito. Essa percepção nos motiva a contribuir com o debate sobre as emissões de mensagens a respeito das religiões de matrizes africanas por meio dos memes nas redes sociais virtuais. Para organizar o texto, primeiramente descreveremos os caminhos teóricos e metodológicos trilhados nas redes sociais, em seguida analisaremos alguns dos memes selecionados em páginas de Facebook e de Instagram, para enfim apresentar algumas (in)conclusões.
2 COMPLEXIDADES NOS (DES)CAMINHOS TRILHADOS NAS REDES SOCIAIS
Compreendemos as redes sociais como espaçostempos construtivos, dotados e tencionados pela complexidade dos atravessamentos coletivos, dialógicos, cotidianos em que são compartilhados pontos de vistas às vezes próximos, parecidos, outras vezes antagônicos, distantes (CASTELLS, 1999). Nessa direção, podemos então afirmar que as redes sociais, entrelaçadas aos seus cotidianos, são uma das bases da estrutura moderna, em torno ou por meio das quais são divulgadas ideias, concepções, visões e perspectivas de formas e de modos de pensar a sociedade e o mundo social; estas, por sua vez, entrelaçadas por posicionamentos que muitas vezes não contribuem para a valorização ou reconhecimento da diferença (SANTOS, 2010). Tais associações nos permitem perceber as redes sociais como meios pelos quais as/os pensantespraticantes, em suas bricolagens diárias, se:
[...] articulam em múltiplas redes [...] que formam e nas quais se formam – como cidadãos, trabalhadores, habitantes de espaçostempos diversos, criadores de conhecimentos e significações e de expressões artísticas, membros coletivos vários (famílias, religiões, expressões nas mídias), etc.
(ALVES, 2012, p. 1).
Nessas potentes redes de (re)criações as/os pensantespraticantes vão construindo modos de pensar, viver, perceber o mundo, (des)territorializando a pluralidade epistemológica do mundo, criando, assim, estruturas de inclusão, exclusão e novas formas de disseminação, de distribuição de diferentes modos de poder. Os/as pensantespraticantes dos espaçostempos das redes sociais nas artes de (re)inventar o cotidiano nessa “nova morfologia social”, por diversas e inúmeras vezes, vão entrelaçando e divulgando (des)conhecimentos que articulam e combinam suas experiências, saberes, (des)tecem espaços, (re)inventam e “combina[m] os seus fragmentos e cria[m] algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações” (CERTEAU, 2017, p. 49).
Cabe salientar que tais significações e representações, que os/as pensantespraticantes vão (re)construindo nas redes sociais, são intermediadas e encharcadas pelo que poderíamos denominar de pedagogias culturais, as quais, segundo Steinberg e Kincheloe (2001, p. 14), se constituem como processos sociais que se referem a variedades de campos sociais, “incluindo, mas não se limitando à escolar. Áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc.”, resultando em modos de subjetivação, produzindo regimes de verdades que atravessam discursos sexuais, religiosos, raciais ligados ao cumprimento de determinadas regras estabelecidas no interior da condução da vida.
O processo de subjetivação seria, portanto, como cada indivíduo vivencia essa relação por meio dos discursos que o interpelam em sua trajetória particular; e as redes sociais virtuais, na contemporaneidade, podem ser entendidas como uma das agências que disputam os modos de produção de subjetividades posto que são acessíveis a grande maioria da população por meio de celulares, tablets, computadores etc., tornando-se, por vezes, elementos indispensáveis nas interações e ações de ludicidades cotidianas. Por meio delas, são divulgados e veiculados programas televisivos, propagandas comerciais e periódicos que formam conjuntos cada vez maiores de discursos da cultura implicados diretamente na construção de identidades.
Ao compreender a força pedagógica das redes sociais virtuais, as diferentes mídias veiculam artefatos carregados de sentidos e significados que buscam conduzir os indivíduos ao encantamento e ao consumo. Os discursos de tais artefatos advêm de diferentes segmentos econômicos, sociais e culturais, de diversas ideologias e são apresentados por diferentes agentes que consolidam as verdades e buscam convencer sobre perspectivas de vida, de expressão, de ser e de estar no mundo. Essa maquinaria econômica forma um eficiente jogo de produção e de disputa de subjetividades
(ANADON; CAETANO; RANGEL, 2015, p. 7).
No âmbito das pesquisas educacionais, as redes sociais virtuais têm interessado sobremaneira aos e às estudiosas do campo dos Estudos Culturais. São muitas as investigações que questionam a relação entre as redes sociais virtuais e os sujeitos em seus processos de construção e divulgação de performatividades identitárias. Neste sentido, torna-se produtivo questionar os discursos apresentados nas redes sociais virtuais e as formas como eles constroem e dão sentido às existências cotidianas. Em outras palavras, as redes sociais virtuais em suas interações vão produzindo valores, saberes e (des)regulações sobre os modos de ser e de estar no/com o mundo. Seus discursos dão conta de fabricar identidades, deslegitimar existências, constituir hierarquias e relações de poder etc.; produzindo, assim, o que Silva (2003) conceitua como um certo corpo de conhecimentos, o qual, interpelando os sujeitos, (re)afirma práticas e muitas vezes identidades hegemônicas. Assim, destaca o mesmo autor:
[...] a representação é um sistema de significação. [...] na representação está envolvida uma relação entre um significado (conceito, ideia) e um significante (uma inscrição, uma marca material: som letra, imagem, sinais manuais). Nessa formulação, não é necessário remeter-se à existência de um referente (a “coisa” em si): as “coisas” só entram num sistema de significação no momento em que lhes são atribuídas um significado.
(SILVA, 2003, p. 35).
Partimos do posicionamento teórico-epistemológico de que os espaçostempos das redes e seus cotidianos são permeados e feitos de divisões, diferenças, interditos e limitações, nos quais os sujeitos são produzidos e produzem identidades e subjetividades, a partir das relações que são construídas com a cultura, neste contexto, compreendida como arena de luta na qual está em disputa modos de perceber, ser, sentir, pensar, agir, falar, etc., onde os significados e sentidos das representações são permanentemente tensionados por disputa e negociação. Dentro dessa perspectiva, focamos nos memes por entendê-los como formas de representações culturais que descrevem e/ou tentam descrever as realidades dos/das pensantespraticantes nos espaçostempos das redes sociais. Antes de tudo, cabe dizermos que, por ser uma produção do meio virtual, o meme é uma produção dinâmica:
Geralmente esses memes são imagens, vídeos ou gifs de conteúdo engraçado, e que acabam se espalhando na internet por meio das redes sociais ou fóruns. Uma das principais características do meme é que ele pode ser adaptado ou modificado dependendo da situação, e por causa disso ele acaba viralizando com facilidade.
(Dicionário Popular5, 2019, s/p).
Neste sentido, entendemos memes como artefatos culturais que apresentam também modos peculiares de endereçamento. Suas histórias são compostas com personagens, roteiros e imagens implicadas na produção de sentidos que seduzem os sujeitos à identificação e à ludicidade. A relação entre o endereçamento e o sujeito de um discurso nos memes produz estreitamentos que veiculam imagens distorcidas, convocando uma interpelação que pode acontecer em diferentes intensidades, desde identificação ou distanciamento, que tem como efeito a produção de novas posições dos sujeitos nos espaçostempos. Assim sendo, memes são “entendidos como ideias, brincadeiras, jogos, piadas, ou comportamentos que se espalham através de uma replicação de forma viral” (FONTENELLA, 2009, p. 8), caraterizados e tensionados levando em consideração aspectos sociais, culturais, históricos, temporais etc. Tudo pode virar meme, uma frase, uma cena, uma imagem replicada tantas vezes que se torna parte da história da internet. Há certa concordância entre quem tem se proposto a estudá-los de que o conceito tem origem na biologia, e mesmo quando aplicado às redes sociais não foge a sua ideia original (FONTENELLA, 2009; ARAUJO, 2012; JUNQUEIRA, 2016; CARDOSO JÚNIOR; OLIVEIRA; PORTO, 2019; COUTO JÚNIOR; POCAHY; CARVALHO, 2019; ALMEIDA; SANTOS, 2020).
Seguindo Cardoso Júnior, Oliveira e Porto (2019, p. 45), que também se dispõem a analisar memes, entendemos que as mensagens “meméticas” ultrapassam a função de entreter e causar riso; neles são revelados “aspectos sociais e culturais dos usuários e das páginas”. Considerando que a cultura é produto da ação humana, ainda segundo os autores:
[...] a ressignificação de uma imagem em um meme, por exemplo, e sua subversão de contexto sob a ótica da cultura participativa podem ser consideradas como formas de produção discursiva em busca de reputação e popularidade dos atores sociais na rede, articulados a produção e replicação de conteúdos digitais. Portanto, o gênero meme, aqui estudado não se limita apenas ao resultado de um evento tecnológico da cultura digital, mas é entendido como uma expressão, linguagem, fenômeno de comunicação; que carrega novas potencialidades de letramentos e novas possibilidades de aprendizagens por meio de sua carga discursiva e seus significados nos usuários implicados na internet.
(CARDOSO JÚNIOR; OLIVEIRA; PORTO, 2019, p. 45).
Seguindo nessa perspectiva, cabe-nos fazer uma breve conceituação do termo macumba, uma vez que as produções meméticas privilegiadas no estudo têm nele sua temática central. Pode-se dizer que macumba tem valor semântico polissêmico. O termo é usado como sinônimo genérico, no geral, usado de forma pejorativa, para designar práticas espiritualistas de culto e ritos de origem africana que em terras brasileiras se misturam a outras, a exemplo daquelas de origem ameríndia e católica. Ainda, pode ser usado em referência às oferendas, despachos, isto é, a prática religiosa de oferecer aos/às orixás e outras entidades espirituais oferendas em agradecimento ou em forma de pedido (DOMINGUES, 2019; GIUMBELLI, 2015). O termo é usado, muitas vezes, para inferiorizar tais práticas culturais e seus/suas praticantes.
Entendendo que socialmente o termo macumba é estigmatizado, cremos ser importante trazer para este debate algumas reflexões sobre a noção de cultura alicerçada por uma perspectiva decolonial, pois, embora todas as nações sejam compostas pela diversidade de pessoas e culturas, a ideia mitológica de ser um só povo, de uma só cor, com hábitos e práticas semelhantes reforça o tempo todo a hegemonia cultural e atualiza a colonização de mentes e corpos, ao menos no Brasil, vigente desde a “descoberta” – que marca o chamado nascimento da modernidade (GROSFOGUEL, 2010; HALL, 2011).
Notamos que o processo de “tornar-se na macumba”, de grupos tidos como minoritários, expõe como foram formadas a maioria das nações: por meio de longos processos de conquista violenta e de imposição cultural. Logo, com base em Hall (2011), ousamos dizer que o processo de “tornar-se macumbeira/o”, observado por meio dos memes nas redes Instagram e Facebook, parece-nos um resgate de culturas outras em território brasileiro, ato de insubordinação à homogeneização cultural que mina as diferenças. Dessa forma, pensantespraticantes das redes sociais não apenas as utilizam passivamente, mas as subvertem em espaçostempos de afirmação que produzem artefatos, valores e compartilham, em interação com os demais, o que poderíamos denominar de uma “nova política de representação” (HALL, 1992) das formas de ser/sentir-se.
Como diz Kilomba (2019), com essas novas formas de linguagens, de conscientização de cultura de pares, pensantespraticantes vão produzindo existências singulares, coletivas, mutantes e pulsantes nas e através das quais podem finalmente encontrar a si mesmos/as e serem quem são; percurso que, para a mesma autora, começa com a conscientização e “responsabilidade de criar novas configurações de poder e de conhecimento” (KILOMBA, 2019, p. 11), novos modos de pensar o termo macumba.
3 PERCURSOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA
Para melhor analisarmos os espaçostempos das redes sociais Facebook e Instagram, com foco nos memes de macumba, seguimos os caminhos da pesquisa social de base qualitativa, que nos fundamenta para o trabalho de interpretação de imagens apoiadas em textos escritos. Seguimos por este caminho, pois estamos interessados nos modos como os sujeitos espontaneamente se expressaram sobre o que lhes fora importante e como pensaram sobre suas ações e as dos outros (OLIVEIRA, 2007). Tal perspectiva nos possibilitou observar conexões e constituições de processos sociais mobilizados nesta investigação. Portanto, possibilitou-nos perceber conceitos vinculados a posições dos pensantespraticantes através de suas crenças, valores, opiniões e informações partilhadas nas redes sociais virtuais.
Construímos o corpus de pesquisa selecionando memes popularizados, replicados por meio de hashtags (símbolo #), isto é, um código virtual que, ao ser acrescido à publicação, torna mais fácil sua localização na estante de assuntos ou temáticas divulgadas. Esta escolha se justifica porque a filtragem do conteúdo por outros meios, além de demandar mais tempo de seleção, gerou retorno muito amplo, que extrapolava o foco desta reflexão. Para a abordagem do tema e aproximação com questões de nosso interesse, buscamos pelos memes por meio das hashtags #macumba, #macumbeira, #macumbeiro no Facebook e no Instagram. Os termos foram eleitos por se constituírem enquanto elementos estruturais para a identificação de como são conceituados, percebidos e quais as ressonâncias provocam nos modos de vidas e existências das pessoas que com eles se identificam.
No Instagram é possível seguir (follow) qualquer uma das hashtags e diariamente receber no nosso aparelho telefônico os conteúdos indexados de modo bem facilitado, já no Facebook é preciso solicitar participação nos grupos específicos para cada fim (grupo de pontos, de banhos, de ritos etc.), que nem sempre são públicos e cujas postagens são mais compartimentalizadas e diversificadas, ou seguir cada página individualmente.
No Facebook, digitando a palavra “macumbeira”, por exemplo, a rede apresenta grupos, perfis, fotos, postagens, enfim, tudo em que a palavra aparece, não necessariamente memes ou conteúdo relacionado às religiões de matrizes africanas. Pesquisando a palavra “macumba” obtivemos retorno significativo na categoria grupos, privados ou públicos: Macumbaria oficial (42 mil membros); Mandingas, feitiços, ebós, simpatias, magias, macumbas e banhos (19 mil membros); Macumba online Brasil (11 mil membros); Macumbeiros da noite (94 mil membros); Jovem Macumbeiro (50 mil membros); Macumba sem preconceito (3 mil membros); dentre outros que expõem “charlatões”, divulgam eventos, pontos de macumba e até promovem encontros afetivos, como o grupo Macumba Tinder namoro espírita, candomblé, umbanda.
No Instagram, ao digitarmos a hashtag, o retorno de postagens com memes foi mais específico e rapidamente tivemos a dimensão da quantidade de conteúdo já existente na rede: #macumba tem mais de 110 mil postagens; #macumbeiros com mais de 5000 mil postagens; #macumbeira, #macumbeiro, #macumbeirosunidos e #macumbaonline com mais de 1000 postagens; #memesumbanda com mais de 100 postagens. Além dessas há muitas outras, com nomes de orixás, por exemplo, e geralmente uma postagem contém ao menos duas hashtags justamente para facilitar a viralização e o impacto nas redes. A partir da hashtag, é possível analisarmos a popularidade de memes tanto de microrresistências populares quanto da divulgação de conteúdo depreciativo. Podemos perceber que macumbeiras/os têm disputado seu lugar em um espaço em que ainda se vê a propagação de ideias negativas em relação às religiões de matrizes africanas, como na hashtag #chutaqueémacumba, que também dá nome a um grupo de humor com postagens aleatórias na rede Facebook. As disputas são evidenciadas pelas numerosas hashtags formadas em torno da palavra “macumba” ou de variações dela para divulgar conteúdos como forma de resistência e legitimação.
Nas ilustrações 1 e 2 a seguir, por exemplo, temos duas representações dessa legitimação por meio da ressignificação de dois memes famosos nas redes sociais. Na primeira, o famoso “Me solta, miga!6” ganha sua versão para os/as filhos/as de santo7, que, ao ouvir o barulho do atabaque (instrumento musical de percussão), comum nas celebrações religiosas de matrizes africanas, não se contêm e precisam ser liberados/as para conferir de perto. Na segunda, o ogã8 canta para Ogun9 que vem da cidade espiritual de Aruanda para saudar os filhos/as da umbanda porque segundo a cosmovisão ele abre todos os caminhos trazendo o progresso. Ciente da imensa responsabilidade do Orixá Ogun, o Ogã é respondido com bastante ênfase com a falange Ogun Iara10. Neste caso, a falange é chamada para auxiliar o Orixá nos enfrentamentos de demandas trazidas pelos adeptos/a da religião.
Para realizar algumas análises, portanto, observamos postagens, frequência e conteúdo, em seguida selecionamos 35 memes seguindo como critério: ser uma produção memética frequente nas hashtags e que propagasse culturas de raízes africanas, notadamente as religiões de matrizes africanas no Brasil, seus símbolos, artefatos, instrumentos etc.
Em análise inicial, foi possível agrupá-los em algumas categorias que se repetem na maioria das postagens, tais sejam: A. Conteúdo pedagógico sobre as religiões de matrizes africanas para praticantes; B. Uso de ervas e velas em rituais, preces e banhos; C. Pontos, músicas e versos que exaltam entidades espirituais/orixás; D. Preferência/afeição da entidade/orixá pelas filhas/filhos de santo; E. (Des)valorização de características de filhos/filhas de santo; e F. Subversão da lógica cristã, exposição da adoção conveniente de práticas de religiões de matrizes africanas por praticantes da doutrina cristã.
A partir das categorias, trouxemos nove memes para análise entendendo que as categorias observadas não são exaustivas, embora recorrentes, e que tendem a um objetivo comum: a subversão da lógica de opressão através da afirmação de si como macumbeiras/os e, por consequência, a afirmação de práticas e ritos das religiões de matrizes africanas, que desdobraremos a seguir.
4 SUBVERSÃO DA LÓGICA DE OPRESSÃO NA INTERNET: ASSUMIR-SE NA MACUMBA
O que antes era motivo de vergonha ou gerava medo de ações violentas e preconceituosas, hoje tem se tornado cada vez mais motivo de celebração em um país que rejeita a sua população negra de distintos modos na mesma proporção em que nega fazê-lo. Como pontua Veiga (2019), a sobrevivência identitária das pessoas africanas em condição de escravizadas se deu pela cultura, especialmente pelo resgate da espiritualidade, mesmo em condições horrendas – ou talvez por isso mesmo.
[...] A retirada forçada de sua terra, de sua comunidade, de sua língua, de seus laços afetivos e a subsequente diáspora pelo mundo como escravizados apresentou efeitos de desterro e de perda de referências tão acentuadas que a própria identidade e consciência corporal entraram num processo de desintegração. O resgate da cultura africana através do canto, da dança e da espiritualidade foram elementos fundamentais na preservação, ao menos em parte, da saúde mental dos africanos.
(VEIGA, 2019, p. 78-79).
Ainda que representando cerca de 54% da população brasileira, hoje o país ainda opera massivamente pela lógica do embranquecimento, estabelecida como política desde a chegada dos europeus ao continente americano, os quais colocavam a si mesmos no lugar de civilizados em detrimento dos povos tradicionais, tidos como bárbaros, ingênuos e incultos. Aqui, opera-se pelo enaltecimento da estética de pessoas brancas, suas formas de ser e ver o mundo, sua cultura e modo de experienciar a espiritualidade. Caetano e Silva Júnior (2018, p. 192) resumem bem os efeitos provocados pela visão do colonizador, pois este tanto “[...] silenciou e subalternizou os processos culturais indígenas e negros que, como consequência, suas crenças tornaram-se superstições ou demonizadas”. Nesse sentido, a caça às bruxas do passado ainda é usada como instrumento de um olhar colonizado para essas religiões.
Nas ilustrações 3 e 4, recuperamos memes com a Orixá Iemanjá, nas páginas Humor macumbeiro e Oxóssi irônico. Ambas evidenciam as contradições das/nas práticas de pessoas que criticam a macumba, mas sucumbem aos seus ritos quando lhes convém. Embora evidenciem a forma que cristãos tratam práticas da religiosidade de matriz africana, como mera superstição, as figuras femininas brancas demonstram que ainda perduram os efeitos da política de submissão das culturas afro aos processos de embranquecimento, para que se tornassem mais palatáveis ou mesmo purificadas, já que não foi possível eliminá-las de fato com a imposição cristã às pessoas africanas escravizadas.
Tais percepções, formas de representar e tratar as imagens sacras das entidades religiosas de matrizes africanas, levam-nos a pensar em como as estratégias usadas pela cultura hegemônica, baseada em uma matriz ocidental, branca etc., produz desigualdades e desfavorece grupos, culturas e conhecimentos historicamente subalternizados, invisibilizados. São pensamentos e percepções que nos remetem ao que nos afirma Kilomba (2019) ao tratar das marcas das diferenças produzidas pela cultura branca como estratégia de autoafirmação, conservação de um lugar de superioridade. Vemos que, mesmo em memes de exaltação às religiões de matrizes africanas, as Orixás ainda são muitas vezes representadas pela ótica do colonizador no que tange à objetificação e menos-valia de corpos de mulheres pretas/negras, ainda que sacros.
Na ilustração 3, Iemanjá é representada como uma mulher de pele branca, de cabelos lisos e corpo magro, no entanto, diferente do que observamos em qualquer imagem da Virgem Maria, por exemplo, esta Orixá é representada com seios fartos e quadris largos, com o colo nu, assim seu corpo fica destacado e acentuado na vestimenta. Trazendo Kilomba (2019), mais uma vez, ousamos analisar que isto não é por acaso e sim um dos modos de a cultura branca se apresentar como autoridade absoluta, enquanto tudo que não se enquadra na sua norma é exótico, subordinado e/ou inferiorizado.
Com efeito, percebemos que, ao longo dos processos históricos, as culturas advindas de povos não brancos, por isso não hegemônicas, sempre foram tratadas como inferiores, isso fica bastante evidenciado principalmente no que tange à questão religiosa. Depreende-se da modernidade11 a concepção de mundo, em primeiro nível, enquanto uma trajetória que parte do estado natural e chega à Europa; e, em segundo nível, são outorgadas às diferenças o caráter de natureza (racial) lhes retirando a dimensão da história das relações assimétricas de poder entre europeus e não europeus. O caráter de natureza dado entre as diferenças raciais afirmava uma “simetria dicotômica”, que, ainda que pareça simétrica, escondia a hierarquia e buscava manter a racionalidade refém da ideia de totalidade (MIGNOLO, 2005).
Em se tratando das religiões de matrizes africanas, a principal reação geralmente é a demonização seguida da negação, sendo que a inferiorização religiosa vem acompanhada da inferiorização racial. Nesse sentido, muda-se a cor da pele, os cabelos, mas mantém-se o status de inferioridade de modos mais sutis, que seguem reforçando a hegemonia cultural e atualizando a colonização de mentes e corpos (GROSFOGUEL, 2010; HALL, 2011). Nos memes a seguir fica expresso que a vigilância e controle seguem atuando para manter tais religiões sob o estatuto da subalternidade.
As ilustrações 5 e 6 demonstram bastante sobre o quanto seguem sendo aprisionadas as culturas afro pela ação violenta e repressiva do outro; em ambas percebemos que a repressão tem destaque. Para Costa Neto (2010), a ideia de que as religiões de matrizes africanas são ligadas a demônios sofre influências diretas da superioridade da cultura branca, cristã, europeia, da “falta de estudos sobre a cultura africana e dos afro-brasileiros” (p. 138), como também está diretamente entrelaçada “a conceitos racistas de valoração dos conhecimentos eurocêntricos, por via de consequência, desconstruindo as demais que nele não se enquadram” (p. 138). São ideias e concepções equivocadas que não só provocam generalizações, como podemos observar nas imagens extraídas/selecionadas das redes sociais, mas que (re)constroem retóricas e promovem visões de mundo ao mesmo tempo em que se recusa o reconhecimento da diversidade epistemológica.
Nos memes 5 e 6, fica expressa a vigilância e repressão ativa das famílias sobre a fé de pessoas não-cristãs. Primeiramente notamos que o macumbeiro/a representado/a em ambos parece ser ou estar em condição de solidão em sua família, não podendo professar sua fé publicamente, em almoços com seus familiares, tampouco em um dos seus momentos de intimidade: o banho. Tais situações na vida privada parecem ter como conclusão o silenciamento pelo medo da repressão. A água benta do meme nos parece uma clara demonstração da violação de um direito adquirido e da violência usada para exorcizar o que se instituiu como demoníaco, portanto, pertencente a dimensão do mal (COSTA NETO, 2010).
Entendemos que esses memes exemplificam as práticas racistas naturalizadas, pois, como afirma Mununga (1996), “o racismo brasileiro na sua estratégia age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz; é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus objetivos” (p. 215), podendo até passar como uma forma de cuidado – ora, se te vigio, é para te proteger da ação de agentes demoníacos, para te salvar do inferno. A força do discurso tem muito poder e assim direitos fundamentais são violados todos os dias no cotidiano brasileiro, tendo o aval de figuras políticas, artistas etc., porque, mais do que operar pela lógica cristã, o Brasil é um país que nega fazê-lo negando seus mecanismos de opressões.
Os debates apresentados pelos estudos decoloniais nos ensinam sobre a dualidade cartesiana que retroalimenta e torna sub-reptícia a (re)produção de estereótipos em relação à população negra (QUIJANO, 2005). No dualismo, quando pensamos sobre os ritos afro- brasileiros e suas narrativas, encontramos, no prisma de representações, a narrativa da negação. Nesse sentido, é como se coubesse ao sujeito subalternizado nessa estrutura a responsabilidade pelo desmantelamento daquilo que aflige cotidianamente seu coletivo.
Nesse sentido, quando pessoas disseminam conteúdo sobre suas práticas religiosas nas redes sociais geram riso, identificação, criam redes, contribuem para desmistificá-las, mas também podem reforçar práticas racistas ou de auto-ódio justamente pela ausência de conhecimento sobre as culturas afro. No entanto, ainda de acordo com Kilomba (2019), cabe reforçarmos que o desconhecimento sobre a cultura do outro é parte do projeto de poder, é uma artimanha do colonialismo; “historicamente, isso vem sendo usado como marca de opressão, pois significa negar a subjetividade das pessoas negras, bem com seus relatos pessoais de racismos” (p. 122) justamente para manter a hegemonia cultural sustentada na ideia basilar de que uns são humanos e outros não, que algumas práticas valem mais do que outras. Ainda assim, é inegável que, ao assumirem a denominação pejorativa com orgulho, geram uma quebra na expectativa do opressor em causar-lhes humilhação; ao rir de julgamentos e preconceitos sofridos por meio dos memes também os subvertem impulsionando sentidos outros.
Os memes em destaque a seguir também são famosos nas redes, são reproduções de cenas da saga 50 tons de cinza, Ilustração 7, e do filme Meninas malvadas, Ilustração 8, sempre ligados à ideia de “prazer por fazer qualquer coisa”. Em ambos, o amor pela macumba ganha centralidade.
Nos dizeres de Gomes (2012), afirmações públicas de amor pela macumba, como as dos memes, causam “um processo de ruptura epistemológica e cultural”. Entretanto, como são naturalizadas como verdades e realidade per se, interromper a lógica de dominação e subordinação torna-se ainda mais complexo. Ou seja, a brutalidade colonial produzida por meio de discursos, práticas e imagens vai historicamente produzindo invisibilidades, violências e uma simetria dicotômica segundo a qual outros povos (negros, índios, ciganos...), culturas e saberes são inferiorizados.
Chama a nossa atenção, por exemplo, a ausência de personagens negras/pretas nos memes, o que também pode ser entendido como fruto da ideia de superioridade da estética branca. Como podemos perceber, seguindo o que afirma Grosfoguel (2010), a colonialidade se sustenta por meio de uma estratégia epistêmica dominante de superioridade baseada em uma supremacia eurocêntrica, branca, cristã, que vai se firmando como natural e naturalizando as epistemologias hegemônicas, e, pouco a pouco, vai se colocando como única opção; porém, camufla-se e se escamoteia no cotidiano sendo disseminada sem que sejam expostos os seus agentes e mecanismos de ação.
Grosfoguel (2010) nos lembra que a “luta dos movimentos sociais-ancestrais” é sempre acompanhada de uma tentativa de apropriação de suas pautas. Assim, parece muito natural que as personagens mais comuns nos memes sejam brancas, muitos até justificariam que “não tem nada a ver com racismo, muito pelo contrário”, que os memes ficam famosos porque viralizam, que “isso é vitimismo”, que as religiões estão sendo exaltadas pura e simplesmente, dentre outras explicações que negam o racismo que estrutura toda a nossa sociedade.
Na ilustração 9, destacamos uma das poucas imagens que encontramos de uma mulher vestida com roupas brancas e com suas guias no pescoço, indumentária comum às filhas de santo, com dizeres que questionam novamente a hipocrisia de pessoas cristãs, as quais buscam auxílio no terreiro quando se veem necessitadas e somem quando curadas.
Os mecanismos de manutenção da subalternidade ganham refinamento constantemente e novamente reforçamos que não é por acaso que pessoas cristãs não reconhecem os terreiros como espaços legítimos de fé, de cura. A busca é sempre escondida e assim permanece para manter tais espaços em lugar de submissão e inferioridade, como se fosse um último recurso, validado apenas quando procurado por tais pessoais. Nessa linha de reflexão, as ideias contra-hegemônicas apontam para a reflexão crítica de que uma pluralidade de conhecimentos vai sendo ignorada, desconsiderada ou subalternizada em nome de uma matriz político-social e epistemológica considerada moderna, que “prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo, considerados como elementos constitutivos do universal” (CANDAU, 2011, p. 241).
Nesse sentido, expor essas contradições nos espaçostempos das redes sociais torna-se um importante instrumento de subversão da lógica cristã; como já mencionamos, as redes são palcos de disputas. O interessante é que elas têm se tornado também lócus de (re)existir das presenças macumbeiras/os, nas quais criam histórias e praticam desconstruções que colocam em evidência o apagamento das pluralidades e multiplicidades, inclusive as culturais. Assim percebemos que pensantespraticantes vão produzindo e ampliando narrativas de si e de outras subjetividades que compartilham do mesmo movimento pelos quais se afetam e são afetados. Ao se colocarem ativamente nas redes sociais, denunciando a sombra do ideal branco que os/as apaga simbólica e fisicamente, vão construindo outros modos e outras formas de conceituação e significados para si. Com base em hooks12 (2019), acreditamos que pensantespraticantes tomam para si, nessas disputas, o “direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas próprias histórias” (HOOKS, 2019, p. 42).
Ao resistirem, portanto, afirmam sua humanidade e caminham em direção à transformação e decolonização. Ao mesmo tempo em que vão disputando espaços para si e para ser, vão produzindo brechas e fissuras para escapar do caráter monocultural e da ordem das lógicas hegemônicas de conhecimento que se instituem e se materializam na nossa forma de pensar e perceber as culturas consideradas ou ditas como contra-hegemônicas, como as de macumbeiras/os.
4 ARREMATANDO OS FIOS DAS REDES, TENTANDO CONCLUIR
Nossa tentativa aqui neste texto-escritura-experiência, a partir dos espaçostempos das redes sociais e a partir da potência da autodesignação como macumbeiras/os, foi refletir sobre como pensantespraticantes de/em tais redes sociais vão produzindo deslocamentos e provocando movimentos que aumentam a potência da visibilização de saberesfazeres que se interseccionam em múltiplas possibilidades, que vão propiciando fluxos de formas e de reinvenção de um lógica hegemonicamente presente nas formas, modos de perceber e (re)conhecer culturas de matrizes africanas.
Nesse sentido, compreendemos o Facebook e o Instagram como espaçostempos diversos, permeados por infinidades de conceituações multifacetadas que vão sendo construídas e reconstruídas por meios de inúmeros significados e usos ambivalentes em redes, os quais são praticados pelos sujeitos. As redes suscitam problematizações potentes, saberes acerca de conceitos, significados que nos definem e definem os outros, formando redes de relações que se constituem em subjetividades normalizadas ou desnormalizadas, (des)respeitando e (des)valorizando, portanto, a alteridade.
Buscamos, nesse sentido, dialogar sobre como os memes podem ser também espaçostempos de (re)existências à visão reducionista e depreciativa lançada sobre a complexidade cultural; pois, ao visualizarmos os memes compartilhados nas redes sociais, muitas vezes temos a sensação de que lamentavelmente os espaçostempos das redes instauram processos deseducativos no que diz respeito ao trato com as questões da diversidade religiosa, dos marcadores das diferenças etc. Por meio dos memes que circulam pelas redes sociais Facebook e Instagram, confirmamos que não necessariamente tais espaços são de defesa da pluralidade existente no mundo, pois em muitos a opressão é escamoteada pela ideia de tolerância, exaltação superficial de direitos. Muitas vezes os memes relacionados à palavra macumba, macumbeira e/ou macumbeiro vão (re)produzindo a “não existência”, invisibilidade e depreciação contribuindo para a atualização de mecanismos de opressão já existentes. Em contrapartida, há também a produção de sentidos outros, mais positivos no que tange à legitimação e à exaltação de grupos não-hegemônicos.
Acreditamos, por essa razão, que, nesse cenário de produção de inexistências, operam (e podem continuar operando em um crescente movimento) também processos de humanização, transformação e decolonização. Sendo assim, um movimento de saída da sombra do eu-branco nos parece basilar para que este outro se constitua não como inferior, não-humano, mas recuperando o seu eu destituído, a sua visão de mundo e sua cultura ancestral, os saberes de seus povos, sua humanidade e sua cor.