1 INTRODUÇÃO
“Sempre senti a linguagem. Estou convencido, por outro lado, de que não é possível discutir linguagem sem discutir poder, sem pensar as classes sociais e suas contradições” (FREIRE, 1991, p. 137).
A escolha por abordar as significações da autonomia, a partir da voz docente, no momento de proposição curricular, revela mais um ponto de tensão verificado nos estudos desenvolvidos, sobretudo, a partir da década de 1990. Considerou-se oportuno aprofundar esses significados docentes no contexto de produção curricular local, por compreender esse momento e movimento como instância privilegiada de construir “inéditos viáveis1” no atual panorama de ressignificação também dos ideais democráticos e de participação em âmbito global.
O fluxo histórico na esfera educacional que remete, especialmente ao século XX, traz a democracia como condição sine qua non para instituições educacionais e práticas educativas que primem pela emancipação do homem. Mas o fluxo não corre apenas em uma direção ou de forma desinteressada, o discurso da democracia na educação esteve e está associado a diversos interesses que envolvem o saber-poder na tessitura do social.
Nesse interim, em pleno século XXI, a democracia é ressignificada e são muitos os sentidos atribuídos à proposição de uma escola e de um currículo mais democrático. Dessa maneira, o discurso da autonomia assume centralidade especialmente nos textos oficiais e, neste trabalho, tomo essa categoria como objeto de análise na proposição curricular da escola pública.
Dessa forma, uma questão se tornou relevante frente aos documentos da política educacional que enfatizam a autonomia no interior das escolas, especificamente ao tratar da produção do projeto político-pedagógico: de que autonomia se está falando? Quais os significados atribuídos pelos professores? Reafirma-se, nesse sentido, a importância de continuar a evidenciar a voz docente, a partir dos fluxos locais sem perder de vista a configuração das diretrizes políticas nacionais e globais no caso específico, de como vão significar a autonomia como prática política no interior das escolas.
Procura-se, neste estudo, analisar as tensões da política curricular que pressupõe autonomia docente no processo de construção do projeto pedagógico, compreendendo a autonomia como um requisito político, relacional e que sempre extrapola as instâncias de regulamentação institucional.
O discurso da autonomia é a batuta que vem regendo os textos legais em torno da construção curricular das escolas de forma mais intensificada nos anos 1990, desde o Plano Decenal da Educação 1993-2003 (PDE)2. Para o sucesso do Plano (BRASIL, 1993b), foi previsto novo padrão de gestão educacional por meio de um reordenamento que garantisse à escola a “importância estratégica” que lhe era devida. O fortalecimento da gestão e a ampliação da autonomia foram destacados como “direção prioritária” da política educacional. Na LDB 9394/96, a autonomia recebe destaque, também, quando garante liberdade às unidades escolares para elaborar o próprio projeto pedagógico. A orientação é que esse projeto pedagógico articule os contextos nos quais o estabelecimento se situa com as diretrizes curriculares nacionais.
A partir desse contexto, reafirma-se a importância de continuar a evidenciar a voz docente, a partir dos fluxos locais sem perder de vista a configuração das diretrizes políticas nacionais, nesse caso específico de como vão significar a autonomia como prática política no interior das escolas.
A relevância social do estudo reside, ainda, na possibilidade de oferecer condições ao professor, de confrontar a própria voz com a regulação instituída para a construção de um projeto curricular autônomo e, com isso, vislumbrar a prática discursiva que, para Fairclough (2001, p. 126), é um “modo de luta hegemônica, que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens de discurso existentes”. O percurso teórico que apoia as análises não se fecha sectariamente em abordagens marxistas, mas de forma despretensiosa reconhece as contribuições das novas investidas epistêmicas no campo social e, especificamente, no do currículo ao transitar por estudos de Moreira (1998), Popkewitz (1997, 2008), Goodson (1995), Pereira (2007), Dale (2004) e da própria metodologia de Análise Crítica do Discurso que recorre a Foucault para traçar uma compreensão de poder na constituição discursiva.
Na análise dos dados a abordagem é de Análise Crítica do Discurso (ACD) de Fairclough (2001), que é um linguista britânico. Suas proposições indicam que questões sociais e políticas-chave têm um caráter parcialmente linguístico-discursivo. Percebe-se a teoria de Fairclough (2001) como dialética, à medida que considera o discurso, por um lado, moldado pela estrutura social e, por outro, constitutivo da estrutura social. Pode ser entendida, ao mesmo tempo, como uma teoria e um método de análise.
Quando Fairclough (2001, p. 90) utiliza o termo “discurso”, o faz considerando o uso da linguagem como forma e prática social. O discurso é um “modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e, especialmente, sobre os outros como, também, um modo de representação”; o discurso pode ser “moldado e restringido pela estrutura social”, enquanto significa e produz significados.
O modelo tridimensional é considerado por Fairclough (2001) como teoria social do discurso, o que significa entender que, ao se fazer interpretações acerca de ideias, crenças, identidades, relações, alocam-se também elementos linguísticos de modo a fornecer evidências das interpretações que se fazem. Dentro da compreensão da ACD, os modos de dominação no contexto social configurado como democrático, é mais importante dominar por meio de consentimento do que por coerção.
2 TEMPOS E SUJEITOS EM ENUNCIAÇÕES POLÍTICAS
O estudo em questão se reporta aos dados de pesquisa desenvolvida até 2015, no município de Campina Grande-PB, em três escolas públicas e com dez docentes do Ensino Fundamental. As entrevistas também aconteceram por adesão das professoras de cada instituição, a gestora fazia a apresentação da pesquisadora e dos objetivos do estudo e elas se habilitavam a conceder a entrevista. Na primeira escola, foram feitas quatro entrevistas, na segunda e na terceira, em ambas, foram feitas três.
Para realização da entrevista foi desenvolvido um roteiro semiestruturado com doze questões no intuito de aprofundar a reflexão e rearticular os discursos das educadoras a alguns direcionamentos da política oficial. As entrevistas ocorreram na própria escola, por opção das professoras. Foram agendadas, previamente, também, por elas.
Buscou-se priorizar professoras que estavam atuando, pelo menos, há cinco anos, no Ensino Fundamental I, por entender que, durante esse tempo, elas conheciam a organização do ensino municipal e os projetos em execução na escola. A faixa etária das professoras variou entre 32 e 53 anos. O gênero feminino foi preponderante, o que permitiu destacar o feminino na acepção semântica de professora, sempre que se fizer referência aos sujeitos da pesquisa.
O contexto das escolas públicas municipais que foram lócus da pesquisa está situado no município de Campina Grande - PB. A cidade é apontada como um grande polo industrial, bem como um dos maiores polos tecnológicos da América Latina. É destaque por ser um centro universitário. Conta com quinze centros e faculdades de ensino superior e duas universidades públicas.
As escolas em que foram coletados os dados das professoras estão situadas em bairros e zonas distintas da cidade de Campina Grande - PB. A primeira escola está na Zona Sul, a segunda instituição na Zona Leste, e a terceira escola da pesquisa se encontra na Zona Oeste da cidade. São escolas que atendem em média 400 alunos nos três turnos. Os professores, em todos os casos, possuem curso superior cursado em universidades públicas ou autofinanciados.
As professoras que foram participantes da pesquisa podem ser consideradas naquilo que o “Estudo sobre ser Professor Brasileiro” (BRASIL, 2009) considera como “típico”. Formam um quadro predominantemente feminino e têm em média 35 anos. Possuem curso superior e, de forma surpreendente, financiam sua própria formação, seja em nível latu sensu ou strictu sensu. A disparidade em relação aos dados do citado estudo está no fato do número de turmas e escolas em que esse professor trabalha. Das docentes pesquisadas, cem por cento trabalha em duas ou mais escolas e, infelizmente, em dois ou mais turnos. Há professoras que trabalham dois turnos na escola municipal e ainda são prestadoras na Rede Estadual de Ensino, à noite.
O contexto é revelador e, como prática social discursiva, já dá indícios de análise que justificam o aparecimento recorrente da palavra “tempo” naquilo que elas apontam como dificuldade de pensar os problemas da própria instituição, bem como do seu currículo.
Para Fairclough (2001), em termos de análise surge sempre a dúvida quanto ao que fazer primeiro, se a análise textual, se a discursiva, se a social, pois elas vão estar superpostas na prática, mas sugere que adotar uma sequência é útil para conduzir o trabalho. Assim, ficam explícitos os marcadores ideológicos e hegemônicos do discurso ao se fazer a opção pela prática social, como primeiro elemento a ser analisado.
Na visão de Contreras (2002), o que parece comum nas recentes políticas educacionais é precisamente uma nova definição das relações entre as escolas e a sociedade. Isto significaria mais autonomia para os professores? Que tipo de autonomia?
A seguir, serão apresentadas algumas significações da autonomia na voz docente, que estão situadas nesses contextos escolares. A Análise Crítica do Discurso será o subsídio epistemetodológico para proceder ao trabalho de visualização dos “campos de força” na produção discursiva da autonomia no âmbito de produção curricular.
3 ANÁLISE DA PRÁTICA SOCIAL: ALGUMAS MARCAS IDEOLÓGICAS E HEGEMÔNICAS QUE DEMARCAM OS DISCURSOS
A proposta de Análise Crítica do Discurso, conforme Fairclough (2001), engloba três fases. A ordem de análise compete ao pesquisador e, dentre as apresentadas: Análise do texto, análise da prática discursiva e análise da prática social, optou-se por fazer incursões iniciais na prática social.
A tarefa de examinar os sentidos da autonomia no discurso docente pressupõe adentrar em um contexto eivado de tessituras políticas, história, cultura e relações de poder; por isso é necessário ter clareza do quão ínfima pode ser a análise feita diante de tantos condicionantes. No entanto, essa é uma tarefa ético-política da pesquisa, quando procura verificar a quem serve e como são estruturados os discursos que supõem autonomia no momento de proposição curricular.
Assim, é importante pensar o movimento da linguagem na construção dos discursos, a partir de Fairclough (2001), e na afirmação de Freire (1992b, p. 68) quando adverte: “não é puro idealismo, acrescenta-se, não esperar que o mundo mude radicalmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo”. Nesse sentido, a relação entre linguagem-pensamento-mundo é dialética.
A indagação sobre a autonomia começou por questões mais amplas sobre como ela compreendia o projeto político-pedagógico da escola e como via sua participação. A primeira questão se referia à escola. As professoras, de forma unânime, afirmaram que a escola não tem autonomia.
Eu acho que foi uma coisa que foi tirada da escola. E a resposta não preciso, né, tá aí a resposta. (...) Hoje você não pode punir nenhum aluno, reclamar... num é punir, colocar de castigo, mas você não tem autonomia, você... a gente... o aluno faz e acontece como agora aqui... (Professora 2).
A ideia que a autonomia foi “tirada” da escola remete à questão do discurso veiculado da autonomia escolar como se fosse algo concedido e outorgado por outrem. A fala ainda revela um processo de desautorização da docência perante comportamentos dos alunos.
A ideia exposta pela professora de que a autonomia foi retirada revela ainda as sutilezas da invisibilidade do modo de regulação que recai sobre as escolas e sobre o trabalho docente. Não se sabe identificar quem está retirando essa autonomia ou quem está atrapalhando essa autonomia.
Na fala das professoras é interessante perceber que elas não desvinculam a autonomia da escola da autonomia profissional. Ao responder sobre a autonomia da escola elas recorrem ao trabalho que desenvolvem dentro das escolas.
Professoras 6 - (Silenciamento. Respondeu em primeira pessoa): “Eu sou autônoma no que eu faço, eu tenho essa autonomia, quando não me dão brecha eu brigo por ela e eu sempre digo aqui às meninas: gente vocês têm que ser autônomas no que vocês fazem, no que vocês querem, nas ideias de vocês, se vocês...”
A professora, ao responder em primeira pessoa, anuncia um “não dito”, o que permite pensar que na visão dela a escola não tem autonomia.
Au, au, autonomia... (interrupções). É é, na questão da da autonomia das escolas, ela ainda é é uma autonomia é... é... a gente pode dizer esfacelada, né, a gente em algum, alguns momentos, a gente tem uma certa autonomia, em outros a gente não tem praticamente nenhuma (Professora 8).
Autonomia nós não temos, até porque eu sinto isso, você vai encontrar nas salas que nós temos uma autonomia vigiada. Por quê? Porque o PPP é da escola, mas ele tem que tá baseado aonde? Nos regulamentos, regras e normas e conteúdos programáticos que a rede é quem nos respalda. Quem é nosso vínculo com o FNDE? A secretaria de educação. Então essa autonomia em si não existe, existe na sua cabeça como profissional (Professora 1).
Em alguns momentos do discurso, a autonomia da escola supõe uma compreensão de liberdade total sem controle, mas as falas vão se refazendo no percurso e se conectando a outros aspectos. Na fala das professoras é interessante perceber que elas não desvinculam a autonomia da escola da autonomia profissional. Ao responder sobre a autonomia da escola, elas recorrem ao trabalho que desenvolvem, mas, supõe-se que a compreensão de participação política pedagógica em algumas falas nem sempre pode ser caracterizada como positiva, conforme aponta Martins (2002), quando considera dois níveis de participação, entendendo-a como desejo e motor para ação: positiva e negativa.
A noção das professoras sobre autonomia da escola não permite que seja feita uma análise individualista ou psicologista, pois, para Contreras (2002), assim como se pensa em valores morais como noções não individuais, da mesma forma a autonomia não é uma capacidade individual, mas se constitui num exercício de prática social. O esfacelamento que é citado pela professora 8 (oito) remete ao entendimento do autor ao destacar: em alguns momentos a gente tem uma certa autonomia, em outros a gente não tem praticamente nenhuma. Assim, não faz sentido falar que algo ou alguém é autônomo, mas que se podem identificar processos ou situações nas quais se tem ação autônoma.
Outra preocupação que merece destaque é a de Contreras (2002), quando pensa na concepção de autonomia como competência. Se as escolas começarem a se ver como autônomas e cada uma buscar aquilo que deverá dar qualidade a seu trabalho, ser destaque em programas de ranking difundidos em algumas políticas, corre-se o risco do que ele chamou de política do isolamento:
A autonomia contextualizada, a partir de um momento importante de decisão curricular, que é o processo de construção do projeto político-pedagógico, assume direções variadas, mas não está centrada no entendimento de que seja “liberdade para tudo”. As professoras dimensionam o ato pedagógico dentro de uma esfera hierárquica que determina e regula o trabalho. Algumas falas são bem ilustrativas nesse sentido: “Pra mim é a liberdade de fazer, fazer com responsabilidade também né, não seria o fazer por fazer, até porque o nosso trabalho não pede isso, não pede um fazer de qualquer tipo... então é fazer com responsabilidade” (Professora 7).
A ideia de autonomia como movimento de responsabilidade é uma assertiva interessante e que perpassa a maioria das vozes docentes. Pode ser considerada uma (contra)hegemonia discursiva na medida em que é uma voz predominante dentro do grupo docente e, ao mesmo tempo, uma forma de resistência ao discurso da autonomia de forma outorgada, que está circunscrita nos documentos que regulam a educação nacional e, especialmente, o currículo local. As docentes fazem questão de enfatizar a responsabilidade dentro do movimento de liberdade, mas reivindicam esse movimento com mais autenticidade no momento de proposição curricular.
A leitura que fazem do seu contexto, mesmo dentro das limitações, constitui uma aposta crítica das situações-limite em que se encontra o “inédito viável” em consonância com a abordagem de Freire (1992a, p. 106), que se traduz no que elas compreendem como autonomia. Assim faz-se necessário destacar esse conceito de forma mais detalhada:
O inédito viável é na realidade uma coisa inédita, ainda não conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um percebido destacado pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade. Assim, quando os seres humanos conscientes querem, refletem e agem para derrubar as situações-limites que os e as deixaram a si e a, quase todos e todas limitados a ser menos, o inédito viável não é mais ele mesmo, mas a concretização dele no que ele tinha antes de inviável. Portanto, na realidade são essas barreiras, essas situações-limites que mesmo não impedindo, depois de percebidos-destacados, a alguns e algumas de sonhar o sonho, vêm proibindo à maioria a realização da humanização e a concretização do ser mais (FREIRE, 1992a, p. 206-207).
A perspectiva positiva de uma práxis possível na abordagem freireana remete a querer mais e impõe uma ação política pautada na vocação ontológica do ser mais. O caráter dialético da compreensão do trabalho docente, como um trabalho mediado por relações de saber-poder que impulsiona a entender cada vez melhor a ação pedagógica e a quem se destina.
A autonomia compreendida como relação social acaba surgindo de maneira mais acentuada no discurso docente, à medida que vão tecendo comentários para além da resposta sobre o que é autonomia. As professoras não vivem de forma tranquila as marcas da regulação ideológica de mercado em que falta o momento coletivo de decisão sobre o currículo escolar, como segue no diálogo:
PROFESSORA - Olhe, a autonomia na verdade dentro de um, de um conjunto, de um trabalho como o nosso aqui da educação, essa autonomia deveria ser discutida coletivamente, deveria ser um trabalho de equipe...
PESQUISADORA - O próprio entendimento de autonomia.
PROFESSORA - Tá entendendo?
PESQUISADORA - Sim.
Então o teu entendimento de autonomia, que aqui a gente já tá passando pra outra questão, autonomia pra você ela não passa por um entendimento individual?
PROFESSORA - Não. Depende de cada, cada caso é um caso, eu acho que numa instituição de trabalho a autonomia é conjunta.
PESQUISADORA - Hum, ótimo.
PROFESSORA - Tá entendendo? Que é justamente essa a minha dificuldade, que é justamente esse..., na minha cabeça não entra da forma que está o que está acontecendo, que é isso que está me maltratando, me desgastando (Professora 9).
As professoras não são apenas colonizadas pelo discurso do mercado, percebe-se um contexto de exigências mercadológicas, orquestrando a dinâmica das escolas e, por seu turno, a produção curricular docente fazendo-se hegemônica. Para Faiclough (2001, p. 122), que parte de uma compreensão gramsciana, a “hegemonia é um foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter e romper alianças e relações de dominação/subordinação, que assume formas econômicas, políticas e ideológicas”. Popkewitz e Lindblad (2001, p. 126) ajudam também a entender o atual cenário, no qual "as estatísticas constroem classes de pessoas, inventários ou perfis de pessoas que podem ser geridas". Assim, as estatísticas constroem normas e criam mecanismos de disputas entre as instituições escolares que não têm como alvo, necessariamente, a formação para a cidadania e sim um modelo “campeão”, do ENEM, do SAEB, entre outros.
Ao indagar o entendimento de autonomia, na dinâmica de proposição curricular, as docentes reforçam a ideia de muitas críticas que já se desenvolveram em torno da ação do professor. Enquanto os formuladores das políticas educacionais estiverem restritos a “fazer” esse trabalho, numa perspectiva de clausura racional com vistas ao alcance de estatísticas, estará se reduzindo a complexidade da prática educativa.
Dona de suas ideias é dona do poder de executá-las, é... essa é... dona de de.... de autoria sua, como pessoa, como profissional. Ângela, a gente... eu não sei ser uma pessoa e de forma diferente ser uma profissional. Ângela, é uma herança. Por mais que você queira disfarçar você não consegue, porque você está ali, o seu eu está ali presente, verdadeiro eu, num é? (Professora 2).
A professora articula elementos importantes que constituem sua prática pedagógica no entendimento da autonomia. A cultura, a subjetividade aparecem como elementos que dão forma à existência dessas práticas. Qualquer forma de enquadramento típico de modelo curricular sofrerá esse amoldamento humano histórico que, sem um processo de indagação e aperfeiçoamento constante, pode subestimar a complexidade da ação pedagógica. O trabalho docente compõe uma dinamicidade única por exigir um olhar interdisciplinar, sensível e articulado no tempo e no espaço social, o que requer formação continuada e respeito pelo lugar e condições de trabalho desse profissional.
O que precisa ser questionado nesse processo de construção da autonomia da escola e dos docentes é se estão sendo criadas condições para, em conformidade com as DCNs (BRASIL, 2013), LDB (9394/96), entre outros documentos, fazer do Projeto Político-Pedagógico (PPP) o “ponto de partida para a conquista da autonomia”:
O projeto político-pedagógico, nomeado na LDB como proposta ou projeto pedagógico, representa mais do que um documento. É um dos meios de viabilizar a escola democrática e autônoma para todos, com qualidade social. Autonomia pressupõe liberdade e capacidade de decidir a partir de regras relacionais. O exercício da autonomia administrativa e pedagógica da escola pode ser traduzido como a capacidade de governar a si mesmo, por meio de normas próprias (BRASIL, 2013, p. 47).
As significações políticas da autonomia na voz docente, bem como nos documentos que oficializam nossa educação, e até mesmo os ideais democráticos sob a égide da autonomia, estão molhadas ideologicamente. O discurso da autonomia na voz docente, entendido como discurso investido ideologicamente, incorpora significações que contribuem para manter, bem como para reestruturar relações de poder:
Eu me sinto, mas eu tenho que me podar (...) (Professora 2).
Eu sou autônoma no que eu faço, eu tenho essa autonomia, quando não me dão brecha eu brigo por ela (...) (Professora 6).
Olhe, a autonomia na verdade dentro de um, de um conjunto, de um trabalho como o nosso aqui da educação, essa autonomia deveria ser discutida coletivamente, deveria ser um trabalho de equipe (...) (Professora 9).
A autonomia presente nos textos endereçados às instituições e professores exercem poder dentro de um equilíbrio instável. A hegemonia que se percebe ante o quadro pintado nas configurações políticas locais e globais, conforme Fairclough (2001, p. 122), “é a construção de alianças e integração muito mais do que simplesmente a dominação de uma classe subalterna, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento”. A hegemonia que se quis analisar no discurso da autonomia se revela como “foco de luta constante” nas últimas décadas em que a descentralização assumiu o tom da solução para a reestruturação da escola, bem como do trabalho docente. A luta hegemônica, como sugere o estudo, debruça-se sobre pontos de maior instabilidade e assume “formas econômicas, políticas e ideológicas”.
Embora reconheça a hibridade do discurso docente sobre autonomia, não sou adepta dos movimentos de entendimento curricular que restringem os discursos curriculares como híbridos que, segundo Dussel (2005, p. 70), “combinam distintas tradições e movimentos disciplinares, construindo coalizões que dão lugar a consensos particulares”. O autor adverte que é necessário prudência e distanciamento do que considera “mera celebração do pluralismo, que crê que a multiplicidade ou o magma de discursos envolvidos na hibridação elimina per se as hierarquias e os binarismos”. Autonomia é e não é. Tem e não tem.
No discurso ambivalente e assimétrico nas formas de dizer autonomia é importante destacar que talvez a melhor questão para sentir a compreensão docente não tenha sido a que pedia para que conceituassem a autonomia, mas a forma como faziam para selecionar os conteúdos para sua turma. Apesar de fazerem críticas também à ausência de planejamentos didáticos específicos, e à própria dificuldade e necessidade do espaço coletivo, a autonomia assume domínios de individualidade.
Na análise do discurso da autonomia no contexto das políticas, mesmo vendo-o como processo de hibridação, ficou claro que alguns sentidos são mobilizados na direção da produtividade e eficiência pedagógica, mas estão reprimidos, em alguns casos, os sentidos de profissionalidade e autocriação histórica. A partir das circunstâncias institucionais e organizacionais da feitura política local em que os discursos foram captados, é possível afirmar que ficam explícitas marcas ideológicas que supõem o professor um semiprofissional nos processos de decisão curricular.
Destacam-se, a seguir, de forma mais explanatória, os outros momentos de análise que visam a conectar as marcas ideológicas e hegemônicas do discurso político docente na significação da autonomia, quais sejam: análise da prática discursiva e análise do texto. Conforme Fairclough (2001), a ordem de análise do discurso depende dos propósitos de ênfase do pesquisador, por isso, focalizam-se as configurações políticas que incidem sobre o reconhecimento de elementos ideológicos (hegemônicos) e políticos, ou seja, análise da prática social e da prática discursiva. Os elementos de análise do texto não foram priorizados no recorte do estudo.
4 ANÁLISE DA PRÁTICA DISCURSIVA
A análise da prática discursiva consiste em levantar aspectos do discurso em relação à produção, distribuição e consumo de textos produzidos de forma particular em contextos sociais. Nesse caso, pode ser um texto da política educacional, bem como o texto docente em questão. Essa análise é interpretativa, pois trabalha com a natureza da interpretação textual. Alguns aspectos serão analisados, como a intertextualidade e interdiscursividade nas condições da prática discursiva, até então em processo de análise.
O texto docente está sendo analisado na articulação com alguns textos políticos de âmbito regulatório/legislador da política educacional brasileira, mas isso não significa que os textos de marco regulatório não contenham a participação ativa de movimentos sociais e instâncias sociais propositivas, como no caso da CONAE, LDB, DCNs, entre outros. Esses textos são multiformes e a análise ajuda a compreender melhor essa dinâmica. Não existe texto puro na perspectiva de análise em questão, pois mesmo sem participação direta de grupos diversos na formulação de um texto, ele sempre terá pistas de outros textos como resultado de relações sociais dinâmicas em que se busca consentimento, poder e legitimidade política no jogo de forças.
4.1 Intertextualidade
A recorrência explícita a outros textos específicos não foi verificada com tanta frequência nas vozes docentes, mas, de maneira geral, afirma que tem que fazer o projeto político-pedagógico, como afirma a LDB (9394/96) e os direcionamentos da Secretaria de Educação local. Esse texto está bem incorporado no discurso docente e não foi problematizado. Há de forma explícita o discurso de compreensão do PPP de forma intertextual, a exemplo da afirmação que ele é um plano de identidade da escola, que dá estrutura e sentido à escola, da mesma forma como está nos documentos legais e nos textos técnicos acadêmicos que versam sobre o tema. Ele é um instrumento importante de decisão na voz docente, mas de que forma as professoras têm assumido essa participação? Parece haver uma reprodução discursiva da importância que ainda não se consubstancia na prática pedagógica no momento de assumir a responsabilidade pelo processo.
Outra marca intertextualmente ancorada em princípios políticos, comuns nos textos pedagógicos, é uma forma de intertextualidade presente: “Trabalhar dentro da realidade do aluno” é uma sentença constante nas falas, mas como essa realidade é captada, sem um projeto coletivo e comum? Outra palavra que merece destaque, nesse mesmo sentido, é “respeito pela clientela”, a palavra cliente sendo absorvida quando a escola e a profissão docente são quase mercado.
No discurso docente e no contexto discursivo das políticas há marcas de metadiscurso, que consiste numa forma peculiar de intertextualidade. O falante fica acima ou fora do seu próprio discurso no sentido de controlá-lo ou manipulá-lo. A autonomia aparece com certa exterioridade.
Eu acho que essa autonomia é para algumas coisas, não é? Pra algumas coisas que vão favorecer uma instância maior, porque a gente sabe que a gente vive numa pirâmide, né? Então essa autonomia é só quando teria que se resolver seria a secretaria de educação, então ela tá jogando tudo para as escolas, aí a escola abarca e no final de contas ela termina sem fazer nada (...) (Professora 10).
No Art. 2° das diretrizes do PNE 2014, a diretriz VI coloca a “promoção do princípio da gestão democrática da educação pública” e a meta 19 que propõe “assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação”, lança como estratégia a Estratégia 19.7: “favorecer processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira nos estabelecimentos de ensino”. O projeto político-pedagógico assume, mais uma vez, condição importante para o favorecimento da autonomia; no entanto como apontou a pesquisa anterior (ALBINO, 2006), bem como nos liames deste estudo, os professores atestam que esse momento não acontece na escola pela hiperburocratização do excesso de programas que a escola precisa coordenar, bem como pelo tempo que as docentes não têm em função das triplas jornadas de trabalho.
Fairclough (2001, p. 173) afirma que leituras resistentes podem desarticular, em diferentes graus, a articulação de um texto. “As interpretações resistentes são um modo de luta hegemônica quanto à articulação dos elementos intertextuais”. Há resistência ao modo como a autonomia é requerida e como a tarefa de fazer um projeto pedagógico próprio chega da secretaria. “Eles pediram”, “Eles disseram que tinha que fazer”. O sentido de que autonomia é requerida de fora para dentro da escola pode sugerir essa resistência, que não é por ser resistência que é propositiva, apenas impede que seja feito da forma como “a secretaria quer”. É um processo significativo de subjetivação docente, mas que demonstra o que Fairclough (2001, p. 158) enfatiza como uma visão dialética da relação entre discurso e subjetividade: “os sujeitos são em parte posicionados e constituídos no discurso, mas eles também se envolvem na prática que contesta e reestrutura as estruturas discursivas” (ordens do discurso) que os posicionam.
Ao elencar os elementos de análise intertextual, Fairclough (2001) destaca a ironia, não apenas nas definições que já são comuns de dizer uma coisa e significar outra. Para ele, em um enunciado irônico, ecoam outras vozes, outros enunciados. A fala de uma professora é bem emblemática nesse sentido, ao ser perguntada pela pesquisadora: Como é que você percebe essa autonomia dentro da escola? - “... É o medo da diretora de perder o poder (risos), perder o cargo, voltar pra sala de aula, não consigo falar...” (Professora 7).
A ironia se refere possivelmente ao modo de gestão da escola. Não é demais falar da nossa inexperiência democrática lembrada já nos primeiros escritos de Freire, quando articulava o olhar sobre a formação do homem brasileiro nos escritos de Gilberto Freyre. Pensar autonomia no contexto da escola pública brasileira ainda é pensar nos resquícios dessa formação do povo e do quanto ainda se está tentando engatinhar na compreensão da democracia como ideal de participação ativa nos processos de decisão curricular. As tensões na significação da autonomia até então demarcadas acabam por elucidar a imaturidade, bem como os formatos de direcionamento das políticas que minam as possibilidades de criação autêntica do ser-fazer docente.
4.2 Interdiscursividade
A análise da prática discursiva consiste em perceber como um discurso é constituído por meio de uma combinação de “ordens”. A partir de Fairclough (2001), bem como de acordo com Charaudeau e Maigueneau (2004), a interdiscursividade parte do seguinte princípio de que todo discurso tem a capacidade de estar em posição multiforme com outros tantos discursos.
No contexto de análise das vozes docentes, os sentidos de necessidade de mudança estão presentes no discurso. A mudança como necessidade e urgência e, implicitamente, o discurso de que a escola também precisa mudar. As configurações sociopolíticas das últimas décadas conseguiram naturalizar e afirmar o discurso de que a escola era incompatível com as necessidades do novo mundo “globalizado”. Nessa perspectiva, indagações sobre o tipo de conhecimento são postas em escala mundial. A autonomia traduzida no plano interdiscursivo funciona com o sentido de sobrevivência e formação individual para ascender na profissão e estar no ritmo do mundo globalizado.
O texto político legislador também vai buscar suas bases de sustentação no léxico da liberdade e para além do texto escrito, as falas das autoridades que versam sobre educação se sustentam em pilares do discurso histórico da emancipação. Para Freire (1996, p. 144), "o discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua ética é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente". O individualismo que se desenvolve nas escolas, sob a forma de que cada um faz o seu trabalho em sua sala não seria uma assimilação real e ressignificada do atual contexto de subordinação educacional aos léxicos da autonomia e descentralização?
O recurso interdiscursivo que faz um texto se mesclar ao outro, nem sempre de forma explícita, reporta às motivações da pesquisa em questão que é a disposição de um discurso de autonomia e liberdade às escolas e o olhar sobre a burocratização que insiste em se sobrepor ao momento de proposição curricular local, sob a perspectiva da valorização do olhar das docentes. Freire (1996, p. 128), com toda sua disposição sensível, humana e crítica, fala de “um sinal dos tempos” que entre outros o assustava:
[...] a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão, a criatividade e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando ‘burocratização da mente’.
Isso que Freire (1996) chamou de burocratização da mente, como estado de estranheza, de “autodemissão”, incorpora-se ao discurso docente no momento em que elas investem no discurso da fatalidade quanto à enxurrada de pacotes que chegam às escolas, mas que se transmutam em outras vozes na contestação, ousadia e esperança, quando acabam reforçando a ideia de muitos estudos que envolvem as políticas curriculares: a política não é apenas reproduzida no chão da escola, ela também é assimilada, ressignificada e contestada quanto aos seus objetivos.
Fairclough (2001) compreende que a interdiscursividade é basicamente a forma como um tipo de discurso vai sendo constituído por meio de combinação de elementos de ordens do discurso. Assim, o discurso da autonomia comporta ordens diferenciadas, mas que interagem entre si. Em alguns momentos são assimiladas nas práticas docentes, sob a égide da eficácia e produtividade no mundo global e em outros são contestadas por outras ordens de cunho mais societário e de trabalho coletivo que se traduz no entendimento de autonomia como princípio de dignidade humana pautada na compreensão de liberdade e democracia em Freire e na ação moral em Kant.
4.3 Coerência e força
No texto legislador, a força que é dada ao docente é bastante significativa, mas no contexto de produção das práticas ele se diz “pequeno”. A professora 5 no retorno da pesquisa se coloca dessa maneira ao contextualizar as forças que minimizam a autonomia docente: “A gente sabe muitas vezes o que deve ser feito, mas não é fácil brigar por aquilo que acreditamos, a gente é pequena, entende?”. O texto docente nem sempre apresenta uma coerência entre o que se diz que acredita e sabe com aquilo que se realiza como também foi apresentado na fala da docente a seguir:
É a gente ter liberdade para pensar junto com a comunidade escolar sem ter que ficar preso o tempo inteiro aos temas que a secretaria de educação sempre sugere. É poder fazer o que você acredita e, pra falar a verdade, ultimamente tô me sentindo uma escrava que está perdendo as forças, porque é muito difícil também a gente fazer o que acredita... não é fácil (Professora 2).
Para Fairclough (2001), os textos postulam sujeitos intérpretes e implicitamente estabelecem posições interpretativas para eles que são “capazes” de usar suposições de sua experiência anterior, para fazer conexões entre os diversos elementos intertextuais de um texto e gerar interpretações coerentes. No entanto, não se pode fixar uma compreensão de que os intérpretes sempre resolvam plenamente as contradições de textos, nessa cadeia intertextual que envolve sentidos que as docentes vão configurando às possibilidades de autonomia.
4.4 Ordens do discurso
Algumas tendências de mudança de ordens de discurso apontadas por Fairclough (2001), como a comodificação, foram verificadas, tanto na voz docente como no discurso das políticas educacionais. “Em termos de ordens de discurso, podemos entender a comodificação como a colonização de ordens de discurso institucionais e mais largamente da ordem de discursos societária por tipos de discursos associados à produção de mercadoria” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 255). A gestão democrática (descentralizada e autônoma), a competência, a habilidade e a comunidade são marcas dos discursos, mas o discurso comodificado costuma ser contraditório, como sugeriram algumas vozes docentes. Ao mesmo tempo em que exteriorizavam o projeto curricular como algo de “dentro para fora”, indicavam que sem ele ficariam como “uma nave sem direção”. No PNE (BRASIL, 2001) e LDB (BRASIL, 1996), as professoras são colocadas como sujeitos ativos e capazes de pensar a escola, mas historicamente ainda são ignoradas na formulação de políticas de sua própria formação.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A autonomia na voz docente é a capacidade de escolher e decidir com responsabilidade. É um exercício político de uso da liberdade no chão da escola. É um processo de compreensão profissional. Diante da riqueza de vozes docentes foi possível trabalhar algumas filigranas de sentidos expostos na significação da autonomia, contextualizando, para isso, o momento de proposição curricular, qual seja, o Projeto Político-Pedagógico (PPP).
A autonomia na voz docente, apesar dos limites da prática pedagógica concreta, não assumiu, em todas as vozes, feições de liberdade total para um fazer sem limite. As professoras, tensionadas sobre a autonomia individual e coletiva, conseguiram dar um entendimento de autonomia numa perspectiva relacional, mas de forma ambígua reafirmam a força da ação individual na sala de aula. Nesse sentido, é possível reafirmar a ideia de que o currículo é ressignificado no contexto da prática docente. As políticas educacionais nem sempre cumprem seus objetivos dentro de uma totalidade hegemônica e de um consenso pacífico.
O discurso da autonomia nas prerrogativas legais do Brasil também está sob essa ambiguidade, uma vez que é significado para estimular as condições de um processo democrático com referências à capacidade individual e coletiva no âmbito da escola e, ao mesmo tempo, assume feições autoritárias de outorga, bem como é desconstruído por justificativa de que a escola e os professores precisam, cada vez mais, de diretrizes para o seu trabalho.
A autonomia assume, contudo, um entendimento de experiência existencial, desde a compreensão filosófica aristotélica até chegar às análises freireanas de ser político na contemporaneidade. Assim, para iluminar o percurso, buscou-se trazer autores que trabalhavam a temática numa perspectiva histórica crítica, reportando-se a autores que incorporam outros fundamentos de análise social e que se amparam em insights “pós”.
A autonomia, como outorga no texto político, parece querer negar as relações assimétricas de poder entre as docentes envolvidas na rotina automática e burocrática com aqueles que “planejam a autonomia curricular”. A autonomia na análise do discurso contempla campos em disputa. As professoras incorporam o discurso opressor ao assumirem a urgência e o tempo de mudança como relação inadiável. Mas, não só reproduziram, mas também desafiaram as ordens do discurso sobre a autonomia. Os significantes extrapolam o entendimento dual de reprodução e transformação de forças e, nesse sentido, o entendimento pós-crítico na análise curricular pode ser útil no sentido de entender a força ampliada da compreensão cultural e da diferença na constituição das relações de saber e poder no momento de decisão curricular.
Para lançar um olhar sobre a autonomia, recorreu-se a esses campos de sentidos epistêmicos, não de forma desvinculada, mas como extensões de visão que são tácitas na teoria crítica que, ao longo da história, buscam deslocar a ênfase do entendimento da prática pedagógica ilhada ao purismo didático metodológico, às articulações políticas de ideologia e poder. Assim, os insights “pós” ajudam também a entender melhor como a autonomia é significada no campo teórico-prático ancorado pelas relações de poder e controle e, ao mesmo tempo, constitui identidades múltiplas nem sempre previsíveis ou dizíveis em uma pesquisa de qualquer proporção, espaço temporal. Neste estudo, a análise do discurso, numa perspectiva crítica, não se opôs à compreensão do poder foucaultiano no contexto educacional, ao propor uma análise que não se desgarrou da categoria classe social, até porque não se pode supor a eliminação de uma categoria fundamental para analisar a sociedade brasileira que ainda está visivelmente marcada pelas desigualdades, sobretudo ancoradas a uma perspectiva capitalista e de mercado.
No contexto de vozes docentes, ficou evidente que elas acabam assumindo a responsabilidade pela qualidade de seu trabalho em termos individuais. As professoras, em seu discurso, permitem perceber mecanismos de resistência, ao ironizar e contrapor o modo como a secretaria pede que elaborem o projeto político-pedagógico. É importante assumir a autonomia como liberdade existencial e de crítica profissional e não como responsabilização individual.
A autonomia, neste interdiscurso, assume condição de agir profissional por cumprir com as finalidades mais amplas sem desconectar-se das necessidades dos sujeitos em ação. Condição de agir político pela constante indagação: a quem serve ao assumir um determinado formato de currículo, ou até de por vezes negá-lo?