Os acontecimentos políticos recentes no Brasil e na própria América Latina têm deixado aturdidos os campos da pesquisa sobre os movimentos sociais e sobre os engajamentos militantes. As Jornadas de 2013 parecem ter aberto uma verdadeira caixa de Pandora de protestos e movimentos. Há uma sequência desafiadora de fatos que, após 2013, pareceram pender bem mais à direita, ao campo conservador, liberal-conservador e até mesmo neofascista, incluindo um crescente sentimento antipartido – principalmente, antipetista (contra o Partido dos Trabalhadores - PT) -, a ascensão de movimentos e organizações de direita, manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, o próprio impeachment de Dilma, a ascensão e a vitória do candidato da extrema-direita, em meio a um crescente esgarçamento da democracia e a profusão de fake news e robôs nas redes sociais da Internet.
Porém, o campo progressista não deixou de se movimentar e resistir, tanto na sobrevida do campo democrático popular representado pelo PT, quanto na resistência criativa de setores juvenis do campo autonomista e do campo socialista crítico ao PT, assim como em protestos que deram continuidade ao legado progressista das Jornadas de 2013 – como as manifestações contra os megaeventos esportivos, a onda de greves de trabalhadoras e trabalhadores do “precariado”, as ocupações estudantis de 2015 e 2016, a reação à candidatura de extrema-direita no “Ele não!” em setembro de 2018, os protestos contra os cortes na educação superior em maio de 2019 e, mesmo em meio à pandemia do Covid-19, protestos antifascistas em 2020 e manifestações de repúdio ao chefe do executivo federal em 2021.
Finalmente, temos assistido a um conjunto de fenômenos políticos e protestos que não parecem caber bem na díade esquerda versus direita, em especial as revoltas ambíguas, nos termos de Rosana Pinheiro-Machado[1]: parte importante de manifestantes e protestos durante as Jornadas de 2013, em especial na sua fase massiva; os rolezinhos de jovens das periferias no final de 2013 e início de 2014; e a “revolta da caçamba” – greve de caminhoneiros – em 2018.
O presente dossiê, “As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política”, que temos a honra de apresentar, não pretende, nem poderia, dar conta de resolver tantos enigmas. Mas, a partir de um olhar aguçado sobre as práticas formativas em meio às lutas, protestos e o cotidiano da militância política, esperamos oferecer algumas chaves para a compreensão de tantas questões desafiadoras. Os artigos aqui reunidos enfrentam estes desafios principalmente por meio de pesquisas empíricas relativas à atualidade, mas também o fazem na forma de pesquisas empíricas que avaliam processos mais prolongados de socialização política, assim como, finalmente, estudos teóricos e sínteses bibliográficas. Trazem um amplo conjunto de temas específicos e sujeitos de pesquisa, assim como referências teóricas e categorias de análise. Tal proficuidade e diversidade nos parecem salutares e mesmo necessárias em tempos de bifurcação da história política.
Sim, há uma concentração temática dos artigos no tópico juventude e participação política, destacando-se o movimento das ocupações estudantis no Brasil em 2015 e 2016. Temos 10 artigos que abordam este tópico. Metade, ou seja, 5 artigos, tratam especificamente das ocupações de instituições educacionais públicas em Goiânia[2], Baixada Fluminense/RJ[3], Francisco Beltrão/PR[4], Chapecó/SC[5] e no estado do Paraná[6], sempre a partir de pesquisas de campo, normalmente por meio de entrevistas com jovens que ocuparam escolas e universidades. Os outros 5 artigos deste tópico têm maior abertura temática, ajudando a compreender os diversos caminhos que a relação entre jovens e política tem percorrido na atualidade, quase todos via pesquisa empírica, ao tratar de: coletivos juvenis nas periferias paulistanas[7]; a participação de jovens em organizações liberais em Campina Grande-PB[8]; estudantes secundaristas com opiniões políticas conservadoras no Rio Grande do Sul[9]; e a forma como estudantes do Ensino Médio na Argentina têm enfrentado os desafios da pandemia do Covid-19[10]. Um artigo de síntese da produção bibliográfica sobre participação política e engajamento de jovens completa este primeiro grande tópico do dossiê[11].
Outro conjunto de artigos versa sobre o que podemos denominar de movimentos urbanos – incluindo o movimento sindical, a luta pela moradia e a luta pela mobilidade urbana. São 4 artigos: dois deles tratam do movimento sindical implicado em uma série de aprendizados e saberes mais amplos, ao focar a história de ex-metalúrgicos do ABC paulista[12] e de suas famílias[13]. Outro foca as trajetórias e as militâncias de mulheres no Movimento dos Trabalhadores Sem-teto (MTST)[14]. Enfim, temos um artigo que trata da militância no coletivo Tarifa Zero, de Belo Horizonte-MG[15].
Finalmente, há um artigo de caráter teórico, tratando da relação entre comportamento político e conscientização, com base no marxismo[16]. Na verdade, o já citado artigo sobre a revisão bibliográfica relativa à participação política e engajamento de jovens também poderia caber aqui. Ambos os artigos nos alertam sobre a importância de cotejar nossas pesquisas de campo – tão preocupadas com o atual e o emergente – com o que já têm sido produzido, refletido e teorizado no campo da participação e formação política.
Os artigos fazem uso de diversos referenciais teóricos, como anunciado. Parte relevante deles fez uso da mais clássica, mas ainda necessária, discussão a respeito da socialização política. Mas a própria socialização política foi abordada de forma inventiva e aberta, cotejando as influências dos processos formativos no interior das instituições socializadoras – em destaque, família e escola – com o contexto sociopolítico e as experiências de participação.
Esta abertura no uso da análise da socialização política tem sido importante para compreender melhor as descontinuidades ou os desenvolvimentos inesperados do comportamento político das novas gerações – sem contar as alterações vertiginosas da opinião política das próprias gerações adultas. No dossiê, destaca-se o comportamento político de adolescentes do Ensino Médio, tanto no movimento das ocupações – o mais largamente tratado aqui –, quanto na adesão a valores liberais e conservadores. Entretanto, o inesperado ou o não trivial na participação política foi abordado também por outros conceitos, categorias e referenciais. Alguns são igualmente clássicos, como a experiência de classe segundo E. P. Thompson, a memória por Walter Benjamin, a geração segundo Mannheim e a consciência segundo o marxismo, enquanto outros são mais contemporâneas, como a experiência em Larrosa e a sociologia das emoções.
Metodologicamente, como dito, 13 artigos são fruto de investigações empíricas, enquanto 2 são sínteses bibliográficas. Sobre as pesquisas empíricas, parte delas teve de se adequar ao estado de calamidade sanitária criado pelo coronavírus e a irresponsabilidade de governos e diversos setores da sociedade civil. Adaptações diversas foram necessárias, como entrevistas de forma remota ou a passagem da observação participante à netnografia. Na verdade, a própria pandemia foi o tema principal de um dos artigos – sobre os estudantes de ensino médio na Argentina – e o tema secundário de outro – sobre os coletivos da periferia paulistana.
Do ponto de vista da abrangência territorial, afora o artigo teórico sobre consciência e comportamento político segundo o marxismo, apenas um artigo não tratou de casos empíricos no Brasil – o artigo sobre estudantes do Ensino Médio na Argentina. Quanto aos demais, tenderam a se concentrar, como tende a ser comum na produção científica brasileira, em casos do Sudeste (6 artigos) e do Sul (3). Entretanto, fizeram-se representar o Centro-Oeste e o Nordeste, cada qual com um artigo.
Esta distribuição territorial tendeu a se replicar na distribuição institucional. Das autorias, contando autoras/autores e coautoras/coautores, 3 foram do exterior – duas da Argentina e um de Portugal. Quanto às do Brasil, 14 autorias foram de instituições do Sudeste, 7 do Sul, 4 do Centro-Oeste e 2 do Nordeste. Uma das autorias é vinculada a uma instituição da sociedade civil sem fins lucrativos, o Instituto Vladimir Herzog, enquanto todas as outras se vinculam a universidades públicas, incluindo as três do exterior (Instituto Universitário de Lisboa, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e Universidad Nacional de La Plata).
Ao final, gostaríamos de reforçar as contribuições diversas deste dossiê. Primeiro, teoricamente, em esforço de recapitulação e renovação de categorias, conceitos e referências – inclusive nos artigos empíricos –, em análises e sínteses que recuperam campos clássicos das Ciências Humanas – como o marxismo e as teorias da socialização política –, bem como fazem o balanço de produções sobre o comportamento político e as formas de engajamento. Segundo, pelo esforço de analisar dados colhidos empiricamente sobre trajetórias políticas e a influência de participação em movimentos sociais na vida atual de pessoas outrora engajadas e de suas famílias, implicando em um olhar mais alargado no tempo.
Supostamente em contraponto, mas, na verdade, como seu complemento, temos pesquisas empíricas sobre adolescentes e jovens nos dias atuais – via memória de participação em protestos sociais progressistas, ou via relatos sobre a adesão a ideologias ou organizações de direita, ou ainda via o esforço pela sobrevivência em coletivos ou na resposta aos desafios da pandemia. Elas são, como já foi dito, a grande maioria das investigações aqui relatadas. Os pés e os olhos que se fincam nos protestos e engajamentos contemporâneos apoiam ambas as contribuições citadas anteriormente: teorias e categorias clássicas e contemporâneas são cotejadas aos dados empíricos, quase sempre de modo não-ortodoxo, revitalizando as clássicas e testando as contemporâneas; iluminam-se novas experiências políticas e formativas na atualidade, oferecendo-se bases e categorias que serão importantes para acompanhar as trajetórias de tais jovens, tanto quanto para compreender possíveis reenquadramentos dos protestos políticos da população brasileira e latino-americana.
Fica o convite à leitora e ao leitor para conhecer melhor os artigos deste dossiê, organizado com o carinho de quem deseja compartilhar pesquisas de jovens e experientes pesquisadoras e pesquisadores, assim como com a esperança de que o conhecimento sobre os modos como as pessoas têm se formado – e até de-formado – politicamente na atualidade possa orientar lutas pela defesa das tão ameaçadas democracias na América Latina.