Introdução
O acesso ao meio artístico e a participação na arte por parte dos imigrantes é um tema ainda pouco explorado nas ciências sociais. A arte como forma de expressão cultural e étnica, e que contribui para a inclusão social de imigrantes em sociedades de acolhimento marcadas por contextos de super-diversidade (VERTOVEC, 2007), só recentemente tem sido objeto de análise (MARTINIELLO, 2015). De fato, estudos sobre a interdependência entre atores artísticos locais, atividades e instituições; políticas de inclusão culturais; interações sociais entre representantes políticos, artistas e audiências; e atividades artísticas como forma de participação política e de mobilização social (incluindo a formação de identidades) têm vindo, paulatinamente, a surgir e a ganhar relevância teórica e metodológica. Neste contexto, o acesso a carreiras artísticas numa fase inicial do percurso profissional tem sido descrito como um campo de atividade marcado pela incerteza, intermitência laboral, baixa remuneração e pluriatividade (CONDE, 2009; BORGES; PEREIRA, 2012; FERRO; RAPOSO, 2016; NICO et al., 2007). A ambiguidade e indeterminação em alcançar uma carreira bem-sucedida e estável no meio artístico, é uma atitude frequentemente referida por jovens artistas e outros profissionais desse meio.
No âmbito das migrações, as trajetórias ou percursos artísticos têm sido alvo de atenção crescente, uma vez que representam uma estratégia de ir mais além das barreiras étnico-raciais e culturais, através da partilha de narrativas de identidade e pertença ilustrativas da super-diversidade (VERTOVEC, 2007) ou através das cidades interculturais (ESTEVENS, et al., 2017). Na opinião de Bailey e Collyer (2006, p. 167), as várias formas de expressão artística permitem entender como os imigrantes veem a sua própria imigração, veem a sociedade de acolhimento e veem a própria sociedade de origem, sendo um instrumento de comunicação importante em contextos migratórios. Do mesmo modo, há pouco tempo, mereceu uma atenção particular no contexto português, a ideia de que as atividades artísticas podem promover o diálogo intercultural entre distintos grupos étnicos, facilitando a comunicação e as interações sociais entre esses grupos e construindo uma cidadania partilhada em comunidades locais (CARMO, 2014).
Em Portugal, foram realizados alguns estudos sobre imigração de artistas, um grupo social considerado qualificado (MARQUES; GÓIS, 2014), e que inclui artistas ou profissionais criativos cuja diferença cultural e étnica pode constituir um recurso distintivo e competitivo na integração social dos imigrantes (FERRO; RAPOSO, 2016; NICO et al., 2007: 13). Neste caso concreto, ser estrangeiro/a pode ser um passaporte para uma integração mais favorável. Autores como Ferro e Raposo (2016) defendem a integração de imigrantes através das artes, como um veículo para a participação cívica, para a desconstrução de preconceitos e de estereótipos, e para a troca de experiências interculturais. Contudo, salvo alguns estudos centrados na integração pela arte de populações de origem imigrante (FERRO; RAPOSO, 2016; MATOS PEREIRA, 2021), muito falta conhecer sobre as estratégias dos jovens imigrantes e descendentes de imigrantes que, ainda não tendo uma carreira artística, aspiram por uma oportunidade de se tornarem artistas e de serem reconhecidos como tal. Neste contexto, compreender a forma como a arte e as carreiras artísticas são um instrumento de cidadania e contribuem para a inclusão de jovens descendentes de imigrantes em sociedades de acolhimento, torna-se uma questão premente e até hoje tenuemente estudada.
Em Portugal, existe uma grande variedade de projetos sociais – os projetos Escolhas1- que promovem as ligações entre educação artística não formal, comunidades locais e integração de imigrantes (MATOS PEREIRA, 2021). Nestes contextos, a arte é utilizada como um recurso educativo capaz de combater a exclusão social e promover a inclusão de crianças e jovens em locais economicamente mais desfavorecidos (locais esses onde se pode encontrar muitas crianças e jovens provenientes das comunidades imigrantes) (CARMO, 2014; ESTEVENS et al., 2017; FERRO; RAPOSO, 2016; FONSECA et al., 2002; FONSECA et al., 2008; MALHEIROS, 2011; MATOS PEREIRA, 2021). Alguns projetos Escolhas, como os projetos “Desafios” e “Vivacidades” por exemplo, possuem um estúdio comunitário de gravação e edição de som, que procura valorizar a produção artística na área da música. A “Associação dos Amigos e Filhos de Farim” e a “24 de Setembro - Associação de Ballet, Música e Teatro Africanos” produziram, em parceria, o espetáculo “Mulher é Todo o Mundo”, valorizando, assim, a expressão artística e corporal através da dança e do teatro. Para além de ateliers de dança (existentes nos projetos “Raízes”, “Desafios” e na Associação 24 de Setembro, por exemplo), outros projetos também dinamizam ateliers de artesanatos, com o objetivo dos jovens exporem e venderem suas produções artísticas em feiras e mercados (é o caso do projeto “Vivacidades”, ou da Associação CIAPA – Centro Aeroespacial, por exemplo). Ao promoverem diferentes manifestações artísticas nos domínios das artes visuais, música e teatro, tais projetos têm conseguido estimular os vínculos identitários desses jovens, mas também têm potenciado o crescimento artístico e as redes de procura de trabalho nestas áreas, possibilitando, tal como foi referido em outros estudos (CARMO, 2014; MATOS PEREIRA, 2021) uma maior inclusão através das artes.
Seguindo aqui a abordagem de Ferro e Raposo (2016, p. 21), consideramos como atividades artísticas todas aquelas que resultam da expressão musical, expressão corporal (dança, teatro), expressão plástica (pintura, escultura, arte urbana, vídeo) e expressão escrita; e que se encontram legitimadas por vários agentes que trabalham em prol destas atividades, nomeadamente o mediador cultural, aqueles que se dedicam à formação de artistas, divulgação das obras, à crítica das artes, e à sua comercialização nos mercados artísticos e culturais. Neste processo, os mediadores culturais, isto é, aqueles que asseguram e promovem uma relação entre os indivíduos e as obras de arte, têm um papel especialmente central na catalisação de novos artistas e profissionais das artes (Martinho, 2013).
Adotando uma perspetiva interseccional (CRENSHAW, 1989), o objetivo deste artigo é analisar como certas categorias sociais - origem étnico-racial, origem nacional e contexto socioeconômico - determinam os percursos de jovens descendentes de imigrantes residentes em Sintra (Portugal) no acesso a carreiras profissionais artísticas (teatro, dança, música, artesanato, entre outras). Em Portugal, vários autores têm contribuído no estudo dos descendentes de imigrantes e da sua integração social face aos seus progenitores (GASPAR, 2019, 2018; MACHADO, 2007; MATEUS, 2014). Contrariamente à geração dos seus pais, a socialização e integração social desses jovens tende a ser mais pautada por valores e comportamentos da sociedade de acolhimento, dado que possuem um maior conhecimento da língua dessa sociedade, e desenvolvem redes de sociabilidade também mais próximas às do país de acolhimento (GASPAR, 2018; MATEUS, 2014). Se, em alguns casos, esta proximidade entre duas culturas pode facilitar uma maior inclusão social destes jovens no âmbito educativo e profissional, noutros casos as suas trajetórias de vida são acompanhadas por maiores dificuldades de inclusão, em parte, devido à existência de maiores desigualdades sociais e económicas nos seus meios de origem familiares, ou a comportamentos racistas e xenófobos, que colocam em causa a convivência intercultural dentro destas gerações.
Interseccionalidade, migração e arte
O conceito de interseccionalidade surgiu nos Estados Unidos associado ao pensamento feminista, e foi utilizado, pela primeira vez, como um conceito capaz de revelar os padrões entre gênero e raça nas interações sociais, e de contestar uma visão essencialista dessas mesmas noções (CRENSHAW, 1989). A partir de então, as ciências sociais têm desenvolvido e redefinido o conceito, ampliando a sua utilização em teorias, paradigmas ou métodos heurísticos, aplicados a vários contextos como perspetivas do feminismo negro (CRENSHAW, 1989), famílias migrantes (FLEMMEN, 2008; FRESNOZA-FLOT, 2017) e em teorias transnacionais (BASTIA, 2014; BÜRKNER, 2012).
O conceito de interseccionalidade pretende, assim, dar conta da interconexão de categorias estruturais específicas que dependem do contexto social no qual os agentes se encontram posicionados. Esta perspetiva procura enfatizar a importância das interpelações de múltiplas categorias sociais como o gênero, a classe social ou a etnicidade, de modo a compreender como estas intersetam e contribuem para a construção de processos de identidade social e da reprodução de desigualdades entre os indivíduos. Ao analisar a complexidade da realidade social, a perspetiva interseccional contesta, como foi referido, a ideia de que as categorias sociais são realidades homogêneas ou essencialistas. Para as feministas, não existe um único sistema de opressão capaz de explicar a desigualdade de poder entre os indivíduos, mas sim, uma inter-relação de categorias sociais (Bastia, 2014). A definição de interseccionalidade inclui, pois, o entrecruzamento de categorias estruturais ou variáveis específicas que dependem do contexto social no qual certos agentes se posicionam (BASTIA, 2014; BÜRKNER, 2012; CRENSHAW, 1989; FLEMMEN, 2008; FRESNOZA-FLOT, 2017).
Neste sentido, vários autores da área das migrações e do transnacionalismo (BASTIA, 2014; BÜRKNER, 2012; RIAÑO, 2011), adotaram uma perspetiva interseccional para identificar a complexidade subjacente aos processos sociais de mobilidade espacial. Por exemplo, Hans‐Joachim Bürkner (2012) defende que a interseccionalidade deverá ser utilizada nas pesquisas sobre desigualdade e exclusão/inclusão dos imigrantes, através de certas categorias analíticas como a classe social, gênero, raça, o corpo e a idade. Na sua opinião, estas categorias determinam o acesso dos imigrantes e dos indivíduos nativos a áreas como o mercado de trabalho, aquisição de rendimento e reprodução social, uma vez que estas são construídas segundo práticas sociais específicas, tais como o classismo, hetero-normativismo e o racismo. Esta perspetiva, segundo o autor, permite que os estudos sobre migrações rompam com categorias essencialistas como ‘grupos étnicos’, ou ‘grupos marginalizados’, para centrar-se na análise de posições sociais e coletivas específicas adotadas por imigrantes e não-imigrantes.
De fato, segundo outros autores (BASTIA, 2014; RIAÑO, 2011), uma outra vantagem na adoção da perspetiva interseccional é a possibilidade de se aplicar tanto a grupos socialmente desfavorecidos como favorecidos. A versatilidade heurística desta perspetiva revela-se, pois, um instrumento útil para explicar como alguns indivíduos adquirem situações e posições privilegiadas, enquanto outros mantém uma situação de desvantagem social. Por exemplo, Riaño (2011) demonstra como a interseção do gênero, classe social e nacionalidade são conceitos úteis para compreender as barreiras experienciadas por mulheres imigrantes altamente qualificadas na Suíça, nas suas mobilidades de acesso a profissões ajustadas às suas qualificações e experiência profissional. De igual modo, Flemmen (2008) explora o modo como o significado do gênero se pode modificar quando associado à origem nacional ou à classe social.
Como foi inicialmente referido, neste artigo analisamos como o acesso a carreiras artísticas por parte de jovens imigrantes ou descendentes de imigrantes é determinado pela interseção de categorias étnico-raciais, origem nacional e contexto socioeconômico. Através de um olhar interseccional, pretendemos ilustrar como cada uma destas categorias analíticas se interrelaciona, e como pode bloquear ou mitigar o acesso a profissões artísticas por parte destes jovens. É importante, pois, compreender de que forma o entrecruzamento destas categorias poderá motivar que, em situações análogas, certos grupos de jovens descendentes tenham percursos mais satisfatórios no acesso a profissões artísticas; e que noutros casos, esse acesso seja obstaculizado por relações de poder estruturais que excluem a sua participação no mercado artístico em Portugal.
Estudos anteriores centrados na relação entre arte e imigração (FERRO; RAPOSO, 2016; MATOS PEREIRA, 2021) destacam o papel das experiências educativas formais e informais no acesso ao campo artístico por parte dos imigrantes, uma vez que reforçam a pertença identitária a este meio, e apuram o conhecimento de técnicas e competências necessárias à carreira. Neste processo, as expressões artísticas gozam de diferentes temporalidades nos percursos educativos, exigindo uma maior ou menor formalidade: se nas artes plásticas, no teatro ou na dança são trilhados percursos educativos longos – quase sempre universitários –, na música contemporânea popular assistimos já a percursos educativos menos qualificados e de cariz mais informal (FERRO; RAPOSO, 2016, p. 83). Quer nuns quer noutros, o papel do circuito artístico é fundamental, uma vez que permite identificar como as interações entre as práticas artísticas e os espaços físicos (bairros, galerias, estúdios, bares…) e sociais (redes de sociabilidade com os pares) se processam no desenvolvimento da carreira artística.
Mais ainda, as expressões artísticas dos imigrantes e os circuitos nos quais estão envolvidos, são moldadas não só por variáveis como a origem nacional, idade ou o tempo de permanência no país de acolhimento; mas também, por outras variáveis transversais a todos os atores (nacionais ou não) envolvidos em processos criativos, como o estilo de vida, as redes de sociabilidade ou origem socioeconômica (FERRO; RAPOSO, 2016).
Por outro lado, a dificuldade acrescida por parte de indivíduos imigrantes no acesso a profissões artísticas, pode, em alguns casos, ser colmatada pelo recurso ao empreendedorismo, na medida em que, se “as vias mais convencionais, seguras e institucionalizadas de integração e mobilidade ascendente tendem a fechar-se às comunidades imigrantes, o empreendedorismo torna-se uma via mais atrativa, sobretudo em atividades criativas, arriscadas e intensivas em mão-de-obra, mas pouco exigentes em termos de capitais econômicos ou requisitos formais. A própria visibilidade massiva que alguns artistas imigrantes têm, a nível global, seria um incentivo para que os jovens imigrantes apostem em projetos deste tipo, de forma a suplantar os estigmas que enfrentam, enquanto os autóctones podem ser demovidos por perspetivas mais seguras e institucionais de carreira” (FERRO; RAPOSO, 2016, p. 31). Apesar do empreendedorismo artístico ser uma via de imersão no percurso profissional, existem vários obstáculos à consolidação neste campo, sobretudo marcados pelas dificuldades de independência financeira nesta área, o que leva frequentemente a situações de pluriatividade, não só entre indivíduos imigrantes como também entre indivíduos nacionais (MATOS PEREIRA, 2021), e de precaridade laboral e social (inexistência de vínculos de trabalho, seguro social, etc) (NICO et al., 2007).
Metodologia
Os dados deste artigo incidem sobre o município de Sintra, situado no distrito de Lisboa, onde se registra uma presença expressiva de imigrantes e de descendentes jovens de várias comunidades. A metodologia utilizada foi qualitativa e decorreu entre agosto de 2019 e abril de 2020. A recolha empírica pode sistematizar-se em duas partes: a) realização de reuniões e entrevistas a representantes de entidades públicas e privadas (cargos dirigentes, associações de imigrantes ou afins); b) realização de entrevistas a jovens imigrantes e descendentes de imigrantes. É importante destacar aqui, o papel central que assumiram como informantes privilegiados os coordenadores de alguns projetos Escolhas e de algumas associações de jovens e de imigrantes.
No total, foram realizadas 37 entrevistas a jovens imigrantes e descendentes de imigrantes. A localização, seleção e recrutamento de jovens para entrevistar realizou-se através da técnica bola-de-neve, na qual não é possível controlar a representatividade. No entanto, procurou-se abarcar jovens de diferentes gêneros, idades e origem nacional, de modo a garantir a heterogeneidade da amostra recolhida. Durante o trabalho de campo foi sendo realizada a anonimização e transcrição das entrevistas, assim como uma análise ao seu conteúdo.
A recolha da informação incidiu em três grupos distintos de jovens com origem imigrante, de modo a averiguar as eventuais diferenças entre estes grupos sociais: 1) jovens nascidos fora de Portugal, mas imigrados na infância ou início da adolescência (geração 1.5) (RUMBAUT, 2004); 2) jovens nascidos em Portugal, filhos de imigrantes (segunda geração) (RUMBAUT; PORTES, 2001); e 3) jovens adultos, nascidos fora de Portugal e que imigraram de forma individual depois da adolescência e início da idade adulta (jovens imigrantes). De igual modo, foram selecionados jovens com as origens nacionais mais expressivas no município de Sintra: indivíduos provenientes dos Países Africanos de Língua Portuguesa - PALOP (guineenses - da Guiné-Bissau, cabo-verdianos, angolanos e são-tomenses), do Leste Europeu (romenos e ucranianos) e do Brasil.
A maioria dos jovens foram angariados por indicação de projetos Escolhas e associações, mas não só. Através do contato e de indicações dos próprios jovens entrevistados e de outras associações culturais, foram identificados e recrutados jovens cujo perfil se diferenciou daquele encontrado nos projetos Escolhas. Para além da indicação dos próprios entrevistados, os jovens brasileiros também foram contatados através de um grupo de WhatsApp; e os jovens ucranianos foram contactados através de professoras a lecionar o curso de Português para Falantes de Outras Línguas (PFOL) numa escola secundária de Sintra.
Ressalta-se, ainda, que o fato de a entrevistadora também ser brasileira, contribuiu para que se estabelecesse uma relação de confiança entre entrevistador (estrangeiro) e entrevistado (estrangeiro). Carling et al. (2014) já tinham referido que no campo dos estudos migratórios, atuar como um investigador insider, ou seja, um investigador que também é membro do grupo em estudo, é diferente de atuar como um investigador outsider, ou seja, que está “fora” deste grupo (e pertence à maioria da população do país de acolhimento). Estes autores afirmam que, entrevistas em profundidade, conduzidas por pessoas que, para além de terem competência na língua materna do entrevistado, tenham experiência nas realidades do campo de estudo, são cruciais para a gestão da recolha de dados e os ajustes a estas realidades sociais.
A Tabela 1 resume alguns dados socioeconômicos e da origem familiar dos jovens entrevistados. Como se pode observar, o perfil é bastante diversificado quanto às suas origens nacionais. Entre os 37 entrevistados, 21 são do sexo masculino e 16 do sexo feminino. De igual modo, 14 nasceram em Portugal, 18 nasceram no estrangeiro e emigraram para Portugal na adolescência), e 5 são jovens imigrantes, chegados a Portugal depois dos 17 anos. As origens dos pais destes jovens são maioritariamente da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), ou seja, cabo-verdiana (10), angolana (6), guineense – da Guiné-Bissau (7), são-tomense (2), moçambicana (1) e brasileira (8), seguidas pela ucraniana (4), chinesa (1), moldava (1) e romena (1).
Variáveis de caracterização | Jovens entrevistados/as |
---|---|
Sexo - Masculino - Feminino |
21 16 |
Ascendência - Cabo-verdiana - Guineense - Angolana - São Tomé - Moçambique - Brasileira - Ucraniana - Moldava - Chinesa |
10 7 6 2 1 8 4 1 1 |
Nacionalidade - Portuguesa - Outro país - Dupla-nacionalidade |
10 20 7 |
Geração - Segunda geração - Geração 1.5 - Jovens imigrantes |
14 18 5 |
Nível de ensino - Básico - Secundário - Superior |
2 26 9 |
Situação Laboral - Trabalha - Só estuda - Desempregado/a |
12 20 5 |
Fonte: Dados das entrevistas realizadas pelas autoras.
O estatuto de residência destes jovens é relativamente diverso: entre a segunda geração, 10 possuem somente a nacionalidade portuguesa, 3 têm a nacionalidade portuguesa e a do seu país de origem (dupla nacionalidade), e apenas uma entrevistada de Cabo Verde não tem nacionalidade reconhecida. Entre a geração 1.5, 12 têm autorização de residência, 4 têm dupla-nacionalidade e 2 entrevistados brasileiros só tinham a nacionalidade do seu país de origem e não tinham autorização de residência em Portugal. Por fim, entre os imigrantes, 4 têm autorização de residência e 1 encontra-se a aguardar a autorização de residência. Estes dados permitem constatar que a) quase a totalidade da segunda geração de jovens possui, como seria de esperar, a nacionalidade portuguesa; b) a geração 1.5 possui na sua maioria autorização de residência, e apenas uma minoria a nacionalidade portuguesa; e que c) os jovens imigrantes possuem a autorização de residência.
Quanto ao perfil educacional dos jovens entrevistados, 21 estão no ensino secundário (equivalente ao ensino médio no Brasil), 5 encontram-se a frequentar o ensino superior (graduação nas áreas de Sociologia, Turismo, Gestão de Aeronáutica, Contabilidade e Gestão (Administração), e Engenharia Mecânica), e 11 destes jovens não estudam, isto é, trabalham ou encontram-se à procura de emprego. Vários dos jovens que estão no ensino secundário encontram-se a frequentar cursos profissionais – cursos técnicos de nível médio (nomeadamente em Automação e Comando, Mecânica Automóvel, Apoio à Gestão (Administração), Gestão e Reparação de Computadores, Teatro, Auxiliar de Saúde, Formação de Agentes da Polícia de Segurança Pública, Ciências e Novas Tecnologias, Mecatrônica), sendo esta uma tendência presente, sobretudo entre os jovens de origem africana (ABRANTES; ROLDÃO, 2019, p. 32).
Relativamente à situação laboral ou profissional destes jovens, como foi mencionado anteriormente, a grande maioria estuda no ensino secundário ou na universidade. Este dado não surpreende, uma vez que o grupo etário dos entrevistados se encontra entre os 15 e os 26 anos. Contudo, alguns deles desempenham algum tipo de atividade laboral: 6 realizam trabalhos com algum nível de qualificação (ator, cozinheira, designer, comercial, e rececionista de hotel), 6 desempenham trabalhos precários ou em meio-período (limpezas, manutenção em grande armazém, transportador de aplicativos como Ubereats, etc), e 5 encontravam-se desempregados à data da entrevista.
A maioria dos entrevistados que trabalha, o faz para ajudar a família com as despesas ou então já desistiu de estudar. Os trabalhos desempenhados enquadram-se, como vimos, em atividades precárias e de pouca qualificação, normalmente desempenhadas por jovens em meio-período. Deste modo, e aparte alguns entrevistados que já estão a exercer a sua profissão, a maioria não contempla o atual trabalho como uma carreira profissional, mas sim como um instrumento para auxiliar a família nas despesas quotidianas.
No que tange aos contextos familiares dos jovens entrevistados, a análise das entrevistas permite verificar que, entre alguns jovens de origem africana, uma situação existente com alguma regularidade é o fato destes viverem no seio de famílias complexas e muitas vezes de grande dimensão. Isto é, famílias onde na maioria das vezes só a mãe está presente (o pai está ausente), mas onde vivem, igualmente, outros membros do agregado familiar (tia, primos, avós, etc.). Esta situação familiar foi relatada como sendo algo comum por alguns dos dirigentes associativos e professores entrevistados, o que poderá contribuir para situações de maior desigualdade econômica e social destes jovens.
Relativamente ao contexto familiar dos entrevistados de origem brasileira, estes vivem em agregados nos quais os pais têm vários tipos de qualificações, embora tendencialmente mais elevadas do que os pais dos jovens de origem africana. Estes jovens vivem, na sua maioria, em famílias nucleares, onde o pai se encontra mais presente, apesar de existirem também casos de monoparentalidade (vivência só com a mãe).
Por fim, os jovens do Leste Europeu e a jovem chinesa entrevistados, vivem em agregados familiares mais tradicionais (pai e mãe) ou então com o seu companheiro/a. O nível socioeconômico destes jovens é mais elevado e quase todos têm licenciatura ou cursos técnicos (SIVAK, 2014). No caso da entrevistada chinesa, e tal como foi reportado anteriormente (GASPAR, 2018), os seus pais são imigrantes não qualificados da zona de Zhejiang (China) que vieram para Portugal a partir da década de 2000, em busca de oportunidades de autoemprego, através da criação de pequenos negócios nos sectores da restauração e do comércio a retalho.
O acesso a carreiras artísticas: sonhos vividos e sonhos frustrados
De modo a analisarmos como alguns jovens descendentes de imigrantes iniciaram o seu percurso em carreiras artísticas, apresentamos nas seções seguintes quatro casos “tipos-ideais”, baseados nas histórias de vida retiradas das 37 entrevistas que foram realizadas. Estes casos exemplificam alguns dos processos e intermitências no acesso à arte, e revelam de que forma a intersecção se certas categorias sociais - origem étnico-racial (e aqui inclui-se a língua materna), origem nacional e contexto socioeconômico – contribuíram no acesso ou à desistência das carreiras artísticas desejadas.
Caso 1 – David
David é um jovem africano cuja família emigrou de Cabo Verde para Sintra quando ele tinha 12 anos. Desde a sua chegada, teve muita dificuldade em integrar-se na escola porque não falava português (crioulo era a sua língua materna). David viveu com a mãe e com o irmão num apartamento com um só quarto, e com muita pouca privacidade. A sua mãe acumulava vários trabalhos de limpeza em Lisboa, e tinha que deixá-los sós a maior parte do dia. Na escola, David sofreu várias humilhações de discriminação racial e social por parte de colegas, por ser africano e não falar bem português (ver a este propósito GASPAR; IORIO, 2020). Com o tempo, o seu grupo de amigos cresceu na rua, junto a outros afrodescendentes, tal como foi relato em estudos anteriores (BARBOSA, 2011). O seu sonho, desde pequeno, era ser músico, e aprender a tocar guitarra numa escola de música especializada, isto é, obter uma experiência educativa formal (FERRO; RAPOSO, 2016; MATOS PEREIRA, 2021). Contudo, aos 17 anos, teve que matricular-se numa escola profissional para aprender a ser mecânico, porque necessitava de ajudar financeiramente a mãe. Como ele diz, muito cedo, abandonou o seu sonho de ser músico porque “a sua posição social não lhe permitiu ser o que queria ser”. Contrariamente a outros descendentes de imigrantes africanos que procuram na cultura rap formas de expressão musical e de expressão estética reivindicativas dos seus direitos e pertenças identitárias em contextos sociais segregadores dos seus projetos de vida (BARBOSA, 2011; CONTADOR, 1999; ESTEVENS et al., 2017), o sonho de David era aprender guitarra alcançar a sua posição na sociedade em que vive.
O caso-tipo de David ilustra, claramente, como a sua origem étnico-racial – e a língua pertencente a este grupo étnico, a origem nacional e o seu contexto socioeconômico reforçaram a sua posição social desfavorecida num contexto de imigração (BÜRKNER, 2012), bloqueando o seu acesso a uma carreira musical. Essa situação é muito recorrente entre os entrevistados: vários jovens de origem africana reportaram dificuldades de integração na escola, por não falarem bem o português, e alguns sentiram-se mesmo discriminados por não dominarem esta língua. Vários, por serem provenientes de contextos socioeconômicos mais desfavorecidos, reclamaram, por um lado, a qualidade e salubridade das suas residências, e a falta de privacidade devido a partilha da casa com várias pessoas; mas, por outro lado, também disseram que passavam grande parte dos seus dias sozinhos, pois os pais ou familiares acumulavam vários empregos, e não tinham tempo para estarem com eles. Assim, apesar dos seus desejos em seguirem uma carreira musical, ou em outro ramo artístico, optam por inscreverem-se em cursos profissionais, através do quais conseguem uma inserção no mercado de trabalho mais fácil e assim podem contribuir com as despesas da família (ver FERRO; RAPOSO, 2016). A frequência de um curso profissional, como no caso de David, deriva de fatores instrumentais e pragmáticos da gestão quotidiana, como a existência de vagas, possibilidade de emprego, ou mesmo por estar perto de casa, mas não de aspirações para alcançar a carreira desejada.
A intersecção da nacionalidade estrangeira e a origem étnica-racial contribuíram para que este jovem encontrasse os primeiros obstáculos para se integrar em Portugal - discriminação racial e linguística. Neste contexto, a sua origem de classe num contexto mais desfavorecido, também condicionou a que este jovem procurasse entre os seus pares (outros afrodescendentes com histórias de vidas semelhantes), as redes de sociabilidade e o suporte social para continuar a viver em Portugal (ver também a este respeito BARBOSA, 2011). Por sua vez, isso contribuiu para que as suas redes sociais se circunscrevessem, sobretudo, dentro do mesmo contexto étnico-social, dificultando contatos com outros grupos sociais nativos e circuitos (FERRO; RAPOSO, 2016) que poderiam ter potenciado o seu acesso ao mundo artístico na sua trajetória social. A história de David, vai ao encontro de outras histórias de “músicos cabo-verdianos que são obrigados a trabalhar fora da esfera artística para obterem rendimentos que lhes permitem subsistir” (FERRO; RAPOSO, 2016, p. 24), limitando, e até impedindo, o seu acesso a uma educação artística formal que lhes permitiria acumular competências técnicas, artísticas, culturais e sociais para acederem à carreira ambicionada.
Caso 2 – Luísa
Luísa é uma jovem de origem brasileira que veio para Portugal com os seus pais quando tinha 10 anos. No Brasil, os pais tinham casa, mas foram despejados porque uma rodovia iria ser construída no local. Nesse sentido, receberam uma indenização e resolveram vir para Portugal. Quando chegaram, não conheciam ninguém, pelo que sofreram uma mobilidade social descendente. A mãe conseguiu trabalho num restaurante, e o pai, que é músico, passou a tocar na rua. Tal como mencionado por Nico et al. (2007, p. 149 -163), a família nuclear exerce muitas vezes uma socialização primária artística, também o sonho de Luísa é tornar-se atriz, alentada por uma família em que a arte sempre esteve muito presente. No entanto, ela acredita que em Portugal não conseguirá realizar o seu sonho, porque existem muito poucas oportunidades no campo artístico, além de ser um meio profissional onde a instabilidade e a precaridade laboral são estruturantes (GOMES, 2014). Para além disto, ela considera o seu sotaque brasileiro um obstáculo para o desenvolvimento da sua carreira em Portugal (ver a este propósito, GASPAR; IORIO, 2020). Contudo, os seus pais consideram que a escolha de uma carreira artística é uma decisão que só a Luísa caberá, e incentivam-na a perseguir esse sonho. A sua opção profissional, depende assim, dela. Por isso, neste momento, ela está matriculada num curso técnico de “Artes do Espetáculo e Interpretação”, para além de entre as terças e sextas-feiras a noite frequentar um clube de teatro. Disse que pretende prosseguir com uma educação formal relacionada com o curso que está a fazer, mas que ainda não sabe ao certo o quê. No entanto, revelou:
Luísa: “Eu não tenho interesse de participar em novela aqui. Se for aqui, é em teatro, ou fazer uma faculdade de cinema aqui e, provavelmente, sair de Portugal.”
Entrevistadora: Então você pretende sair de Portugal?
Luísa: Eu gostaria.
Entrevistadora: E para onde?
Luísa: Eu tenho considerado a hipótese de ir para Inglaterra.
Luísa acredita que, na Inglaterra, terá mais sucesso enquanto profissional de artes do espetáculo e da interpretação. No entanto, confessou que ainda tem dificuldade com a língua inglesa, “Eu consigo entender inglês. Depois, falar, eu consigo me desenrascar… Mas, escrever, é bem difícil!”
Adotando uma leitura interseccional para o caso de Luísa, observamos como a sua origem nacional (brasileira, cuja língua é o português do Brasil) e o estatuto socioeconômico (classe média/média baixa, pois vem de uma família que tinha residência própria no Brasil, mas esta lhes foi tirada e, por isso, vieram tentar a sorte em Portugal) intersectam para reforçar a sua posição social de imigrante. No entanto, isto não a impediu de seguir o seu sonho e fazer um curso profissionalizante na área artística em Portugal, motivada em grande parte pelo seu contexto familiar. Com efeito, e tal como encontrado em estudos anteriores sobre mulheres jovens imigrantes (FLEMMEN, 2008; NICO et al., 2007; RIAÑO, 2011), Luísa encontra na sua família (o pai é músico) o estímulo para desenvolver a sua vocação artística. Por isso, os seus pais compreendem e alentam as suas escolhas na carreira artística. Como Luísa disse, “o meu pai gostaria que eu fizesse teatro”. Por outro lado, o fato de ser originária do Brasil e de saber que o sotaque poderá ser um obstáculo no acesso a algumas atividades artísticas (como ela refere), fez ela pensar em outras estratégias (como reemigrar). Sabe, no entanto, que para isso precisará aprender a língua inglesa, mas reconhece que têm dificuldades para tal.
Contudo, em Portugal, a sua participação num clube de teatro deve ser vista como um recurso institucional que apoia e promove a sua imersão neste campo, uma vez que ela não paga nada para lá estar. Com efeito, a função de alguns clubes e associações, de estimularem a ‘educação informal para a arte’ entre os jovens, é fundamental para o desenvolvimento de competências e habilidades ligadas ao campo artístico, como aliás, alguns estudos têm demonstrado (CARMO, 2014; MATOS PEREIRA, 2021). Segundo Luísa, este clube “tem várias áreas. Tem futebol, tem dança, tem várias coisas, só que... todas têm mensalidade, menos o teatro. Então, eu não pago.”
O grau de participação e envolvimento dos jovens descendentes entrevistados em associações de cariz artístico e cultural é, assim, um indicador de estratégias de integração social, capazes de defenderem e salvaguardarem os seus interesses culturais e os seus direitos como cidadãos. Estas associações ilustram, efetivamente, uma participação mais informal no envolvimento destes jovens na sociedade onde residem, tendo vindo, segundo alguns autores (JARDIM; SILVA 2016) a substituir a participação política nos últimos tempos. Neste sentido, vários dos entrevistados foram aliciados a participar em projetos do Programa Escolhas ou de outras associações educativas e culturais, ilustrando, precisamente, o seu papel ativo nestas instituições. Assim, e como dissemos no início deste artigo, existem muitas associações no município de Sintra que pretendem promover a participação cidadã de determinados grupos sociais que, ainda hoje, se encontram socialmente excluídos. Entre estes grupos, destacam-se os jovens provenientes das comunidades imigrantes, que procuram nessas associações, para além de fortalecerem as relações sociais que têm no país de acolhimento, manterem-se informados sobre os seus direitos e deveres como cidadãos de pleno direito (a este propósito ver CARMO, 2014). O papel da divulgação do trabalho dessas associações torna-se, pois, fundamental para atrair o público a que se destinam, e assim promover uma participação comprometida dos principais interessados.
Caso 3 – Amadeu
O caso de Amadeu, um jovem cabo-verdiano a viver em Portugal desde os 10 anos com a sua tia, é igualmente paradigmático. Este jovem tem uma origem de classe mais baixa, tendo vivido com dificuldades financeiras até tarde. A sua condição étnico-racial também reforçou a sua posição social desfavorecida (BÜRKNER, 2012), num contexto profissional fundamentalmente marcado por portugueses nativos. Contudo, apesar de Amadeu ter condições de vida potenciais para ser excluído no acesso formal à arte, o papel de uma associação de imigrantes contribuiu para a sua participação informal e o envolvimento deste jovem neste campo. Mais uma vez, o papel de instituições ou associações culturais na promoção do acesso a atividades artísticas, é central, sobretudo entre as classes sociais desprovistas de meios financeiros (CARMO, 2014; MATOS PEREIRA, 2021). Hoje, com 20 anos de idade, Amadeu diz que pretende seguir a carreira de ator:
“Eu faço teatro desde pequenino, já são muitos anos…. Eu comecei aqui, na Casa Azul. Eu passei a minha infância sozinho em casa… Ficava sozinho o dia todo, mas tinha a Casa Azul que também compensava… sempre fizemos teatro… desde novo. Participávamos no “Festival Monstra” de Sintra, ganhamos muitas vezes isso! E depois, em 2017, o diretor do “Teatro Mosca” (uma companhia teatral de Sintra) foi à Casa Azul e falou de nós, os jovens, que na altura fazíamos teatro, trabalhamos numa peça com o Teatro Mosca. Aquela peça era para ir para França! Nós, todos felizes, mas só podiam ser nove jovens, e na altura nós éramos 20! Todos queriam, mas depois foram desistindo…Chegou novembro já tínhamos 9 jovens. Depois, o diretor do teatro Mosca gostou bastante de nós, gostou muito de trabalhar conosco, e disse, “entre vocês todos, vou escolher dois para virem trabalhar em mais uma peça comigo”. Eu fui escolhido, ele acabou por escolher mais pessoas até, escolheu pra aí 5 pessoas, e eu fiz uma peça, esse ano ainda; depois chamou-me para fazer outra, e agora chamou-me para fazer outra…”
No caso de Amadeu, a presença de uma associação de imigrantes no seu local de residência (um bairro social no concelho de Sintra), onde a educação para a arte constituía um dos principais fundamentos, ilustra como a interseção de certas categorias sociais como a origem nacional, estatuto socioeconômico, e origem étnico-racial, foram compensados pela abertura e conhecimento de carreiras artísticas, criadas precisamente com a finalidade da inclusão social de jovens descendentes naquele bairro. Por outro lado, o acesso ao campo artístico por parte de Amadeu, contrasta em parte, com outros artistas imigrantes que se estabeleceram em Portugal tendo já iniciado as suas carreiras artísticas nos seus países de origem, e onde o início do seu desenvolvimento nas artes, foi impulsionado pelo ambiente familiar ou escolar (NICO et al., 2007).
Caso 4 – Ivan
A história de Ivan, um jovem imigrante ucraniano que veio viver com o pai em Portugal aos 24 anos, ilustra como as qualificações acadêmicas condicionam, mais facilmente, o desenvolvimento de vocações artísticas. Na Ucrânia, tal como em outros países da ex-União Soviética, a cultura artística é extremamente valorizada (Nico et al., 2007), havendo uma forte concorrência entre os artistas e menos possibilidades de desenvolvimento de uma carreira profissional nesta área. No caso de Ivan, para além de se ter licenciado em engenharia civil, fez cursos de designe de interior/exterior e de escultura e restauro onde, entre outras coisas, aprendeu a arte da cerâmica, que é a sua vocação. Quando chegou em Portugal, com o apoio do pai, que já estava bem estabelecido no país, e sofrendo uma mobilidade social descendente, Ivan começou a trabalhar na construção civil, uma vez que a entrada no mercado de trabalho nesta área era de mais fácil acesso (ver a este propósito FERRO; RAPOSO, 2016; MATOS PEREIRA, 2021; NICO et al., 2007). No entanto, quando disse que também sabia pintar os azulejos com os quais trabalhava nas obras, o patrão lhe deu uma oportunidade em uma fábrica:
Ivan: “Eu também posso fazer isto, pintar”.
Patrão; “Tu podes pintar?”
Ivan: “Claro, sim”.
Patrão: “Está bem, chega amanhã à fábrica que eu quero ver como tu pintas”.
E já há dois anos que Ivan exerce o trabalho artístico de pintar azulejos numa fábrica em Portugal. Neste momento, sente que está bem integrado no país, e que fala bem o português, apesar de ainda frequentar um curso de língua portuguesa para estrangeiros.
O caso de Ivan ilustra como o seu acesso a uma carreira artística foi facilitada tanto pelo apoio financeiro e logístico do seu pai, como pelas suas qualificações prévias, altamente especializadas em cerâmica. Neste caso concreto, o nível socioeconômico representa um catalisador no acesso a competências no campo artístico, que possivelmente neutralizam outras categorias sociais no seu percurso. Caso contrário, apesar de ter contrato de trabalho, esse jovem, que hoje vive sozinho, não conseguiria fazê-lo ganhando cerca de 700 euros por mês (cerca de 3.800,00 reais). Com efeito, nem a sua origem étnica, nem o seu estatuto de imigrante obstaculizaram as suas decisões e escolhas profissionais, pois, ainda que tenha uma licenciatura em engenharia civil, Ivan reconhece que o investimento que fez em outras qualificações, contribuíram para a sua carreira como ceramista em Portugal e para o facto de, hoje, ele poder trabalhar com aquilo que gosta.
Conclusão
Através de uma perspetiva interseccional, este artigo analisa o acesso a carreiras artísticas por parte de jovens imigrantes e descendentes de imigrantes em Sintra, ilustrando como o entrecruzamento de certas categorias sociais representam obstáculos ou incentivos ao ingresso nessas mesmas carreiras. A ideia de que a arte poderá constituir uma estratégia importante para a inclusão social destes jovens, enquanto meio cultural promotor de um diálogo partilhado e de uma cidadania intercultural nas sociedades de acolhimento (MARTINIELLO, 2015), é um tema que merece ser situado no debate acadêmico e incluído na elaboração das políticas públicas.
As narrativas dos jovens entrevistados permitiram entender que, entre aqueles que expressam ter uma vocação artística, as escolhas individuais no acesso a estas carreiras são determinadas por vários condicionalismos étnico-raciais, origem nacional e meio socioeconômico, cujo entrecruzamento possibilita ou não a sua imersão em carreiras profissionais na arte. A decisão de enveredar por estes percursos profissionais é, contudo, equacionada tendo em conta certas lógicas estruturais laborais concretas. De fato, apesar de alguns destes jovens se encontrarem a iniciar atividades artísticas, reforçando certas competências através de uma educação formal (sobretudo universitária) dentro deste meio; a maioria não contempla abandonar a ocupação atual para se dedicar a uma carreira artística, devido às modalidades de trabalho flexível transversais a estas profissões, à instabilidade nos contratos de trabalho, baixa remuneração, intermitência dos trabalhos e regime multi-assalariado (GOMES, 2014; FERRO; RAPOSO, 2016). Assim, e por um lado, algumas das escolhas individuais e a da vocação artística de certos jovens são secundarizadas frente à necessidade em continuar a desenvolver trabalhos instrumentais (mas economicamente mais seguros) para ajudar a economia familiar, como sucede no caso de David. Contudo, e tal como mencionado em estudos anteriores (FERRO; RAPOSO, 2016), a opção em construir um caminho semiprofissional na arte, é igualmente visível entre artistas de origem nacional, que para ultrapassar as dificuldades em viver exclusivamente da arte, conciliam estas atividades com outras fora do campo artístico, mais seguras e financeiramente mais bem remuneradas.
Por outro lado, nos casos daqueles jovens que optam por seguir percursos artísticos (como vimos no caso de Luísa e de Amadeu), destaca-se o papel que têm as associações de imigrantes, enquanto espaços informais de iniciação ao campo da arte (CARMO, 2014; MATOS PEREIRA, 2021). A importância de dotar estas associações com profissionais ligados à arte (MARTINHO, 2013), poderá contribuir para dinamizar a educação artística informal nos percursos destes jovens. Este poderia ser um caminho utilizado para estimular o acesso a estas carreiras, visando canalizar e ampliar várias competências artísticas (artes performativas, música, pintura, dança…) para o reforço da inclusão social de jovens descendentes de imigrantes, sobretudo em certos grupos originários dos PALOP, normalmente estabelecidos em contextos geográficos e sociais mais desfavorecidos em Sintra.
Mais ainda, as associações sociais parecem constituir ‘circuitos’ específicos de produção e transmissão da arte entre jovens descendentes (no sentido atribuído por FERRO; RAPOSO, 2016), cujo papel deveria ser reconhecido como espaço físico e social no possível acesso a carreiras artísticas. De fato, como vimos, alguns destes jovens iniciaram a sua socialização artística no seio destas associações, e revelaram expectativas futuras de transitar para experiências educativas formais (acesso ao ensino superior) ligadas à arte (o caso de Luísa, por exemplo). A isenção de pagamento de atividades artísticas existente em algumas delas, representa um atrativo à sua iniciação, e um recurso que equilibra a desigualdade financeira entre alguns jovens economicamente mais vulneráveis.
Contudo, o início das carreiras no meio artístico, não se esgota, como vimos, ao papel desempenhado pelas associações. A entrada e o desenvolvimento de um percurso nas artes podem ainda ser potenciada pelo apoio existente no seio familiar, por parte daqueles indivíduos cujos pais são, eles próprios, artistas (como no caso de Luísa). O incentivo dado à persecução de trajetos na arte durante a socialização primária já tinha sido identificado como um dos principais impulsionadores de uma carreira artística (NICO et al., 2007). Nestes casos, certas desigualdades econômicas ou financeiras, podem ser superadas através dos incentivos e estímulos encontrados na família, cuja imersão na arte pode ser determinante na educação e escolhas futuras destes jovens.
Este artigo constitui, assim, uma abordagem à intermitência no acesso à arte por parte de jovens descendentes de imigrantes em Sintra, e na necessidade de se entender estes processos sob um ponto de vista interseccional. O papel da arte na inclusão destes jovens – que como vimos, referem ter sido alvo de discriminações linguísticas entre os seus pares (David, Luísa) – poderá ser determinante para reforçar a sua pertença social e potenciar a sua vocação neste terreno.
Questões de Ética: Autodeclaração de princípios e procedimentos éticos conforme o Regulamento da Comissão de Ética do ISCTE-IUL, Despacho nº 7095/2011, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 90, 10 de maio de 2011.