1 INTRODUÇÃO
Entendendo o Currículo como um artefato educacional que retira elementos de uma cultura e os escolariza, apresentam-se sumariamente algumas perspectivas que têm sido adotadas para examinar de que maneiras o currículo está implicado com a sociedade que o produziu.
Veiga-Neto
Caminhamos na direção de compreender as práticas1 escolares situadas de História como Água viva (LISPECTOR, 1973), em que o “eu” é personagem principal, encara a historicidade da trajetória humana no “aqui e agora”, no cada “instante já”, tendo como protagonistas as descontinuidades, que geram a possibilidade de (re)construirmos a cada “novo agora”; as subjetividades e o conhecimento histórico não são fixos e podem ser problematizados, desconstruídos e remodelados. Nessa perspectiva, não se pode suprimir das práticas pedagógicas que mobilizam a didática do ensino de História o entendimento de que participam do processo de aprendizagem indivíduos com singularidades, experiências e historicidades múltiplas, que permeiam, ou melhor, encharcam a prática escolar, criando dimensões de temporalidades que atravessam as práticas pedagógicas e as disciplinas escolares.
Compreendemos que o ensino de História deve ir além do currículo prescrito ou do livro didático, mobilizando o conhecimento histórico enquanto capacidade de problematizar antagonismos sociais da/na contemporaneidade. Como aponta o historiador Hartog (2013), o passado não é algo imóvel e contínuo; o pretérito só tem sentido quando o significamos no presente, a partir de nossas angústias, dúvidas e problemas. Hartog (2013) denomina esse movimento de “presentismo”, afirmando que o tempo presente é o lugar de partida dos profissionais que movimentam o conhecimento histórico. Nesse sentido, assumimos que esse deve ser, igualmente, o ponto inicial das práticas mobilizadas por professores de História, cujos direcionamentos aprofundamos na segunda seção deste texto, em que tratamos do conhecimento histórico nas dimensões práticas da vida na educação básica.
Na terceira seção, encenamos o(s) acontecimento(s) 2 experienciado(s) no percurso de construção desse conhecimento, a partir do modo terapêutico de escrita da teoria gramatical desconstrucionista3, dispondo do gênero cênico-teatral com jogos de cenas4, ao bordejar as fronteiras entre o conhecimento acadêmico e a arte, utilizando a “prática da enxertia textual, que opera através da inserção de um discurso em outro, bem como da intervenção no discurso que se está desconstruindo” (FARIAS, 2014, p. 12-13).
Dessa forma, representamos o diálogo entre orientando e orientadora, duas subjetividades com historicidades e anseios distintos, em um movimento de aproximações e tessitura de um projeto de pesquisa intitulado Práticas mobilizadoras do ensino de história na educação básica: da disciplina escolar para a vida. O referido projeto se desenvolve no âmbito do primeiro curso de doutorado profissional em educação do Brasil.
2 O CONHECIMENTO HISTÓRICO NAS DIMENSÕES PRÁTICAS DA VIDA
Convidamos o ensino de História para o “divã terapêutico” da terapia gramatical-desconstrucionista (MIGUEL, 2015), problematizando as práticas que mobilizam essa disciplina, sob a compreensão de que o conhecimento histórico não está preso em um tema discutido e centrado no currículo ou no livro didático; ao contrário, vai além da disciplina, em um movimento que impulsiona o conhecimento histórico para seus usos nas dimensões práticas da vida quando, por exemplo, ao utilizar esse conhecimento, um aluno da educação básica problematiza (ou é convidado a problematizar) questões socioculturais do mundo contemporâneo ou defende a democracia alicerçada de valores éticos, como liberdade, direitos humanos e dignidade da pessoa humana, o que sugere o estreito vínculo entre conhecimento histórico e o presente.
Em outras palavras, sugerimos a possibilidade de que, ao estudar a História do Brasil, o aluno problematize que somos um país com uma sociedade tecida e construída política, cultural e socialmente sobre o autoritarismo e a escravidão, durante os períodos colonial, imperial e república velha. O professor de História tem a possibilidade de questionar, em sala de aula, essa lógica autoritária e escravocrata que, infelizmente, foi ressignificada em nossas relações sociais contemporâneas; somos um país racista, em que determinados grupos defendem, institucionalmente, o trabalho análogo à escravidão, as hierarquizações nas relações interétnicas e a violência transvestida de liberdade de expressão. O presente pode ser ponto de partida para debatermos nossas historicidades, rupturas e descontinuidades, mobilizando o conhecimento histórico como uma ferramenta para a defesa de uma sociedade que tenha consideração pela dignidade humana, busque a justiça social e respeite as diferenças culturais.
Nessa esteira de pensamento, a partir do enfoque pós-estruturalista5 da terapia gramatical-desconstrucionista, entendemos que o ensino de História não se deve pautar apenas por discussões cognitivas de como ensinar e aprender com os métodos de aprendizagens e aspectos neurológicos, mas também, e fundamentalmente, por reflexões sobre como essa disciplina desencadeia noções éticas, estéticas e ações, enquanto posições assumidas e praticadas ao longo de nossas vidas. Sabemos que um aluno não se tornará graduado em História ao final da educação básica; no entanto, utilizará o conhecimento histórico como análise e problematização do vivido em suas práticas e posições assumidas nas relações com outros sujeitos ao longo de sua vida. Assim, neste trabalho, sugerimos que esse movimento pedagógico se dê tendo como pilar ético a defesa de uma sociedade que respeite a dignidade humana.
Nossa pesquisa caminha no esteio filosófico e metodológico pós-estruturalista da terapia gramatical-desconstrucionista, alicerçada em Miguel (2015, 2016), Wittgenstein (1999) e Derrida (2004a, 2004b). Nesse sentido, o conhecimento construído a partir dos problemas iniciais desta investigação - quanto às práticas que mobilizam o ensino de História - não será visto aqui como mimese do real, enquanto conhecimento pronto e acabado, ancorado em análise de dados empíricos, correlacionado a uma verdade irrefutável; ao contrário, a dimensão filosófica que fundamenta nosso estudo faz-nos compreender que as práticas do ensino de História são passíveis de múltiplas linguagens e mobilizações, uma vez que podem ser analisadas, problematizadas e ressignificadas, gerando olhares outros sobre o problema de pesquisa, tendo as dimensões práticas da vida dos indivíduos em seus distintos jogos de linguagens como ponto de partida, em uma proposta de escrita que transgrida a ideia de texto acadêmico-científico-racional. Assim, apresentamos nossa proposta de investigação em jogos de cenas, entrelaçando ficcionalidade e realidade.
Buscamos romper a ideia de metafísica (MIGUEL, 2015), comumente presente na didática do ensino de História, que compreende o conhecimento histórico como dados quantitativos, fatos lineares e objetivos, a partir de uma ideia de verdade única, respaldada em fotografias e documentos oficiais. Em direção oposta, no esteio filosófico da terapia gramatical-desconstrucionista, pretendemos pensar práticas mobilizadoras do conhecimento histórico, compreendendo que o passado é ressignificado no presente, estabelecendo um diálogo com problemas e anseios no aqui e agora. Entendemos que o presente possui uma historicidade (HARTOG, 2013) e o conhecimento histórico pode contribuir para a formação ética de indivíduos que mobilizem esse conhecimento nas dimensões práticas da vida, respeitando a diversidade humana e a justiça social nos enfrentamentos ao longo da vida, em seu íntimo e em comunhão com outros sujeitos.
A compreensão filosófica pós-estruturalista da terapia gramatical-desconstrucionista (MIGUEL, 2015) leva-nos a uma visão metodológica não ortodoxa. Isso não significa que não possuímos método, mas que, ao compreendermos a multiplicidade e a descontinuidade de sujeitos e do próprio conhecimento histórico, não buscamos um julgamento objetivo sobre uma base empírica de dados quanto às práticas pedagógicas no ensino de história.
Ao colocar o ensino de História em um “divã terapêutico” pós-estruturalista, nossa compreensão metodológica caminha no sentido de problematizar e analisar o conhecimento histórico sem julgamentos objetivos de verdades únicas, causas e efeitos, numa perspectiva linear (DERRIDA, 2001). Desse modo, buscamos, no âmbito da linguagem, tornar visível o que possa estar invisível e silenciado nas práticas que mobilizam o ensino dessa disciplina. Entendemos que, ao se tornar aparente, o invisível pode ser problematizado e ressignificado, em um movimento que vai além da sala de aula e do currículo, e efetiva seu uso nas dimensões práticas da vida, nas mais múltiplas linguagens e historicidades.
Nesse sentido, o presente, voluntária ou involuntariamente, sempre tem algo a dizer. Não estamos afirmando que a disciplina de História, na educação básica, serve para tentar superar o passado, que o pretérito é uma mera acumulação de presentes ou qualquer proposição que hierarquize ou dicotomize passado versus contemporâneo, caindo em anacronismo. Nesse esteio, ao propor mobilizar o conhecimento histórico nas dimensões práticas da vida, não estamos sugerindo uma espécie de “licença” para transpor para o presente as dimensões socioculturais de outros tempos e espaços, como mera correlação ou exemplificação temporal entre passado/presente. Essa ação seria suprimir o passado como diferença, condição fundamental para a produção do conhecimento histórico, além de propor um estudo histórico como caixa/molde, um encaixar o modelo, o que foge totalmente às nossas análises e formas de fazer pesquisas no viés pós-estruturalista da terapia gramatical-desconstrucionista.
Logo, sugerimos uma espécie de anacronismo controlado (LOURAX, 1992) em razão da necessidade de abordar o tempo presente na dimensão escolar, ao cruzar temporalidades, com o intuito de problematizar questões contemporâneas e, também, em uma tentativa de criar processos de compreensões de como indivíduos, no presente, possam se relacionar com as experiências de sujeitos em outras temporalidades, sem os rotular negativamente a partir do olhar do presente.
Para isso, a experiência vivida dos alunos é ponto da partida, quando o professor movimenta práticas socioculturais dos discentes de maneira criativa, correlacionando esse conhecimento com os saberes históricos. Nesse sentido, no dizer de Derrida (1995), mobilizar o conhecimento histórico é uma escrita que necessita de tradução que, ao mesmo tempo, é uma traição; quando uma subjetividade analisa e descreve o passado, estabelece também marcas a essa herança histórica, impulsionando-a com marcas do/no presente; o presente sempre tem algo a dizer a partir do projeto político, ético e estético do profissional da educação que promove esse movimento (o professor) e os sujeitos que nesse momento partilham conhecimento (os alunos). Segundo afirma Miguel (2010, p. 48),
Os acontecimentos históricos são situados no tempo e na cultura de onde os fatos ocorrem. Não podemos interpretá-los, dizendo que são verdadeiros, falsos, certo ou errado. Mas podemos ver “semelhança de família” entre os acontecimentos do passado e rastros desses acontecimentos no presente para uma possível problematização do hoje. Para Wittgenstein, o significado - sempre local, situado e instransponível - está no uso que fazemos das palavras e das coisas em um jogo de linguagem, isto é, em uma encenação, e não em um suposto desejo de se ordenar o caos.
No movimento desses rastros, quanto à prática didática no ensino de História, entendemos que o conhecimento histórico está sempre em um movimento de reinterpretação e ressignificação. A História é uma ferramenta pertinente para situar os problemas de hoje, graças a uma indagação sobre o passado, que emerge de rastros conjecturados no presente, visto que “os seus contextos de referência não são apenas ‘nacionais’, mas tudo o que no ‘local’ e no ‘global’ ajuda a compreender os dilemas do passado e o modo como influenciam as linguagens do presente” (FARIAS, 2014, p. 17).
Os professores de História, comumente, recontextualizam e hibridizam o conhecimento histórico, mobilizando referências socioculturais de seus alunos para atribuir sentido ao objeto de estudo, conjecturando um movimento que cria outros saberes fora do aspecto curricular (MONTEIRO, 2012) empírico e verificacionista quanto a datas, nomes e aspectos sociais de instituições ou modos de produção econômicos.
Somam-se a esse debate, que cruza temporalidades - com o devido cuidado de não rotular negativamente o passado com uma visão congelada da experiência do presente -, dimensões institucionais contidas em orientadores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997), ancorados na Constituição Cidadã de 1988, ao direcionar para o ensino de História, na educação básica, questões ligadas ao exercício da cidadania, como liberdades civis, direitos sociais, livre manifestação do pensamento e reconhecimento das diferenças sociais. Em outras palavras, o conceito de cidadania contido nos PNC de História não se liga apenas a uma compreensão e apreensão do surgimento desse termo a partir do estabelecimento dos estados nacionais modernos pós-revolução francesa; ao indicar a problematização do termo considerando os direitos sociais, estabelece uma escritura (DERRIDA, 1995) que emerge do/no presente, sugerindo, do ponto de vista didático para o ensino de História, a necessidade de uma espécie de anacronismo controlado (LOURAX, 1992).
3 O ENSINO DE HISTÓRIA NUMA ATITUDE TERAPÊUTICA: UM PROFESSOR-PESQUISADOR EM PROCESSO DE DESCONSTRUÇÃO DE SUA PRÁTICA
Nesta seção, visamos mobilizar arquivos espectrais, memórias (espectros, rastros) e narrar episódios da construção do projeto de pesquisa quanto aos primeiros contatos com a professora orientadora. Devemos lembrar que, ao longo deste texto, utilizamos a enxertia textual (FARIAS, 2014), valendo-nos do gênero cênico-teatral com jogos de cenas, por entendermos que não basta transgredir as formas empíricas e verificacionistas de fazer pesquisa, mas é necessário, também, buscar outras maneiras de constituir o texto acadêmico. Portanto, consideramos a linguagem como constitutiva do pensamento, das subjetividades do sujeito e das práticas e jogos de linguagem dos quais ele participa (WITTGENSTEIN, 1999).
CENÁRIO
Uma universidade federal localizada no extremo norte do País. O palco teatral-divã acontece na sala de aula e na coordenação do programa. Encenam jogos de linguagens dois personagens: Kátia (professora orientadora) e Eduardo (orientando), com o propósito de problematizar os encaminhamentos iniciais de pesquisa no enlace entre visões e posições teórico-metodológicas da orientadora e a proposta de problematizar o ensino de História apresentada ao programa de pós-graduação pelo orientando.
JOGO DE CENA 1
O (re)encontro com a universidade, a pesquisa e a orientação: minha canoa ancorada em seu barco - navegando em águas agitadas
Após cumprimentos, primeira apresentação e falarem sobre as primeiras experiências no doutorado, Kátia e Eduardo começam a conversar sobre o projeto de pesquisa submetido pelo orientando ao processo seletivo.
EDUARDO - (Um pouco ansioso, suspira fundo e bate levemente à porta da coordenação do programa. Abre a porta lentamente e vê duas pessoas sentadas em volta de uma grande mesa oval. Seu olhar vai ao encontro de sua orientadora). Olá, bom dia. (As pessoas no interior da sala respondem: Bom dia) Você é a professora Kátia? (Tinha como referência visual a fotografia do currículo Lattes)
KÁTIA - Sim, sou eu. E você é o Eduardo, certo? Entre. (Levantou e cumprimentou Eduardo com um aperto de mãos e um sorriso simpático) Sente aqui ao meu lado. Aceita uma água ou um café?
EDUARDO - Aceito água. Posso pegar aqui no bebedouro?
KÁTIA - Fique à vontade.
EDUARDO - (Observou os quadros pendurados pela ampla sala) (Pequena pausa) Gostaria de agradecer por aceitar me orientar, mesmo não me conhecendo como pessoa e pesquisador.
KÁTIA - Não precisa me agradecer, Eduardo. Você foi aprovado no nosso primeiro curso de doutorado profissional e isso é mérito seu.
EDUARDO - (Começou a se apresentar) Meu mestrado foi na área de História e será a minha primeira pesquisa no âmbito da educação. Fico muito feliz e grato pela disposição em acolher alguém que não conhecia.
KÁTIA - (Fala em tom meigo) Tenho certeza de que será uma boa caminhada. Na verdade, a escolha foi da comissão de seleção discente. Não tive nenhuma atuação no processo seletivo, até pela minha condição de coordenadora do programa. Acho que o seu direcionamento para mim se deu por uma citação de um jornalista e escritor em seu projeto inicial apresentado à banca examinadora: Eduardo Galeano. Eu gosto bastante dessas fronteiras entre texto acadêmico e produção artística.
EDUARDO - Entendi... (Com medo de dizer algo que marcasse negativamente uma primeira impressão) Quais suas considerações iniciais sobre o projeto?
KÁTIA - Eduardo, li seu projeto de pesquisa e vejo que você cita muitos autores vinculados ao materialismo histórico dialético. Seu projeto inicial caminha no bojo teórico da pedagogia crítica e teoria da práxis... Não são esses os caminhos que tenho trilhado em minhas pesquisas desde meu doutoramento.
EDUARDO - Compreendo.... E já imaginava que você poderia sugerir mudanças no projeto para que pudesse dialogar com as suas pesquisas e estudos. Isso ficou bem claro para mim no mestrado e deixei claro que estava aberto a esse movimento na etapa da entrevista. (Pequena pausa)
Minha ideia inicial apresentada a esse programa de pós-graduação foi pensar possíveis contribuições do ensino de História na educação básica, no contexto do movimento que alguns autores materialistas denominam de pós-capital (MASON, 2015), por entenderem que, nesse início de século, o capital enfrenta uma crise causada pelas formas como tem se reproduzido, sobretudo em periferias como a América Latina, a Ásia e a África. Nesse sentido, penso que posso dar uma parcela de contribuição a esse debate a partir das práticas pedagógicas no ensino de História, criando ferramentas na formação de jovens que saiam da educação básica mais preparados para lidar e superar as dicotomias existentes entre capital, lucro e trabalho.
KÁTIA - Compreendo. Nossas posições pós-estruturalistas se distanciam de grandes narrativas e projetos socioeconômicos. Também nos distanciamos da possibilidade de linearidade do tempo que compreende mobilizar o futuro a partir de militância e docência. Como disse anteriormente, nos afastamos da pedagogia crítica enquanto proposta emancipatória. Dentro da nossa visão pós-estruturalista, a partir da terapia gramatical desconstrucionista, meu lugar-comum de pesquisa, não propomos nada.... Apenas analisamos, problematizamos e descrevemos.
EDUARDO - Para mim, enquanto pesquisador inserido em mundo que, do ponto de vista social, está tão problemático, parece algo muito difícil não ensejar e propor algo a partir do que avalio como positivo ou progressista. Em um primeiro momento, confesso que essas posições filosóficas não me atraem. Me vem à mente a estranha sensação de que talvez esse tipo de investigação acabe criando uma espécie de “lacuna política” nas pesquisas em ciências humanas, abrindo margem para grupos políticos e civis abastados preencherem essas lacunas com ideias que irão, sim, fazer proposições, políticas e intervenções talvez não tão interessantes para as camadas assalariadas, sobretudo em nossa atual conjuntura, em que o capital financeiro impõe discussões de reformas econômicas/fiscais justamente para a manutenção de um cenário econômico propício à reprodução do capital.
KÁTIA - Eu compreendo seu estranhamento. Quando iniciei meu doutorado, também precisei mudar a base filosófica da pesquisa, pois, no mestrado, pesquisei com base na fenomenologia. Posso dizer que, no doutorado em educação, passei por um processo de desconstrução6, tanto do meu projeto como da minha própria experiência como pesquisadora e professora universitária.
EDUARDO - Tudo bem.... Minha fala foi uma impressão inicial. Sei da necessidade de “ancorar” minha canoa em seu barco. Confesso, como disse antes, que as primeiras impressões estão sendo negativas. Vou ser bem sincero: hoje em dia valorizo muito minha saúde psicológica e não quero lembrar do doutorado como uma experiência negativa e conflituosa.
Meu receio é ter que produzir um conhecimento sem ter identificação com o que estou escrevendo.... Em se tratando de uma tese de doutoramento, isso me parece algo muito grave. Não tenho saúde mental para enfrentar uma escrita que não me identifique.... Seria como tornar a experiência maravilhosa de cursar o doutorado em minha cidade natal em algo mecanicista, relacionado à obrigação de entregar um trabalho a um programa de pós-graduação, apenas em virtude de um compromisso assumido na matrícula.
KÁTIA - Entendo o seu posicionamento. Eduardo, eu não compreendo a pós-graduação como um ambiente que deva retirar a saúde mental de seus discentes, sobretudo de meus orientandos. Tudo será feito com calma e muita amorosidade. Haverá um tempo para esse processo de desconstrução do projeto e buscar formas outras de sentir a pesquisa em educação. Vou te pedir para fazer duas leituras que tratam sobre o pensamento de Jacques Derrida: Derrida em 90 minutos (STRATHERN, 2003) e De que amanhã...Diálogos (DERRIDA; ROUDINESCO, 2003), para você ter um primeiro contato com as ideias desse autor.
EDUARDO - Tudo bem, professora! Irei realizar as leituras, tendo como norte estabelecer aproximações com o ensino de História.
JOGO DE CENA 2
Entre divergências e desconstruções: a pesquisa em movimento
O encontro do orientando com a orientadora se deu na sala de aula do programa. Após cumprimentos, iniciam um diálogo sobre bases filosóficas e problema de pesquisa.
EDUARDO - Olá, professora. Bom dia. Esta semana estamos cursando a disciplina Avaliação da aprendizagem na educação básica e estou na UNIR o dia todo. Podemos conversar sobre as leituras realizadas de Derrida e nosso projeto?
KÁTIA - Sim, Podemos. Pedi que você lesse para ter um primeiro contato com a proposta da desconstrução.
EDUARDO - A desconstrução.... Fiquei com muitas dúvidas.
KÁTIA - Isso é bom. Veja: “a desconstrução é algo que se pratica e, como prática, isto é, como um jogo cênico da linguagem, também se deixa orientar por uma gramática, ainda que vista não como um tratado normativo geral a ser seguido ou como uma metarranativa de métodos universais.
Entendemos que o praticante da desconstrução trabalha dentro dos termos do sistema, mas de modo a rompê-lo” (FARIAS, 2014, p. 32). (Pequena pausa) Derrida tem aproximações com a chamada filosofia da diferença, com autores que teceram críticas ao estruturalismo e conjecturam novos problemas ao pensar objetos sociais e os próprios caminhos de se fazer e compreender pesquisa.
EDUARDO - Compreendo.... Tive a sensação de que Derrida busca fugir de certezas e procura a historicidade dos problemas contemporâneos em sua proposta desconstrucionista. A fuga dessa certeza também reverbera no abandono da noção de verdade partir da fonte e, consequentemente, que o historiador pode chegar a um conhecimento objetivo e empírico.
KÁTIA - Exatamente, Eduardo. O chamado movimento pós-estruturalista, base comum das pesquisas que realizo em nosso programa, também teceu críticas à historiografia marxista e às chamadas grandes narrativas, por elas apresentarem visões totalizantes e globais da História, com estruturas hierarquizadas ou estágios de desenvolvimento socioeconômico baseados em uma previsibilidade do futuro a partir da revolução no presente. Para Derrida, autor que proponho como uma das bases teóricas de sua tese, o acontecimento é algo imprevisível.
EDUARDO - Além dos textos que você indicou em nosso último encontro, identifiquei um outro: Derrida e o fim da História, de Stuart Sim (2008), que mostra como o livro O fim da História e o último homem, de Fukuyama (1992) intrigou Derrida (2001). Nessa obra, Fukuyama (1992) defende que, com o fim da antiga União Soviética, a ideia de democracia liberal havia triunfado contra o marxismo, que pregava o surgimento de uma nova sociedade a partir da emancipação da classe trabalhadora.
Como você já havia falado em outro momento, percebi que Derrida (2001) foge de aspectos dogmáticos quanto a interpretações históricas e ao futuro como algo possível de ser conjeturado no presente; justamente por isso Derrida critica Fukuyama (1992), por construir uma argumentação frágil que defendia o fim da História a partir de um “novo poder”, que teria sido hegemônico e se estabelecido completamente sem divergências ou contradições: o neoliberalismo.
KÁTIA - Toda essa abordagem que você acaba de dizer se correlaciona à proposta filosófica de Derrida dentro do que aqui estamos chamando de movimento pós-crítica. Enfatizo isso porque compreendo que é fundamental para as formas como enxergamos nossos problemas de pesquisa.
EDUARDO - Sim. Tenho a compreensão de que as escolhas teóricas e metodológicas são fundamentais na forma não apenas como vamos estabelecer o objeto de investigação doutoral, mas também, e sobretudo, como vamos problematizar esse objetivo e criar pontos de partida para a construção do conhecimento.
KÁTIA - Exato. Não entendemos pesquisa como um conhecimento construído apenas entre teoria e base empírica de dados; chamamos essas posições metodológicas de pesquisas verificacionistas.
EDUARDO - Poderia, por favor, aprofundar a ideia do que seja pesquisa verificacionista?
KÁTIA - Sim. Como falei em nossos encontros anteriores, minhas pesquisas giram em torno da terapia gramatical desconstrucionista proposta por meu orientador de doutorado, Antonio Miguel (2005), alicerçada em Wittgenstein (1999) e Derrida (2001). Essa proposta foge ao padrão empírico e verificacionista das pesquisas de cunho metafísico, calcadas na ideia cartesiana de racionalidade quanto à análise de dados, em que, normalmente, um referencial teórico é utilizado para a construção de uma afirmação que o pesquisador comprova como verdadeira ou falsa a partir de uma base empírica de dados, criando, assim, uma imagem de investigação como sinônimo de objetividade/verdade. Gostaria que você percebesse que é esse aspecto linear, objetivo e cronológico que estamos buscando transgredir.
EDUARDO - Dessa forma, compreendo que você procura deixar claro também como não fazer pesquisa, correto?
KÁTIA - Exato! Quando afirmamos caminhar numa direção filosófica pós-estruturalista, entendemos que isso nos afasta de três posições: (i) que a compreensão empírica em uma pesquisa em humanidades seja capaz de produzir um conhecimento como verdade única ou um conhecimento como mimesis do real; (ii) que as grandes narrativas sejam capazes de alcançar um conhecimento único, global e objetivo da realidade; e (iii) sendo o pós-estruturalismo uma compreensão filosófica pós-marxismo, nos afastamos de grandes narrativas de projetos alinhados a uma compreensão emancipatória de sujeitos ou grupos.
Conforme conversamos em nosso primeiro encontro, acreditamos que o sujeito é múltiplo, descontínuo e performático7 em seus múltiplos jogos de linguagens (WITTGENSTEIN, 1999); dessa maneira, qualquer teoria ou método é incapaz de captar em totalidade essa multiplicidade da linguagem.
EDUARDO - Estou compreendendo.... E me sinto confortável quanto à posição de que nenhuma investigação, em especial a pesquisa historiográfica, alcance o “real em si” enquanto objetividade. Minha formação inicial é em História e acredito que as expressões “reconstruir” e/ou “salvar o passado” são errôneas e partem, justamente, da compreensão de linearidade e exatidão na relação entre ínvidos/grupos e o tempo. A meu ver, o que o historiador faz é dar significados e interpretações sobre o vivido. Como diz Jenkins (2001), o passado se foi e o que resta dele está nas fontes, mas essas fontes não são a totalidade do vivido; elas são produções/respostas que atenderam aos interesses e discursos de quem as produziu em determinado tempo.
Acredito, sobretudo a partir da experiência em meu mestrado interdisciplinar em História e Estudos Culturais (UNIR), que o historiador exerce a função de “inventar o passado”. Contudo, ao afirmar isso, não estou dizendo que o historiador faz literatura: estou afirmando que há correlações entre História e Literatura, uma vez que a narrativa é um ponto em comum a ambas. Afinal, o historiador escolhe, recorta, seleciona as fontes que melhor dialogam com suas afirmações e talvez até esconda algumas que vão em contrário (risos). Entretanto, o historiador, independentemente da sua posição teórico-metodológica, tem a fonte como matéria-prima e ponto de referência da investigação de um problema. Em outras palavras, uma espécie de ficção controlada pelas fontes, como bem enfatizou a professora Pesavento (2006).
Mas ainda tem algo que anda me angustiando: a crítica pós-estruturalista às propostas de educação emancipatória. Para mim, até o presente momento, ela parece interessante e muito necessária para o enfrentamento nos atuais caminhos e descaminhos das propostas neoliberais no Brasil. Estamos vivemos, nos últimos anos, uma crise financeira típica do capitalismo, quando há dificuldades de se reproduzir no mercado financeiro ou na economia real; por conta desse ambiente não propício, seus “donos” financiam discussões de reformas que arrocham ainda mais as classes assalariadas, com redução de salários, aumento de trabalho/anos de contribuição previdenciária e tributos sobre o consumo.
Não por acaso estamos vivendo uma discussão sobre reforma da previdência que claramente atende aos interesses dos mais ricos, e não dos assalariados, incluindo a maioria do funcionalismo público, com exceção dos que se encontram em castas privilegiadas, como os militares e o judiciário. Em outras palavras, acredito que toda pesquisa deve ter uma dimensão política, sobretudo quando se trata de uma investigação que problematiza o ensino de História.
Professora Kátia, isso tem me angustiado muito: a ideia de não intervir ou propor, em um momento que percebo que as estruturas sociais e econômicas do mundo necessitam de reformas que atendam também aos interesses das camadas médias, e não essas que, infelizmente, estão se concretizando, atendendo apenas aos interesses do poder constituído.
Desculpe-me.... Não quero passar a impressão de que não respeito as dimensões de hierarquia entre orientador e orientando, ou mesmo formas outras de compreender a pesquisa em humanidades. Tenho a sensação de que, em alguns momentos, a proposta de não propor nada em investigações qualitativas é muito cômoda para grupos de pesquisadores e intelectuais que, na atual configuração econômica, sobretudo do funcionalismo público federal, está bem enquanto classe média assalariada, em seus apartamentos com espaços gourmet, dinheiro guardado na poupança ou aplicações financeiras em bancos e instituições financeira que lucram e repassam a esses CPFs parte dos lucros conquistados com a lógica defendida nessas reformas econômicas que desvinculam, legalmente, 40% do orçamento federal, com a desculpa de dívidas e amortização da dívida pública. (Pequena pausa)
KÁTIA - (Com voz mansa) Veja, Eduardo, entendo perfeitamente sua posição e angústia. Tensões e divergências, a meu ver, às vezes podem estar presentes na pesquisa e na relação entre orientando e orientador. Elas são fundamentais para dar movimento à pesquisa. Fico feliz por elas estarem sendo colocadas agora, até porque, do ponto de vista terapêutico, o reconhecimento das tensões e angústias são o primeiro passo, nos dizeres de Derrida, do “porvir” quanto ao ato de acolher as dúvidas e receios em um processo de modificar a forma como lidamos com essas angústias.
Esse processo faz parte da desconstrução aqui colocada com o objetivo de pensarmos o problema inicial de pesquisa com outros olhares. Como te disse em outros encontros, também passei por essa tensão em minha tese. Então, coloco-me em seu lugar... Posso te dizer que essa é uma experiência que modifica não só a pesquisa, mas o corpo do pesquisador, pois “nós praticamos a linguagem com todo o nosso corpo porque é ele que participa das práticas culturais” (MARIN; FARIAS, 2017, p. 179).
Sobre suas colocações quanto a educação e emancipação, considerando a visão pós-estruturalista em Wittgenstein (1999) e Derrida (2001), percebo que é necessário ressignificar o sentido de emancipação, de forma não ligada a um caráter cognitivo de uma identidade de classe, ou seja, uma autonomia calcada na superação de um dado modelo socioeconômico. Compreendeu o que diz?
EDUARDO - (Atento) Sim....
KÁTIA - (Continua) Acredito, sim, que a educação é condição fundamental para a mudança de pensamentos e padrões de comportamento e, inclusive, do modo como nos relacionamos com a política e a economia. Ocorre que me distancio da proposta emancipatória marxista que condiciona isso a uma questão de classe de forma homogênea, como se o indivíduo correspondesse automaticamente à classe, existindo um aspecto dogmático ou até mesmo pseudorreligioso de conversão e previsão do futuro das relações da sociedade com a economia.
Vejamos essas contradições nas dimensões práticas da vida: tomemos como exemplo a atual conjuntura brasileira, quando milhões de pessoas da classe média assalariada defendem reformas econômicas que retiram seus diretos sociais conquistados pelo que comumente temos chamado de social-democracia. Como eu disse anteriormente, penso que esse debate entre realidades passíveis de mudanças a partir da educação não deve ser feito baseado unicamente na perspectiva socioeconômica de classe, uma vez que os indivíduos são múltiplos em seus diferentes jogos de linguagens, tornando muito difícil, inclusive, definir o que é classe. O Brasil contemporâneo é um grande exemplo desse aspecto de multiplicidade que acabo de comentar.
Por conta desses vários elementos que venho discutindo contigo, compreendo que, em nossas pesquisas, devamos analisar e problematizar o caráter múltiplo de sujeitos e grupos sociais inseridos nesse mundo. Justamente por isso defendemos que a educação deva estar ligada à liberdade, ao diálogo, à autonomia e à dignidade humana, sem um viés dogmático, linear, homogêneo e centrado na superação de estruturas de poder ou do sistema econômico vigente.
EDUARDO - Sim.... Compreendi a linha de raciocínio proposta e tenho a sensação de que ela faz sentido, quando chamada para dialogar e problematizar a formação sociocultural brasileira, nossos caminhos e descaminhos contemporâneos. Avalio que minha tarefa agora é aprofundar as dimensões filosóficas da proposta derridiana e de Wittgenstein, com o objetivo de dar novos significados a meu projeto inicial. Gostaria de aprofundar um último aspecto teórico-metodológico contigo.
KÁTIA - Pode falar. Estou à disposição.
EDUARDO - Na proposta pós-estruturalista da terapia-gramatical desconstrucionista, não propor ou modificar nada não significa que faremos uma pesquisa sem posições, correto? Ou seja, a proposta pós-estruturalista dialoga com temas contemporâneos e políticos?
KÁTIA - Exatamente! Assim como toda educação é um ato político, toda pesquisa é um ato político e entendo que essa seria a afirmação de Derrida, se ainda estive vivo. Quando digo que nosso viés teórico-metodológico visa descrever, analisar e problematizar, estou dizendo que estou fugindo de linhas de pensamentos que dominaram as investigações em ciências humanas ao longo do século XX, que construíram conhecimento baseado em uma espécie de linearidade dogmática, objetivando a eliminação de um determinado mal e ensejando um futuro nas relações socioeconômicas.
Estamos diametralmente opostos a isso que chamamos de metanarrativas, seguindo a ideia de que não temos a capacidade de modificar um problema ou alguém. Nossa tarefa aqui é problematizar questões quanto à educação básica em um movimento que dê outros olhares às práticas dos diferentes atores que experienciam esse problema. Por conta disso, penso que sua própria prática docente pode ser chamada a dialogar com o movimento desconstrucionista que estou propondo aqui. (Pequena pausa)
EDUARDO - Obrigado, professora. Tenho que ir agora. Estou na aula da Professora Ana Maria, na disciplina Avaliação da aprendizagem na educação básica (*). Vamos conversando. Abraço.
KÁTIA - Sim, enviarei outros textos para você. Abraços.
[(*) Esse momento foi em dezembro de 2019, meses depois, a professora Ana Maria veio a falecer em decorrência de Covid-19. Tive a honra de fazer parte da última turma em que ela lecionou no Programa. Grande ser humano, de uma energia e empatia fantástica, com seus cabelos brancos transcendia a imagem de alguém na terceira idade por sua jovialidade e sorriso de quem tinha muita energia e vontade de contribuir com a formação de professores no extremo norte da Amazônia brasileira. Ao falar da professora Ana Maria, vem-me à mente a frase de Paulo Freire que apregoa a necessidade de nossos atos se aproximarem das nossas ações. No pouco tempo que convivi com ela, sempre senti a amorosidade em suas falas e práticas.
JOGO DE CENA 3
A terapia gramatical desconstrucionista e as dimensões práticas da vida
O encontro do orientando com a orientadora ocorreu na sala de aula do programa. Após cumprimentos, iniciam um diálogo sobre a construção do projeto de pesquisa.
EDUARDO - Olá, professora. Boa tarde. Tudo bem?
KÁTIA - Tudo bem sim, Eduardo. E você? Como está?
EDUARDO - Animado e pensativo. Em nosso último encontro discutimos aspectos das posições de Derrida e Wittgenstein.... Entretanto, esses autores não possuem discussões diretamente ligadas ao campo da educação, não é? Além disso, discutimos também muitas questões ligadas à historiografia, até porque sua tese de doutoramento tinha como problema investigar aspectos históricos de uma instituição de ensino. Ocorre, porém, que não tenho interesse em uma pesquisa historiográfica.... Por conta disso estou um pouco confuso.
KÁTIA - Sim. Derrida e Wittgenstein não escreveram sobre educação. Nossa proposta é mobilizar o pensamento desses autores em nossos problemas e objetos. Quero dizer que eles ajudam na forma como enxergarmos, entendemos e lidamos com nossos problemas de pesquisa. Por exemplo, a filosofia da diferença, de Derrida, nos permite problematizar as relações entre significado e significante na atuação docente; em outras palavras, como professores ressignificam, a partir da sua subjetividade, outras formas de aprendizagens além das existentes nos livros didáticos ou currículo de História?
Outra questão: como a linguagem, enquanto narrativa e multiplicidade de “jogos de práticas” entre os indivíduos que compartilham as regras desse jogo, pode nos ajudar a problematizar a compreensão de verdade no ensino de História e a própria prática pedagógica que, ao refletir essa multiplicidade, transgrida as noções de objetividade e empiria tão presentes no ensino de História e que, durante décadas, foi a característica principal institucionalizada no currículo dessa disciplina?
EDUARDO - Sim... A meu ver, a maioria dos meus colegas professores de História possui uma visão empírica e verificacionista quanto às práticas socioculturais que essa disciplina pode mobilizar. Enfatizam mais aspectos sociais de caráter qualitativo, justamente pelo diálogo com a objetividade, que contribuem para uma compreensão de História (por parte do aluno da educação básica) como linearidade, sequência de fatos e verdade. Foucault (2009) chamou isso de “regimes de verdades”, enquanto discursos constituídos para manter relações assimétricas de poder e de saber inquestionáveis e naturalizados.
Essa lógica marcou profundamente a minha geração a tal ponto que, quando decidi cursar graduação em História, minha ideia era “conhecer mais” o passado, algo que hoje avalio como uma compreensão de senso comum da ideia de História e que, infelizmente, ainda hoje é compartilhada pela maioria dos alunos da educação básica. (Pequena pausa)
Penso que essas práticas suprimem a própria subjetividade e a historicidade do sujeito, que é parte fundamental do ensino; o aluno acaba construindo uma ideia de História memorialista e factual. Talvez isso explique por que a maioria dos alunos matriculados nas escolas não goste dessa disciplina e até mesmo compartilhe a ideia de que ela não tem utilidade “prática”.
KÁTIA - Acho que você começa a delinear e recortar seu problema de pesquisa a partir do referencial que propus inicialmente! O problema que você relatou é altamente derridiano, quando você caminha nos rastros das práticas; isso é o que Derrida (2002) chama de différance8. Seu projeto, a meu ver, começa a ser “desconstruído”. Vou te mandar alguns textos e entrevistas de Derrida e então marcamos um novo encontro para construirmos juntos um problema inicial de pesquisa e os objetivos.
Quando digo inicial é porque avalio que a pesquisa não pode ser construída a priori, ao se estabelecer um referencial teórico, as fontes e os passos da pesquisa. Para mim, isso é altamente empírico e verificacionista. Nas investigações qualitativas, as questões irão surgir a partir da relação com o grupo envolvido na investigação, justamente por envolverem aspectos das singularidades e práticas humanas. Nessa perspectiva, a pesquisa é um ato imprevisível e essa impossibilidade de prever é altamente positiva para nós.
EDUARDO - Avalio que os apontamentos pós-críticos têm sido interessantes para a construção do nosso movimento inicial de pesquisa. Concordo que as pesquisas qualitativas não são “receitas de bolo”, sobretudo quando se tem como objeto de estudo o ensino de uma disciplina tão múltipla e política como a História.
Tenho outro apontamento que também pode nos ajudar nessa partida. Como já lhe falei, minha formação inicial é em História e as disciplinas de Historiografia, pelo menos na universidade federal, são obrigatórias para a licenciatura e o bacharelado, ou seja, os graduados em História têm tido acesso a essas discussões pós-críticas quanto à multiplicidade discursiva das fontes históricas e à impossibilidade de uma noção de verdade em História. Será que nós, profissionais que pensamos o conhecimento histórico, problematizamos esses aspetos no bacharelado e na pesquisa e os silenciamos na licenciatura/práticas pedagógicas?
KÁTIA - São rastros/apontamentos interessantes para iniciarmos uma caminhada. Pelo que estou entendendo, sua ideia é mobilizar o conhecimento de História nas dimensões práticas da vida?
EDUARDO - Exato! Pelo que venho percebendo em nossas conversas e leituras, a terapia gramatical desconstrucionista busca um diálogo com as dimensões práticas da vida, com os jogos de linguagens (WITTGENSTEIN, 1999) dos sujeitos que assumem práticas, como um jogo encenado com determinadas regras.
Dessa forma, a questão é: como um aluno - que não sairá historiador ao final da educação básica - pode ter contato, nas aulas de História, com a possibilidade de problematizar os usos do conhecimento histórico nas dimensões práticas da vida? Penso que esse ponto de partida gira em torno das práticas pedagógicas dos professores de História e me sinto inclinado a realizar uma caminhada investigativa derridiana sobre esses rastros.
JOGO DE CENA 4
Um encontro em pandemia: o medo (in)visível e a pesquisa em cena
Derrida compreende o acontecimento como a impossibilidade de prever o “porvir”. O acontecimento chega de surpresa, podendo alterar práticas e corpos. É justamente isso que estamos enfrentando desde março de 2020, com a chegada da pandemia de Covid-19.
Encenam nesse ato dois corpos em papéis sociais de orientadora e orientando: Kátia e Eduardo. Nesse encontro, eles enfrentam a possibilidade de um vírus (in)visível, que modela práticas a uma cena tão comum no ambiente acadêmico: pessoas reunidas discutindo ideias e pesquisas. Uso de máscaras e demais cuidados sanitários cortam transversalmente esse momento e os corpos em nome de um bem maior, o tecido coletivo, matéria-prima que dá sentido às pesquisas em ciências humanas e, em especial, às do campo da educação.
A cena ocorre em frente à sala do programa de pós-graduação, ao ar livre, com a universidade vazia em virtude da suspensão das aulas presenciais. Eduardo chega primeiro e aguarda a professor Kátia. Já faz alguns meses que não conversavam pessoalmente. Kátia vem caminhando no corredor e, então, Eduardo se levanta e a cumprimenta, gesticulando a distância.
EDUARDO - Olá, professora. Obrigado por esse encontro. Confesso que eu teria uma dificuldade grande em discutirmos os passos iniciais da pesquisa a serem institucionalizados na escrita do projeto em uma reunião virtual. Claro que seria possível, mas eu teria muita dificuldade... Acho que o corpo a corpo é melhor, mesmo que seja um corpo a corpo distante e com “regras” diferentes.... Mesmo assim, os olhares e risos ainda são possíveis nesse jogo.
KÁTIA - Tenho me privado de muitas coisas.... É um momento difícil que estamos atravessando... A adversidade criada pela pandemia com relação às novas formas de lidar com a docência superior e a coordenação de Pós-Graduação tem sido difícil e exigido muito de mim. O falecimento da professora Ana Maria também me marcou muito.... Ela foi minha professora, alguém que estava no meu dia a dia aqui na universidade. Eu fiquei muito chocada e muito mal com esse acontecimento.
EDUARDO - Sim... O falecimento da professora Ana foi algo difícil.... Foi a primeira morte por Covid-19 no corpo de funcionários da UNIR... Embora estejamos atravessando uma pandemia, ninguém espera que alguém do seu cotidiano se vá de forma tão abrupta... Quando é alguém próximo, a morte deixa de ser um dado estatístico e passa a ser uma pessoa com quem você se relacionava. Cai a ficha que o momento é complexo e exige de nós. Por isso mesmo penso que o contemporâneo deve ser o ponto de saída do conhecimento histórico. Qual a historicidade do presente? A historicidade das nossas sombras e obscurantismos? Como esse momento - em que mentiras são compartilhadas e pessoas minimizam, de forma sádica, recomendações sanitárias - pode mobilizar práticas no âmbito da didática do ensino de História?
KÁTIA - Para a escrita do projeto, sugiro a meus orientandos estabelecerem problemas iniciais como partida da investigação.
EDUARDO - Sim... Venho pensando em três questões: (i) como a disciplina de história pode mobilizar um movimento que direcione o conhecimento histórico para as dimensões práticas da vida?; (ii) como o conhecimento histórico pode ser uma ferramenta para defesa de uma sociedade que respeite a dignidade humana e a justiça social, e a não violência nas divergências sociais?; e (iii) como os profissionais do ensino de História na educação básica podem mobilizar o conhecimento histórico em um movimento que vá além do livro didático e do currículo, em direção à contemporaneidade?
Essas questões mobilizam o conhecimento histórico voltado para seus usos nas dimensões práticas da vida em problematizações e análises que mobilizem um mundo com mais empatia e amorosidade. Todos nós possuímos história, fazemos história e usamos o conhecimento histórico.... Então, penso que minha contribuição em uma tese de doutoramento seja pensar isso nos rastros das práticas pedagógicas.
KÁTIA - Isso! Seu objetivo geral pode girar em torno de: analisar práticas pedagógicas que mobilizem o ensino de História na educação básica, voltadas para usos do conhecimento histórico nas dimensões práticas da vida, local onde o conhecimento se efetiva em seus diferentes jogos de linguagens. O que você acha?
EDUARDO - Acho que sintetiza bem as questões que venho colocando em nossos últimos encontros.
KÁTIA - É necessário pensar o grupo de sujeitos que colaborarão com a pesquisa, sobretudo por estarmos em um programa profissional que exige uma pesquisa aplicada. Pense também que entendemos a pesquisa aplicada em uma perspectiva pós-estruturalista, e não a partir de abordagens críticas, calcadas na teoria da práxis, como o restante do corpo docente do programa tem percebido essa modalidade de investigação.
EDUARDO - Sim.... Os objetivos específicos são fundamentais, porque existe a tendência que cada um vire um capítulo da tese, estando, claro, em total diálogo com a proposta geral. Sobre o grupo de sujeitos participantes, acho que, por estar em um programa de pós-graduação voltado para a formação continuada de professores da educação básica, em uma linha de pesquisa que investiga práticas pedagógicas e uma investigação com viés pós-crítico, problematizar meu lugar de práticas seja algo interessante. Dessa forma, podemos mobilizar o conhecimento histórico das dimensões práticas da vida em meu local comum de práticas, com forte tendência a ressignificá-las. O que acha?
KÁTIA - Certo. Podemos problematizar as práticas que mobilizam o ensino de História a partir da terapia gramatical-desconstrucionista, tendo como lócus interventivo uma escola municipal de ensino fundamental, entre alunos regularmente matriculados nos anos finais (6.º ao 9.º) como participantes.
EDUARDO - Exato. Você comentou sobre a pesquisa aplicada em uma perspectiva pós-critica. Poderia aprofundar?
KÁTIA - Sim. Veja: as pesquisas aplicadas ancoradas na metodologia da pesquisa-ação, em suas etapas de investigação, projetam uma forma de espiral que vai desde a formulação do problema, em conjunto com os atores implicados no movimento de pesquisa, até a intervenção, com vistas a modificar um dado problema social estabelecido a priori. A partir de nossas posições filosóficas em Derrida e Wittgenstein, não nos sentimos com a “missão” de mudar ou alterar nada: nosso propósito é construir um conhecimento que encare questões sociais com outros olhares; não propomos uma ideia de mudança-emancipação, enquanto um conhecimento/narrativa transversal que possa ser inserido de forma vertical pelo pesquisador a partir de um diálogo ou relação de pesquisa com um dado grupo. Para nós, ao realizarmos uma investigação pós-estruturalista, não buscamos alterar ou mudar o tecido coletivo.
Aproximamo-nos da compreensão de que a preocupação de sujeitos desconstruírem suas práticas homogeneizadoras, objetivas e empiristas deve anteceder o projeto de um suposto mal a ser eliminado, advindo do modelo econômico. Em um Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, esse lume desencadeia um convite a darmos outros olhares às práticas pedagógicas, a nossa relação com os currículos e à própria ideia de instituição escolar.
EDUARDO - Há algumas questões quanto à proposta da teoria gramatical desconstrucionista e à pesquisa aplicada que gostaria de discutir contigo. Percebo que há um diálogo entre ambas, no sentido de problematizar as dimensões práticas da vida e a possiblidade de construção de conhecimento com grupo de sujeitos. Afinal, como nossa prática pedagógica no ensino de História contribui para enxergarmos novos horizontes, ou o contrário, a manutenção de desigualdades e diferenças?
Nessa perspectiva, ao problematizar e analisar práticas que mobilizam o ensino de História, metodologicamente assumimos estar no campo das descontinuidades e subjetividades das práticas humanas, que podem resultar em um conhecimento construído voltado para a dimensão prática da vida desses sujeitos, em oposição à visão de conhecimento histórico objetivo, factual e memorialístico que, comumente, tem mobilizado a didática do ensino de história.
Um segundo aspecto é a possibilidade de diálogo bidimensional entre pesquisador e sujeitos participantes da pesquisa, a partir da não hierarquização e verticalidade na relação entre pesquisador e pesquisados propostas pelas pesquisas de natureza aplicada, o que torna a construção da pesquisa uma via de mão dupla, e não unilateral. Dessa forma, avalio que há um diálogo profícuo entre pesquisas de natureza interventiva e as dimensões práticas da vida, pela possibilidade de construção de conhecimento a partir do envolvimento horizontal entre sujeitos ao colocarem o ensino de História no “divã terapêutico” da terapia gramatical desconstrucionista.
KÁTIA - Sim.... Há várias formas de sentir, pensar e fazer pesquisa aplicada. Há pouco me referi à rigorosidade metódica da pesquisa-ação, que estabelece a priori as etapas de pesquisa e envolvimento com os sujeitos participantes. Como disse anteriormente, compreendemos a construção de conhecimento como uma imprevisibilidade; por isso nos afastamos dessa experiência de pesquisa que compreende a construção de conhecimento apenas como teoria, analisando uma base de dados empíricos, suprimindo a subjetividade humana da pesquisa.
EDUARDO - Exatamente por isso gostaria de propor não institucionalizarmos no projeto de pesquisa a definição inicial do produto de pesquisa aplicada, uma vez que esse deve ter estreita correlação com o conhecimento construído, ao longo da investigação, com os sujeitos participantes. Por isso, não me sinto à vontade em estabelecer a priori a inovação pedagógica dessa investigação.... Por acreditar que seja fundamental, nesse momento, ter vinculação aos interesses dos participantes.... E isso não tenho como estabelecer antes do próprio percurso da investigação.
KÁTIA - Acho pertinente e concordo. Gostaria de fazer uma contribuição para seus objetivos específicos. Você propõe problematizar práticas pedagógicas no âmbito do ensino e História e acho interessante trazer aspectos derridianos para analisar essas práticas em recomendações metodológicas nos documentos oficiais (MEC), como a BNCC e PNLD. Em outras palavras, o que essas recomendações deixam de dizer quando dizem algo quanto à prática docente do professor de História? Ou, no caso do PNLD, de que formas os textos dos livros didáticos mobilizam o conhecimento histórico?
EDUARDO - Acho válido quando observado o problema central desta pesquisa. Então.... Podemos problematizar a partir de duas edições de livros didáticos da disciplina de História do 6.º ao 9.º ano, envolvendo temas da História do Brasil como escravidão africana e indígena, relações étnicas na formação sociocultural do Brasil, golpe militar de 1964 e ditadura e autoritarismo no Brasil (1964-1988). Tendo em vista o caráter revisionista do atual governo quanto a temas de História do Brasil, acho interessante o cuidado de escolhermos também uma edição de livro didático do triênio anterior (2017/2018/2019) e uma edição para o atual triênio (2020/2021/2022).
KÁTIA - Bom!!! Creio que temos um problema inicial de pesquisa e os objetivos específicos a ele correlacionados. Também temos clareza sobre os caminhos e posições metodológicas que podemos trilhar para a construção do conhecimento. Já pode começar a escrita do seu projeto, para que possamos submetê-lo ao CEP da nossa universidade. Nesse sentido, pensar os critérios éticos na produção de conhecimento com diferentes atores é fundamental para pesquisadores em ciências humanas.
4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
Clarice Lispector
(Sem o conhecido: o cenário agora é o imprevisível)
EDUARDO - Como bem disse Barthes (1999), não posso influir no modo como o leitor compreenderá o texto...
KÁTIA - Podemos intuir.
EDUARDO - Sim, o texto apresenta nosso problema de pesquisa com relação a mobilizar o conhecimento histórico nas dimensões práticas da vida e retalhos da trajetória da construção do projeto nas tessituras dos jogos de cenas.
KÁTIA - O que você achou dessa escrita? Foi a primeira vez que a realizou, não é?
EDUARDO - Sim.... Nunca.... Nunca imaginei fazer algo que bordeja as fronteiras entre texto acadêmico e arte em meu doutoramento. Hoje, em abril de 2021, percebo essa escrita como algo que enseja uma forma de terapia não apenas pela escrita, mas também por todas as discussões filosóficas e posições metodológicas que fui convidado a analisar. Foi muito prazeroso tecer a construção de nosso projeto de pesquisa em jogos de cenas, vislumbrando a possibilidade de compartilhar este trabalho com outros colegas que sintam afinidade com a temática. Sempre tive uma imagem muito marxista da pesquisa em educação.... Embora tenha sido um pouco assustador no início, hoje tenho como uma grata surpresa caminhar pelas águas do pós-estruturalismo. Obrigado pela oportunidade e paciência no processo de desconstrução do projeto e do professor-pesquisador Eduardo.
KÁTIA - E agora?
EDUARDO - Como bem disse Lispector (1973) na epígrafe acima, a pesquisa caminha pelo desconhecido. O projeto é apenas o início da caminhada.... Muitas coisas podem ocorrer, sobretudo em uma pesquisa com a participação de adolescentes em uma escola pública. Resta-nos mergulhar nessa água viva, com a expectativa de emergir com bons frutos.