Introdução
A leitura dos escritos de Paulo Freire, seu engajamento e sua proposta metodológica demonstram um trabalho de valorização, humanização e libertação do ser humano, reconhecidamente inspirado em princípios éticos que sugerem uma alternativa para a educação escolar e, consequentemente, para lidarmos com os conflitos e as diferenças religiosas instaladas na sociedade e reproduzidas no seio do espaço escolar.
Nos escritos desse educador, há uma visão de ser humano, de mundo, de história e de educação peculiar permeada de uma ética humanizante. Como asseveram Santos, Melo e Cavalcante (2021, p. 5), Paulo Freire “[...] destaca que a capacidade de aprender, ou seja, a educabilidade funda-se na incompletude humana e na sua consciência de que pode ser mais”. Em seu livro, Pedagogia do oprimido, por exemplo, o princípio ético está assentado na vida, pois a sua ética pedagógica libertadora é construída a partir do oprimido, do ser negado, do ser excluído, do ser segregado, da negação de direitos a todos os que são vítimas de um sistema capitalista, de uma sociedade pautada no neoliberalismo, no sectarismo, no pragmatismo, assim como no fundamentalismo religioso. Todos esses “ismos” reforçam, dentre outros, a desigualdade social e a discriminação de raça, de gênero, religiosa, de orientação sexual divergente da heteronormativa.
A vida, para Paulo Freire, é um parâmetro essencial, seja no estabelecimento de relações mais humanizadoras, edificantes e construtivas, seja no processo de ensino-aprendizado, em que o outro é reconhecido e valorizado em suas particularidades, suas singularidades, seus saberes e suas identidades. Nesse sentido, o educador do oprimido opta pelos “esfarrapados do mundo” e convida-nos a assumir uma proposta pedagógica que tenha a autonomia do sujeito como um dos caminhos na busca pela liberdade, pela formação da criticidade dos educandos e, consequentemente, pela constituição de subjetividades éticas, em que a dignidade humana seja parâmetro para as relações interpessoais. Vale ressaltarmos, ainda, que as obras de Paulo Freire são complexas e possibilitam aos pesquisadores da educação, e demais áreas do conhecimento, tecerem suas leituras de mundo, a partir do lugar que ocupam e no qual atuam. Ao reforçarem esse discurso, Peloso e Paula (2021, p. 2) afirmam que, “[...] reconhecido por sua contribuição à educação de pessoas adultas e, mais especificamente, à educação popular, consideramos que sua obra é marcada por questões ontológicas, epistemológicas e metodológicas”. Tais questões oportunizam trazer o ser humano para o centro das ações e concebê-lo para além das lógicas neoliberais e extremistas postas na sociedade atual.
Sob esse olhar, as obras de Paulo Freire, quando abraçadas, geram esperança de que dias melhores sejam uma realidade para os judeus, os católicos, os adeptos das religiões afrodescendentes, os ateus, os agnósticos, para as mulheres, para os negros e para os homossexuais. Portanto, ao considerarmos a ordem de argumentação apresentada, fica posto o entendimento de que, na atualidade, a dignidade é um valor supremo do ser humano, que precisa ser conquistado e preservado e, sem o qual, lamentavelmente, o ser humano, singular e coletivo, estará refém de um estado primitivo de barbárie, de selvageria. É necessário e urgente conferirmos a devida importância ao pensar, ao sentir e ao fazer ético em todas as situações cotidianas e existenciais, para podermos superar a negação da dignidade humana.
Entretanto, antes de prosseguirmos, perguntamos: O que se compreende por ética? De acordo com Abbagnano (2007, p. 380), ética é “uma ciência da conduta”, pela qual os seres humanos organizam o seu modo de viver entre e com outros seres humanos. Tal modo de convivência e de vivência dizem respeito a ações pelas quais a relação com o outro, individual ou coletivo, deverá estar alicerçada em padrões de comportamento consensuais. Logo, compreendemos que a ética é uma construção coletiva. Ela é norteada por valores morais, os quais se fundam em direitos e deveres para tal conduta ou relação entre os sujeitos. Nesse sentido, ao concordarmos com Dussel (2000), podemos compreender que a ação ética envolve a produção, a reprodução e o desenvolvimento da vida humana em comunidade. Ora, se a ética tem a ver com conduta entre pessoas, em sociedade (aqui nos referindo às relações na sociedade vigente, para não dizer moderna ou pós-moderna), podemos afirmar que a ética é um campo de disputa, sobretudo no atual contexto sociopolítico, em que determinados grupos lutam para serem reconhecidos, aceitos e valorizados.
A metodologia
Adotamos como abordagem teórico-metodológica a Análise Arqueológica do Discurso (AAD), proposta por Michel Foucault (2000). A justificativa por essa abordagem deu-se em decorrência do objeto de pesquisa, neste artigo, situar-se no âmbito do discurso. Assim sendo, não foi nossa pretensão investigar uma experiência concreta, um projeto específico, uma política pública particular, em suas configurações históricas, empíricas e cotidianas, mas, sim, o discurso em seu próprio âmbito.
No processo de mapeamento dos documentos/fonte, identificamos, selecionamos e organizamos os cinco escritos de Paulo Freire1, os quais consideramos relevantes para compor a temática do Dossiê Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança. Durante a escavação da zona do discurso, lemos e sistematizamos o material selecionado, para identificar séries enunciativas do discurso investigado. Na análise e na descrição dos enunciados, identificamos os enunciados escavados, de forma a destacar sua regularidade e sua dispersão nos documentos, para conferir visibilidade e descrevê-los em sua ordem de existência.
Conforme posto, cabe destacarmos que, embora a AAD investigue objetos situados no campo da linguagem, ela não se ocupa com quaisquer tipos de objetos presentes nesse território, como significados, sentidos, representações e atos de fala, ressaltados em outros domínios do conhecimento e situados no seio das áreas sociais e humanas. Seu foco são os discursos como enunciados. Foucault (2000) enuncia que a AAD busca
[...] definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas e as obsessões que ocultam ou se expressam dos discursos, mas sim, os próprios discursos, como práticas que obedecem a regras, como um conjunto de sequências de signos na forma de enunciados, o que lhes permite atribuir modalidades particulares de existência ou, ainda, como conjunto de enunciados que se apoiam em um mesmo sistema de formação [...]. (FOUCAULT, 2000, p. 135).
Dessa forma, o presente artigo visou examinar mais detidamente o modo como Paulo Freire empregava a ética como princípio fundante de suas reflexões, suas problematizações e suas argumentações sobre a inserção do trabalho social religioso no seio das relações sociais latino-americanas.
A necessidade de investigar sobre esse assunto ocorreu, sobretudo, durante a análise do livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981), quando encontramos uma reflexão mais explícita e sistematizada sobre a questão social da religião, precisamente no capítulo intitulado “O papel educativo das igrejas na América Latina”, em que Paulo Freire abordou a questão religiosa de maneira direta, ao analisar o fazer educativo das igrejas na América Latina. No desenrolar de sua reflexão, o autor tratou de aspectos relevantes, não somente sobre a especificidade da questão religiosa, mas também do tratamento dado ao assunto a partir do princípio ético. Outra obra também analisada foi Os cristãos e a libertação dos oprimidos (FREIRE, 1978), a qual dialoga com a anterior e que nos possibilitou explicitar alguns elementos sobre o entrelaçamento entre a questão ética e a religiosa.
É bem verdade que Paulo Freire não pôs intencionalmente a questão social da religião do modo como investigamos e abordamos neste artigo. Entretanto, ao tematizá-la, ele acionou o princípio ético como dispositivo de crítica ao trabalho social religioso, por meio da denúncia de concepções e de práticas educativas, envolvidas com o status quo dos grupos e das classes dominantes, e do anúncio de um horizonte religioso profético, revolucionário, cuja concepção e teologia alimentavam a esperança, o compromisso e o envolvimento concreto de cristãos com a libertação dos povos oprimidos latino-americanos.
Embora o significante “religião” e seus correlatos apareçam raramente, e o assunto não tenha sido tematizado por nosso educador precisamente assim, a análise aponta que a questão religiosa e seu nexo com a educação aparecem na dispersão dos textos-fonte, de distintos modos de abordá-la e mencioná-la, ora vinculada a uma concepção de mundo, ou a um tipo de consciência ou saber que se tem sobre si, sobre o mundo e sobre suas relações com ele, ora associada à discussão sobre o trabalho social realizado por instituições religiosas, como os que foram feitos pelas igrejas cristãs na América Latina, no curso da história de seus países, ou, ainda, ao referir-se a si mesmo, a sua história pessoal, as suas experiências, as suas motivações, as suas esperanças, as suas angústias, aos seus comprometimentos e ao seu horizonte de luta social e histórica, como cristão confesso que era.
O trabalho social religioso
Iniciamos a escavação sobre a questão da religião de modo a analisar a crítica freireana sobre o trabalho social religioso, porque, ao discutir sobre esse assunto, Freire apresenta elementos éticos que articulam religião e educação. Para tanto, recorremos, como ponto de partida, ao capítulo “O papel educativo das Igrejas na América Latina”, presente na obra Ação cultural para liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981)2. Ademais, frisamos que não pretendemos fazer uma espécie de síntese ou de resumo do que Paulo Freire escreveu nesse escrito, assim como nos outros aqui analisados, e, muito menos, comentá-los ou interpretá-los. Logo, limitamo-nos a apresentar alguns achados, alguns feixes de relações, analisá-los e descrevê-los, articulando-os ao objeto mencionado anteriormente, com o fim de explicitar o uso do princípio ético na construção de sua crítica sobre a questão religiosa, em geral, e a educativa, em particular, no contexto da realidade latino-americana e da brasileira. Nesse sentido, informa Freire:
Começaremos esse ensaio com uma afirmação que, revelando nossa clara posição diante do objeto de nosso estudo é, também, ao mesmo tempo, uma obviedade. Não podemos discutir, de um lado, as Igrejas, de outro, a educação e, finalmente, o papel das primeiras com relação à segunda, a não ser historicamente. (FREIRE, 1981, p. 85, grifo nosso).
Ao situar o trabalho religioso nos contextos local e temporal latino-americano, os quais demarcam a trajetória de seus países, desde a fase colonial, Freire parte do pressuposto de que somente ao reconhecer o caráter histórico do pensar e do fazer educativo religioso é que se pode entender, com propriedade, a natureza e os fins sociais e políticos da educação religiosa e o que a motiva, como, por exemplo, as concepções assumidas sobre o mundo, a religião e o ser humano, etc., conforme registram a passagem anterior e a seguinte:
O papel que tais Igrejas podem desempenhar e vêm desempenando no campo da educação tem, portanto, de estar condicionado por sua visão do mundo, da religião, dos seres humanos e de seu “destino”. Sua concepção da educação, que se concretiza em uma prática correspondente, não pode deixar de ser quietista, alierfada e alienante. (FREIRE, 1981, p. 95-96, grifo nosso).
Esse último fragmento registra um dos raros aparecimentos do significante “religião”, quando informa um vínculo entre a concepção de religião que se tem e os papéis sociais desempenhados pelas Igrejas em relação à educação que fazem, e aponta uma espécie de nexo necessário entre a concepção cultivada, a ação realizada e seus contextos específicos. Esses nexos são recorrentes na ordem da argumentação freireana e funcionam como critérios de averiguação um do outro. Desse modo, graças a essas relações, é possível saber a concepção que se tem de algo por meio da ação realizada e vice-versa. Em função disso, Paulo Freire elaborou a crítica de que as Igrejas latino-americanas de então realizavam práticas educativas que não podiam deixar de “ser quietistas, alierfadas e alienantes”, por causa da concepção de religião que cultivavam.
Ao prosseguir com a escavação do referido capítulo, a fim de entendermos que concepções de religião seriam essas, identificamos que Paulo Freire se referia ora às concepções nomeadas de tradicionais, ora às designadas de modernizantes, as quais se contrapunham a uma terceira, que ele denominou de profética. Nesse sentido, o exame crítico freireano sobre a prática educativa religiosa incide sobre a denúncia, no caso de um tipo de trabalho identificado como tradicional e modernizante, cuja marca seria a de ser vinculada, inocente ou espertamente aos interesses dos grupos e das classes dominantes.
Em relação às Igrejas tradicionais, o referido autor esclarece:
Um papel, por exemplo, que corresponde a uma Igreja tradicionalista, que não chegou ainda a desvencilhar-se de suas marcas intensamente coloniais. Missionária no pior sentido da palavra, “conquistadora” de almas, essa Igreja, dicotomizando mundanidade de transcendência, toma aquela como a “sujeira” na qual os seres humanos devem pagar por seus pecados. Por isso mesmo, quanto mais sofram tanto mais se purificam, assim, alcançam o céu, a paz eterna. [...]. (FREIRE, 1981, p. 94).
Essa passagem deixa clara a vinculação histórica das chamadas Igrejas tradicionais com o tempo histórico-social colonial, cujas marcas seculares atravessaram a história latino-americana. São marcas de quem tratou os nativos como coisa, com a força da chibata, com a violência da conquista das terras, do corpo e da alma. Pelo exposto, esse processo teve a participação coadjuvante da Igreja, com seu trabalho social assistencialista e alienante, o qual ocorria por meio da pacificação ideológica da mente do povo, propiciada pela força do convencimento institucionalizado, pautado na crença nas promessas idealistas de um mundo melhor, produzido pela purificação da alma e do coração, pela conciliação entre dominantes e dominados e pelo cultivo da esperança de uma mudança resultante da ação divina, sem a inserção consciente e comprometida dos seres humanos oprimidos. Sobre isso, Freire (1981, p. 95) enuncia:
Esta forma tradicional de Igreja corresponde às sociedades “fechadas”, com um mínimo de mercado interno, exportadoras de matérias-primas; sociedades preponderantemente agrícolas, em que a cultura do silêncio é a conotação fundamental. Na mesma medida em que essas estruturas sociais arcaicas persistem em pleno processo de modernização de tais sociedades, a Igreja tradicionalista igualmente persiste nele. [...]. (FREIRE, 1981, p. 95, grifos nossos).
Em relação ao trabalho social religioso promovido pelas Igrejas modernizantes, características das sociedades abertas, Freire refere que seu trabalho social se deslocou das ações centradas na conversão da alma e do coração para processos sociais aparentemente progressistas, vinculados à vida social e cultural urbana e ao desenvolvimento de uma economia industrial, os quais substituíram os centros de caridade pelos populares voltados às questões sociais dos trabalhadores e da população em geral. O trabalho social não era assumido somente pelo clero e pelos cristãos leigos, mas também por pessoas de várias áreas profissionais; pela substituição de métodos e de técnicas arcaicos, livrescos e fundados na retórica da palavra, por recursos didáticos e tecnológicos modernos; pela substituição de um trabalho de conversão das almas e do coração das pessoas por outro de conscientização dos problemas sociais vividos pelos oprimidos, a fim de melhorar as condições individuais de sua vida.
Esse horizonte de trabalho social encontra-se alinhado ao desenvolvimento das sociedades urbanas nacionais e internacionais, imersas no processo de industrialização, conforme ressalta Freire:
De qualquer forma, porém, o processo de expansão imperialista engendra fatos inéditos, de caráter político e social. A transição que a sociedade dependente sofre implica na presença contraditória de um “proletariado modernizando-se, ao lado de um proletariado tradicional; de uma pequena burguesia técnico-profissional, ao lado de uma classe média tradicional”. De uma Igreja tradicional, ao lado de uma Igreja modernizando-se; de uma educação livresca, “florida”, ao lado de uma educação técnico-profissional que começa a ser ensaiada, como exigência necessária da industrialização. (FREIRE, 1981, p. 97).
O fato é que o trabalho social religioso, seja ele assumido pela concepção de religião tradicional ou modernizante, não tomava como pressuposto o princípio ético do comprometimento e da responsabilidade social e história com a libertação dos oprimidos, mas os interesses hegemônicos dos grupos e das classes dominantes. Isso fazia de seus trabalhos sociais um dispositivo social coadjuvante dos referidos interesses.
Por essa razão, o trabalho social das igrejas tradicionais e modernizantes não despertava, de fato, nos indivíduos a conscientização de sua condição de classe, de pertencimento às classes sociais oprimidas e impedidas de ser mais. Ao contrário, o papel humanitário e assistencial das Igrejas reproduzia o status quo das classes dominantes e, consequentemente, o silenciamento das situações de dominação e de opressão, de forma a interditar a consciência de classe e a organização do povo em função da transformação de suas situações reais de existência. Sobre as ações sociais tradicionais e modernizantes das Igrejas, Freire (1981) refere-se a elas da seguinte maneira:
Arregimentam-se na “defesa da fé”, quando, em verdade, se unem na defesa de seus - interesses de classe, subordinando aquela a esses interesses. Dessa forma, têm de insistir na neutralidade da Igreja, cuja tarefa fundamental deve ser, para eles, a de fazer a conciliação dos inconciliáveis, através da estabilidade máxima possível da realidade social. Assim, castram a dimensão profética da Igreja, cujo testemunho passa a ser o do temor à mudança, o do temor à transformação radical do mundo injusto, com medo de perder- se no “futuro incerto”. (FREIRE, 1981, p. 90, grifos nossos).
Diferentemente das duas modalidades de concepções de religião e, consequentemente, de seus engajamentos sociais correspondentes, Paulo Freire apresenta o anúncio de um trabalho social religioso, denominado, no texto e indicado no fragmento anterior, de profético, cujas estratégias educativas e cujos alinhamentos sociopolíticos estão fundamentados no comprometimento do cristão com a libertação dos oprimidos e, consequentemente, com o processo de sua humanização. Sobre essa perspectiva do trabalho social da Igreja, o educador informa:
[…] tão velha quanto o cristianismo mesmo, sem ser tradicional, tão nova quanto ele, sem ser modernizante, vem afirmando-se, cada vez mais, na América Latina, ainda que não como um todo coerente, uma outra linha de Igreja – a profética. Combatida pelas Igrejas tradicionais e pela modernizante, tanto quanto, obviamente, pelas elites do poder, a linha profética, utópica e esperançosa, recusando os paliativos assistencialistas, os reformismos amaciadores, se compromete com as classes sociais dominadas para a transformação radical da sociedade. (FREIRE, 1981, p. 100).
Tal como as concepções de religião anteriores, a profética tem a sua vinculação histórica e ganha força no trabalho social das igrejas latino-americanas, em uma conjuntura histórica determinada, a qual revela uma “[…] expressão da realidade concreta da América Latina, dramática e desafiadora. [...]” (FREIRE, 1981, p. 100). Nessa conjuntura, “[...] principia a emergir quando as sociedades latino-americanas, em transição, umas mais que outras, passam a ter suas contradições cada vez mais desveladas. [...]” (FREIRE, 1981, p. 100). Essas contradições passaram a exigir das Igrejas cristãs posicionamentos políticos a favor das ou contra as situações em que se encontram os oprimidos ou contra elas e a favor das ou contra as formas mais democráticas de governo.
Podemos notar, nessa conjuntura, o reconhecimento freireano de que, embora a linha profética represente uma perspectiva de religião que tem atravessado a história das Igrejas Cristãs, desde seu aparecimento, foi no contexto ditatorial dos países da América Latina que ganhou visibilidade e assumiu um horizonte público e progressista de trabalho social orientador das ações cristãs no seio do povo, de forma a comprometer-se e envolver-se efetivamente com ele. Representa, assim, diferentemente das concepções tradicionais e modernizantes, a linha de trabalho social religioso dos setores progressistas das Igrejas cristãs, pautada na transformação das circunstâncias concretas de opressão e das relações sociais de dominação.
No clima histórico, intensamente desafiador, da América Latina, em que se vem gestando, na práxis, essa atitude profética em muitos cristãos, se gesta igual e necessariamente uma fecunda reflexão teológica. A teologia do chamado desenvolvimento cede lugar à teologia da libertação, profética, utópica, esperançosa, não importa que ainda não tão sistematizada. (FREIRE, 1981, p. 102).
Como toda concepção religiosa tem seu pressuposto teológico, a concepção profética alimentaria, conforme ressalta Paulo Freire nesse fragmento, seu envolvimento social a partir da teologia da libertação, versão latino-americana aprimorada da concepção profética de religião, cuja perspectiva exige uma prática educativa assentada no conhecimento da realidade e em seu esclarecimento. Esse fator se apresentava como condição necessária para formar sujeitos conscientes do seu mundo, do seu processo de tomada da consciência de que pertencem à população dominada, à classe social oprimida e do trabalho social religioso transformador, não assistencialista, humanitário, adaptador e alienante, o qual interdita a consciência crítica da realidade, reconcilia opressor e oprimido e acalma o povo com promessas de um mundo melhor fora da realidade. Por essa razão, a temática tratada pela teologia da libertação não poderia ser outra,
[…] senão a que emerge das condições objetivas das sociedades dependentes, exploradas, invadidas. A que emerge da necessidade da superação real das contradições que explicam tal dependência. A que vem do desespero das classes sociais oprimidas. Enquanto profética, a teologia da libertação não pode ser a da conciliação entre os inconciliáveis. (FREIRE, 1981, p. 102, grifo nosso).
Como podemos constatar, tanto a denúncia quanto o anúncio do papel educativo das igrejas cristãs na América Latina fundamentam-se em uma crítica orientada pelo princípio ético, centrado no reconhecimento do homem como homem, o qual se humaniza ou se desumaniza por meio de suas ações, situadas em contextos concretos, em realidades distintas históricas e cotidianas. Ao tratar da questão religiosa mediante o exame crítico de seu trabalho social educativo, constata-se que o modo como isso foi feito entrelaça religião e ética, e a ética apresenta-se como parâmetro de crítica da religião.
A questão religiosa como correlato de um modo de saber o mundo
De um modo menos direto, como tratada anteriormente, ao discutir sobre o papel educativo das igrejas cristãs na América Latina, a questão religiosa aparece também vinculada a uma espécie de concepção de mundo, como um elemento que constitui a particularidade de um tipo de consciência que se tem sobre o mundo, uma maneira de relacionar-se com ele, de orientar suas ações no cotidiano, de significar os trabalhos sociais, de responder aos desafios postos pela realidade e de enfrentar sua dramaticidade.
Esse gênero de saber ou de conceber o mundo pode ser identificado em uma série de significantes, intrinsecamente correlacionados ao horizonte religioso. Exemplo disso seriam os termos “religião”/”religioso”, “mágico”/”magicidade”, “mito”/”mítico”, “sincrético”/”sincretismo”, “Deus”/”o Criador”, “igreja”, “salvação” e “messianismo”. Palavras como essas vão sendo empregadas por Paulo Freire, ao referir-se a assuntos diversos, como a alfabetização e a aprendizagem da palavra escrita, os problemas naturais e sociais, a condição precária de vida do povo, os desafios ambientais e a produção campesina.
Embora esses significantes sejam, à primeira vista, associados a significados próprios e a correntes, uma análise mais minuciosa de seu uso indica que eles são representativos de uma maneira de conceber o mundo. Dito de outra maneira, a regularidade do aparecimento desses significantes sinaliza que Paulo Freire particulariza certo tipo de saber que se tem e se cultiva na vida cotidiana não somente nas pessoas comuns, mas também nos indivíduos pertencentes aos grupos e às classes dominantes, seja no modo de conceber o mundo e de atribuir-lhe sentido, seja na maneira de agir sobre ele e no modo de tratar as pessoas. Essa ideia atravessa os escritos analisados. Em Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1967), por exemplo, encontra-se o seguinte fragmento que trata desse assunto:
A consciência mágica, por outro lado, não chega a acreditar-se “superior aos fatos”, dominando-os de fora, nem “se julga livre para entendê-los como melhor lhe agradar”. Simplesmente os capta, emprestando-lhes um poder superior, que a domina de fora e a que tem, por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É próprio dessa consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento dos braços, à impossibilidade de fazer algo diante do poder dos fatos, sob os quais, fica vencido o homem. (FREIRE, 1967, p. 105, grifos nossos).
Nessa linha de discussão, podemos observar que o caráter mágico do pensamento se encontra em sua dificuldade de entender as coisas a partir delas mesmas. Ao requerer algo exterior ao movimento e à constituição dos fatos, dos acontecimentos, das situações como critério e como pressuposto da compreensão próprios do mundo, o pensamento faz-se mágico. O elemento mágico do pensamento seria um traço constituinte do que Paulo Freire denominou de consciência intransitiva, conforme o autor registra na seguinte passagem do livro Educação como prática da liberdade e outros escritos:
O que pretendemos significar com a consciência “instransitiva” [sic] é a limitação de sua esfera de apreensão. É a sua impermeabilidade a desafios situados fora da órbita vegetativa. Nesse sentido e só nesse sentido, é que a intransitividade representa um quase incompromisso do homem com a existência. O discernimento se dificulta. Confundem-se as notas dos objetos e dos desafios do contorno e o homem se faz mágico, pela não-captação da causalidade autêntica. (FREIRE, 1967, p. 58-59, grifo nosso).
O interessante sobre esse assunto é que o problema da exterioridade mágica do pensamento ganha um aspecto de negatividade na argumentação freireana, não porque a capacidade do ser humano vai além do lugar em que se encontra, mas porque nem toda relação é apropriada para que possamos entender as coisas que desejamos ou vivemos. Nesse caso, existem relações exteriores aos acontecimentos que têm vínculos com eles, outras não. Trata-se, portanto, das relações próprias de cada acontecimento, sejam elas internas ou externas, que são as causas de sua existência. Isso é o que Paulo Freire chama de causalidade autêntica.
O caráter mágico-religioso desse traço da consciência intransitiva estaria, por conseguinte, assentado em uma captação não autêntica das relações entre o acontecimento e suas supostas causas. Essa captação inautêntica buscaria explicar os eventos por meio de uma ligação ou religação imaginária, fantasiosa, cujo poder não estaria na própria coisa e suas relações efetivas com outras, mas fora dela. Ligação intuitiva e mística, idealisticamente construída pelo pensamento mágico. Para Freire,
[...] é o homem, e somente ele, capaz de transcender. A sua transcendência, acrescente-se, não é um dado apenas de sua qualidade “espiritual” […]. Não é o resultado exclusivo da transitividade de sua consciência, que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um “eu” de um “não eu”. A sua transcendência está também, para nós, na raiz de sua finitude. Na consciência que tem dessa finitude. Do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação. Daí que a Religião - religare - que encarna esse sentido transcendental das relações do homem, jamais deva ser um instrumento de sua alienação [...]. (FREIRE, 1967, p. 40, grifos nossos).
Como está escrito, Paulo Freire argumenta que o atributo da transcendência é próprio da natureza do ser humano. Graças a ela, os homens e as mulheres podem conhecer a realidade do mundo em que vivem e existem, fazer história e produzir cultura. Transcender, desse modo, sua condição natural, determinada pelas forças ambientais, e transformar as situações cotidianas e as condições históricas de dominação e de opressão seriam possibilidades dos sujeitos humanos, não divinas.
Assim, o atributo da transcendência faz do ser humano um sujeito aberto, inconcluso e, por isso, passível de cometer equívocos e erros. Nesse contexto, o problema da consciência mágica consiste em atribuir às coisas o que elas não são. Nessa concepção, as coisas são o resultado de uma ação transcendental, de uma força superior, de um determinismo natural, cultural ou espiritual, sem ligações concretas e objetivas com as coisas examinadas. Vale dizermos que, embora essa seja uma marca estruturante da intransitividade do pensamento, ela continua presente na chamada consciência transitiva ingênua. Sobre isso, Freire (1967) esclarece:
A transitividade ingênua, fase em que nós achávamos e nós achamos hoje nos centros urbanos, mais enfática ali, menos aqui, se caracteriza, entre outros aspectos, pela simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo melhor foi o tempo passado. Pela subestimação do homem comum. Por uma forte inclinação ao gregarismo, característico da massificação. Pela impermeabilidade à investigação, a que corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela fragilidade na argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela prática não propriamente do diálogo, mas da polêmica. Pelas explicações mágicas. Essa nota mágica, típica da intransitividade, perdura, em parte, na transitividade. Ampliam-se os horizontes. Responde-se mais abertamente aos estímulos. Mas se envolvem as respostas de teor ainda mágico. É a consciência do quase homem massa, em quem a dialogação mais amplamente iniciada do que na fase anterior se deturpa e se destorce. (FREIRE, 1967, p. 59, grifos nossos).
Pelo exposto, podemos notar que o caráter mágico do pensamento, presente nos oprimidos e nos opressores de consciências intransitiva ou transitiva ingênuas, tende a considerar que as coisas são o que são porque teriam ou deveriam ser assim. Uma espécie de sina, de destino, conforme registra Paulo Freire, no fragmento seguinte de Pedagogia do oprimido (1987) sobre o acontecimento do fatalismo que assombra os oprimidos:
Quase sempre esse fatalismo está, referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma destorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza, encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor dessa “desordem organizada” [...]. (FREIRE, 1987, p. 31, grifo nosso).
Podemos observar nos questionamentos freireanos sobre o “mundo mágico ou mítico” que eles não se caracterizavam como algo restrito ao domínio da subjetividade individual de alguns oprimidos, os quais optavam por seguir as fábulas, as fantasias afeitas às visões mágicas do mundo, ou, ainda, a uma exclusiva tipificação ideal das consciências humanas. Embora exista uma argumentação sólida e convincente sobre isso, Paulo Freire não se restringiu a dizer que a concepção mágica de mundo fosse tão-somente um evento que ocorre no nível da idealidade ou da consciência humana, desvinculada do mundo, da história. Ao contrário, assim como há uma cultura do silenciamento dos homens e das mulheres latino-americanos(as), promovida por meio de diferentes práticas e instituições, também há a objetividade da cultura “do mundo mágico ou mítico”, instaurada pela produção e pela reprodução de mitos de diferentes naturezas. Sobre a cultura do mito como estratégia de dominação, são esclarecedoras as palavras do nosso pensador, contidas, embora longo, no fragmento que segue, extraído do livro Pedagogia do oprimido:
O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade. De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixá-la e procurar outro emprego. O mito de que essa “ordem” respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação, quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o do que nelas conseguem permanecer é chocantemente irrisório. O mito da igualdade de classe, quando o “sabe com quem está falando?” é ainda uma pergunta dos nossos dias. O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a “civilização ocidental e cristã”, que elas defendem da “barbárie materialista”. O mito de sua caridade, de sua generosidade, quando o que fazem, enquanto classe, é assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no plano das nações, mereceu segura advertência de João XXIII. O mito de que as elites dominadoras, “no reconhecimento de seus deveres”, são as promotoras do povo, devendo esse, num gesto de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar-se com ela. O mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” desses e o da superioridade daqueles. (FREIRE, 1987, p. 86).
Imersos na cultura mitificada, os indivíduos teriam um solo rico para cultivar e para disseminar as consciências intransitiva e transitiva ingênua, necessárias ao seu ajustamento às situações de dominação e de opressão e ao estado massificado da perda de consciência de classe dos oprimidos. Isso afetaria, simultaneamente, dominante e dominado, opressor e oprimido, em diferentes situações e contextos, o que orientaria diversas formas de relações sociais na cidade e no campo, e distintos trabalhos sociais, educativos, políticos e religiosos, por exemplo.
São inúmeras as críticas de Paulo Freire aos pressupostos mágicos/míticos, orientadores de diferentes gêneros de trabalhos sociais, realizados por educadores, religiosos e militantes, o que pode ser verificado nos textos-fontes analisados. Apresentaremos alguns casos, a fim de exemplificar o exame crítico empreendido por ele sobre esse assunto.
Um aparecimento exemplar se encontra no livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981), quando Paulo Freire aborda a questão da alfabetização, da linguagem e da aprendizagem da escrita pelo alfabetizando. Para fazer a sua crítica e denunciar a negatividade da presença de elementos mágico-míticos nessa modalidade de trabalho educativo, Paulo Freire recorreu a vários termos, expressões e metáforas, os quais denunciavam sentidos mágicos e messiânicos na prática educativa alfabetizadora, cujas marcas alienantes e alienadoras impregnavam o processo de ensinar e de aprender a palavra e a maneira como o alfabetizador via o analfabeto e se relacionava com ele, como informa o seguinte fragmento do referido livro: “A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de ‘depositar’ palavras, sílabas e letras nos alfabetizandos. Esse ‘depósito’ é suficiente para que os alfabetizandos comecem a ‘afirmar-se’, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido mágico [...]” (FREIRE, 1981, p. 11, grifo nosso).
Esse trecho estabelece uma ligação entre o pensamento mágico e o caráter reducionista de uma alfabetização mecânica, pautada no gesto de aprender e de ensinar que resulta da simples repetição sonora dos componentes linguísticos, constituintes das palavras, da frase e do texto. É como se a repetição, simples e pura, fosse capaz de fazer com que os significados e os sentidos da palavra e a complexidade de sua estrutura gramatical fossem apreendidos e entendidos pelo alfabetizando. Tal procedimento mecânico, segundo Paulo Freire, é a expressão de um pressuposto mágico impingido ao signo da palavra e à prática mecânica e milagrosa da repetição e da memorização.
Além desse aspecto mágico, Paulo Freire acentuou outro, que vinculava o trabalho educativo da alfabetização ao horizonte messiânico das práticas de evangelização exercidas pelas Igrejas, por meio do papel educativo que realizam na sociedade. Nesse caso, o sentido mágico seria representado por meio de uma visão de alfabetização missionária, cujo intuito era o de salvar as pobres almas da ignorância, da perdição, da escuridão causada pelo desconhecimento do mundo iluminado da palavra. Sobre isso, Freire informa:
A significação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade: a do messianismo. O analfabeto é um ‘homem perdido’. É preciso, então, “salvá-lo” e sua “salvação” está em que consinta em ir sendo “enchido” por essas palavras, meros sons milagrosos, que lhe são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha. (FREIRE, 1981, p. 11, grifos nossos).
Como podemos verificar, quando o alfabetizando é concebido como um indivíduo perdido por não conhecer a escrita, ele passa a ser tratado como um ser humano digno de “salvação” de um mundo de trevas, dominado pela ignorância. Desse modo, o milagre da salvação encontra-se no acesso e na aquisição da palavra doada caridosamente pelo alfabetizador missionário, comprometido com o trabalho social humanitário e salvacionista da alfabetização messiânica.
Podemos perceber que a palavra mágica, definidora da alfabetização, o ensino milagroso e a salvação do ignorante, sozinhos ou combinados, expressam um sentido religioso próprio da mística cristã, cujas metáforas fundam o sentido e o horizonte de um trabalho educativo que ajusta o indivíduo ao seu mundo, ao tratá-lo como objeto, recipiente vazio, ou, ainda, como alguém “perdido”, merecedor de caridade e de salvação. Assim, as práticas sociais alfabetizadoras “[...] de modo geral, elaboradas de acordo com a concepção mecanicista e mágico-messiânica da ‘palavra-depósito’, da ‘palavra-som’ [...]”, têm o objetivo de “[...] fazer uma espécie de ‘transfusão’ na qual a palavra do educador é o ‘sangue salvador’ do ‘analfabeto enfermo’ […]” (FREIRE, 1981, p. 11-12).
Outro caso interessante, apresentado e analisado no livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981), diz respeito ao exame crítico do caráter mágico emprestado ao trabalho social da conscientização, concebido por muitos comprometidos com ele como uma “varinha mágica” capaz de curar os corações das pessoas oprimidas angustiadas e sofridas, de convencer os opressores e os dominadores dos direitos humanos, dos explorados e dos excluídos, de conciliar os interesses inconciliáveis dos grupos e das classes dos dominados e os grupos e as classes dominantes, tal como aponta o seguinte fragmento:
Assim, aprendem igualmente a distorção idealista, por exemplo, que faziam da tão incompreendida conscientização quando pretendiam ter nela uma medicina mágica para a cura dos ‘corações’, sem a mudança das estruturas sociais. Ou, noutra versão não menos idealista, quando pretendiam ter na conscientização o instrumento igualmente mágico para fazer a conciliação dos inconciliáveis. Daí que a conscientização lhes aparecesse como uma espécie de ‘terceiro caminho’, através do qual se evitassem os conflitos de classes. (FREIRE, 1981, p. 87, grifos nossos).
Nessa perspectiva mágico-idealista da conscientização, o trabalho político de educadores, de militantes e de religiosos é visto como capaz de conciliar e de pacificar os conflitos, de acalmar os corações e as animosidades e de arrefecer as lutas e a violência com a simples mudança medicinal da consciência individual, sem eliminar as desigualdades estruturais das sociedades de classe. Nesse caso, a conscientização estaria carregada de um suposto poder mágico, mítico, místico, fabuloso e fantástico, a ponto de ser erigida ao status digno dos contos de fadas, de ser vista por muitos como “[...] uma espécie de varinha mágica, capaz de ‘curar’ a injustiça social pela simples transformação da consciência dos homens” (FREIRE, 1981, p. 112). Os efeitos disso incidiriam não somente sobre o coração dos homens e sobre as relações entre os antagônicos, mas, sobretudo, sobre as situações cotidianas de injustiça, que afetam, mais intensamente, as pessoas pertencentes às classes sociais oprimidas. “Por tudo isso é que um dos focos – talvez o preponderante – de minha atenção, nesses quatro anos em que, trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas, me tornei uma espécie de ‘andarilho do óbvio’, venha sendo o da desmitificação da conscientização”, dizia Freire (1981, p. 119).
Para fechar esse rol de exemplos do cultivo da concepção mágica de mundo, como parâmetro orientador de modos de vida e de práticas sociais, desejamos reforçar esse assunto ao retomar alguns achados encontrados no livro Extensão ou comunicação? (FREIRE, 1983), em que Paulo Freire também conferiu atenção para alguns de seus aspectos, como ilustra o caso contado por ele, ao lembrar do relato de um agrônomo:
Em uma região do norte do Chile, contou-nos um agrônomo que, em seu trabalho normal, encontrou uma comunidade camponesa totalmente impotente em face do poder destruidor de uma espécie de roedores que dizimavam sua plantação. Perguntando-lhes o que costumavam fazer em tais casos, ouviu dos camponeses que, ao lhes ser imposto, pela primeira vez, semelhante “castigo”, haviam sido salvos por um sacerdote.
“Como?” indagou o agrônomo.
“Fez umas orações e os “animalitos” fugiram assustados até o mar, onde morreram afogados”, responderam. (FREIRE, 1983, p. 18, grifo nosso).
Esse relato é mais um registro de uma série de outros que Paulo Freire fez sobre a especificidade do assunto, o que demonstra sua atenção e sua preocupação com a questão. Em Extensão ou comunicação? (FREIRE, 1983), o nosso educador trouxe à baila um dos aspectos da questão já tratada aqui, mas que vale a pena reprisar: o da objetividade da cultura e da concepção mágica do homem do campo no enfrentamento de seus problemas cotidianos, ambientais e de produção, o que ratifica a ordem argumentativa de que o pensar mágico não seria tão somente um estado subjetivo de um ou de outro homem ou mulher suscetível e convencido de pensar assim por uma decisão pessoal, mas um traço objetivo da cultura campesina, conforme também registra e esclarece este outro trecho do livro:
[…] ao perceber um fato concreto da realidade sem que o “ad-mire”, em termos críticos, para poder “mirá-lo” de dentro, perplexo frente a aparência do mistério, inseguro de si, o homem se torna mágico. Impossibilitado de captar o desafio em suas relações autênticas com outros fatos, atônito ante o desafio, sua tendência, compreensível, é buscar, além das relações verdadeiras, a razão explicativa para o dado percebido. Isto se dá, não apenas com relação ao mundo natural, mas também quanto ao mundo histórico-social. (FREIRE, 1983, p. 18, grifo nosso).
A constatação da objetividade da consciência mágica como um constituinte da cultura campesina aparece para Paulo Freire como um problema relevante. Em outros termos, suas referências dispersas ao assunto evidenciavam a regularidade de um argumento que considerava “[...] importante observar, como um provável componente constitutivo do modo mágico de pensar e atuar, a postura que o homem assume em face de seu mundo natural e, consequentemente, em face de seu mundo cultural e histórico” (FREIRE, 1983, p. 19, grifo nosso).
Em sua lembrança sobre esse fato, anotado no relato anterior, Paulo Freire indagou o agrônomo diante da constatação do aparente determinismo da cultura sincrético-religiosa do campesino chileno: “Como substituir os procedimentos desses homens frente à natureza, constituídos nos marcos mágicos de sua cultura? [...]” (FREIRE, 1983, p. 19). Entendemos que o pressuposto ético dessa pergunta – o desejo de transformar a realidade de dominação e de opressão de mulheres e de homens do campo e da cidade, desumanizados e impedidos de serem mais – atravessou todos os escritos freireanos aqui analisados. No caso específico da necessidade de modificar a consciência mágica para a científica, como uma das condições da inserção do indivíduo, como sujeito, em sua realidade, como, por exemplo, a busca de respostas mais apropriadas para os problemas cotidianos e da produção agrícola, é uma tarefa fundamental, como registra o fragmento que segue:
Qualquer que seja o momento histórico em que esteja uma estrutura social (esteja transformando-se aceleradamente ou não), o trabalho básico do agrônomo educador (no primeiro caso mais facilmente) é tentar, simultaneamente com a capacitação técnica, a superação da percepção mágica da realidade, como a superação da “doxa”, pelo “logos” da realidade. É tentar superar o conhecimento preponderantemente sensível por um conhecimento, que, partindo da sensível, alcança a razão da realidade [...]. (FREIRE, 1983, p. 20, grifos nossos).
Ao considerarmos que a “percepção mágica da realidade” dos campesinos é uma dimensão da cultura agrária latino-americana, verificamos, no exame crítico realizado por Paulo Freire, um duplo movimento: um que incide sobre a consciência sincrético-religiosa dos homens e das mulheres do campo; e outro que foca o trabalho social do agrônomo. Quanto ao primeiro movimento, Paulo Freire sugere que se entenda a questão de uma maneira mais complexa, não restrita aos efeitos inconsequentes da cultura mágica, no que tange à resolução de seus problemas cotidianos e de produção, porque, como um acontecimento cultural, outros aspectos estariam implicados, como, por exemplo, a mistura entre as crenças religiosas, seus rituais, seus mitos e suas lendas com o cultivo da terra, o cuidado com os animais e a família; com a linguagem e os saberes tradicionais nativos e locais e com os sentimentos e as expectativas de vida em relação às situações históricas de dominação e de opressão, específicas do mundo do campo.
Suas atitudes, por exemplo, em face da erosão, do reflorestamento, da semeadura, da colheita, têm que ver (precisamente porque se constituem em uma estrutura e não no ar) com suas atitudes com relação ao culto religioso, ao culto dos mortos, à enfermidade dos animais e à sua cura, contidas essas manifestações todas em sua totalidade cultural. Como estrutura, essa totalidade cultural reage globalmente. Uma de suas partes afetada provoca um automático reflexo nas demais. (FREIRE, 1983, p. 21, grifo nosso).
Devido a essa realidade, o trabalho social do agrônomo não pode deixar de considerar o problema da “cultura sincrético-religiosa” como algo complexo, que tem vários pontos de atuação, sem correr o risco de também ser mágico, não no sentido sincrético-religioso, mas no sentido mágico-mítico, como elucidamos anteriormente. Isso situaria tanto os campesinos quanto os agrônomos no mesmo nível: o da “percepção mágica da realidade”. A fim de superar o caráter mítico da extensão do trabalho social dos agrônomos e da sua “capacitação técnica” – organizada sob os moldes da invasão cultural, juntos aos homens e às mulheres do campo –, ele não pode focar-se
[…] numa perspectiva humanista e científica, a não ser dentro do contexto de uma realidade cultural total, posto que as atitudes dos camponeses com relação a fenômenos como o plantio, a colheita, a erosão, o reflorestamento, têm a ver com suas atitudes frente à natureza; com as ideias expressas em seu culto religioso; com seus valores, etc. (FREIRE, 1983, p. 8, grifo nosso).
É possível notarmos, portanto, que a questão central de que Paulo Freire se ocupa, ao reconhecer esses dois aspectos do problema do saber mágico, encontra-se, fundamentalmente, no cuidado ético que se deve ter com os seres humanos do campo. Isso justifica a denúncia que fez do caráter extensionista dos agrônomos, inspirados em práticas de dominação cujos efeitos não contribuíram para o horizonte histórico cultural, pautado no princípio ético de afirmação do ser humano do campo como homem. Por isso, anunciou que a comunicação é a alternativa mais apropriada para lidar com os problemas cotidianos e de produção agrária. A comunicação, como perspectiva libertadora, não é manipuladora, idealista nem messiânica; não desqualifica o ser humano por causa de sua situação, nem nega a sua cultura em detrimento de outra. Ao contrário, convida os indivíduos a assumirem coletivamente sua condição de sujeitos no trânsito do pensamento mágico para o científico, das consciências intransitiva e transitiva ingênuas para as críticas. A comunicação, por conseguinte, diferentemente da extensão, é a via ética do anúncio da assunção dos homens e das mulheres do campo de suas visões culturais de mundo, assentadas na consciência-doxa para a consciência-logos; de uma situação histórica desumanizadora de objeto-oprimido para uma condição ontológica e ética de homem-sujeito.
A questão religiosa como um correlato autobiográfico
Traremos, neste tópico, a relação entre a religião e a ética, tendo como parâmetro alguns achados em que Paulo Freire fez referência ao assunto, a partir de sua própria história de vida, de sua opção religiosa pelo caminho do cristianismo assumida desde a infância. Vale dizermos que essa foi uma escolha entre duas possíveis, disponíveis no seio familiar: a paterna, que decidira se orientar pela tradição religiosa espírita; e a materna, assentada na perspectiva cristã católica, conforme registra uma passagem encontrada no livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos (FREIRE, 1978), que diz o seguinte:
Ainda me recordo hoje a ternura com que o meu pai me escutou quando lhe dei a notícia de que ia fazer minha primeira comunhão. Eu tinha optado pela religião da minha mãe, mas tinha o seu apoio para realizar essa escolha. As mãos de meu pai não tinham sido feitas para bater nos seus filhos, mas sim para os ensinar a realizar. (FREIRE, 1978, p. 6, grifo nosso).
Em face da preciosidade desse e de outros poucos achados, pareceu-nos significativo incluir o livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos (FREIRE, 1978), haja vista contemplar algumas raras e ricas passagens sobre a questão em tela, embora fosse uma repetição do capítulo “O papel educativo das igrejas na América Latina”, integrante do livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981). Em outros termos, na leitura do livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos (FREIRE, 1978), constatamos que quase a totalidade de suas páginas se limitava a replicar o capítulo mencionado. Entretanto, com a escavação arqueológica, foi possível encontrar algo a mais do que fora dito em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981).
Surpreendentemente, o livro continha algumas referências que Paulo Freire fazia a si mesmo, como, por exemplo, no fragmento apresentado anteriormente, em que identificamos anotações de lembranças e de memórias, mesmo que de maneira pontual, sobre a questão religiosa e seus entrelaçamentos com a ética. Esses achados possibilitaram-nos percorrer trilhas já analisadas, em que apareceu, mais intensamente, o acontecimento de certas correlações que nos faziam entender um pouco mais a problemática do nexo entre religião e ética na ordem do discurso em que Paulo Freire se inseriu como pessoa, militante, educador, filósofo e cristão.
É interessante registrarmos que os saberes da tradição religiosa de sua mãe se tornaram uma das fontes inspiradoras de sua linha de atuação e de argumentação, a qual lhe proporcionou uma linguagem, uma série de termos e de metáforas que foram empregadas em sua vida de militância, em seus comprometimentos sociais, em suas reflexões, em seus inúmeros escritos, em suas denúncias contundentes e em seus anúncios edificantes, como o destacado anteriormente, que nos ajuda a entender o modo como Paulo Freire lidava com as questões religiosas, pertinentes à educação do povo latino-americano, bem como com os diferentes tipos de trabalhos sociais destinados às classes dominadas oprimidas.
Outro achado interessante, em que ele expressa sua concepção cristã de mundo, refere-se ao período nebuloso pelo qual o Brasil passou, durante a instauração do regime militar, desencadeado a partir de 1964, quando foi cassado, preso e interrogado por causa do trabalho social de alfabetização que realizava com as camadas populares. Por esse motivo, ele foi visto, identificado e tachado como “subversivo internacional”, cujo trabalho social parecia “[...] semelhante ao de Stalin, de Hitler, de Peron e de Mussolini [...]” (FREIRE, 1978, p. 9). Ao relatar seu interrogatório, Freire disse:
Era-lhe impossível compreender uma coisa que para mim era sagrada: um cristão é um homem no mundo e com o mundo. Era-lhe impossível compreender que um cristão tivesse a pretensão de defender o povo da injustiça. Todo o esforço de humanização do homem era visito como a negação; uma desumanização. (FREIRE, 1978, p. 9, grifo nosso)
Se, no fragmento anterior, Paulo Freire confessava sua fé religiosa, nesse último, ele assinala sua compreensão sobre o papel social de sua visão e fé cristã: a de que ser cristão representava uma posição radical contra as injustiças sociais, uma luta fervorosa em favor da humanização do homem. Temos, aqui, mais uma vez, a evidência do princípio ético como parâmetro da constituição de sua crença, de sua concepção de mundo e de seu comprometimento com a defesa intransigente do povo e de sua libertação.
Outro fragmento que registra o seu relato autobiográfico faz referência à relação dialógica vivenciada no cotidiano familiar. Essa foi uma experiência fundamental que delineou o horizonte de sociabilidade, que passou a assumir como forma de conceber a interação com outras pessoas de sua convivência, sejam elas de natureza estritamente familiares, sejam efetivadas por meio de trabalhos sociais. Sobre sua experiência dialógica com seus pais, Freire (1978, p. 6, grifo nosso) lembra o seguinte: “Com eles aprendi a dialogar, o que procuro fazer continuamente com o mundo, com os homens, com Deus, com a minha mulher, com os meus filhos. Relativamente ao meu pai, pela fé religiosa da minha mãe, eu aprendi a respeitar as opções dos outros”.
Pelo visto, sua experiência existencial familiar proporcionou-lhe os elementos emocionais e reflexivos necessários para motivá-lo a aceitar o diálogo como um parâmetro relevante da relação de comunicação entre as pessoas e criou, desde sua infância, os lastros da constituição de sua compreensão do diálogo como princípio pedagógico que deveria orientar sua convivência com o mundo e as outras pessoas, em diferentes situações sociais, como as em que ele se envolveu ao longo de sua vida: pai e filho, marido e esposa, educador e educando, líder e povo, agrônomo e trabalhador rural, líder religioso e fiel.
Sem querer esmiuçar os elementos riquíssimos que constituem a questão do diálogo para Paulo Freire, assinalamos o status ético que ele conferiu ao diálogo, no modo como pensava o mundo e seus problemas e como dizia e fazia as coisas. Em um dos primeiros escritos que analisamos, o texto-fonte Educação como prática da liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981), encontra-se um fragmento que apresenta sua perspectiva de diálogo:
E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. (FREIRE, 1981, p. 107, grifos nossos).
O interessante é que ele não só define o diálogo, como também discrimina uma série de elementos que o constituem, os quais servem de parâmetro para que o diálogo de fato exista e que uma conversa entre as pessoas possa ser identificada ou não como dialógica. Assim, nesse fragmento, evidenciam-se as condições da existência do diálogo tal como ele compreende. Além desses pontos, na sequência desse mesmo argumento, Paulo Freire complementa o entendimento, do caráter profundamente ético do diálogo, ao ressaltar que seu fundamento principal é de reconhecer o homem como homem e de que o processo de humanização do homem requer o diálogo como pressuposto. Conforme já analisamos, o reconhecimento do homem como homem situa-se na esperança de criar-se um tempo social e histórico do pensar e do fazer ético, que Paulo Freire assume como um dos constituintes da natureza específica do diálogo. Assim, ele continua:
“O diálogo é, portanto, o indispensável caminho”, diz Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos”. (FREIRE, 1981, p. 107, grifo nosso).
O princípio ético que perpassa a ordem discursiva freireana sobre o diálogo pode ser encontrado em todos os escritos ora analisado, mas, em alguns, ele aparece sem arrodeio, diretamente, de modo a evidenciar a perspectiva comprometida e responsavelmente assumida por Paulo Freire, registrada e expressa em seus argumentos. Isso pode ser constatado, por exemplo, em Pedagogia do oprimido (1987), texto em que confessa sua fé nos homens e defende intransigentemente o diálogo como uma via de confirmação da crença na possibilidade de um trabalho social alicerçado no horizonte ético-dialógico. Nesse livro, Paulo Freire anuncia que não pode haver diálogo sem
[…] uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo de que ele se instale. O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles [...]. (FREIRE, 1987, p. 52, grifos nossos).
Devido à regularidade do status que Paulo Freire atribui ao diálogo, como dispositivo pedagógico, constatamos, na dispersão dos textos investigados, que ele é mais uma expressão do princípio ético posto em funcionamento, o que atravessa todos os escritos analisados e aparece em diferentes situações vividas existencialmente como algo necessário aos trabalhos sociais alinhados aos processos de libertação e humanização de homens e mulheres do campo e da cidade. Prova disso encontra-se, também, em Ação cultural da liberdade e outros escritos (FREIRE, 1981), em que o nosso educador discute sobre a sua importância nos processos de luta e de transformação social e esclarece que “[…] o diálogo com o povo, na ação cultural para a libertação, não é uma formalidade, mas uma condição indispensável ao ato de conhecer, se nossa opção é realmente revolucionária” (FREIRE, 1981, p. 115).
O diálogo, como vimos, exige a crença no homem-sujeito, em homens e em mulheres capazes de fazer história, por isso ele é revolucionário. Devido à necessidade de reconhecer o homem como homem, encontram-se diversas críticas nos escritos freireanos àqueles e àquelas que ainda não entenderam isso e que acabam tratando o povo como objeto, massa de manobra, ignorante, incapacitado para o exercício do diálogo e para a realização efetiva das transformações que as situações cotidianas e os tempos histórico-sociais exigem, conforme podemos notar no seguinte registro:
Na medida, por exemplo, em que “guardam” em si o mito da “incapacidade natural” das massas populares, sua tendência é descrer delas, é recusar o diálogo com elas e sentir-se como seus exclusivos educadores. Dessa forma, não fazem outra coisa senão cair na dicotomia, típica de uma sociedade de classes, entre ensinar e aprender, em que a classe dominante “ensina” e a classe dominada “aprende”. Rejeitam, consequentemente, aprender com o povo e se tornam prescritivos, depositantes do que lhes parece ser o seu saber revolucionário. (FREIRE, 1981, p. 115, grifos nossos).
Para finalizar esta série de achados sobre o pressuposto ético do diálogo, não é demais mencionarmos outra passagem encontrada no livro Extensão ou comunicação? (FREIRE, 1983), em que está registrada a “crença no homem” como uma condição necessária do diálogo, pressuposto da distinção entre o que Paulo Freire considerou entre um trabalho social pautado na “extensão” e outro na “comunicação”. Daí veio a pergunta: “Extensão ou comunicação?”, que intitulou o livro. É óbvio que sua opção e sua defesa foi pela comunicação, já que ela se vincula, necessariamente, ao diálogo, o qual se baseia e existe em função do princípio ético, cujo horizonte sócio-histórico é definido pela centralidade de uma concepção humanista do “homem como homem”. Eis o fragmento:
Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar essa possibilidade. Sua ação, identificando-se, desde logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos homens. Crença no seu poder criador. (FREIRE, 1987, p. 40, grifos nossos).
Como, neste item, estamos tratando do modo como a questão religiosa, vinculada à ética como pressuposto, aparece na história de vida de Paulo Freire, tal como se encontra anotado nas primeiras páginas do livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos (FREIRE, 1978), verificamos que a “crença no homem”, infundida nele desde a sua infância, encontra-se, em certo sentido, no exemplo de vida dos pais e na maneira respeitosa e amorosa como se tratavam, mesmo tendo escolhas religiosas distintas (FREIRE, 1978). Nessa mesma linha de argumentação sobre o pressuposto existencial do diálogo, ele afirma que existir
[…] é um conceito dinâmico. Implica [uma] dialogação eterna do homem com o homem. Do homem com o mundo. Do homem com o seu Criador. É essa dialogação do homem sobre o mundo e com o mundo mesmo, sobre os desafios e problemas, que o faz histórico. (FREIRE, 1967, p. 59).
No que tange ao rastro biográfico de sua vida, também encontramos, em seus escritos, vários indícios de sua fé, de sua crença em Deus e nos homens, cada um a seu modo, os quais se alimentam e retroalimentam um do outro. Isso não só do ponto de vista especificamente da fé nos homens, com sua capacidade criadora, e da esperança de transformar as situações opressivas, em que existem os homens e as mulheres das classes sociais oprimidas, mas também do ponto de vista do saber crítico, do conhecimento da capacidade ontológica de o ser humano transcender suas condições reais de existência do momento presente para outra mais humana e humanizada. Sobre isso, parece-nos esclarecedor quando Paulo Freire (1981) se refere à finitude e à transcendência humana como atributos constitutivos do ser humano, de sua possibilidade de “ser mais” e de sua relação religiosa com Deus.
Assim, ao considerarmos o que foi abordado, fica evidente o “entrelaçamento entre a ética e a religião em Freire”. Logo, a questão religiosa aparece de diferentes maneiras em seus escritos, e o princípio ético funciona como um pressuposto articulador das reflexões, das argumentações e dos questionamentos que ele elaborou, direta ou indiretamente, sobre o assunto. A riqueza dos achados postos no corpo deste artigo demonstra que a ética aparece na ordem discursiva freireana como um parâmetro para pensar-se no trabalho social religioso e como um princípio educativo, dialógico e libertador/emancipador.
Considerações finais
No decorrer desta investigação, analisamos cinco escritos freireanos: Ação cultural para a liberdade e outros escritos, de 1981; Educação como prática da liberdade, de 1967; Pedagogia do oprimido, de 1987; Extensão ou comunicação?, de 1983; e Os cristãos e a libertação dos oprimidos, de 1978, os quais compuseram o rol dos textos-fonte e delimitaram o espectro temporal da análise discursiva realizada, o que sugere a especificação de um intervalo aproximado das décadas de 1960 a 1980, conforme indicam as datas das primeiras publicações das fontes utilizadas.
Ao escavarmos os referidos textos-fonte, encontramos uma série de achados vinculados, direta ou indiretamente, à questão da ética presente nos escritos pedagógicos freireanos. Os achados, as análises e as descrições iniciais, referentes aos significados do termo “ética” em Paulo Freire, evidenciaram e concluíram que esse termo expressa o significado de um princípio que o reconhece, ontologicamente, como um ser humano centrado na própria humanidade.
Logo, o significado da noção e do uso do significante “ética” como um princípio de criticidade é recorrente na argumentação, no posicionamento e na ordem discursiva freireana. O entendimento de Paulo Freire sobre as questões éticas e religiosas não guardam somente um modo específico de ser, mas, sobretudo, o fato de que a ética se sobrepõe à religião, pois a ética funciona como um parâmetro de análise crítica de diferentes manifestações sociais e históricas sobre a questão religiosa e sua relação com o povo. Assim, os achados demonstraram que a ética aparece, na ordem discursiva freireana, como um princípio de criticidade, que possibilita o exame profundo do trabalho social religioso e de suas diferentes concepções religiosas, as quais fundamentam e orientam os distintos modos de ser, como acontecimentos culturais, históricos e sociais.
Finalizamos, por ora, fazendo nossa as palavras de Paulo Freire, as quais, para nós, apresentam um grau de atualidade real, especialmente no contexto em que o discurso cristão-conservador e a política de extrema direita demonizam e ideologizam como “esquerdista”, “comunista” ou “petista” tudo aquilo que foi conquistado em favor das minorias étnicas, dos indígenas, de gênero, de orientação sexual, de liberdade pedagógica, de preservação das matas e dos povos da floresta amazônica etc., a saber:
Todos esses são descobrimentos que um número cada vez maior de cristãos vem fazendo na América Latina e que exigem deles, como afirmamos anteriormente uma tomada de posição - ou transformam sua “inocência” em “esperteza” e, assim, assumem conscientemente a ideologia da dominação ou, pelo contrário, se engajam na busca real da libertação dos oprimidos. (FREIRE, 1981, p. 89, grifo é nosso).
Logo, sem a consciência esperta, ou como dizia Paulo Freire, sem a superação da consciência mágica, mítica, fantasiosa, especialmente pelos oprimidos, não será fácil enxergar a esperança (do verbo esperançar) de que é possível aos povos latino-americanos outra forma de sociabilidade, mais justa, de tolerância às diferenças que caracterizam e distinguem cada um/a em sua etnia, em seu modo de ser, viver e fazer-se no mundo. “[...] ética universal do ser humano [...]. É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar” (FREIRE, 2005, p. 15-16).