1 INTRODUÇÃO
A tecnologia possui uma dimensão humana, pois é produto da inteligência das pessoas. Seus aparatos e dispositivos são eminentemente humanos, resultados da colaboração sincrônica e diacrônica em um exercício que perpassa o tempo e “costura” a cultura contemporânea em uma tessitura complexa. Nesse sentido, forjar uma oposição entre humanos e tecnologia é inconcebível ou, no mínimo, indefensável (Feenberg, 2019).
Em relação à tecnologia e à educação, Feenberg1 (2014, p. 1) ressalta que:
Muito se fala sobre como a tecnologia vai revolucionar a universidade; logo, afirma-se que haveria a necessidade de se sentar e esperar até ela solucionar todos os nossos problemas. Mas isso não é verdade, pois temos que nos encarregar da evolução tecnológica, fazer experiências e inovar, achar maneiras de usá-la para alcançar as metas de uma educação adequada. A tecnologia não vai assumir o controle, isso é propaganda - temos que ser os encarregados do progresso.
De acordo com Feenberg (2017), desde as mudanças advindas da revolução industrial, há uma noção de que as máquinas substituirão o homem na realização do trabalho, perspectiva que se aplica também à troca dos professores por mecanismos de educação on-line/a distância (EaD). Mas, segundo ele, isso tudo depende da forma como a tecnologia é utilizada.
O referido estudioso pretende compreender a sociedade sob o viés da questão tecnológica por excelência, visto que a tecnologia não é apenas um meio ou uma vitória da humanidade sobre os processos mecânicos e repetitivos, como também um reflexo do desenvolvimento da natureza humana enquanto se modifica com a transformação do mundo. Se, por um lado, o avanço e a incorporação da tecnologia ao cotidiano impõem sérias reflexões, por outro, seu impacto sobre a educação é considerável.
Trata-se de um filósofo que busca, na questão tecnológica por excelência, compreender a sociedade. É conhecido por obras como Questioning technology, de 1999; Transforming technology, de 2002; Heidegger and Marcuse, de 2005; Tecnologia, modernidade e democracia, de 2015; e A polêmica educação on-line e o futuro da universidade, de 2017.
Feenberg (2004), influenciado especialmente por Heidegger e Marcuse, desenvolveu a Teoria Crítica da Tecnologia relativa aos arranjos tecnológicos como instituidores de um “mundo” em cujo interior são geradas práticas e ordenadas as percepções. Mediante diferentes arranjos técnicos, percepções e práticas internas a eles, surgiriam mundos diversos que privilegiam determinadas características do ser-aí2 humano em detrimento de outros aspectos.
Além do conceito de mundo herdado da fenomenologia heideggeriana, Feenberg (2004) desenvolve outras definições, a exemplo do “código técnico” (realização tecnicamente coerente de determinado intento na resolução de um problema) e da “autonomia operacional” (liberdade do proprietário para tomar decisões sobre como efetivar o comércio da organização, sem considerar as opiniões dos subordinados).
A pesquisa é de natureza teórica, com abordagem qualitativa, cuja fundamentação é a fenomenologia, ancorada nas contribuições de Bicudo (2011), e o recorte teórico perpassa as obras de Feenberg (2004; 2010; 2017), Heidegger (1959; 2002; 2007) e Marcuse (1973; 1999; 2001).
Nesses termos, a fenomenologia vai às coisas mesmas para averiguar como o fenômeno se desvela; logo, o aspecto investigado é sempre situado/contextualizado. Assim, em um percurso que apresenta esse tipo de abordagem são esperadas, no próprio texto da descrição e em seu contexto, “características que se mostram relevantes ao pesquisador da perspectiva da questão norteadora” (Bicudo, 2011, p. 20).
A interrogação que expressa a perplexidade do pesquisador orienta os passos a serem dados para entender os elementos interpretados. Assim, apresenta-se o questionamento que moveu este estudo: de que maneira os pensamentos de Martin Heidegger e Herbert Marcuse se tornam relevantes para elencar aspectos relativos ao pensamento de Feenberg? Como objetivo, tenciona-se compreender as raízes do pensamento feenberguiano.
No sentido acadêmico, pode-se salientar que Andrew Feenberg recebe, indiretamente, as influências de Martin Heidegger, o qual foi professor de Herbert Marcuse que, por sua vez, orientou Feenberg. Marcuse assimilou ideias de Heidegger, ao se apropriar de parte delas para elaborar novos conceitos, e este foi discípulo de Edmund Husserl3.
Conforme o movimento da pesquisa, a concepção de educação abordada na pesquisa se aproxima da experiência descrita no pensamento heideggeriano, uma vez que o diálogo entre educação e tecnologia pode ser efetivado em uma nova perspectiva; também se transformar em um caminho possível, aprofundado e mediado por um viés crítico e reflexivo. Nessa compreensão, concebe-se a educação um processo de formação, estruturado ao modelo de sociedade em que ela ocorre.
2 CONTRIBUIÇÕES DE HERBERT MARCUSE NO PENSAMENTO FEENBERGUIANO
Conforme Feenberg (2010), hoje, Marcuse4 é importante por ser um dos primeiros pensadores que não apenas reparou as implicações técnicas da tecnologia moderna, mas também formulou uma resposta tecnológica. Por que voltar a pesquisar o passado filosófico e reanimar a teoria da tecnologia de Marcuse? Não é ele um velho tecnófobo, um ideólogo marxista obscuro, um elitista pré-pós-moderno? O que ainda podemos aprender com ele que não foi refutado pela nova geração de tecno-críticos do computador ou que não foi mais bem formulado por Baudrillard5?
Feenberg (2010) ressalta que, pelo contrário, considera que Marcuse é importante para nós por ser um dos primeiros pensadores que,
Não apenas deteve-se às implicações técnicas da tecnologia moderna, mas também formulou uma resposta tecnológica. Se aquela resposta é inteiramente bem-sucedida é menos importante do que a nova relação diante da tecnologia que esta abordagem nos propiciou. Essa é a relação que eu quero ressaltar nas reflexões que se seguem. Marcuse recuperou o pensamento clássico sobre techné de uma maneira radicalmente moderna (Feenberg, 2010, p. 291).
O filósofo da tecnologia ressalta que Marcuse é importante para nós por ser um dos primeiros pensadores que não apenas deteve-se às implicações técnicas da tecnologia moderna, mas também formulou uma resposta tecnológica ao propor a ideia de ciência e tecnologia alternativas, uma questão trazida em O Homem Unidimensional.
Em relação a Marcuse, Feenberg (2017) ressalta que:
[...] Antes de O homem unidimensional vender 300 mil cópias, quase ninguém no mundo anglófono sabia o que a Escola de Frankfurt era. Ela era uma nota de rodapé em livros de história intelectual escritos por acadêmicos liberais como H. Stuart Hughes, e não uma presença a se levar em consideração. O homem unidimensional ainda é o único livro da Escola de Frankfurt a ter um impacto político significativo (Feenberg, 2017, p. 306).
Filho de judeus, exilou-se nos Estados Unidos devido à ascensão nazista. Conforme Brüseke (1998, p. 5-6), “Marcuse descobre, na sociedade industrial, uma tendência totalitária. Esta se baseia no controle social crescente, intermediado e cada vez mais aperfeiçoado pela técnica”. Além disso, observa-se que a tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; pois, “a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas” (Marcuse, 1973, p. 19).
Conforme Marcuse (1973), a tecnologia não é neutra, pois não logra ser isolada do uso concebido a ela:
Os princípios da ciência moderna formam uma estrutura apriorística de tal modo que puderam servir de instrumentos conceptuais para um universo de controle produtor automotor; o operacionalismo teórico passou a corresponder ao operacionalismo prático. O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza. A razão teórica, permanecendo pura e neutra, entrou para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura (Marcuse, 1973, p. 153-154).
A obra póstuma de Marcuse (1999), Tecnologia, guerra e fascismo, foi concebida para reunir, nos Estados Unidos da América, artigos inéditos do autor, como as cartas trocadas com Horkheimer6 e Heidegger - todos versam direta ou indiretamente sobre as implicações sociais da tecnologia moderna. Consoante Feenberg (2010), a questão central de Marcuse está em interpretar filosoficamente a tecnologia - mais do que como um problema ético ou de validade ou verdade (epistemológica) científica - e sim, como encarnação de diferentes formas da vida social (culturas, subjetividades, opções econômicas).
Nessa reflexão, e em concordância com o pensamento de Feenberg, entendemos que Marcuse constrói a tese de que, ao incorporarmos a tecnologia como parte da realidade cotidiana, poderemos “viabilizar modos de liberar a razão instrumental para outros fins que alterem a repressão da sociedade de classes, baseada na indústria do consumo de massa” (Feenberg, 2010, p. 15).
Ainda, em relação a Marcuse, Feenberg (2017) ressalta que:
[...] Um fato extraordinário é que a carreira de Marcuse como filósofo começa com uma publicação em 1928 e continua até sua morte em 1979 com dezenas de artigos e muitos livros dignos de atenção de filósofos e de historiadores intelectuais. Não há nada de errado com esse corpus de trabalho que deveria levá-lo a ser rebaixado ou ignorado porque Marcuse esteve brevemente sob escrutínio público. Ele não saiu procurando publicidade. As pessoas vieram a ele (Feenberg, 2017, p. 306).
Na conjuntura das obras de Marcuse (sugestionadas pelas teorias de Hegel7, Marx8 e Heidegger), há a definição de tecnologia como um processo social que influencia as relações sociais e é influenciada por elas. O filósofo define a técnica como um conjunto de instrumentos e instruções em que transbordam racionalidade e legitimações conceitos vistos como uma característica acentuada da proximidade com as obras, entre outros pensadores de seu tempo, como Husserl e Heidegger. Nesses termos, para Marcuse (1999, p. 12), “a técnica é compreendida como neutra, podendo ser utilizada tanto para a libertação quanto para a dominação do homem, bem como escassez ou abundância”.
No ensaio, Marcuse apresenta uma definição de técnica e de tecnologia, a primeira como sendo um aparato técnico das indústrias da comunicação e um fator parcial do modo de produção. A tecnologia é caracterizada por Marcuse (1999), como
[...] modo de produção, como totalidade de instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina [...], e também [...] ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação (Marcuse, 1999, p. 73).
No pensar do filósofo, verificamos que técnica e tecnologia passam a ser empregadas como mecanismo de dominação e de controle da natureza. Para se chegar a essa afirmação, Marcuse (1999, p. 12) parte do princípio de que “a técnica tem um potencial de libertar o homem do trabalho abstrato”, porém, na sua atual caracterização, nas sociedades industriais é empregada pela racionalidade tecnológica como instrumento de exploração e dominação do homem pelo homem.
Tal filósofo articula sobre uma racionalidade tecnológica que se formou devido aos processos de mecanização originados durante e após a Revolução Industrial. Nesse viés, o aparato tecnológico age como forma categórica de dominação e é utilizado pelo sistema para realizar o controle social. Isso mostra que, na maneira em que serve às ideologias dominantes de seu tempo, “a tecnologia serve para instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de controle e coesão social” (Marcuse, 1973, p. 18).
Diante das relações de trabalho apresentadas pela sociedade industrial, o autor entende que “a dinâmica incessante do progresso técnico se tornou permeada de conteúdo político e o Logos da técnica foi transformado em Logos da servidão contínua” (Marcuse, 1973, p. 154). Por outro lado, afirma que o “a priori tecnológico é um a priori político na dimensão em que a transformação da natureza compreende a do homem, e na proporção em que as ‘criações feitas pelos homens’ provêm de um conjunto social e a ele retornam” (Marcuse, 1973, p. 150).
Outrossim, o autor reconhece que a sociedade “se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que inclui a utilização da técnica do homem - em outras palavras a luta pela existência e a exploração do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais” (Marcuse, 1973, p. 143-144). Ao relacionar tais aspectos ao período político em que vivia, ele aponta o regime industrial como totalitário, que se utiliza do gerenciamento e do manuseio das necessidades humanas como meio eficaz de controle, “usando a conquista científica da natureza para conquistar o homem cientificamente” (Marcuse, 1973, p. 17).
A mecanização, conforme o referido autor, gera o princípio de eficiência, em que a máquina realiza mais e em menos tempo que o trabalho manual - tal princípio de eficiência é responsável pela transição de um tipo de racionalidade a outro. Se, por um lado, o desenvolvimento da razão permitiu pressupor a ideia de indivíduos autônomos e estabeleceu bases para o desenvolvimento técnico e científico, por outro, ao longo do tempo, impôs diferentes padrões, contrários àqueles em que se manifestou esse tipo de racionalidade. Assim, “a racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica” (Marcuse, 1999, p. 77).
De acordo com a teoria de Marcuse, a racionalidade tecnológica revela o seu caráter político “ao se tornar o grande veículo de melhor dominação, criando um universo verdadeiramente totalitário no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo” (Marcuse, 1973, p. 37).
No ensaio Algumas implicações sociais da tecnologia moderna, Marcuse associa a racionalidade tecnológica ao “maquinismo”. Nesse contexto, “era da máquina”, “processo da máquina” e “homem na era da máquina” são expressões citadas para explicar a forma pela qual se realiza a racionalidade tecnológica em que Lewis Mumford9 se torna interlocutor de Marcuse, sobretudo na obra Técnica e civilização, de 1934.
De acordo com Marcuse, Mumford teria caracterizado o homem na era da máquina “como uma ‘personalidade objetiva’, alguém que aprendeu a transferir toda espontaneidade subjetiva à maquinaria a que serve, a subordinar sua vida à ‘factualidade’ (matter-of-factness) de um mundo em que a máquina é o fator e ele o instrumento” (Marcuse, 1999, p. 77-78, grifos do autor).
Nesses termos, tecnologia não significa necessariamente maquinismo, pois outras formas de dominação decorrem do desenvolvimento tecnológico, não podendo ser mescladas com a proliferação de máquinas eficientes e sofisticadas - esse caso constituiria apenas uma consequência do desenvolvimento da razão.
Max Weber10 é outro importante interlocutor no ensaio de Marcuse, que explora o conceito weberiano de racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität), atribuindo-lhe o sentido de razão instrumental, aspecto bastante propalado entre os representantes da teoria crítica. Na interlocução com Weber, Marcuse pondera sobre os efeitos do processo de racionalização, que submete os indivíduos à sua lógica - a ordenação de suas vidas passa a ser determinada pelo funcionamento da “maquinaria social”, (Marcuse, 1999, p. 77). A tecnologia é aqui entendida como o alicerce para a dominação sobre a natureza e a do homem sobre si. Por conseguinte, a racionalidade se torna sinônimo de dominação.
Assim, Marcuse (1999) apresenta a dupla face da tecnologia:
A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo [...]. Além disso, a mecanização e a padronização podem um dia ajudar a mudar o centro de gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre realização humana (Marcuse, 1999, p. 74; 101).
Marcuse, para embasar sua teoria crítico-emancipatória da sociedade e ao se favorecer da psicanálise de Freud11, tece uma interpretação otimista da tecnologia, a qual sustenta uma perspectiva emancipatória que eflui de sua teoria.
A sociedade poderia permitir-se um alto grau de libertação pulsional sem perder as suas conquistas ou entravar o progresso. A direção básica de tal libertação, que está indicada na teoria freudiana, seria a recuperação de grande parte da energia pulsional desviada para o trabalho alienado e a sua libertação no sentido de satisfazer as necessidades dos indivíduos cujo desenvolvimento seria autônomo e não mais manipulado (Marcuse, 1973, p. 109-110).
Portanto, a abordagem da tecnologia se volta à perspectiva emancipatória. De acordo com Marcuse (2001), a riqueza produzida nas sociedades industrialmente desenvolvidas supre as necessidades humanas de forma satisfatória. Ademais, a riqueza é ampliada pela vultosa quantidade de matéria-prima existente, pela mão de obra capacitada e pelo desenvolvimento tecnológico.
Devido ao desenvolvimento técnico e científico, mais riqueza é produzida em menos tempo. O autor indica os elementos que permitem refletir sobre a possibilidade de minimizar a jornada de trabalho ou rescindir completamente o trabalho; assim, o progresso tecnológico conduziria ao desenvolvimento de máquinas que comutariam o desgaste físico pelo empenho mental.
Marcuse (2001) assinala que técnica e tecnologia estão em acurada união com as máquinas e os processos de automação:
A crescente mecanização do trabalho permitirá a uma parte cada vez maior daquela energia pulsional, que precisava ser desviada para o trabalho alienado, readquirir sua forma original; em outras palavras, ela pode voltar a ser energia das pulsões de vida.... Que acontecerá se uma automação mais ou menos total determinar a organização da sociedade e se apoderar de todas as esferas da vida? Para descrever essas consequências, recorro aos próprios conceitos freudianos fundamentais. A primeira consequência seria que a força da energia pulsional, liberada pela mecanização do trabalho, não precisaria mais ser gasta em atividades desprazerosas e poderia voltar a ser energia erótica (Marcuse, 2001, p. 131-132).
No que tange à neutralidade da tecnologia, Marcuse (1973) salienta que a tecnologia não pode ser isolada do uso que lhe é dado, pois a sociedade tecnológica é um sistema que já opera no conceito e na elaboração das técnicas. Nesse prisma, não se considerada a tecnologia neutra, pois se origina de um conceito, de uma ideia para servir, antes disso, às ideologias dominantes.
Ao criticar as sociedades existentes, Marcuse se mostra cético quanto ao potencial tecnológico, evidenciando o quanto a tecnologia está comprometida com a dominação não apenas da natureza, mas do próprio homem. Tais aspectos podem ser lidos na maior parte de O homem unidimensional, em que “a tecnologia não pode ser isolada do uso que lhe é dado” (Marcuse, 1973, p. 19).
Para Marcuse (1973), a técnica e a tecnologia não estão estreitamente relacionadas ao maquinismo, e sim à ideologia. A tecnologia se tornou uma forma de ideologia destinada a turvar a consciência de uma libertação que se atina nos países altamente desenvolvidos. Não casualmente, a expressão “véu tecnológico” descreve a conjuntura criticada pelo autor:
O véu tecnológico encobre a reprodução da desigualdade e da escravidão. Com o progresso técnico como seu instrumento, a não liberdade - no sentido da sujeição humana a seu aparato produtivo - é perpetuada e intensificada na forma de várias liberdades e confortos (Marcuse, 1973, p. 32).
O filósofo também afirma que “as técnicas de industrialização são técnicas políticas, como tal, prejulgam as possibilidades da Razão e da Liberdade” (Marcuse, 1973, p. 37). Portanto, a tecnologia teria passado de força produtiva de libertação para uma força de contenção. Ao possibilitar o conforto, ela anestesia a consciência de uma transformação social ao perpetuar a servidão nas sociedades industriais avançadas e se tornar forte aliada do poder político no mundo capitalista e no bloco comunista em que “o objeto é posto como sujeito e o sujeito que o produziu se pensa como objeto, dissociado dos meios de produção e do conhecimento sobre o objeto” (Marcuse, 1973, p. 49).
Sob a influência de Marx, Marcuse (1973, p. 18) aborda a perspectiva emancipatória da técnica, que estaria aprisionada pela propriedade privada dos meios de produção: “nessa sociedade, o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no quanto determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais” (Marcuse, 1973, p. 18).
Segundo ele, “há apenas uma dimensão, que está em toda parte e têm todas as formas” (Marcuse, 1973, p. 31). Tal dimensão é tecnológica, firmada na racionalidade do consumo, da qual o homem não atura mais se subtrair, sobretudo porque qualquer reação oposta à racionalidade da satisfação pelos produtos consumidos se tornou “irracional e contraditória”. Logo, “no período contemporâneo, os controles tecnológicos parecem ser a própria personificação da razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais, a tal ponto que toda contradição parece irracional e toda ação contrária parece impossível” (Marcuse, 1973, p. 30).
Ao considerar o que faz sentido para o sujeito que percebe e se volta para a compreensão do fenômeno investigado, nota-se que:
Em conformidade com Feenberg (2017), os efeitos da tecnologia não se resumem apenas ao sentido da crítica, mas igualmente a perspectivas positivas, sobretudo no tocante ao uso da tecnologia com vistas à tomada de consciência do homem;
Marcuse (2001) dedicou a maior parte dos trabalhos à tentativa de aliar teoria e prática, mediante análises críticas das condições sociais, principalmente nos contextos dos regimes totalitários, da sociedade industrial do século XX, do capitalismo, da tecnologia e das guerras mundiais;
Ainda de acordo com Marcuse (1973), a sociedade passou por um processo tecnológico de transformações na racionalidade e na individualidade do homem. O efeito das mudanças determinou a produção em massa, e a difusão dos aparatos tecnológicos em meados do século XX, nomeadamente após a Segunda Guerra Mundial, passou a evidenciar a relação entre os poderes tecnológico e econômico;
De Mumford (1952) absorve o conceito de maquinismo e o toma como realização da tecnologia. Já de Weber (2006) aproveita a racionalidade com respeito a fins e a dispõe como fundamento para a tecnologia enquanto dominação não somente do homem sobre a natureza, mas também dele sobre si mesmo, como dito anteriormente;
A perspectiva de Marcuse (2004) sobre a tecnologia está vinculada ao desenvolvimento de máquinas e da automação que, por sua vez, remete à abolição do trabalho alienado e das formas de dominação nele estabelecidas - a tecnologia é, pois, uma chave para a emancipação; e
Para Marcuse (2004), a completa automação das atividades culminaria na redução do desgaste físico e da jornada de trabalho. Com menos horas trabalhadas, haveria mais tempo livre, o qual poderia ser utilizado para fomentar as potencialidades humanas.
3 CONTRIBUIÇÕES DE MARTIN HEIDEGGER AO PENSAMENTO FEENBERGUIANO
Martin Heidegger12 viveu de 1889 a 1976. O distanciamento das duas datas indica a longevidade desse filósofo alemão e professor universitário, um dos maiores pensadores do século XX e um dos intelectuais mais respeitados no movimento fenomenológico, conforme Safranski (1994; 2000).
Crítico da técnica, buscou compreender profundamente as consequências do desenvolvimento tecnológico para a sociedade. Para ele, a tecnologia pode desviar o homem do que lhe é próprio: o pensar. A partir da distinção entre um pensamento que calcula (direcionado à técnica) e o que medita/reflete sobre a técnica, pretende desmistificar a técnica, ao motivar a reflexão sobre a imprescindibilidade de resgatar o pensamento que medita.
Não somente o pensamento que calcula, rege o ser do homem no mundo, como também “o homem de hoje foge diante do pensar” (Heidegger, 1959, p. 5). O filósofo entende que os pensamentos que medita e calcula são imprescindíveis, pois constituem modos que oportunizam ao homem realizar a própria existência e descrevem a forma pela qual ele se relaciona com o mundo ao seu redor.
Em relação à técnica e à tecnologia, ou mais precisamente à “absoluta dependência” da tecnologia, Heidegger (1959, p. 23-24) propõe uma atitude simultânea de sim (quando utilizamos os objetos técnicos) e não (quando nos afastamos deles). Desse modo, podemos utilizar os objetos técnicos (como pedem ser, por exemplo) e, ao mesmo tempo, “deixá-los repousar em si mesmos” para que não nos absorvam. O filósofo denomina tais atitudes como “simultâneas em relação ao mundo técnico” e de “serenidade13 para com as coisas”.
O filósofo de Messkirch destaca que a determinação instrumental da técnica não nos revela a sua essência. Assim, a tecnologia, enquanto determinação instrumental da técnica que não contém uma reflexão sobre a própria essência, jamais atingirá o essencial. Nesse pensamento, a preocupação de Heidegger consiste em desvelar as condições transcendentais que viabilizam experiências com as coisas, ou seja, o que torna possível aos entes serem encontrados de modo inteligível. De fato, a preocupação com o ser faz com que se pergunte sobre o que possui em comum com os outros indivíduos.
Porquanto, o autor propõe que a determinação instrumental da técnica não nos revela a sua essência. Convém salientar que, no que tange à serenidade, determinação instrumental da técnica que não seja imbuída de reflexão sobre sua essência e existência do pensamento sobre a técnica e a reflexão acerca desta, do pensamento que medita, nunca se alcançará o essencial.
A reflexão heideggeriana abarca a questão da essência da técnica no domínio do desencobrimento, o qual é compreendido como abertura, pois “o conhecimento provoca abertura. Abrindo o conhecimento é um desencobrimento” (Heidegger, 2002, p. 17). Nesses termos, a verdade é concebida como desencobrimento, e não como adequação, por não adequar a coisa ao intelecto ou à representação - a verdade não resulta da capacidade representativa que o homem possui em relação aos objetos. Para o autor, “o homem não tem, contudo, em seu poder o desencobrimento em que o real cada vez se mostra ou se retrai e se esconde” (Heidegger, 2002, p. 21).
Em A questão da técnica, Heidegger (2007) indefere a neutralidade da técnica e do que denomina como abordagem antropológica e instrumental do termo, que significa entender a técnica como um simples conjunto de instrumentos e artefatos neutros. Todavia, esse parecer pode ser aplicado à técnica em quaisquer épocas e circunstâncias, por identificar estilos antigos, medievais ou modernos, e não concorda em apontar a singularidade histórica da técnica moderna.
Heidegger (1959) desloca a discussão sobre a técnica para o âmbito ontológico, ao interpelar a técnica sobre a própria essência. Para descobri-la, urge transcender a mera determinação instrumental, isto é, para descobrir a essência da técnica, deve-se identificar o instrumental. Ao averiguar o termo “instrumentalidade” e as coisas entendidas como meio para um fim, Heidegger (2007) apresenta a distinção entre os pensamentos técnicos antigo e moderno. No horizonte da reflexão filosófica, o modo como os gregos entendiam a instrumentalidade caracterizadora da técnica remete à teoria das quatro causas14 aristotélicas responsáveis pela produção de um objeto. Conforme Aristóteles (2014, p. 54),
A causa formal é, a forma ou essência das coisas: a alma para os viventes, determinadas ‘relações’ para as diversas figuras geométricas (para o círculo, por exemplo, é o fato de ser o lugar equidistante de um ponto chamado centro), a “estrutura” particular para os diferentes objetos de arte, e assim por diante. A causa material é ‘aquilo de que ‘ é feita uma coisa: a matéria dos animais são a carne e os ossos, a matéria da esfera de bronze é o bronze, da taça de ouro é o ouro, da estátua de madeira é a madeira, da casa são os tijolos e o cimento, e assim por diante. A causa eficiente ou motora é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas: o pai é a causa eficiente do filho, a vontade é causa eficiente de várias ações do homem, o golpe que dou nesta bola é causa eficiente de seu movimento, e assim por diante. A causa final constitui o fim ou o propósito das coisas e das ações; ela indica aquilo em vista de que ou em função de que cada coisa é ou advém ou se faz; e isso, é o bem de cada coisa (grifo nosso).
A primeira causa operante na produção técnica é material e representa a matéria com a qual algo é engendrado ou fabricado; já na formal se insere a matéria (eidos); a eficiente se refere ao que produz o efeito; e a final diz respeito ao fim (responsável) pelo qual são estabelecidas a forma e a matéria do objeto necessárias (telos, finalidade) - a coisa não acaba com esse fim, mas se inicia a partir dele.
O artesão, por exemplo, possui uma ação vista como causa eficiente, que opera sobre o material (objeto), dando-lhe uma forma, uma causa formal, eidos (essência), que constitui a obra acabada - esta é o sentido, o fim e o objetivo da ação técnica, a causa final que orienta a atividade. As quatro causas são partícipes pelo fazer-aparecer (veranlassung) do objeto; por conseguinte, a verdadeira causalidade do processo não está no artesão, mas no produto final fabricado, determinado em termos de finalidade, satisfação de uma necessidade e valor de uso.
Claramente, “o decisivo da tekne não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado” (Heidegger, 2002, p. 18), o que significa aduzir algo à existência. Entretanto, o autor vai além das quatro causas aristotélicas15 para compreender o que as qualifica como causa, consciente de que a apreensão da técnica de matriz grega continua válida para a técnica no sentido moderno, no vínculo que mantém com a ciência experimental.
Para o autor, a técnica e a ciência moderna são a efígie concluída da metafísica. A palavra “metafísica” e o respectivo pensamento se transfiguram em sinônimo de esquecimento (seinsvergessenheit) do ser em prol do ente, que “corresponde à compreensão dominante de ser [...] ser como o conceito mais geral e corrente” (Heidegger, 2002, p. 116).
No tocante à técnica moderna (Ge-setlell), o problema está na maneira distintiva de se ocupar com a objetividade. Se anteriormente, com os gregos, a natureza era apreendida como portadora de finalidades intrínsecas, de vitalidade e alma próprias, na modernidade, a natureza malogra sua particularidade de substância autônoma, ao se tornar matéria-prima (bestand) para ser disposta e, por conseguinte, neutra, sem valor interior.
O encantamento e o fascínio do homem quanto à realização e à condição técnica em compreender os entes desde sua simples presença, além dos progressos obtidos pela humanidade, levam o homem à própria capacidade de reflexão e abertura ao verdadeiro do ser, levando o homem a pensar, poder, fazer e manipular. Ou seja, “é um sinal deste encantamento que em consequência impele tudo ao cálculo, utilização, cultivo, manejabilidade e regulação” (Heidegger, 2002, p. 124).
Constatamos, pois, que o ente se converte em obra do homem e é tomado e dominado somente em sua objetividade. Para o filósofo, esse encantamento procede “do desenfreado domínio da maquinação” (Heidegger, 2003, p. 124), e a metafísica e a ciência aflorada dela pressupõem uma estrutura objetiva permanente para as coisas, com “a objetividade como forma fundamental da realidade e, por conseguinte, do ente” (Heidegger, 2003, p. 127).
Em relação à técnica e à tecnologia, ou mais precisamente à absoluta dependência da tecnologia, Heidegger (2002, p. 12) assume uma “atitude de sim e não simultâneos ao mundo técnico”. Para o autor, a ciência “não é nenhum saber, no sentido de fundação e conservação de uma verdade essencial (assim como a técnica moderna), mas a apresentação maquinadora de um circuito de correção de um âmbito de uma verdade” (Heidegger, 2002, p. 145).
Na obra Serenidade, ao assentir a imponderação de um pensamento contrário ao mundo técnico, Heidegger (1959) fomenta a busca de uma liberdade franca e elementar, aparentemente além da harmonia com a natureza do pensamento meditativo, o que de fato propõe um grande desafio para a relação do mundo contemporâneo com a tecnologia. O filósofo cita, no movimento de serenidade, a maneira como nos comportamos perante a tecnologia:
Deixamos os objetos técnicos entrar em nosso mundo cotidiano e ao mesmo tempo deixamo-los fora, isto é, deixamo-los repousar em si mesmos como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas próprias de algo superior. Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen) (Heidegger, 1959, p. 30).
Para ele, precisamos nos preocupar não em dominar a técnica, mas sim em relação à sua essência que nos conduz ao próprio modo de ser. Por isso, construímos uma relação mais livre com ela, o que nos permite outras formas de ser.
Consoante ao pensamento heideggeriano, a técnica moderna é incapaz de ser mensurada ou controlada pelo homem e está imediatamente concatenada com a história do ser. Pretende-se desvelar as condições transcendentais que oportunizam experiências com as coisas, ou seja, o que torna possível aos entes serem encontrados de forma inteligível. Sendo assim, se preocupar com o ser é perguntar a si mesmo sobre o que todos os entes possuem em comum.
Conforme Heidegger (2002), é concludente, na técnica moderna (gestell), o nexo com a natureza, a matéria, a objetividade mesma, na qual o ente se desoculta (entbergen) tão somente como Bestand. O ente que surge desde a demanda técnica moderna aparece como Bestand, estoque ou fundo disponível e reservatório de energia.
Assim como o significado se manifestou à consciência do pesquisador, compreende-se que:
Na tecnicidade, a técnica deixa de ser tratada sob um prisma unicamente instrumental e passa a ser entendida na têmpera existencial, o que acarreta determinada relação entre o homem e a natureza, além da ideia de verdade e objetividade. Ela não se refere à técnica em si, mas à forma histórica da relação supramencionada;
Com tal conceito, denega-se a tese da neutralidade, pois os objetos podem ser neutros, mas a relação com a objetividade, não. À proporção que preconiza uma ideia de verdade, um universo de fins está presente na tecnicidade, além de determinar a forma do instrumento técnico;
A revolução da técnica processada na era atômica poderia prender, enfeitiçar, ofuscar e deslumbrar o homem de tal modo que o pensamento que calcula viesse a ser o único admitido e exercido de fato;
A técnica não se iguala à própria essência, e a determinação instrumental dela não nos revela a sua essência. Nesses termos, a tecnologia, enquanto determinação instrumental da técnica que não contenha uma reflexão sobre a própria essência, jamais atingirá o essencial.
4 CONCLUSÃO
Quando há a leitura e a compreensão do dito, pode-se inferir que, para Heidegger (1959), a tecnologia conduz a uma sociedade calculista e mecanicista; assim, aparece como ameaçadora e produtora de um futuro distópico. Marcuse (1973), por outro lado, chama a atenção para a “sociedade unidimensional”, em que todos pensam de maneira homogênea - a tecnologia poderia, de alguma forma, contribuir para a construção de uma sociedade nesses moldes.
Desse modo, é possível perceber claras influências do pensamento heideggeriano sobre Marcuse e deles sobre Feenberg. Heidegger (2007) fala do ser-aí autêntico em oposição ao ser-aí impróprio, que se perde na cotidianidade. O ser-aí cotidiano mergulha no impessoal ao adotar o discurso do agente, sem ter um pensamento mais próprio, mas com a adoção do falatório, do discurso mediano, da opinião da maioria. Enquanto isso, Marcuse (1999) explica que, na sociedade unidimensional, a individualidade do sujeito é dissolvida e ele adota o discurso homogêneo e hegemônico, ao se privar da independência mental.
Nos escritos heideggerianos, a técnica é concebida como um simples meio. Ela é também uma forma de (desen)cobrimento, de modo a revelar outra perspectiva diante dos indivíduos com o desencobrimento da verdade, pois a técnica constitui uma forma de desencobrir, em que vige (e vigora) no contexto do descobrimento onde acontece a verdade; logo, a técnica constitui um meio para atingir fins e uma atividade humana, ao ser instrumental e antropológica ao mesmo tempo. Tais atributos, para ele, são inseparáveis, pois conceber fins e empregar os meios necessários dizem respeito a uma ação dos seres humanos.
Como a percepção é a própria matéria que adquire sentido e forma, compreende-se que a filosofia da tecnologia de Heidegger (2002) é uma combinação enigmática de nostalgia romântica - conforme uma imagem idealizada da antiguidade - com a visão densa da modernidade. A originalidade está em tratar a técnica não apenas como meio funcional, mas como modo de “revelação” por meio do qual se molda um “mundo”.
Marcuse (2001) transcende Heidegger (2007), pois, além da influência heideggeriana, o pensamento marcusiano é perpassado pelo marxismo. Marcuse (1973) compreende o problema da tecnologia a partir de um entendimento materialista dialético das conexões e dos contextos revelados nos conflitos históricos. Esse pensador faz uma análise crítica da tecnologia e não é hostil, tampouco indiferente a ela; antes, tal teoria propõe a reconstrução radical da tecnologia moderna.
O problema de Heidegger (2007) está em pensar a tecnologia exclusivamente como um sistema de controle, ao menosprezar seu papel nas vidas daqueles que estão subordinados a ela. Diante da insuficiência e do limite no pensamento heideggeriano, precisa-se recorrer à teoria marxista para refletir sobre a questão da tecnologia e realizar uma análise sociocrítica (e não meramente ontológica) do problema da técnica.
Em contraposição a Heidegger (2002), para quem a tecnologia se relaciona à história ontológica, Marcuse (2001) cita as consequências da persistência de divisões entre classes e entre dirigentes e dirigidos nas instituições tecnicamente mediadas - nesse caso, a ação técnica é entendida como um exercício de poder. Entende-se que Feenberg (2017) absorve e ultrapassa esse pensamento ao complementar a ideia de que os sistemas tecnológicos impõem manipulações técnicas sobre os seres humanos, em que alguns influenciam enquanto outros são influenciados.
Ao ir-à-coisa-mesma e, apesar de a filosofia da tecnologia ter um longo trajeto desde Heidegger (1959) e Marcuse (1973), Feenberg (2004) elabora uma teoria própria, capaz de responder às especificidades inseridas na situação histórica em que se encontram as pessoas. A Teoria Crítica da Tecnologia pretende interpretar o mundo a partir das potencialidades, com o intuito de identificá-las ao recorrer a pesquisas empíricas rigorosas, mas sem desconsiderar a discussão sociocrítica acerca das questões atuais. Convém salientar que tal teoria depende da participação democrática, sobretudo da tecnologia.