Introdução
Este texto tem como objetivo analisar as mudanças na fronteira entre o público e o privado no contexto das políticas conservadoras e do gerencialismo, como parte do movimento de correlação de forças que ocorre na sociedade por projetos societários e de educação em disputa. O artigo trata do neoliberalismo, do neoconservadorismo e do gerencialismo como partes de um mesmo movimento de restauração de classe neste período particular do capitalismo.
Distintos autores tratam das novas características do neoliberalismo, que, historicamente, se modifica e se atualiza mediante as condições de sua materialização. Laval e Dardot (2017) e Puello-Socarrás (2008) têm tratado do conceito de novo neoliberalismo, fruto da radicalização neoliberal a partir da crise de 2008 que, para os autores, em vez de enfraquecer, fortaleceu o neoliberalismo, que opera com uma lógica de autoagravamento da crise. Aumenta-se a retirada de direitos sociais e reforça-se o poder do capital sob o argumento de que a economia está em crise, o que torna os cortes sociais inevitáveis e justificáveis. As conquistas democráticas são perdidas em um processo de naturalização sem precedentes na história.
Essa retirada dos direitos provoca instabilidade e leva ao caos social. Nesse sentido, o neoconservadorismo apresenta-se como resposta ao problema, segundo Harvey (2008), em que setores do capital respondem com maior repressão e censura. Já, para Laval e Dardot (2017), o neoconservadorismo é instrumental ao avanço do neoliberalismo. O fato é que, no Brasil, nos últimos anos, além do mercado, também o neoconservadorismo tem sido o centro de todos os aspectos da vida em sociedade e tem assumido a pauta educacional. Neste texto, propomo-nos a trazer autores e dados de nossas pesquisas sobre privatização do público, para contribuir nesse debate.
Compreendemos que os processos de privatizações do público trazem implicações para a democracia, e ainda mais para a educação, dado o seu importante papel na construção de uma sociedade democrática - principalmente por entendermos que as relações baseadas em princípios democráticos são construídas na experiência (THOMPSON, 1981). Evaldo Vieira (1998) aponta que qualquer conceito de democracia - e há vários deles - importa em grau crescente de coletivização das decisões. O autor enfatiza que “[...] não há estágio democrático, mas há processo democrático pelo qual a vontade da maioria ou a vontade geral vai assegurando o controle sobre os interesses da administração pública”, e, nesse sentido, “[...] quanto mais coletiva é a decisão, mais democrática ela é” (VIEIRA, 1998, p. 12).
Para Mészáros (2002, p. 991), “[...] no decurso do desenvolvimento humano, a função do controle social foi alienada do corpo social e transferida para o capital”. Assim, o autor traz o debate para o protagonismo dos sujeitos e a não separação de quem pensa e quem executa e, ainda, para a importância do processo e não apenas o produto. Segundo o autor, “[...] programas e instrumentos de ação sociopolíticos verdadeiramente adequados só podem ser elaborados pela prática social crítica e autocrítica no curso do seu efetivo desenvolvimento” (MÉSZÁROS, 2002, p. 1008). Tomando também a discussão de Wood (2003), sobre a não separação do econômico e do político, trazemos a reflexão sobre a importância da materialização de direitos em políticas educacionais, como parte do conceito de democracia.
Com base nesses autores, organizamos o conceito de democracia que fundamentam as análises em nossas pesquisas. De acordo com Peroni (2013, p. 1021), “[...] a democracia é entendida como a materialização de direitos em políticas coletivamente construídas na autocrítica da prática social”. No decorrer das pesquisas, verificamos, no caso dos países latino-americanos que viveram ditaduras e recentemente construíram seus processos de democratização, que, ao mesmo tempo que avançavam os processos de privatização ocorridos internacionalmente, também avançaram em processos democráticos e de conquista de direitos, sendo, assim, mais correto falar em relação entre o público e o privado.
No caso brasileiro, esse processo assume características particulares. O Estado continua o responsável pelo acesso e inclusive amplia as vagas públicas na educação, mas o “conteúdo” pedagógico e de gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições privadas que introduzem a lógica mercantil, sob o pressuposto de contribuir para a qualidade da escola pública (PERONI, 2015). Assim é que a privatização do público pode ocorrer com ou sem mudança de propriedade. É o que Rikowsky (2017) traz acerca da privatização da e na educação, ocorrendo a privatização da educação via capitalização, e a privatização na educação é a tomada de controle sobre a educação por parte das empresas que não envolvem propriedade, via disputa pelo conteúdo, em um projeto de restauração de classe. Para o autor, a privatização da educação como capitalização não se trata apenas de privatização da educação, mas do avanço do capitalismo. É uma disputa pelo fundo público no sentido do lucro, educação tornando-se capital. Trata-se do desenvolvimento capitalista na educação.
No caso deste texto, vamos tratar mais da privatização na educação, no sentido da disputa pelo conteúdo e pelo controle da educação. Esse processo não envolve a oferta, uma vez que a escola permanece pública. O Estado paga o professor, define as parcerias, a compra de pacotes e o conteúdo da educação. Já o privado passa a determinar a formação de professores, o monitoramento, o conteúdo trabalhado nas aulas, a gestão. Destacamos que o privado atua com o aval do público, que tem a mesma perspectiva política de classe e, por isso, o contrata. É o que temos tratado como a privatização como política pública.
Entendemos o gerencialismo como parte da discussão da privatização na educação, e a privatização como parte das redefinições do papel do Estado. Wood (2014) aponta que o Estado nacional no período de financeirização tem um papel ainda mais importante para o capital do que em períodos anteriores. Duas questões parecem-nos relevantes de ressaltar neste artigo acerca do gerencialismo: a questão de que é parte do diagnóstico neoliberal de que a crise está no Estado e o mercado passa a ser parâmetro de qualidade - o que permanece no Estado deve ter como parâmetro a qualidade do mercado, e a questão mais específica da educação das disputas entre gestão gerencial e democrática.
Sobre a primeira questão, entendemos que as fronteiras entre o público e o privado têm se modificado no contexto atual de crise do capitalismo e suas estratégias de superação - neoliberalismo, globalização, reestruturação produtiva, Terceira Via e neoconservadorismo - redefinem o papel do Estado, principalmente para com as políticas sociais. O neoliberalismo e a Terceira Via, atual socialdemocracia, têm o mesmo diagnóstico de que o culpado pela crise atual é o Estado e o mercado como parâmetro de qualidade. O papel do Estado para com as políticas sociais é alterado, pois, com esse diagnóstico, as prescrições são racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituições, já que instituições públicas são permeáveis às pressões e às demandas da população e improdutivas, pela lógica mercadológica. Nessa perspectiva, a responsabilidade pela execução e pela direção das políticas sociais deve ser repassada para a sociedade.
Sobre a segunda questão, entendemos que a relação entre gestão democrática e gerencial é muito mais do que uma discussão sobre administração da escola, envolve projetos societários muito mais amplos em disputa. Para aprofundar essas questões acerca da relação entre o gerencialismo, o novo neoliberalismo e o neoconservadorismo e os projetos mais amplos que estão em disputa, dialogamos com alguns autores que contribuem no debate.
Newman e Clarke (2012) apresentam o conceito de estado gerencial que envolve o gerencialismo como ideologia e a gerencialização como processo de estabelecimento de autoridade gerencial sobre os recursos corporativos (materiais, humanos ou simbólicos). Para os autores, o gerenciamento fornece coerência ideológica e organizacional para as reformas do Estado. O gerencialismo como ideologia é essencial para o projeto de reforma, pois, mesmo onde os serviços públicos não foram totalmente privatizados, era exigido que tivessem um desempenho como se estivesse em um mercado competitivo.
O estado gerencial envolve mais do que uma lógica administrativa, é um projeto societário. Consoante Newman e Clarke (2012, p. 355): “Falamos a respeito de um estado gerencial porque queríamos localizar o gerencialismo como uma formação cultural e um conjunto distinto de ideologias e práticas que formavam um dos sustentáculos do novo acordo político que vimos emergindo”. Para os autores, a questão central era “[...] romper e redesenhar o acordo político-econômico entre capital e trabalho, seja aquele inscrito no próprio estado de bem-estar, seja nas tradições de negociações salariais tripartite entre sindicatos, patrões e o estado” (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 357). A materialização desse processo foi o avanço da privatização do público. De acordo com os autores:
O que ocorreu a seguir incluía uma nova ênfase sobre abordagens mercadocêntricas, com um retorno à contratualização, separação comprador- fornecedor e mercados internos ou quase-mercados; uma economia mista emergente de prestação e financiamento de serviços; um processo complexo de reestruturação e desregulação da força de trabalho; e um privilegiamento retórico subsequente do cliente ou consumidor de serviços públicos (Clarke et al., 2007). Estas mudanças eram apoiadas tanto por uma crença ideológica no poder da gestão para produzir mudanças transformadoras como a dispersão do poder do estado para um quadro de agentes gerenciais empoderados. (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 357-358, grifos dos autores).
Para os autores, a dispersão do Estado é a base para o gerencialismo. A dispersão ocorre por meio da transferência de recursos para Organizações não Governamentais (ONGs) não eleitas e também como lógica interna nas organizações, pela competição intraorganizacional. As instituições, ao mesmo tempo que devem ser mais flexíveis, não têm liberdade para atuar, pois ocorre o controle por meio de avaliação de desempenho. Destacamos, ainda, o processo de governança em rede, envolvendo grupos da sociedade civil e Estado, que será tratado na segunda parte deste artigo.
Neoconservadorismo, neoliberalismo e suas relações
Laval e Dardot (2017) consideram que o neoconservadorismo é instrumental ao neoliberalismo com implicações para a democracia. Para os autores, a crise existe e é estrutural e atinge a todos os aspectos da realidade. Contudo, para o novo neoliberalismo, ela se converteu como forma de governo e foi assumida como tal, de modo que, em vez de se fragilizar, o neoliberalismo alimenta-se da crise. Conforme os autores:
Por supuesto, el sistema esta en crisis y su crisis es tan crónica como total, se extiende a todos los aspectos de la realidad puesto que la lógica neoliberal no deja a salvo a ninguna dimensión de la existencia humana. Pero la fórmula significa también que el sistema se alimenta de la crisis y que se refuerza mediante la crisis. […] [Las políticas neoliberales] obligan a los gobiernos a someterse a las consecuencias de las políticas anteriores que ellos mismos han llevado a cabo. (LAVAL; DARDOT, 2017, p. 31).
Nesse sentido, segundo os autores, o neo-neoliberalismo alimenta-se da crise, reinventa-se naquilo que Harvey (2008) chama de restauração do poder de classe, e fortalece-se, porque reinventa-se na própria crise. Desse modo, não se trata apenas de uma política ou ideologia particular, mas, sim, da transformação da realidade social, que se converteu em neoliberal. E a maior prejudicada nesse contexto é a democracia, já que o neoconservadorismo - instrumental ao novo neoliberalismo - utiliza a retórica da crise para diminuir ainda mais as políticas sociais e fechar as liberdades democráticas, avançando em seu projeto antidemocrático.
Sobre a relação entre neoliberalismo e democracia, os autores ressaltam, ainda, que o neoliberalismo rompe com a relação entre democracia e políticas de distribuição e de seleção de dirigentes, mesmo que limitada à participação, apenas via voto, em que eleitos pela maioria deveriam governar em nome da justiça social e corrigir as desigualdades geradas pelo mercado. Para o neoliberalismo, a democracia é um simples procedimento técnico de designação de governantes. A ideia de democracia como soberania popular deve ser rechaçada, uma vez que é prejudicial ao livre andamento do mercado, já que os governantes devem atender à demanda dos seus eleitores, o que provoca crise fiscal no governo. Assim que autores neoliberais, como Hayek e Lippmann, tem desconfiança até mesmo da democracia representativa.
O neoliberalismo tem início como um projeto de renovação do liberalismo que foi sistematicamente transformado em um sistema político institucional, em que elementos do projeto inicial foram relegados. No entanto, desde o início, há um antidemocratismo natural com as regras de mercado orientando as políticas dos governos. Segundo Laval e Dardot (2017):
Lo que caracteriza la economía del neoliberalismo no es la pasividad de la esfera política, su carácter mínimo, su encogimiento; más bien al contrario, se trata de la constancia de un intervencionismo gubernamental productor de un orden nuevo. Este intervencionismo especial debe ser entendido como lo que es: un conjunto de políticas condicionadas y condicionantes, dependientes y creadoras de un sistema. (LAVAL; DARDOT, 2017 p. 55).
A institucionalização do novo neoliberalismo tem uma dimensão política que envolve a concepção de Estado empresarial e governança corporativa; uma dimensão econômica que envolve a financeirização, a desassalariação e reformas pensionistas; uma dimensão cultural que propõe uma cidadania corporativa, despolitização e des-solidariedade. O foco principal desse processo de institucionalização é o empreendimento. É importante destacarmos que não se trata só do Estado empreendedor, é um Estado empresarial: ele não vai ser empreendedor do pequeno empreendedor, ele vai ser o Estado empresarial no sentido de mercado.
As mudanças no papel do Estado são profundas; ele deixa de ser o executor de políticas para ser o controlador de resultados, fomentando, assim, a ideologia do empreendimento, deslocando para o indivíduo as responsabilidades que seriam do poder público. Destacamos que o argumento do individualismo une neoconservadores e neoliberais. A questão do individualismo versus o coletivismo, que seria a proposta democrática de universalização de direitos, acaba unindo as propostas de mercado e neoconservadoras. São críticas ao coletivismo e adeptas a um individualismo que critica a presença do Estado na regulação do mercado, assim como questões ideológicas, morais ou religiosas, que seriam restritas às esferas da família e dos indivíduos.
Para Harvey (2008), o neoliberalismo e o conservadorismo têm características diferentes. O neoconservadorismo é, em parte, a consequência da diminuição de direitos proposta pelo neoliberalismo; assim, o neoconservadorismo responde ao caso social e à instabilidade. Para o autor, “[...] o aumento do desemprego, dos ajustes estruturais que minimizam as políticas sociais e a exacerbação da competitividade e individualismo, pode provocar caos social e civilizatório e a este risco o neoconservadorismo responde com maior repressão” (HARVEY, 2008, p. 94). O neoconservadorismo reage também ao avanço dos movimentos com pautas identitárias com valores morais característicos
[…] centrados no nacionalismo cultural, na retidão moral, no cristianismo (de uma certa moralidade evangélica), nos valores familiares e em questões de direito à vida, assim como no antagonismo a novos movimentos sociais como o feminismo, os direitos homossexuais, a ação afirmativa e o ambientalismo. (HARVEY, 2008, p. 94).
O autor aponta, ainda, semelhanças e diferenças entre neoconservadores e neoliberais. Quanto às semelhanças, o autor destaca que ambos são favoráveis: ao poder corporativo, à iniciativa privada, à restauração do poder de classe, à desconfiança da democracia e à governança pela elite. As principais diferenças são a preocupação com a ordem em resposta ao caos e a defesa de uma moralidade inflexível como cimento social.
Para Moll Neto (2010, p. 65), o neoconservadorismo “[...] resgatou e reconstruiu pressupostos de correntes conservadoras que os antecederam, basicamente do velho conservadorismo e do libertarianismo”. Conforme o autor, em 1955, os colunistas da Revista National Review, que construíram as bases ideológicas do neoconservadorismo, resgataram do tradicionalismo a ênfase moral que serviu para atacar moralmente o Estado de Bem-Estar Social e os movimentos sociais liberais e do libertarianismo, a ideia de que a sociedade era uma relação contratual entre indivíduos e não um organismo que guarda interesses e objetivos coletivos. Para eles, “[...] nada justificava projetos estatais que interferissem na vida das pessoas e limitassem as liberdades, sobretudo a econômica” (MOLL NETO, 2010, p. 67).
O autor ressalta que é somente a partir da crise da década de 1970 que iniciou uma mobilização neoconservadora materializada principalmente por meio da criação de think tanks. De acordo com Moll Neto (2010, p. 69): “Os empresários da nova direita organizaram fundações para reunir capital para apoiar e financiar universidades, pesquisas e centros de estudo (Think Tanks) a fim de elaborar projetos políticos nacionais”. O autor afirma que:
Nos BPOs (Business Policy Organizations) neoconservadores e ultraneoconservadores, havia uma preponderância das elites sulistas, sobretudo do Sunbelt, nos EUA. Dentre as organizações neoconservadores, se destacam a Business Roundtable, o American Enterprise Institute, a Heritage Foundation e o Hoover Institution. (MOLL NETO, 2010, p. 70).
É importante destacarmos que o processo de convencimento não se travou no campo da disputa teórica e política via debate, como esperado em um período democrático; ao contrário, os BPOs “[...] funcionavam como canais para levar as ideias neoconservadoras aos círculos decisórios e ao público em geral” (MOLL NETO, 2010, p. 74). Desse modo, fica clara a relação entre o mercado e as ideias conservadoras, já que elas foram financiadas em um projeto muito bem organizado, não ocorreram naturalmente na sociedade.
As organizações políticas empresariais promoveram financiamento para jornais conservadores em campus universitários, lançaram jovens jornalistas, apoiaram publicações e produziram propagandas do projeto neoconservador na mídia a fim de convencer o público. (MOLL NETO, 2010, p. 74).
Essa relação entre mercado e conservadorismo materializa-se no atual contexto brasileiro, ainda que com algumas particularidades. A seguir, vamos analisar como se estabelece a relação entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo no Brasil, quem são os principais sujeitos, como se relacionam e qual é o conteúdo de suas propostas.
Neoconservadorismo, neoliberalismo: sujeitos em relação
No caso brasileiro, entendemos que o conservadorismo foi uma marca da nossa história (FERNANDES, 1987; KAYSEL, 2015), com presença contundente mesmo no período de abertura democrática. Isso porque a sociedade capitalista, estruturada em classes, não comporta avanços. As classes dominantes precisam de um Estado forte para preservar a ordem e reproduzir seu poder real; assim sendo, lutam com afinco por um capitalismo de tipo ditatorial (FERNANDES, 1985). Desse modo, a redemocratização deu-se de forma parcial e com muitas limitações. Certamente, houve avanços, principalmente quanto à garantia de direitos políticos e sociais, e os compromissos do Estado como garantidor desses direitos; à coletivização das decisões e criação de mecanismos de democratização da sociedade e à construção de uma sociedade mais justa e igualitária (PERONI, 2015). Contraditoriamente, nesse mesmo período, houve um avanço mundial da defesa neoliberal de privatização dos direitos sociais e limitação da intervenção do Estado na economia, conformando-se, paralelamente, a um contexto local de avanços e a um contexto internacional de retrocessos.
Conforme apresentado até aqui, pautamos a discussão relativa à disputa pelo conteúdo da educação dentro dos processos de privatização do público em uma perspectiva de restauração de classe. Assim que a relação já exposta sobre neoliberalismo e neoconservadorismo se faz presente, como a principal estratégia do capital para restaurar o poder de classe que, no recente caso brasileiro, se viu ameaçado por um período de avanços nas questões sociais. Trata-se, portanto, de um processo de correlação de forças por projetos societários atravessados por interesses de classe, levados a cabo por sujeitos individuais e coletivos que atuam a partir de uma determinada agenda, tanto por meio de propostas concretas (projetos legislativos, programas e políticas nacionais), quanto por discursos e mobilização da opinião pública. E tem, na sua atuação, uma forte preocupação, não por acaso, com a questão educacional. A escola e a política educacional, nesse cenário, constituem-se em um terreno de disputas que redefinem os sentidos e o conteúdo da educação.
Tanto pela perspectiva neoliberal quanto conservadora, o gerencialismo, nos termos aqui discutidos, é instrumental a um projeto de escola centrado no controle - controle do trabalho docente, controle do currículo, controle da gestão, controle dos resultados e controle dos sujeitos, incluídos seus corpos e suas mentes - desde a Educação Infantil até o Ensino Superior. A partir de uma narrativa que aponta a responsabilidade das fragilidades da educação brasileira ao Estado, neoliberais e conservadores constroem estratégias que possibilitem esvaziar os sentidos de justiça social, igualdade, solidariedade e diversidade historicamente construídos dentro da escola, buscando substituí-los: de um lado, pelo empreendedorismo, produtividade e meritocracia; e, do outro lado, pela retidão moral, cristianismo e valores familiares. Nesse ponto, neoliberais e neoconservadores vislumbram uma aliança possível e, mais do que isso, necessária. Oportunamente, abrem mão de suas diferenças no que diz respeito aos projetos societários e encontram equilíbrio em um ponto comum que vem favorecer a ambos: a crítica ao modelo atual de educação em geral, e à doutrinação ideológica em particular.
Assim sendo, dedicamo-nos, neste trabalho, a analisar as relações que se estabelecem entre sujeitos vinculados aos ideais conservadores e neoliberais sob uma perspectiva gerencial inspirada na lógica privada do mercado como parâmetro de qualidade. Isso significa que o mercado perpassa as análises, já que, conforme discutido anteriormente, a lógica neoliberal não deixa a salvo nenhuma dimensão da vida humana (LAVAL; DARDOT, 2017) e a neoliberalização procura enquadrar todas as ações humanas no domínio do mercado (HARVEY, 2008), incluindo a educação.
Os sujeitos, individuais e coletivos, foram dispostos em formato de rede, conforme indicado na Figura 1 que segue. No entanto, dados os limites do artigo, optamos por trabalhar com mais profundidade com aqueles que julgamos mais importantes no contexto dessa discussão. As fronteiras entre conservadorismo e neoliberalismo não são sempre evidentes; assim, não é nossa intenção categorizar os sujeitos quanto aos pressupostos ideológicos, por isso os organizaremos em três grandes grupos para tratar de suas relações com a educação e as pautas que defendem para a política educacional. No esforço de qualificar a leitura da figura, utilizamos formas diferentes para indicar os grupos, quais sejam: 1) think tanks, cuja atuação ocorre em âmbito nacional, com articulações no âmbito global, em retângulos pontilhados; 2) movimentos políticos, que pautam as questões do conservadorismo, especialmente entre a juventude brasileira, dispostos em esferas; e 3) núcleo do Governo Federal, apresentados em retângulos comuns. Todos os três atuam buscando influenciar a agenda de políticas públicas, a formação de opinião e a difusão dos fundamentos e dos valores do liberalismo e do conservadorismo, atravessando a educação brasileira.
Iniciamos nossa discussão pelo primeiro grupo, dos think tanks (centros de pensamento), que engloba institutos, centros de estudos, fundações e movimentos voltados à produção e à difusão de conhecimentos e ideias, tanto entre instâncias governamentais, quanto em termos de opinião pública em geral. Trata-se de instituições privadas que atuam a partir da sociedade civil, dotadas de um caráter ativista (advocacy think tanks) com vínculos ideológicos evidentes, associados aos pressupostos da economia de mercado, liberdade individual e limitação da ação do Estado. Talvez este seja o grupo menos notadamente conservador entre os que serão aqui discutidos, mas não significa que não contribuam para o avanço de um projeto de reestruturação da educação brasileira nos moldes do conservadorismo. Além disso, esse grupo assume uma importância significativa no sentido de incorporar instituições tradicionais do movimento liberal-conservador, aglutinando um grande número de intelectuais orgânicos dessa corrente de pensamento, como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, entre outros.
A chegada dessa modalidade de organização no Brasil deu-se no contexto do final da Ditadura Militar, fruto de um processo de reorganização das estratégias de ação política das classes burguesas, influenciadas por concepções neoliberais que se propunham (como se propõem atualmente) a defender os interesses empresariais e de mercado, reivindicando redefinições do papel do Estado então em redemocratização (CASIMIRO, 2016). O primeiro think tank fundado no Brasil foi o Instituto Liberal, em 1983, seguido pelo Instituto de Estudos Empresariais, em 1984. Desde então, uma série de novas organizações e instituições de mesma natureza passaram a ser criadas como estratégia dos grupos neoliberais e neoconservadores para modelar o ambiente político (MORAES, 2015). Além dos dois já citados, estão dispostos na figura outros mais recentes como o Instituto Millenium (2006), o Instituto Mises (2007) e Students for Liberty (2008), que, neste momento particular, apresentam uma atuação expressiva no cenário político. Todos eles são vinculados à Atlas Network e compõem também a Rede Liberdade .
Essas instituições foram idealizadas por empresários, mas contaram também com o envolvimento de intelectuais acadêmicos, que “[...] não são representantes diretos da classe dominante no quadro das relações de produção, mas atuam como intelectuais prepostos - fundamentais para a aglutinação dos diferentes interesses das frações de classe burguesa” (CASIMIRO, 2016, p. 268). Essa característica determina a natureza dos Institutos que têm na reconfiguração do papel do Estado condição para viabilização de seus projetos. De igual modo, ocorre a criação de think tanks neoconservadores, nos moldes dos BPOs que trata Moll Neto (2010), responsáveis por disseminar a ideologia neoconservadora. A redefinição do papel do Estado coloca-se, desse modo, como ponto-chave do pensamento liberal e neoconservador. Os think tanks não atuam globalmente da mesma maneira e apresentam especificidades locais, regionais e nacionais. Como modalidade de instituição, podem dedicar-se exclusivamente às questões econômicas “[...] ou ter uma atuação ampliada para outras esferas da vida social como meio ambiente, saúde, educação, violência, segurança pública, entre outras, atreladas aos valores gerencialistas de mercado” (MENDES; PERONI, 2020, p. 67). Alguns trechos de documentos e artigos publicados por think tanks brasileiros auxiliam na compreensão dos pressupostos que defendem para a educação e a direção em que devem avançar as políticas educacionais com vistas ao fortalecimento de seu projeto societário.
Segundo manda a tradição, os institutos liberais-conservadores defendem a redução do tamanho do Estado, redefinindo seus papéis especialmente com relação à oferta de determinados serviços, entre os quais se inclui a educação. Nesse sentido, defendem a mercadificação da educação, a privatização das escolas públicas e sua desvinculação dos órgãos estatais:
Educação é um serviço como outro qualquer, alguém oferece e alguém adquire, alguém investe e alguém paga por aquilo. Educação não é um direito no sentido que a sociedade deve prover ao indivíduo. O direito à educação significa que qualquer um que puder pagar para adquirir conhecimento não pode ser impedido. Educação é como um hambúrguer, quem quiser matar a fome entra no estabelecimento de sua preferência e paga de acordo com o preço que estão vendendo. Escolas públicas estatais devem ser privatizadas imediatamente. Escolas privadas devem educar de forma livre e independente, sem MEC, sem SEC ou órgãos do governo que só querem controlar as mentes. (RACHEWSKY, 2019, n.p.).
A defesa da escola privada e independente de diretrizes e parâmetros impostos pelo Estado se sustenta pelo argumento de que a educação somente poderá ser verdadeiramente libertadora quando se libertar das amarras do aparelho do Estado e da opressão estatal. Isso porque só o mercado será capaz de garantir a liberdade de escolha das famílias sobre a educação dos filhos, inclusive daquelas que optarem pelo ensino domiciliar.
Em termos estratégicos, não há nada mais precioso que o controle da educação. Afinal, é ali que está a semente de tudo. Se toda a propaganda governamental inculcada nas salas de aula conseguir criar raízes dentro das crianças à medida que elas crescem e se tornam adultas, estas crianças não serão nenhuma ameaça ao aparato estatal. Elas mesmas irão prender os grilhões aos seus próprios tornozelos. [...] E é por isso que a educação autônoma e domiciliar - a verdadeira educação - é uma enorme ameaça para qualquer regime. (GELLER, 2019, n.p.).
Ao tratar da escola pública sob gestão do Estado centralizador, os think tanks, ainda que muitas vezes de modo sutil e utilizando-se de outro vocabulário, apontam a doutrinação ideológica como um dos enormes problemas decorrentes do monopólio estatal, como podemos verificar no excerto a seguir:
A educação, como os demais bens, deve ser ofertada num ambiente de livre concorrência. Quanto menos intervenção estatal, melhor. Cabe aos consumidores decidir o que presta ou não, separar o joio do trigo. A mentalidade arrogante dos burocratas e sindicalistas é a verdadeira inimiga do progresso educacional. Imbuídos da crença de que somente eles sabem qual a melhor forma de educar o povo, eles desejam controlar nos mínimos detalhes a “qualidade” do ensino. Na prática, tudo aquilo que for contra a visão uniforme e medíocre dessa gente “politicamente correta” será visto como inadequado, ainda que exista demanda por parte dos pais. Quem sabe como educar melhor seus filhos: os próprios pais, ou os sindicalistas, políticos e membros de “movimentos sociais”? (CONSTANTINO, 2010, n.p.).
Nessa perspectiva, os think tanks pró-mercado corroboram com os debates propostos pelo movimento Escola sem Partido (ainda que, contraditoriamente, se posicionem contrários a ele sob diferentes argumentos). Trata-se de corroborar as denúncias feitas ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores - PT (2002-2015), de que a educação estatal vinha sendo utilizada como ferramenta para moldar os modos de pensar das crianças e dos jovens escolarizados, sob uma perspectiva taxada como de esquerda, marxista, gramsciana, entre outros termos que acompanham as discussões sobre o “marxismo cultural” ou a “guerra cultural”. A partir desse cenário educacional, construido e disseminado pela direita brasileira, propõem que a escola retome determinados valores e fundamentos tradicionais. Como exemplifica o trecho a seguir, os think tanks aqui discutidos apresentam inclinações ao conservadorismo em se tratando das pautas morais:
O Brasil avançará no campo educacional, de fato, quando conseguirmos promover o resgate do respeito às tradições brasileiras, fundamentadas em valores judaico-cristãos; da autoridade do professor dentro da legalidade e na sua valorização, em todos os sentidos; da ordem e disciplina; da valorização dos símbolos nacionais; da defesa da alta cultura ocidental; a partir da disseminação na sociedade da crença no liberalismo econômico, na liberdade e na responsabilidade individual de cada um; no princípio da descentralização de poderes e decisões das políticas educacionais; no repúdio ao marxismo; quando se acreditar que o sucesso educacional depende do aluno, e não se transferir esta responsabilidade individual ao docente ou terceiros; quando se entender que é papel da escola ensinar a alta cultura ocidental, e não ser um “depósito de pessoas”. O conservador apoia o fim da aprovação automática. Entende que é uma forma encontrada pelos pedagogos marxistas para premiar a incompetência, além de nivelar os bons alunos com os péssimos. A escola transmite o conhecimento científico e a família educa. (INSTITUTO LIBERAL, 2018, n.p.).
Em apenas um parágrafo, o texto resume os preceitos que aliam conservadores e liberais quando aponta a necessidade de resgate aos valores tradicionais do cristianismo, a prioridade da família sobre a educação dos filhos, a disciplina e a hierarquia aliadas à crença no liberalismo, na responsabilidade individual e na meritocracia. O mesmo pode ser verificado ao analisarem-se instituições parceiras, como é o caso do Instituto Millenium, que apresenta proximidade com o Farol da Democracia Representativa (FDR) , instituição moralista e ultraconservadora, o que “[...] demonstra a articulação entre liberalismo econômico e conservadorismo cultural nas representações político-ideológicas no seu escopo de abrangência, contemplando convenientemente cisões e divergências interburguesas” (CASIMIRO, 2016, p. 326).
O think tank que mais atua nessa convergência entre neoliberalismo e neoconservadorismo é o Studants for Liberty (SFL), um think tank estudantil de abrangência internacional, fundado em 2008, que se declara como a maior organização estudantil pró-liberdade do mundo. Atuante em 110 países por todos os continentes, chegou ao Brasil em 2012, com o nome de Estudantes pela Liberdade (EPL). Os líderes do SFL atuam também em outros think tanks e em movimentos políticos, conforme veremos adiante o caso do Movimento Brasil Livre (MBL), e são organizadores da LibertyCon Brasil, uma conferência que ocorre anualmente, mais ou menos nos mesmos moldes do Fórum pela Liberdade, promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais.
Os think tanks aqui discutidos têm em comum a forma de ver o mundo e a sociedade e desenvolvem diferentes estratégias com vistas à construção de um projeto societário voltado à sua concepção de liberdade e os pressupostos que dela decorrem. Percebemos que os think tanks tendem a se vincular às pautas com viés mais político e econômico, mas se aproximam também de outras esferas da vida social, nas quais aparecem as discussões do ponto de vista moral e cultural, não se abstendo de tratar desses assuntos, especialmente em manifestações individuais de parte dos seus membros.
Isso nos leva ao segundo grupo de sujeitos dispostos na figura: os movimentos políticos, organizados a partir da sociedade civil e voltados à agitação e à propaganda de determinadas pautas que, mesmo que sejam vinculados a alguns think tanks, não carregam consigo a institucionalidade destes e, por isso, desfrutam de uma certa liberdade de posicionamento, envolvendo-se com questões mais variadas.
Na última década, foi possível verificar o crescimento e o aumento de grupos de atuação política sem vinculação partidária (ao menos assumidamente) alinhados ao pensamento liberal-conservador, que atuam principalmente no sentido de propagandear seus pressupostos teóricos. Esses grupos, em geral formados por jovens, assumiram progressivo protagonismo no cenário político brasileiro, ganhando força principalmente no contexto das disputas sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, entre os anos de 2014 e 2016, em que mobilizaram setores da juventude mais à direita do espectro político. Não tendo vinculações institucionais ou partidárias formais, os ativistas desses grupos têm certa liberdade para se posicionar diante das mais variadas pautas e polêmicas, adotando discursos relativamente despreocupados em relação à aceitação. Sua atuação na internet, especialmente via redes sociais, também apresenta uma dinâmica nova de atuação, que se caracteriza pela rapidez e pela linguagem acessível àqueles distantes do universo político e acadêmico tradicional.
O principal expoente desse fenômeno foi o MBL, fundado em 2014, mas que tem sua origem em articulações anteriores que ocorriam internamente entre o grupo Estudantes pela Liberdade, vinculado à Atlas Network (AMARAL, 2015). Não por acaso, muitos membros do MBL passaram pelo principal programa de treinamento da organização, a Atlas Leadership Academy . De lá para cá, o movimento cresceu bastante, ampliando suas bases de apoio especialmente por meio das redes sociais e inserindo-se na política parlamentar por meio de partidos parceiros. Nas últimas eleições, levaram seus candidatos à eleição em diferentes casas legislativas, incluindo o Congresso Nacional.
Entre as pautas do MBL, desde o nascimento, constam a defesa da liberdade individual e de mercado, reivindicam a redução do Estado e o combate à corrupção, pautas essencialmente neoliberais:
É isso que leva o movimento a assumir a postura de oposição ao Governo Federal (ao Partido dos Trabalhadores, mais notadamente) desde sua fundação, garantindo o protagonismo nas manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff no ano de 2015. Com o passar dos anos, a atuação do MBL deu uma guinada, extrapolando a pauta do liberalismo econômico, inserindo-se nas discussões de fundo moral. (LIMA, 2018, p. 130).
Como estratégia de popularização e para ampliar seu alcance nas redes, o grupo passou a envolver-se com pautas voltadas às questões morais, que têm forte apelo popular. Disso decorre a aproximação com as pautas de combate à doutrinação ideológica e ideologia de gênero nas escolas, as ações de censura à exposição Queermuseu , entre outras situações que evidenciam a preocupação crescente com elementos do campo moral. A aproximação do movimento ao campo educacional deu-se quase exclusivamente por meio do apoio ao movimento Escola sem Partido, no que diz respeito à sustentação de projetos de lei dessa natureza, bem como a defesa pública de seus interesses.
Outros movimentos de relevância na formatação dessa nova forma de fazer política, utilizando-se das novas tecnologias e de discursos rápidos e acessíveis, foram o Revoltados Online e o Vem pra Rua, que atuaram nas manifestações pró-impeachment, empunhando a bandeira contra a corrupção, disputando protagonismo com os membros do MBL. O Revoltados Online desenvolveu uma militância política de extrema-direita defendendo a pauta da intervenção militar, sob liderança de Marcelo Reis, o fundador do slogan “meus filhos, minhas regras” com relação à defesa do movimento Escola sem Partido (ESP). O movimento, inclusive, foi responsável pela apresentação da pauta do ESP para o ministro da educação Mendonça Filho, em 2017, em uma reunião da qual participou o ator Alexandre Frota e a então procuradora Bia Kicis. Por meio da aproximação com o movimento e como uma figura de destaque, Frota inseriu-se na cena política e veio a ser eleito deputado federal em 2018, pelo PSL, atualmente filiado ao PSDB. Bia Kicis, convém destacar, também se elegeu como deputada federal no mesmo pleito e pelo mesmo partido e atua na defesa do direito ao ensino domiciliar (homeschooling) e do ESP.
Um movimento político mais recente que pegou carona com a popularidade de Jair Bolsonaro e seus filhos e abraçou pautas conservadoras foi o Movimento Brasil Conservador (MBC), fundado em 2018, no Rio de Janeiro, em um evento que contou com a participação de Flávio Bolsonaro. O movimento é pautado “[...] na defesa dos pilares da civilização ocidental e no combate à dominação cultural imposta por ideologias revolucionárias e destrutivas em nosso país” (MBC, 2018, n.p.) e busca não apenas conservar, mas resgatar determinados valores que julgam necessários à construção de uma nação próspera, justa e decente. Para o Movimento:
Conforme a educação clássica, a filosofia grega, a moral judaico-cristã e o capitalismo de livre-mercado são abandonados, mais experimentamos a decadência econômica, social e moral que nos assola e que, por meio da desinformação midiática, serve de pretexto para que nos afastemos mais e mais do caminho correto, num ciclo vicioso que terminará - fatalmente - como já terminou tantas vezes na história: com miséria, morte e degradação da condição humana. Com isso em mente, nossos princípios nos guiam na defesa das pautas essenciais para a manutenção da ordem social que buscam subverter (MBC, 2018, n.p.).
O MBC apresenta proximidade com o Governo Federal, em especial com o então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que concedeu entrevistas, participou de atividades do movimento e, junto a Carlos Nadalim, Secretário de Alfabetização, foi palestrante no Congresso do MBC realizado em maio de 2020. Em diálogos com o ministro, seus membros manifestaram apoio à militarização das escolas e fazem coro ao movimento ESP nas denúncias de doutrinação ideológica no ambiente escolar e universitário.
O ESP compõe nossas análises com uma particularidade, pois, ao mesmo tempo que pode ser considerado um movimento político, no sentido de ser um sujeito coletivo - Movimento Escola sem Partido (MESP) -, ele representa também uma pauta - o combate à doutrinação ideológica e à ideologia de gênero - que é apropriada por diferentes sujeitos e, por isso, atravessa diretamente a questão do conteúdo da educação. Idealizado por Miguel Nagib, advogado e procurador, o ESP foi criado em 2004, com o objetivo primeiro de combater a doutrinação ideológica nas escolas e, com o passar dos anos, adotou a pauta do combate à ideologia de gênero. O movimento considera que a doutrinação ideológica é o grande problema da educação brasileira, uma vez que os professores estão mais preocupados em “formar militantes políticos” em vez de “ensinar os conteúdos”.
No Brasil, entretanto, a despeito da mais ampla liberdade, boa parte das escolas, tanto públicas, como particulares, lamentavelmente já não cumpre esse papel. Vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas com pretensões claramente hegemônicas, essas escolas se transformaram em meras caixas de ressonância das doutrinas e das agendas desses grupos e dessas correntes (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019a, n.p.).
Novamente, coloca-se a ideia de uma “guerra cultural”, na qual há dois lados antagônicos (esquerda e direita, bem e mal, certo e errado), que disputam versões e teorias sobre a sociedade, a história, a cultura, a arte, etc. Como principais expoentes da guerra cultural da esquerda, são apontados frequentemente Karl Marx, Antonio Gramsci e Paulo Freire, a partir de interpretações sobre suas obras:
[...] o que a pedagogia de Paulo Freire propõe, pelo menos em relação ao ensino e aprendizado entre o professor e o aluno, é fazer do professor um propagador e doutrinador do ideário neomarxista e fazer dos alunos militantes dessas mesmas causas. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019b, n.p.).
O movimento ESP ganha capilaridade e capacidade de influência do debate público no momento que seus pressupostos são convertidos em Projeto de Lei, a pedido do então deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, e passam a ser apresentados em casas legislativas pelo Brasil. O primeiro de autoria do próprio deputado, em 2014, foi apresentado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Depois dele, o então vereador Carlos Bolsonaro apresentou projeto semelhante à Câmara Municipal do Rio de Janeiro e, a partir daí,
[...] diversos outros parlamentares repetiram a atitude e apresentaram às Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas de diferentes regiões do Brasil, bem como ao Congresso Nacional, projetos muito semelhantes e com poucas variações - em geral de adequação ao âmbito da proposta - sempre baseados nos anteprojetos disponibilizados pelo movimento em endereço eletrônico. (LIMA, 2018, p. 13).
Paralelamente às disputas no campo legislativo, o movimento sempre operou no sentido de mobilizar a opinião pública, em especial a de estudantes e de suas famílias, contestando o papel dos professores, a qualidade do trabalho docente e dos currículos escolares. A aprovação de leis referentes ao ESP não é, em si, um objetivo, mas, sim, uma estratégia para atingir o objetivo central, que é a conscientização da sociedade a respeito do problema da doutrinação . Quanto aos Projetos de Lei, cabe destacar que recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade de uma Lei Municipal que proibia o debate de gênero nas escolas e o mesmo já ocorreu com lei específica do ESP, o que indica a correlação de forças que se estabelece em torno desses projetos.
De todo modo, os preceitos do movimento já adentraram as escolas e o imaginário coletivo e se fazem presentes de diferentes formas, sempre vinculadas a aspectos conservadores. Segundo Penna e Salles (2017):
É partindo desse viés que a concepção pedagógica do movimento é semeada. Podemos observar essa base conservadora do MESP na grande importância que ele atribui à instituição familiar como a fundadora da formação dos indivíduos, tendo a escola uma função complementar e secundária nesse processo; a separação entre as noções de instrução - os conteúdos curriculares prescritos - e educação - a moral e os valores - a primeira que caberia à escola, a segunda à família; além da demanda de que a educação escolar cumpra com os desígnios de certa pluralidade que se traduz, na prática, como a imposição de que a atuação docente seja neutra. Assim, cria-se uma linha hierárquica para questões cujo tratamento é de responsabilidade exclusiva do âmbito familiar e outras do escolar. (PENNA; SALLES, 2017, p. 20).
Pesquisas anteriores (LIMA, 2018; PERONI; CAETANO; LIMA, 2017) apresentam as redes do movimento ESP apontando sujeitos individuais e coletivos que atuam por dentro e por fora do movimento, com vistas à aprovação de seus projetos e divulgação de suas propostas. Nas pesquisas, foi possível verificar que, no campo legislativo, os partidos proponentes de Projetos de Lei da natureza do ESP são aqueles situados mais à direita do espectro político. Além disso, percebemos o envolvimento de diferentes setores da sociedade, desde aqueles vinculados a igrejas e a instituições religiosas, cujo interesse se dá fundamentalmente no combate à ideologia de gênero, até os vinculados a movimentos, instituições e think tanks liberais (ou liberal-conservadores), que endossam a necessidade de combate à doutrinação ideológica.
Os pressupostos do movimento converteram-se, portanto, em uma pauta e foram apropriados por diferentes sujeitos, incluindo o atual presidente da República, Jair Bolsonaro e seu núcleo de governo - o terceiro grupo de sujeitos aqui discutido - cujas propostas para a educação na campanha presidencial tiveram centralidade no combate às questões ideológicas em sala de aula. Preocupado com a ideologização das escolas, com a militância dos professores e com as discussões de fundo moral e religioso que permeiam a educação, tornou-se um forte aliado do movimento ESP, na busca de combater a “doutrinação ideológica” e a “ideologia de gênero” nas escolas. Em campanha à presidência, sob o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, manteve o combate à doutrinação nas escolas como um tema central de suas propostas para a educação, além do indicativo de priorizar investimentos na Educação Básica, com vistas à melhoria do desempenho educacional.
A crítica à doutrinação é um ponto bastante demarcado pelo atual governo brasileiro, que concorda com o diagnóstico do movimento ESP, entre outros, de que os grandes males da educação brasileira, nos últimos anos, têm sido a doutrinação ideológica e a ideologia de gênero. Partem da premissa de que os professores, tanto na Educação Básica, quanto nas universidades, atuam não para ensinar os seus alunos, mas para formar uma militância política de esquerda. Combater a doutrinação é, do seu ponto de vista, a grande estratégia para avançar na qualidade educacional do país, conforme sintetizou o presidente em uma publicação em rede social:
Uma das metas para tirarmos o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino. Junto com o Ministro de Educação e outros envolvidos, vamos evoluir em formar cidadãos e não mais militantes políticos. (BOLSONARO, 2018, n.p.).
Esse é o principal argumento que o atual governo utiliza para discutir a qualidade da educação brasileira. “Gastamos como os melhores, educamos como os piores” passou a ser, em grande medida, um lema que, de uma só vez, exclui a necessidade de ampliar o investimento de recursos na educação pública e traz para o centro do debate a questão das avaliações e dos resultados. Em diversas manifestações públicas, tanto o presidente quanto o ministro da educação reafirmam dados que apontam para altos investimentos em comparação com outros países, mas que, em contrapartida, os resultados são insatisfatórios. Frequentemente, a discussão da qualidade e dos resultados está associada à incapacidade dos docentes de ensinarem, efetivamente, os conteúdos curriculares, sem ideologias.
O então ministro Abraham Weintraub entrou no governo em abril de 2019, substituindo o ministro Ricardo Vélez Rodrigues, propondo-se a romper com a lógica de funcionamento do Ministério da Educação (MEC) durante os governos anteriores, aos quais tece muitas críticas. Weintraub foi professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com Graduação em Ciências Econômicas e Mestrado em Administração na área de Finanças. Seu currículo evidencia uma atuação profissional e acadêmica muito mais relacionada ao mercado financeiro do que à educação. Sua atuação no MEC se orienta “[...] por um lado, pelas teses conservadoras e, por outro lado, na lógica operativa do padrão sócio-político do neoliberalismo” (FREITAS, 2019, n.p.), de modo que as pautas centrais do Ministério dizem respeito à militarização das escolas, o combate à doutrinação e a defesa do ensino domiciliar e da responsabilidade da família sobre a educação dos filhos. Não por acaso, o Secretário de Alfabetização do Ministério é Carlos Nadalim, autor do blog “Como educar seus filhos” e defensor do homeschooling, aliado da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED).
Também tem forte vinculação com essa pauta a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que é pastora evangélica defensora da família como entidade central da sociedade em contraposição ao Estado. Damares é também advogada e foi fundadora da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), instituição “[...] composta por operadores do direito integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como professores e estudantes de todo país” (ANAJURE, 2019, n.p.), que atuam de forma incisiva nas casas legislativas, além de atuar junto ao executivo. A entidade contou com a participação de Sérgio Moro (ex-ministro da Justiça e segurança pública de Bolsonaro) e Guilherme Schelb, apoiador do Escola sem Partido que foi cotado pelo presidente para o Ministério da Educação.
Ainda que estejamos tratando dos sujeitos que compõem o atual governo, parece-nos necessário incluir na análise o escritor Olavo de Carvalho, uma figura que, apesar de externa, participa ativamente e influencia significativamente na agenda, na formatação e na composição do governo Bolsonaro. Mesmo não integrando formalmente o atual governo, ele apresenta significativa influência por meio de seus discípulos que o têm como referência e estão espalhados pelos ministérios e secretarias, carregando suas pautas e empunhando suas bandeiras, como era o caso dos ex-ministros da educação Abraham Weintraub e Ricardo Vélez. Olavo tornou-se uma grande referência intelectual da nova direita brasileira, com uma trajetória que se associa
[...] intimamente ao fortalecimento de movimentos de orientação conservadora, que se consolidaram nos últimos 20 anos através de pautas como a desconfiança dos meios de comunicação e dos saberes acadêmicos, além de encontrarem na internet um dos seus principais meios de divulgação. (PENNA; SALLES, 2017, p. 26).
Além disso, os autores destacam a importância do escritor para a criação do ESP e sua contribuição para formulação da retórica que veio a ser utilizada pelo movimento na defesa de suas ideias. Sua concepção sobre educação é centrada na ideia de que esta não deve ser uma responsabilidade do Estado:
Nessa hora em que há perspectiva de um novo governo, um governo em que o povo vai, pela primeira vez em 50 ou 60 anos poder confiar, começam a aparecer evidentemente as propostas educacionais e aparecer as fórmulas mágicas. Entre essas se destacam duas: colocar escolas militares em cada esquina e a outra é universalizar o homeschooling. Isso tudo é uma bobagem, porque o erro essencial é a ideia de que o governo federal tem que educar a nação. Essa é uma ideia comuno-fascista que entrou na cabeça do Brasileiro no tempo de Getúlio Vargas e não saiu até agora. O governo não tem que educar ninguém, minha gente, é a sociedade que tem que se educar a si mesma. (CARVALHO, 2018, n.p.).
A citação de Olavo de Carvalho neste artigo, além de apontar para sua influência no cenário político atual, serve para ilustrar o quanto determinados sujeitos individuais têm tido capacidade de atuação, mesmo sem envolvimento direto, como grandes interlocutores na definição da agenda política e educacional, especialmente por conta das novas tecnologias e a facilidade do público em acessar suas ideias. Como ele, há vários outros que atuam disputando a opinião pública em favor da construção desse projeto, especialmente via redes sociais.
Com base na discussão aqui realizada, verificamos a proximidade dos sujeitos vinculados aos setores neoliberal e neoconservador no Brasil, que, em muitos momentos, se encontram para o fortalecimento de seus projetos. No entanto, há uma série de outros sujeitos disputando a cena política, entre os quais destacamos aqueles vinculados a concepções opostas as aqui tratadas: grupos políticos, movimentos sociais e entidades que se dedicam à defesa da educação sob uma perspectiva de liberdade, igualdade, diversidade e justiça social. Destacamos que se trata de uma correlação de forças por projetos societários distintos que, em determinados momentos, pode apresentar-se mais favorável a um ou outro lado, mas é fundamental na construção de uma sociedade democrática.
Considerações finais
O Brasil não tem histórico democrático. Quando estávamos dando os primeiros passos para a construção de uma democracia, em outros países, as políticas neoliberais de austeridade com a retirada de direitos sociais já era uma realidade - que não tardou a chegar aqui. Essa mesma relação enxergamos ao tratar da ligação entre o público e o privado, ao mesmo tempo que avançávamos em algumas conquistas democráticas e de fortalecimento do Estado como propositor de determinadas políticas e garantidor de direitos, também avançavam distintas formas de materialização do privado no público.
No último período, as poucas conquistas foram vistas como grande ameaça aos grupos neoconservadores e neoliberais, que organizaram diferentes estratégias para disputar o seu projeto societário. Como afirma Lowy (2016), a democracia atrapalha a política capitalista e é um grande peso para o Estado, as classes dominantes e o capital financeiro. Ao analisar o golpe de 2016 no Brasil, ele afirma: “Se antes já vivíamos em uma democracia de baixa intensidade, agora parece que até mesmo esta democracia era intensa demais para as classes dominantes e para o capital financeiro”(LOWY, 2016, p. 61). Sobre os sujeitos desse processo, o autor destaca “[...] a elite capitalista financeira, industrial e agrícola - não se contenta mais com conceções: ela quer o poder todo” (LOWY, 2016, p. 64).
Conforme demonstrado, o antidemocratismo não nasceu com a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, do mesmo modo como vários sujeitos aqui discutidos atuam no cenário político desde muito antes. Trata-se de um projeto de país que vem sendo construído desde o período de redemocratização (CASIMIRO, 2016), mas que assume particularidades neste momento particular em que se legitima e se materializa com mais facilidade a partir da eleição de um governo cujas diretrizes incorporam esse projeto.
Frisamos aqui o argumento inicial de que a relação entre o público e o privado faz parte dessa disputa por projetos societários de classe. Se avançamos minimamente em um projeto mais democrático, aqui definido como público, isso é visto como uma enorme ameaça e, assim, os setores vinculados ao capital, aqui denominados de privado, se organizaram em uma grande ofensiva para barrar esses avanços. A estratégia internacional e, particularmente, do Brasil, neste momento, envolve a aliança entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo. Esse processo materializa-se de diferentes formas; assim, neste texto, apresentamos, com base em nossas pesquisas, algumas relações entre sujeitos e o conteúdo de suas propostas. O foco foi tecer apontamentos sobre as implicações desse processo para a nossa frágil democracia. Entendendo a importância da educação para a construção de uma sociedade democrática, precisamos avançar na construção da educação pública, combatendo a privatizaçao da educação, tanto em sua proposta de mercado quanto neoconservadora.