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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.24  Brasília  2018  Epub Feb 13, 2019

https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.19817 

Dossiê Didática desenvolvimental: diferentes concepções histórico-culturais

Atividade Orientadora de Ensino: fundamentos

Manoel Oriosvaldo de Moura1 
http://orcid.org/0000-0002-0431-4694

Elaine Sampaio Araujo2 
http://orcid.org/0000-0002-5012-5552

Maria Isabel Batista Serrão3 
http://orcid.org/0000-0003-4095-3845

1Universidade de São Paulo

2Universidade de São Paulo

3Universidade Federal de Santa Catarina


Resumo

Neste artigo apresentam-se os fundamentos teórico-metodológicos da Atividade Orientadora de Ensino, sustentados na tese leontieviana de que a atividade é o agente da materialidade da vida de qualquer sujeito. Inicialmente abordase a educação escolar na perspectiva de uma criação humana, em resposta à necessidade de preservação e socialização da cultura. Ao analisar os elementos constitutivos da Atividade Orientadora de Ensino, com base na Teoria históricocultural, busca-se demonstrar como ela se configura em um modo de organização do ensino para que a escola possa promover o desenvolvimento humano em sua máxima potencialidade.

Palavras-chave Teoria da Atividade; Atividade Orientadora de Ensino; Educação escolar

Resumen

En ese artículo se presentan fundamentos teórico-metodológicos de la Actividad Orientadora de Enseñanza sustentados en la tesis leontieviana de que la actividad es el agente de la materialidad de vida de cualquier sujeto. Inicialmente abordamos la educación escolar desde una perspectiva de creación humana, en respuesta a la necesidad de preservar y socializar la cultura. Al analizar los elementos constitutivos de la Actividad Orientadora de Enseñanza, anclados en la Teoría histórico-cultural, buscamos demostrar cómo se configura en un modo de organización de enseñanza para que la escuela pueda promover el desarrollo humano a su máxima potencia.

Palabras clave Teoría de la Actividad; Actividad Orientadora de Enseñanza; Educación escolar

Abstract

In this article we present theoretical-methodological backgrounds of the Teaching - Orienteering Activity based on Leontievian thesis that activity is the agent of the materiality of life of any subject. Initially we approach school education in the perspective of a human creation, in response to the need of preserving and socializing culture. In analyzing the constitutive elements of the Teaching - Orienteering Activity, anchored in the cultural-historical theory, we seek to demonstrate how it is configured in a mode of organizing teaching so that schooling process can promote human development in its maximum potentiality.

Keywords Theory of Activity; Teaching - Orienteering Activity; Schooling

Résumé

Dans cet article nous présentons les fondements théoriques méthodologiques de l´Activité d´Orientation d´Enseignement basés sur la thèse de Léontiev qui dit que l´activité est l´agent de la matérialité de vie de n´importe quel sujet. Pour commencer, nous abordons l´éducation scolaire sous la perspective d´une création humaine, en réponse à la nécessité de préserver et socialiser la culture. À l´analyse des éléments constitutifs de l´activité d´orientation d´enseignement, ancrés dans la Théorie historico-culturelle, nous cherchons démontrer comment qu´elle se configure dans un mode d´organisation d´enseignement pour que l´école puisse promouvoir le développement humain dans sa pleine puissance.

Mots clés Théorie de l´Activité; Activité d´Orientation d´Enseignement; Éducation scolaire

La actividad es la sustancia de la consciencia humana. (Davídov, 1988a, p. 27)

O que pode ter movido Davídov a fazer a afirmação em epígrafe? A resposta pode estar no método que ele mesmo usa para lançar as bases de uma psicologia que esteja a serviço da didática: busca dos aportes teóricos que podem ter levado ao conhecimento de como o homem adquiriu suas capacidades mentais, até chegar ao nível atual. E para isto o seu método de análise – referenciado em Marx – tem sua centralidade sobre o modo do homem de fazer-se humano pelo trabalho, e em atividade, conceito que adota a partir de sua leitura de Leontiev e Rubinstein. Neste artigo a nossa preocupação centra-se na formulação de fundamentos de uma atividade humana especial: a que considere os modos de nos fazermos humanos em atividade pedagógica, entendida como aquela que se constitui em uma unidade que dá movimento aos processos de ensino e aprendizagem.

Por trás da afirmação, também de Davídov (1988a), de que “o movimento vivo é a psique”, está toda uma síntese de quem busca entender o desenvolvimento da consciência do homem. A afirmação de Marx (citado por Davídov, 1988a) de que “el hombre [...] se comporta hacia sí mismo… como hacia un ente universal y, por lo tanto, libre... [ênfase no original]. La actividad consciente libre hace de él un ser genérico” (p. 27), é uma referência para Davídov (1988a), citando Marx, postular que “la actividad humana consciente tendiente a una finalidad es un proceso tan objetivo como todos los procesos de la naturaleza” (p. 27). Esta afirmação é da maior relevância para a compreensão do modo como nos fazemos humanos, de como podemos analisar os processos de formação de nossas capacidades humanas, de como desenvolvemos histórico-socialmente a nossa cultura. É também referência para o combate a propostas educativas que desconsideram o processo de encapsulamento dos conceitos, já que estes são como reificados e alheios aos processos históricos e à crítica ao modo como lidam com os significados, ao negligenciarem a história do seu processo de significação. Como metodólogos do ensino, como sujeitos da atividade de ensino, enfim, como professores, é preciso que compreendamos o nosso modo de continuar sendo sujeitos e de nos fazermos sujeitos permanentemente.

Para Davídov (1988a), coerentemente com o que já destacamos aqui, a essência da atividade do homem “puede ser descubierta en el proceso de análisis del contenido de conceptos interrelacionados como trabajo, organización social, universalidad, libertad, consciencia, planteo de una finalidad, cuyo portador es el sujeto genérico [ênfase do autor]” (p. 27). Podemos dizer que, desta forma, fica justificada a frase em epígrafe. Mas muita reflexão ainda se faz necessária para chegarmos a compreendê-la em profundidade. E mais, para tirar dela alguma lição para compreendermos a nossa atividade, a atividade pedagógica, também como uma substância da consciência humana.

A atividade pedagógica e suas potencialidades para o desenvolvimento humano

Se for verdade, como nos diz Davídov (1988a), para chegar àquela conclusão que está na epigrafe, de que “toda la actividad espiritual de las personas está determinada por la práctica social y tiene una estructura en principio afín con ella” (p. 27), então, na análise da educação escolar, como criação para uma resposta à necessidade de preservação e socialização da cultura, podemos encontrar a melhor forma para nos constituir como sujeitos em atividade pedagógica, elevando o nosso nível de entendimento sobre o modo como nos tornamos humanos pela educação escolar. Portanto, torna-se necessário penetrar nesse processo de compreensão sobre o desenvolvimento da nossa forma de apropriação de conhecimentos necessários para a vida em sociedade.

Há muitas hipóteses sobre a origem e a produção da existência humana, mas há grande aproximação para um consenso: nenhum indivíduo da espécie é capaz de produzir sua existência sozinho. O estabelecimento de relações grupais de seres humanos entre si e com a natureza, da qual eles também são partícipes, se impôs desde o princípio como uma exigência vital para a satisfação de suas necessidades que, como diria Marx (2006), vão do estômago à fantasia. Para tanto, muitos foram os modos de produção criados historicamente, até o hegemônico, ao qual estamos subsumidos: o capitalismo. Nesse processo de produção e reprodução da existência humana, os seres humanos foram capazes de criar algo além de si próprios. Criaram artefatos culturais, materiais e imateriais. Assim, cada nova geração herda o legado humano coletivamente produzido, que individualmente necessita ser apropriado por inúmeras e históricas mediações.

Segundo Leontiev (1978),

as aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, ‘os órgãos da sua individualidade’, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função este processo é, portanto, um processo de educação [ênfase no original] (p. 272).

Davídov (1988b), ao indagar sobre o papel da psicologia para a compreensão do desenvolvimento da psique, deixa-nos também uma indagação sobre o papel da pedagogia e da didática no desenvolvimento da educação escolar, que tenha por base os contributos do materialismo histórico-dialético, para a análise dos elementos que nos dariam a compreensão sobre o modo de o homem se fazer humano em atividade de ensino e aprendizagem. Esta análise tem que ser feita, considerando a peculiaridade da atividade pedagógica de lidar com conceitos desprovidos, preponderantemente, de seu processo de significação. Sim, se considerarmos o que nos diz Vygotski (1996), que o conceito está encarnado na palavra e esta tem um significado construído historicamente, então devemos atentar para o conceito, objeto da educação escolar, como provido da história humana que o produziu.

Para nós, de acordo com Davídov (1988a), o conceito-chave para o entendimento da formação da consciência é o de atividade. Segundo esse autor, foram muitos os psicólogos que se dedicaram a estudar o papel da atividade histórico-social – prática e espiritual – das pessoas, mas foi Leontiev quem mais se aprofundou em seu estudo. O conceito de atividade tem seu cerne no entendimento de seu caráter objetivo: “Aquello a lo que está dirigido el acto..., es decir, como algo con lo que el ser vivo se relaciona, como el objeto de su actividad, sea ésta externa o interna” (Leontiev, citado por Davídov, 1988a, p. 28).

Vejamos o que diz Davídov (1988a) sobre o papel dos psicólogos diante das teses de Lênin, quanto ao desenvolvimento do pensamento. Segundo Davídov (1988a), Lênin faz um reparo à visão idealista de Hegel, ao destacar a importância da atividade prática e introduzir “el concepto de actividad vital práctica dirigida a un fin del sujeto, la que cambia y transforma la realidad externa” (p. 21). Nesta perspectiva, os componentes básicos mais importantes desta atividade objetiva do homem são a definição de um objetivo, a escolha e a utilização de instrumentos e a verificação da coincidência do plano subjetivo com o objetivo, isto é, do que antes foi planejado com o que foi objetivado. Ainda segundo esta visão, a verdade se forma como resultado de múltiplas relações estabelecidas entre sujeito e objeto, nas quais se incluem todos os aspectos da realidade. Tal posição também lhe permite assegurar a formação do pensamento verbal como decorrente das atividades práticas.

Em busca de fundamentos teóricos para a compreensão da educação escolar como solução construída pelo homem para a socialização, a preservação e o desenvolvimento da cultura, destacamos mais uma tese de Davídov, em busca, também, de melhor entender a didática, considerando os aportes da psicologia assentada nos princípios marxistas:

La dialéctica es internamente inherente a la actividad, a la unidad y a los pasajes mutuos de sus formas fundamentales: la práctica y el pensamiento. Y esta dialéctica, naturalmente, se manifiesta en la actividad de cada hombre. Ante los psicólogos se plantea un problema fundamental: encontrar de qué manera la dialéctica universal del mundo se convierte en patrimonio de la actividad de los individuos, cómo estos se apropian de las leyes universales del desarrollo de todas las formas de la actividad práctica social y de la cultura espiritual [ênfase adicionada] (Davídov, 1988a, p. 23).

Davídov coloca para os psicólogos o que considera ser o problema fundamental deles: encontrar de que maneira a dialética universal do mundo se converte em patrimônio da atividade dos indivíduos. E, para os que têm como objeto a atividade de ensino na educação escolar, o que se coloca como fundamental? O que objetiva a atividade de ensino?

Nossa tese é a seguinte: a atividade de ensino é criação humana para desenvolver o modo humano de apropriação de conhecimentos necessários para inserir novos sujeitos em atividades coletivas que tenham por objetivo a satisfação de necessidades básicas, instrumentais e integrativas desenvolvidas historicamente. A relação essencial dessa atividade é o modo de se fazer humano na atividade de ensino.

Para o desenvolvimento desta tese nos parece fundamental a constituição desta peculiar atividade humana no seu desenvolvimento histórico: a educação escolar. Sabemos que a escola, como instituição, se constitui por um sistema complexo de múltiplas atividades. Atentaremos, no entanto, para o que nós consideramos preponderante no sistema educacional: a atividade pedagógica – esta entendida como unidade entre ensino e aprendizagem.

Modo de se fazer humano na atividade de ensino

Considerando ensinar e aprender como uma unidade, e na condição de sujeitos da atividade de ensino, cabe perguntar: O que é ensinar? No sentido etimológico, do latim insignare, significa pôr um sinal, marcar (Machado, 1977). No processo de humanização, o ensino dá-se no campo da educação, que tem sido considerada como um processo pelo qual uma geração se apropria das marcas históricas da humanidade, isto é, do produto cultural (material e imaterial) da geração precedente, objetivado na forma de conhecimentos científicos e saberes vivenciais, entre outras objetivações culturais. Pela apropriação, entendida “como proceso de educación y enseñanza en sentido amplio, [se realiza] la forma universal del desarrollo psíquico del hombre” (Davídov, 1988a, p.13). O ensino, nesse contexto, busca transmitir às novas gerações os modos e os resultados obtidos pela humanidade diante de necessidades sociais, desde as mais básicas, como a própria sobrevivência, considerando as integrativas e as instrumentais (Malinowiski,1975). Um exemplo disso pode ser apontado em relação à conquista do fogo [1] . Possivelmente, o homem, ao observar o fenômeno da natureza, foi experimentando os benefícios do fogo. Este podia ser tomado tanto como resultado do que vinha dos vulcões, como da queda de um raio. Roy Lewis (1993), em O por que almocei meu pai, nos oferece uma instigante narrativa sobre o modo como o homem começa a estabelecer relações primárias com o fogo e chega até a sua conquista. Dominar o fogo foi uma atividade humana – é o que Roy Lewis procura nos mostrar em sua narrativa. O fogo – como o ar, a terra e a água – estava presente na natureza. Podia ser apanhado na base do vulcão, no incêndio causado por um raio, mas, para o seu domínio, foi preciso trabalho humano. Este, entendido em sua dimensão ontológica, indispensável à existência do homem, se configurou como “necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 2006, p. 65). Como trabalho, envolveu uma atividade criadora, pois, embora o fogo existisse na natureza, sua (re) criação impactou, de uma vez por todas, a relação homem-natureza e envolveu um processo de aprendizagem humana; e, se foi aprendido, pôde ser ensinado – e aqui a imitação ganha um destaque especial, pois, de acordo com Vigotski (2010), a aprendizagem é possível onde é possível a imitação.

A (re)criação do fogo, que representou determinado poder e mudanças na forma de conduta cultural, com certeza dependeu da diversidade de experiências anteriores de determinados grupos, o que, como afirma Vigotski (2009), constitui a base material para a atividade criadora. Mãos que se conectam com o cérebro; prática e pensamento: e os primórdios da significação do “fogo” se formam, ou seja, como indica Leontiev (1978), em termos psicológicos, passa a existir na consciência um “reflexo generalizado da realidade, elaborado pela humanidade” (p. 96), que se objetiva de diferentes modos, em diferentes produtos culturais, inclusive como um saber fazer, como um “modo de ação”, um modo de fazer fogo. O fogo não está apenas do lado de fora do homem; doravante, o fogo existe também como um pensamento. O homem pode pensar no fogo, pode atribuir-lhe um sentido, realizado, também, em uma palavra (Vigotski, 2010), em um sistema de conceitos, como o de energia, que passa a ser ensinado, inclusive na educação escolar.

Assim, da descoberta do fogo à lei de conservação da energia, há um processo marcado pela aquisição das significações sociais, isto é, a experiência humana acumulada, como conteúdo da consciência social, é assimilada pelo indivíduo (Leontiev, 1978), no processo de reprodução do conhecimento produzido. Ao considerarmos que o conhecimento “resulta de construção efetuada pelo” pensamento e suas operações; e consiste numa representação mental do concreto (Prado Junior, 1973, p. 43), podemos aceitar igualmente que sua reprodução, por exemplo, no caso do conceito de conservação de energia, revela-nos o movimento de desenvolvimento do pensamento teórico, o qual, compreendido como “el proceso de idealización de uno de los aspectos de la actividad objetal – práctica, la reproducción, en ella, de las formas universales de las cosas” (Davídov, 1988a, p. 125), agrega forma e conteúdo. Ou seja, por meio do pensamento teórico, a apropriação do conceito de energia compreende também a assimilação das capacidades humanas surgidas historicamente em sua produção. Nessa perspectiva, a apropriação da cultura é também a apropriação do objeto, do meio e do resultado do conhecimento produzido em sua máxima potencialidade.

E, então, podemos retomar nossa questão inicial: o que é ensinar, na dimensão da educação como humanização? A resposta a essa questão passa por considerar que vivemos em um mundo repleto de significações sociais. Quão imensa é a riqueza produzida pelo homem e cada novo indivíduo que chega ao mundo traz em si as marcas do gênero humano, com direito de herdar as riquezas produzidas pelas gerações anteriores, objetivadas na cultura.

Em geral esse processo de educação ocorre em diferentes esferas e inicialmente no seio da família ou em outras instituições sociais. No caso da formação social brasileira, para a maioria das crianças, a educação também se realiza de forma sistematizada por meio da escola pública e pela atuação de professores e demais trabalhadores em condições precárias de trabalho, determinadas, em última instância, pelo modo de produção capitalista. A escola, tal como conhecemos, é uma criação histórica do capitalismo que, contraditoriamente, circunscreve a formação humana de tal modo que, em última instância, nega suas máximas potencialidades.

Compreender os limites e as possibilidades da educação escolar para a formação humana sob a égide do capitalismo se apresenta como uma necessidade complexa e multifacetada, que requer uma longa jornada coletiva de pesquisas e estudos.

Considerando as limitações impostas para a produção deste texto, apresentaremos alguns elementos de uma das esferas desse desafio: os princípios teóricos e metodológicos de uma organização do ensino promotora de aprendizagem e desenvolvimento humano, a partir das contribuições da teoria histórico-cultural.

Atividade de ensino como atividade humana

A referência ao modo como o homem vai da simples coleta do fogo à sua produção visou revelar o processo lógico-histórico de uma atividade humana. O conhecimento produzido sobre o fogo como fonte de energia, sabemos, tem um longo caminho que passou da simples sensação à compreensão do modo como a combustão possibilita a transformação da energia em novas formas de energia, capazes de promover mudanças nas forças produtivas. Desse modo, concebemos a produção do conhecimento como resultado do trabalho humano. Como tal, ela implica uma ação criadora, coletiva e reprodutora, na qual o homem, ao se apropriar da experiência social da humanidade, se humaniza, se desenvolve. Nessa direção, Davídov (2002), ao considerar os aportes de Vigotski, indica três dimensões presentes na reprodução da experiência social da humanidade e sua relação com a ação criadora:

En primer lugar, sin reproducir en forma especial aquello que existe en la cultura, el hombre no puede convertir-se en un ser cultural; en segundo lugar, en las bases de la cultura se encuentra la amplísima experiencia de la actividad creadora de las personas con referencia a la realidad; en tercero lugar, la reproducción por el individuo humano de las capacidades creadoras – que más tarde podrá desarrollar en su vida concreta –, aportando algo nuevo a la experiencia creadora de la humanidad (p. 56).

Ao retomarmos uma das teses centrais da teoria histórico-cultural, a de que o desenvolvimento do psiquismo ocorre no processo de apropriação dos procedimentos e conhecimentos elaborados historicamente (Davídov, 1988a), podemos compreender a relação que existe entre a qualidade do conhecimento e determinada forma de pensamento. Todavia, essa relação não é tão simples. Rubinstein (1965), ao discutir a relação entre pensamento e cognição, nos lembra de que: “o conhecimento começa com a sensação, com a percepção – como conhecimento sensorial – e continua como pensamento abstrato que parte do sensorial e ainda que siga mais adiante, nunca se desprega dele” (p. 149). Esse movimento advém do estabelecimento de relações inicialmente interpsíquicas e posteriormente intrapsíquicas. E, nesse sentido, como mencionado anteriormente, toda criança necessita apropriar-se do legado humano que está “dado” ao nascer, para que ocorram a formação e o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, da personalidade e da consciência. Esse processo se faz pela atividade dos sujeitos em inter-relação com outros indivíduos da geração precedente e coetâneos. “A função primeiro constrói-se no coletivo em forma de relação entre as crianças – depois constitui-se como função psicológica da personalidade” (Vigotski, 2000, p. 29). Assim, é por meio de tais relações que a criança entra em contato com a cultura, que por sua vez, “crea formas especiales de conducta, cambia el tipo de actividad de las funciones psíquicas” (Vigotski, 1987, p. 38). Assim, na ontogênese, as duas linhas de desenvolvimento humano, biológica e histórico-cultural, se fundem na formação humana da criança.

Para Vygotsky (1996),

el medio social origina todas las propiedades específicamente humanas de la personalidad que el niño va adquiriendo; es la fuente del desarrollo social del niño que se realiza en el proceso de interacción real de las formas ‘ideales’ y efectivas.[...] El propio proceso de aprendizaje se realiza siempre en forma de colaboración del niño con los adultos y constituye un caso particular de interacción de formas ideales y efectivas que mencionamos antes como una de las leyes más generales del desarrollo social del niño (p. 270-271).

Como isso se realiza no espaço escolar? Pela atividade pedagógica, no plano da direção: unidade dialética entre ensino-aprendizagem-desenvolvimento. No plano da execução: unidade dialética entre atividade/trabalho do(a) professor(a) e atividade de estudo/brincar realizada pelas crianças, pelos jovens. No contexto pedagógico temos defendido que a Atividade Orientadora de Ensino – AOE – (Moura, 2001; Moura, Araújo, Moretti, Panossian, & Ribeiro, 2010), configura-se como uma base teóricometodológica para o desenvolvimento do pensamento teórico, para quem ensina e para quem aprende, como aprofundaremos a seguir.

Ensino e desenvolvimento: a Atividade Orientadora de Ensino

As atividades dos sujeitos envolvidos na educação escolar, como ocorre em toda esfera social, se circunscrevem pelos condicionantes históricos e culturais definidos independentemente da vontade de tais sujeitos. Contudo, são esses mesmos sujeitos, adultos e crianças, os responsáveis por realizar tais atividades. Sendo assim, podemos nos perguntar: quais possibilidades são vislumbradas para a organização do ensino entre o desejo de contribuir para formação humana em suas mais diversas esferas e os limites históricos da realidade social, em particular a escolar? A resposta a esta questão é complexa, mas poderíamos salientar que a atividade pedagógica pode gerar

duas tendências de disponibilidade de aprendizagem: a que se manifesta pelo entusiasmo, curiosidade e busca do conhecimento e a que se manifesta pelas características de bloqueio cognitivo e afetivo, de alienação da capacidade de aprender. Se o ponto de partida respeitar o desenvolvimento da criança e acontecer com a criança, interagindo com sua atenção, a sua emoção e a sua sensibilidade, é possível que o primeiro movimento, o da criatividade e autodeterminação, passe a ser dominante em todo o futuro processo de aprendizagem (Lanner de Moura, 2007, p. 68).

Assim, é condição essencial na educação escolar compreender que o processo de humanização da criança requer que a ação educativa coloque o movimento de aprendizagem desse sujeito em consonância com as suas potencialidades cognitivas e socioafetivas. Para tanto, se faz necessário criar coletivamente condições para que o professor também possa desenvolver-se permanentemente; possa tornar-se um dos principais responsáveis pela educação como humanização de forma institucional e sistematizada; e perceber que, em atividade de ensino, ele próprio poderá ser um dos elos de união com a atividade da criança nesse movimento de humanização de ambos.

Moura et al. (2010), ao considerarem a estrutura de atividade proposta por Leontiev, propõem que a Atividade Orientadora de Ensino seja tomada como um modo geral de organização da atividade pedagógica, compreendida como uma unidade entre a atividade de ensino, realizada pelo professor, e a atividade de aprendizagem da criança, uma vez que essa se constitui a partir de “uma necessidade (apropriação da cultura), um motivo real (apropriação do conhecimento historicamente acumulado), objetivos (ensinar e aprender) e propõe ações que considerem as condições objetivas da instituição escolar” (p. 217).

Os fundamentos teórico-metodológicos da AOE, cujos pressupostos estão ancorados na teoria histórico-cultural e na teoria da atividade, são indicadores de um modo de organização do ensino para que a escola cumpra sua função principal, que é possibilitar a apropriação dos conhecimentos teóricos pelos estudantes e o desenvolvimento de suas personalidades. Assim, a AOE, como mediação, é instrumento do professor para realizar e compreender seu objeto: o ensino de conceitos. E é instrumento do estudante que age rumo à apropriação de conhecimentos teóricos a serem objetivados pela AOE. Desse modo, a AOE tem as características de fundamento para o ensino e é também fonte de pesquisa sobre o ensino. Portanto, trabalhadores da educação escolar que atuam nessas esferas podem usar tais fundamentos para identificar motivos, necessidades, ações desencadeadoras e sentidos atribuídos pelos sujeitos no processo de ensino (Moura, 2001, p. 227).

Guiado por tais pressupostos, o Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Atividade Pedagógica (Gepape) tem se debruçado no estudo da atividade pedagógica, de modo a revelar como essa se relaciona com a estrutura da atividade humana, na dimensão da atividade que promove o desenvolvimento humano.

Ao considerar o conhecimento como produção humana, decorrente de um movimento lógico e histórico de formação de conceitos, o professor, como sujeito da atividade de ensino, pode criar situações desencadeadoras de aprendizagem com a clara intencionalidade de promover as condições pedagógicas para que a criança entre em atividade de estudo, objetivando a apropriação de conhecimentos teóricos, constituintes de um projeto político-pedagógico de formação das potencialidades humanas.

A AOE, portanto, se apresenta como mediação entre o significado social e o sentido pessoal; entre a objetivação e a apropriação; entre o conceito científico e o conteúdo escolar. Por que isso se torna possível? Porque na sua dimensão executora, em consonância com a de direção, a AOE reconstitui o objeto da atividade humana em atividade de ensino e, nessa reconstituição, recupera a atividade produtiva do conhecimento – a experiência social da humanidade –, processo e produto.

De igual modo, a situação social de desenvolvimento é intencionalmente considerada na AOE, uma vez que são organizados momentos pedagógicos para que as crianças possam estabelecer relações entre si, entre adultos, entre artefatos culturais imateriais e materiais, entre eles e conhecimentos, valores, que podem desencadear a vivência de emoções, sentimentos e afetos, mobilizando-as a entrar em atividade afetiva e efetivamente e promover o desenvolvimento.

Al inicio de cada período de edad la relación que se establece entre el niño e el entorno que le rodea, sobre todo el social, es totalmente peculiar, específica, única e irrepetible para esta edad. Denominamos esa relación como situación social de desarrollo en dicha edad. La situación social de desarrollo es el punto de partida para todos los cambios dinámicos que se producen en el desarrollo durante el período de cada edad. Determina plenamente y por entero las formas y la trayectoria que permiten al niño adquirir nuevas propiedades de la personalidad, ya que la realidad social es la verdadera fuente del desarrollo, la posibilidad de que lo social se transforme en individual (Vygotsky, 1996, p. 264).

É preciso, pois, que se considerem esses pressupostos vigotiskianos na atividade pedagógica, para promover uma aprendizagem que possibilite, na apropriação de conceitos teóricos, a vivência de situações que mobilizem os estudantes em conformidade com os processos históricos humanos de produção de conhecimento. Tal como no desenvolvimento histórico e social, a situação desencadeadora de aprendizagem visa colocar a criança em tensão criativa, à semelhança daqueles que a vivenciaram, ao resolver seus problemas autênticos, gerados pelas necessidades de ordem prática ou subjetiva. Essas situações desencadeadoras de aprendizagem podem propor um problema capaz de mobilizar o indivíduo ou o coletivo para solucioná-lo.

Essa consciência do problema é que permite a entrada do sujeito em atividade de estudo, que exige dele ações coordenadas rumo ao objetivo conscientizado. E nisso se assemelha ao modo como o ser humano, via de regra, busca resolver problemas com que se depara na vida em sociedade: a criação do plano ideal, a execução de ações com instrumentos adequados para a concretização do idealizado e, por fim, a objetivação do plano, o que lhe dá a possibilidade de avaliar se ele tem sustentação lógica ou se está adequado do ponto de vista da realidade objetiva. Em nossas atividades de pesquisa ou de ensino temos utilizado como situações desencadeadoras de aprendizagem: o jogo pedagógico (Moura,1996b); as situações emergentes do cotidiano e a história virtual do conceito (Moura, 1996a, 1996b, 2001; Moura et al., 2010). Essas situações desencadeadoras de aprendizagem têm em comum a possibilidade de conter potencialmente o problema gerador da tensão que coloca os sujeitos em atividade. No caso da educação escolar, a situação desencadeadora de aprendizagem visa, necessariamente, à apropriação de conhecimentos considerados relevantes do ponto de vista social, para que o sujeito esteja munido com ferramentas teóricas, metodológicas e éticas que lhe proporcionem a participação de modo pleno na comunidade à qual pertence.

A história virtual do conceito pode ser um significativo instrumento nesse sentido, uma vez que se apresenta como situação desencadeadora de aprendizagem proposta às crianças como um problema a ser resolvido coletivamente, cujas formas de solução e resultados requerem a participação ativa dos sujeitos envolvidos na atividade, tanto o professor como o estudante. Nessa história virtual são apresentadas

situações-problema colocadas por personagens de histórias infantis, lendas ou da própria história da Matemática, como desencadeadoras do pensamento da criança, de forma a envolvê-la na construção de soluções que fazem parte do contexto da história. Dessa forma, contar, realizar cálculos, registrá-los poderá tornar-se para ela uma necessidade real (Moura, 1996a, p. 20).

Nesse movimento, a apropriação e o desenvolvimento da linguagem em diferentes níveis se colocam como uma necessidade impulsionadora de ações em direção ao objeto de conhecimento, que também se almeja que seja apropriado pelas novas gerações, como uma legítima herança cultural. A história virtual do conceito, dessa forma, também se constitui em relevante elemento do processo de formação do professor, pois, ao ter que criar a situação que contenha o núcleo de um conceito (Davídov & Markova, 1988), coloca o professor em atividade de estudo, em busca de histórias virtuais de conceitos. Virtual porque contém problemas semelhantes àqueles vividos historicamente pelos seres humanos em suas lidas incessantes, em busca do aprimoramento dos meios de trabalho ou de compreensão dos fenômenos da natureza.

A seguir, destacamos um exemplo de uma História Virtual intitulada “Shantal e Mira” [2] . Observemos que, para a sua formulação, o professor busca na história do conceito “sistema de numeração” uma situação desencadeadora de aprendizagem capaz de mobilizar os sujeitos a realizar ações que possibilitem a apropriação do que podemos chamar de um sistema de conceitos em que os nexos conceituais são elementos de formação do pensamento teórico do estudante (Davídov & Markova, 1988). É claro que, nesse modo de formular uma situação desencadeadora de aprendizagem, importa muito a formação do professor, pois, ao ser socializada em coletivos que visam às suas criações, tal situação é submetida às várias contribuições dos colegas que, desse modo, também passam de um nível a outro em sua formação. E mais, na interação com os estudantes surgem inesperados (Caraça, 1998) que desencadeiam, por um processo de análise e síntese, uma nova compreensão da atividade e dão a ela uma melhor qualidade ao ser colocada em prática novamente.

A história virtual de Shantal e Mira como uma situação desencadeadora de aprendizagem é uma das ações da Atividade Orientadora de Ensino, que é muito mais que uma situação desencadeadora de aprendizagem: ela é o conjunto de ações e operações que revelam princípios e práticas, que envolvem relações entre sujeitos na apropriação de significados sociais e produção de sentidos pessoais. É mediação entre a atividade para o ensino, plano ideal do professor, e a atividade de ensino, a efetivação desse plano idealmente elaborado, em que a experiência social da humanidade, objetivada no conhecimento humano, é subjetivada no sujeito, tanto pelos professores como pelos estudantes.

Eis a história de Shantal e Mira:

Esta é a história de duas amigas: Shantal e Mira. Elas eram filhas de pastores de ovelhas, brincavam sempre juntas e quando necessário ajudavam seus pais no trato com o rebanho. Certo dia, quando seus pais, que também eram amigos, voltavam do pasto com todo o rebanho, as amigas ficaram a observar que os pastores contavam os animais usando um instrumento com três hastes, nas quais iam colocando sementes perfuradas, enquanto cada animal entrava para o curral. O pai de Shantal contou que esse instrumento era para marcar a quantidade de ovelhas.

Shantal e Mira viram as seguintes marcações nos ábacos de seus pais (apresentar dois ábacos com representação de quantidades diferentes entre si) e ficaram se perguntando qual família tinha mais ovelhas.

Shantal e Mira quando viram os ábacos de seus pais com o final das contagens que haviam feito, observaram que no ábaco do pai de Shantal tinha, olhando da direita para a esquerda, duas argolas na primeira haste e duas na segunda. Já o ábaco do pai de Mira estava com nove argolas na primeira haste e uma na segunda. Ficaram intrigadas com estas representações e se perguntaram: qual das duas famílias tem mais ovelhas?

A partir da identificação de que um mesmo instrumento foi utilizado para registrar quantidades diferentes, pergunta-se: Como isso é possível? Como podemos ajudar as meninas a saberem quem possuía mais e quem possuía menos ovelhas?

Novamente fica evidente que se concebe a criança como um ser capaz de criar formas e meios de resolução de problemas a partir de situações com as quais, guardadas as proporções, a humanidade já se deparou, e, por isso, constitui uma história virtual de um conceito. Como representar o movimento das quantidades, utilizando ferramentas que possam fixá-lo? Como comunicar esse movimento? Davídov (1988b), ao apoiar-se nas contribuições de Leontiev, afirma que a “reprodução de capacidades, da atividade com ferramentas e com os conhecimentos, pressupõe que ‘a criança deve realizar, em relação com elas, uma atividade prática ou cognitiva que seja proporcional (adequada) (embora certamente não idêntica) à atividade humana encarnada nelas’” [ênfase no original] (p. 27).

A criação do ábaco possibilitou expandir a capacidade humana na produção material e imaterial de sua existência. Nele estão cristalizados os principais elementos do sistema decimal de numeração, como o valor posicional, a base, a potência, que permitiram ao ser humano sofisticar as forças produtivas, ultrapassar as esferas da atividade comercial e criar campos de atuação humana nunca vistos antes na história. No âmbito da atividade de ensino, organizar ações com a intencionalidade de que tal instrumento seja apropriado permite também às novas gerações a formação e o desenvolvimento de capacidades especificamente humanas.

Nesse sentido, fica evidente a importância de orientar a aprendizagem da criança por meio da atividade de ensino claramente intencionada para o seu desenvolvimento psíquico. Assim, para Davídov (1988a), é necessário compreender a atividade da criança, por uma parte, como

surgiendo y formándose en el proceso de educación y enseñanza y, por otra parte, se presenta en el contexto de la historia de la infancia misma, determinada por las tareas socio-económicas de la sociedad y por las finalidades y posibilidades de la educación y enseñanza que a ellas corresponden. Con estas premisas teóricas la consideración integral del carácter y de las particularidades de la actividad propia del niño no aparece como contraposición entre el desarrollo y la educación, sino como introducción, en el proceso pedagógico, de la condición más importante para la realización de sus finalidades; en este caso, según las palabras de S. Rubinstein, el proceso pedagógico, como actividad del educador, forma la personalidad infantil en desarrollo en la medida en que el pedagogo dirige la actividad del pequeño y no la substituye (p. 58).

É premissa da Atividade Orientadora de Ensino agir intencionalmente, organizando o ensino para que a criança desenvolva atividades que objetivem a apropriação de um conceito a partir do respeito a sua condição de sujeito capaz de aprender, de estabelecer nexos, mobilizando afetos e emoções, que podem desencadear ações em direção ao objeto que se quer apropriado. Ao organizarmos o ensino nessa perspectiva, seja em situação de estágio, de projeto de pesquisa, de sala de aula, frequentemente observamos de que modo isso se concretiza. A experiência que temos é que crianças em outros momentos no cotidiano educacional consideradas “problemas”, por não se engajarem nas atividades propostas, quando convidadas a ajudar Mira e Shantal, foram as primeiras a elaborar hipóteses sobre o significado social do ábaco e suas características para o controle do movimento das quantidades. Validadas suas hipóteses pelos professores, tais crianças demonstraram ser capazes de aprender um novo modo de operar com os números e de ensinar aos outros. Inicialmente operando com a mediação do ábaco, manipulando as representações objetais do número, explicando como era possível quatro “pedrinhas” equivalerem a 22 ovelhas e 10 “pedrinhas” a 19 ovelhas, respectivamente. E, posteriormente, construindo seus próprios ábacos, os estudantes puderam imaginar e representar diversas quantidades aleatórias. Tornaram-se também capazes de ler numerais indo-arábicos, representálos no ábaco e, após vários momentos de composição e decomposição de numerais, passaram a registrar os movimentos de adição com o auxílio de figuras. Já outras crianças também foram capazes de elaborar cartas endereçadas às duas meninas, personagens da história virtual, explicando as características tanto do instrumento utilizado quanto do sistema de numeral decimal, exercitando a produção da síntese do conceito e a função social da escrita.

Por fim, um importante momento pedagógico, ao se considerar o movimento lógico e histórico do conceito: faz-se necessário produzir coletivamente a síntese para a organização do ensino promotora de aprendizagem e desenvolvimento humano – neste caso, o conhecimento de que, com apenas dez signos, a humanidade conseguiu representar a quantidade que quis, bem como controlar os mais variados movimentos das quantidades nas mais diversas condições sociais – possibilitado pelo valor posicional, pela potência, pelo caráter operatório do zero, entre outras características do sistema de numeração decimal. E, portanto, todos também têm o direito de conhecer e se apropriar desse sistema de numeração, de modo consciente, como uma criação humana, na lida com grandezas discretas, e como um modo de se tornar humano.

Aqui defendemos uma das tendências de aprendizagem mencionadas anteriormente por Lanner de Moura (2007), ou seja, iniciar pelo respeito à criança, agir intencionalmente com ela, para que se torne cada vez mais capaz de conhecer, atuar e transformar seu agir no mundo. E seja capaz de realizar uma síntese coletiva. Esse é o modo de se fazer humano pelo ensino, um ensino que promove o desenvolvimento e a personalidade humana.

Vigotski (2010), ao afirmar que o conceito carrega a história da sua criação, nos dá relevante contribuição para a organização do ensino, capaz de colocar os sujeitos da atividade pedagógica em processo que possa revelar seu movimento lógico-histórico, de como a necessidade humana que o produziu na solução de problemas objetivos também gerou a subjetividade e o modo de o representar. Em outras palavras, o processo de significação da atividade humana que produz o objeto é que cria o conceito que o representa por palavras, em outras situações em que ele se faz necessário. Na Atividade Orientadora de Ensino, os sujeitos estão em atividade de apropriação de conceitos e, sendo assim, estão em processo de significação das atividades humanas que os produziram.

Assim, compreender o conhecimento matemático como a unidade entre a dimensão lógica e histórica dos conceitos, proposta por Caraça (1998), significa compreendêlo como produção humana. Rubinstein (1973), ao discutir como os princípios do materialismo histórico-dialético se concretizam na atividade de estudo, defende que

a didática deve elaborar adequadamente a matéria de aprendizagem para uma melhor apropriação, garantindo assim a apropriação de uma determinada matéria, de um determinado objecto [ênfase no original]. Este objecto possui a sua própria lógica objectiva, que não se pode impunemente descuidar. O “lógico”, que progressivamente se vai formando no processo de evolução histórica do conhecimento, é também o comum que se relaciona tanto a evolução histórica do conhecimento como o processo do estudo entre si. E é aí que se assenta a sua unidade. Na evolução histórica do conhecimento percorreu-se um determinado caminho para elaborar este “lógico”, cujo caminho reflecte a lógica do objecto de acordo com as condições concretas da evolução histórica (p. 135).

Assumir a dimensão lógico-histórica do conhecimento matemático pressupõe, na perspectiva do ensino que promove o desenvolvimento, organizar o ensino de forma que a experiência social da humanidade, objetivada nas significações aritméticas, algébricas e geométricas, possa ser apropriada pelo estudante. Como Moura (2007) assinala, a matemática, como uma ferramenta simbólica, foi criada por homens e mulheres para satisfazer, inicialmente, necessidades instrumentais e integrativas, como uma resposta à necessidade humana de controlar grandezas; nos conceitos matemáticos está objetivada a experiência social da humanidade. Considerar a perspectiva lógico-histórica na organização do ensino de matemática significa superar uma perspectiva utilitarista do conceito, marcada, sobretudo, pelo seu aspecto operacional, para considerar o processo humano de criação. Isto se materializa pela situação desencadeadora de aprendizagem, ação nuclear da Atividade Orientadora de Ensino.

Na situação desencadeadora de aprendizagem, enfatizamos, se reconstitui a necessidade social de produção do conhecimento, de tal modo que o significado social do conhecimento se consolida em conhecimento pessoalmente significativo, como propôs Rubinstein (1973). Na situação desencadeadora – indica Nascimento (2014) – o objeto da atividade de ensino reproduz as relações essenciais do objeto da atividade humana.

Nesse sentido, a Atividade Orientadora de Ensino passa, necessariamente, pela unidade conteúdo e forma. O conteúdo, as objetivações humanas, é também a forma; e a forma, a reconstituição da experiência social da humanidade nas situações desencadeadoras de aprendizagem, é, igualmente, o conteúdo.

O ensino e a aprendizagem, como modo geral de formação do humano, ao se constituírem na história social dos homens como ações intencionais, puderam ser idealizados e objetivados à semelhança do modo geral do homem se fazer humano: pelo jogo, pelo estudo, pelo trabalho, em atividade. Como no trabalho, segundo a acepção marxiana, na atividade pedagógica há uma permanente possibilidade de melhorar a sua qualidade, pela aprendizagem constante que se dá em um processo de análise e síntese das ações e operações dos sujeitos que a realizam desde o plano ideal até a sua objetivação. A Atividade Orientadora de Ensino, para nós, tem sido esta possibilidade de tornar a atividade pedagógica o modo geral de formar-se e formar na dinâmica da educação escolar.

Referências

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[1]Há um clássico do cinema do início da década La Guerre du Feu, traduzido em português por A guerra do fogo, dirigido por Jean-Jacques Annaud, que apresenta como enredo a saga de tribos primitivas na luta pela posse e pelo domínio da técnica de produção do fogo.

[2]História criada na Oficina Pedagógica de Matemática, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 1996.