Introdução
A ampliação do acesso e a diversificação do perfil dos estudantes no nível superior de ensino no Brasil são hoje uma realidade para as Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). A expansão e a diversidade ganharam maior expressão com o estabelecimento do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o Reuni, em abril de 2007, instituído pelo Decreto Federal n.º 6.096, e posteriormente, com a Lei de Cotas - Lei n.º 12.711, de 29/08/2012. De acordo com o decreto do Reuni, a meta do programa foi a de elevar gradualmente tanto a taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais (para 90%), quanto a relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor (para 18 alunos por docente), ao final de cinco anos, a contar do início de cada plano (BRASIL, 2007, Art.1º., parág.1º). Além disso, estabeleceu as seguintes diretrizes:
I - Redução das taxas de evasão, ocupação de vagas ociosas e aumento de vagas de ingresso, especialmente no período noturno;
II - Ampliação da mobilidade estudantil, com a implantação de regimes curriculares e sistemas de títulos que possibilitem a construção de itinerários formativos, mediante o aproveitamento de créditos e a circulação de estudantes entre instituições, cursos e programas de educação superior;
III - Revisão da estrutura acadêmica, com reorganização dos cursos de graduação e atualização de metodologias de ensino-aprendizagem, buscando a constante elevação da qualidade;
IV - Diversificação das modalidades de graduação, preferencialmente não voltadas à profissionalização precoce e especializada;
V - Ampliação de políticas de inclusão e assistência estudantil e
VI - Articulação da graduação com a pós-graduação e da educação superior com a educação básica. (BRASIL, 2007, Art.2º).
A partir do ano letivo de 2013, todas as Ifes passaram a reservar um percentual de suas vagas de ingresso para estudantes provenientes de escolas públicas, que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas (PPI) e que tenham renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio, conforme estabelecido na Lei de Cotas. Ambas as iniciativas proporcionaram às Ifes condições adicionais para responder aos anseios da sociedade brasileira de superar a histórica desigualdade de acesso aos conhecimentos e à formação que oferecem.
Alguns dados nacionais mostram os efeitos dessas medidas, entre eles, a evolução das matrículas na rede federal de ensino superior. Abaixo, apresenta-se a variação no número de matrículas no ensino superior presencial, por dependência administrativa, entre os anos de 2007 e 2016:
Na sequência, destacam-se os mesmos dados nacionais sobre a matrícula, porém organizados em tabela de base 100, permitindo evidenciar a variação das matrículas em termos proporcionais, tendo como ponto inicial o ano de 2007.
Ano | Total | Privada | Pública | Federal |
---|---|---|---|---|
2007 | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 |
2008 | 104,1 | 104,6 | 102,7 | 104,5 |
2009 | 104,8 | 103,4 | 108,9 | 122,3 |
2010 | 111,5 | 109,3 | 117,8 | 135,5 |
2011 | 117,8 | 114,1 | 128,6 | 150,6 |
2012 | 121,4 | 115,6 | 138,3 | 160,1 |
2013 | 126,1 | 120,2 | 143,3 | 169,9 |
2014 | 132,9 | 128,2 | 146,8 | 176,0 |
2015 | 135,9 | 132,2 | 147,0 | 184,1 |
2016 | 134,3 | 128,8 | 150,5 | 191,0 |
Fonte: MEC/INEP, 2000-2016.
Tanto o gráfico quanto a tabela mostram a tendência geral de crescimento das matrículas do ensino superior presencial por dependência administrativa na série histórica. Na tabela 1, a coluna Total mostra que houve aumento de mais de 34% no volume de matrículas no período, sendo que em 2007 o ensino superior presencial contou com 4.880.381 matriculados e, em 2016, esse número foi de 6.554.283. O pico de crescimento, entretanto, ocorreu no ano de 2015 e a perda registrada no ano seguinte foi de mais de 79 mil matrículas.
Apesar de serem significativamente mais volumosas ao longo da série histórica, as matrículas da rede privada cresceram comparativamente menos, uma evolução inferior a 29% no período. Em 2007, havia na rede privada 3.639.413 estudantes, o que equivalia a 75% do total de matrículas no ensino superior presencial brasileiro, e, em 2016, apresentou 4.686.806 matrículas, contribuindo com percentual menor na totalidade, com 71,5%. Também na rede privada, nota-se que o pico de crescimento foi o ano de 2015, havendo uma queda significativa, no ano seguinte, de quase 123 mil matrículas.
No que se refere à rede pública, nota-se um crescimento constante e proporcionalmente superior ao da rede privada, impulsionado pela política de expansão da rede federal. No total, a rede pública apresentou aumento de matrículas superior a 50% no período - em 2007, era um total de 1.240.968 matrículas, passando a contar em 2016 com 1.867.477 -, mas se considerada a rede federal isoladamente, nota-se que quase dobrou o volume de vagas, tendo o número de matrículas subido mais de 90% - em 2007, eram 615.542 e, em 2016, passaram a 1.175.650 matrículas.
Outro conjunto de informações que torna patente o efeito das medidas direcionadas à ampliação do acesso, com diversificação do perfil sociocultural e econômico dos estudantes na rede federal, é apresentado pela IV Pesquisa Nacional de Perfil dos Discentes das Instituições Federais de Ensino Superior, realizada pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace) em 2014. Abaixo, apresenta-se a tabela 2, com dados referentes à cor/raça/etnia, à renda bruta familiar e ao tipo de escola de ensino médio cursada pelos estudantes matriculados na rede federal de ensino superior nos anos de 2010 e 2014.
Cor/raça/etnia* | Renda familiar | Tipo de escola | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Ano | AM | BR | PR | PA | Ind | Out | Até 2 SM | Mais de 2 SM | Pública | Privada | Ambas |
2010 | 3,1 | 53,9 | 32,1 | 8,7 | 0,9 | 1,3 | 26,5 | 73,5 | |||
2014 | 2,3 | 45,7 | 37,7 | 9,8 | 0,6 | 3,8 | 36,6 | 63,4 | 60,2 | 31,5 | 8,3 |
Fonte: Andifes/Fonaprace, 2014.
* Legenda: AM - Amarela; BR - Branca; PR - Preta; PA - Parda; Ind - Indígena; Out - Outra.
A tabela evidencia que entre os anos de 2010 e 2014 houve nas Ifes um aumento no percentual de matrículas de estudantes pretos (5,6%) e pardos (0,9%), um aumento no percentual de matrículas de estudantes cuja renda bruta familiar é inferior a dois salários mínimos (10,1%) e um percentual elevado de matrículas de estudantes provenientes exclusivamente de escolas públicas de ensino médio em 2014 (60,2%), momento em que a Lei de Cotas ainda não havia atingido a reserva obrigatória de 50% das vagas aos egressos de escolas públicas.
Tendo em vista o contexto até aqui apresentado, o propósito do presente artigo é o de analisar o processo de implementação das políticas de expansão e de reserva de vagas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), buscando responder ao seguinte questionamento: o Reuni e a Lei de Cotas conseguiram ampliar na Unifesp a diversidade socioeconômica e cultural dos estudantes, contribuindo para superar a histórica estratificação que caracteriza o ensino superior público brasileiro?
O objetivo desta pesquisa é, portanto, realizar uma avaliação do processo de implementação das políticas, por meio da análise dos efeitos preliminares do Reuni e da Lei de Cotas na Unifesp. De acordo com pesquisadores da área (PIERANTONI & VIANNA, 2003; COSTA & CASTANHAR, 2003; FARIA, 2005; TREVISAN & BELLEN, 2008), a avaliação de processo de política pública considera sua execução e resultados parciais, indagando a efetividade da intervenção para, com isso, readequar objetivos e decisões e identificar novas demandas e desafios. Nesse sentido, a avaliação compõe integralmente o processo da política, e não apenas a fase final, e tem potencial formativo na medida em que produz conhecimento sobre o processo com o qual deve contribuir, auxiliando a gestão e o desenvolvimento da política.
Além da presente introdução, este artigo está estruturado em outras quatro partes. A primeira destina-se a apresentar o crescimento da Unifesp com a adesão ao Reuni e a política de reserva de vagas adotada pela instituição; a segunda faz alguns apontamentos sobre o método de tratamento dos dados levantados sobre o perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes, que serão analisados na terceira parte. Por fim, apresentam-se algumas considerações sobre o processo de implementação das políticas de expansão e de reserva de vagas na rede federal de ensino superior.
Reuni e cotas na Unifesp
Entre as universidades federais, a Unifesp foi uma das instituições que contribuíram de forma significativa para a expansão do número de cursos, carreiras e de vagas oferecidas e para a diversificação do perfil socioeconômico dos estudantes. Originada da Escola Paulista de Medicina, fundada em 1933, a Unifesp conta hoje com seis campi e oferece 52 cursos de graduação em diferentes áreas do conhecimento. Até 2004, a universidade apresentava um total aproximado de 1.350 estudantes matriculados ao ano, em cinco cursos de graduação, na cidade de São Paulo. A expansão promoveu a abertura de cinco novos campi nos municípios de Santos, Diadema, Guarulhos, Osasco e São José dos Campos.
O quadro a seguir mostra as carreiras oferecidas na instituição por campus, além dos respectivos anos de criação:
Campus | Cursos |
---|---|
Baixada Santista (2006) | Educação Física (2006), Fisioterapia (2006), Nutrição (2006), Psicologia (2006), Terapia Ocupacional (2006), Serviço Social (2009), Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia do Mar (2012), Engenharia Ambiental (2015) e Engenharia de Petróleo (2015) |
Diadema (2007) | Ciências Ambientais (2010), Ciências Biológicas (2007), Engenharia Química (2007), Farmácia (2007), Licenciatura em Ciências (2010), Química (2007) e Química Industrial (2009) |
Guarulhos (2007) | Filosofia Bacharelado e Licenciatura (2007), Ciências Sociais Bacharelado e Licenciatura (2007), História Bacharelado e Licenciatura (2007), Pedagogia (2007), História da Arte (2009), Letras-Português Bacharelado e Licenciatura (2009), Letras-Português/Espanhol Bacharelado e Licenciatura (2009), Letras-Português/Francês Bacharelado e Licenciatura (2009), Letras-Português/Inglês Bacharelado e Licenciatura (2009) |
São José dos Campos (2007) | Ciências da Computação (2007), Matemática Computacional (2009), Ciência e Tecnologia (2010), Engenharia Biomédica (2014), Engenharia da Computação (2014), Engenharia de Materiais (2014) e Biotecnologia (2015) |
Osasco (2011) | Administração (2011), Ciências Contábeis (2011), Ciências Econômicas (2011), Relações Internacionais (2011) e Ciências Atuariais (2013) |
São Paulo (1933) | Medicina (1933), Enfermagem (1939), Biomedicina (1966), Fonoaudiologia (1968), Tecnologia Oftálmica (2009), Tecnologia Radiológica (2009), Tecnologia em Informática em Saúde (2010) e Design Educacional (2017) |
Fonte: Pró-reitoria de Graduação da Unifesp, disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/prograd/, acesso em 02/04/2019.
De 2004 para cá, o número de alunos matriculados na Unifesp cresceu mais de 900%. Se naquele ano, havia cerca de 1.540 alunos matriculados na instituição, nos cinco cursos integrais existentes na área da saúde, em 2016 esse número se eleva para 12.240 matrículas, em cursos de diversas áreas do conhecimento, oferecidos em todos os turnos.
Antes da Lei de Cotas, uma política institucional de reserva de vagas para ingresso nos cursos de graduação já tinha sido adotada entre os anos de 2005 e 2012. Naquele período, foram reservadas 10% das vagas a estudantes provenientes de escolas públicas, autodeclarados pretos, pardos ou indígenas (PPI). Em 2005, as vagas dos cinco cursos existentes no campus São Paulo foram ampliadas em 10% a fim de receber estudantes com esse perfil, não havendo redução para o ingresso via sistema universal. Para os cursos criados após 2005, também foram reservadas 10% das vagas para o mesmo perfil.
A partir de 2013, a Unifesp passou a ampliar paulatinamente o percentual de vagas reservadas em acordo com o estabelecido na Lei de Cotas. No primeiro ano de vigência da norma, reservou 15% das vagas de ingresso, por curso e turno, para estudantes que tivessem feito todo o ensino médio em escolas públicas, combinando adicionalmente a esse perfil a situação de renda familiar - possuir até 1 e ½ salários mínimos (SM) per capita - e/ou a autodeclaração de cor/raça/etnia. Nos anos subsequentes, foram também reservadas vagas de ingresso, respeitando o mesmo perfil, a taxas de 25% e 37,5% respectivamente e, a partir do ingresso de 2016, a reserva totalizou 50% das vagas, o que permanece até o presente momento.
Vale lembrar que, no período de 2013 a 2016, o preenchimento das vagas reservadas para cor/raça/etnia ocorreu por meio de autodeclaração, conforme estabelecido na lei, e a quantidade de vagas respeitou a proporção de pretos, pardos e indígenas existente na população do estado de São Paulo. Segundo os dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a distribuição étnico-racial no estado é de 63,9% de brancos, 29,1% de pardos, 5,5% de pretos, 1,4% de amarelos e 0,1% de indígenas. Destaca-se também que para o ingresso na Unifesp o candidato é inicialmente classificado pela sua nota. Se obtiver posicionamento suficiente para ingresso via sistema universal é por meio dele convocado, mesmo tendo declarado ser candidato a uma vaga reservada.
Com o propósito de planejar e estabelecer políticas institucionais voltadas à permanência estudantil, a Unifesp estabeleceu em 2011 um sistema de coleta de informações sobre o perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes na universidade na forma de um questionário com cinco eixos. São eles: 1) dados gerais sobre o ingressante; 2) antecedentes escolares; 3) perfil socioeconômico; 4) moradia e mobilidade; e 5) saúde, lazer e informação. As informações são tratadas e divulgadas anualmente por meio da Comissão para o Estudo do Perfil dos Estudantes de Graduação (Cepeg), vinculada às Pró-Reitorias de Graduação e de Assuntos Estudantis, e é com base nesses dados que o presente artigo passa a mostrar as variações do perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes nos cursos de graduação, entre os anos de 2012 e 2016.
Nota sobre a organização dos dados
Para fins da análise das transformações no perfil socioeconômico e cultural dos discentes e com o objetivo de avaliar o processo de implementação da Lei de Cotas, serão priorizadas as informações em série histórica das características dos ingressantes relativas à cor/raça/etnia, à escolarização básica e à renda familiar (2012-2016). Para uma avaliação mais refinada do perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes, foi elaborado pela Cepeg um indicador que considerou a renda do grupo familiar de origem e a escolaridade dos genitores, em acordo com os critérios descritos e sistematizados na tabela a seguir.
Instrução formal dos pais | ||
---|---|---|
Situação econômica | Pai e mãe sem ensino superior | Pai e/ou mãe com ensino superior |
Até 3 salários mínimos (SM) | 1 | 3 |
+ de 3 salários mínimos (SM) | 2 | 4 |
Fonte: Unifesp, 2016a, p. 72.
Vale destacar que o indicador denominado de Índice de Vulnerabilidade Sociocultural (IVS) foi inspirado em metodologia elaborada anteriormente por Almeida e Ernica (2015). Para a definição do IVS, os ingressantes foram classificados em dois eixos: Instrução formal dos pais e Situação econômica. No primeiro eixo, os discentes foram separados em dois grupos: 1) de genitores sem diploma de ensino superior e 2) de ao menos um dos genitores com diploma de ensino superior. No eixo Situação econômica, os ingressantes foram igualmente separados em dois grupos: 1) os oriundos de grupos familiares com renda bruta igual ou inferior a 3 SM e 2) os oriundos de grupos familiares com renda bruta superior a 3 SM.
A interpretação do índice considera que quanto menor seu valor, maior é a vulnerabilidade sociocultural do estudante. Em outras palavras, índices baixos indicam maior vulnerabilidade.
Análise do perfil socioeconômico e cultural dos ingressantes na Unifesp
Visando mapear as alterações no perfil dos ingressantes ao longo do tempo a partir da expansão da universidade e da política de cotas, destacam-se a seguir as variações encontradas nas séries históricas relativas à cor/raça/etnia, escolarização básica e renda familiar, entre os anos de 2012 e 2016 na Unifesp.
Em relação ao perfil étnico-racial, quando se observa a série histórica, nota-se diminuição contínua no percentual de ingressantes autodeclarados brancos - eram 69,6% em 2012 e passaram a 58,8% em 2016, um decréscimo de 10,8% no período - e aumento continuado no percentual de estudantes autodeclarados pardos - em 2012 eram 19,3% e passaram a 25,8% em 2016, um acréscimo de 6,5% -, tendência observada também na pesquisa do Fonaprace (2014), mostrada anteriormente - com queda de 8,2% para autodeclarados brancos e crescimento de 5,6% entre os autodeclarados pardos, entre 2010 e 2014.
No gráfico abaixo, é possível acompanhar a evolução do percentual de ingressantes por cor/raça/etnia na Unifesp:
Quanto à distribuição étnico-racial dos ingressantes, é possível ainda destacar que, no geral, a Unifesp vem apresentando cada vez mais similaridade entre o perfil de seus estudantes e a população do estado de São Paulo. Essa comparação é muito relevante, se considerado que apenas 3,4% dos ingressantes de 2016 vieram de fora do estado (UNIFESP, 2016, p. 36). A tabela 4 mostra a distribuição para ingressantes e para o estado:
Brancos | Amarelos | Pardos | Pretos | Indígenas | Sem declaração | |
---|---|---|---|---|---|---|
Unifesp - autodeclaração de ingressantes 2016 | 58,8% | 4,6% | 25,8% | 7,6% | 0,1% | 3,1% |
Estado de SP - Censo 2010 | 63,9% | 1,4% | 29,1% | 5,5% | 0,1% |
Fontes: Unifesp, 2016b, p. 33 e Seade, disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/retratosdesp/view/index.php?indId=5&temaId=1&locId=1000 (acesso em: 10/04/2019)
Na comparação, constata-se que entre os ingressantes autodeclarados amarelos e negros na Unifesp, em 2016, o percentual é superior ao conjunto da população paulista (3,2% e 2,1% respectivamente). Já entre os autodeclarados brancos e pardos, o percentual é inferior, de 5,1% e 3,3% respectivamente. Com esse conjunto de dados e com a evolução histórica, é possível verificar que as políticas de expansão e de cotas têm permitido à Unifesp se aproximar da distribuição étnico-racial da populacional do estado.
No que toca à frequência por tipo de escolarização média, a série histórica também mostra alterações. Vale destacar o aumento de estudantes vindos exclusivamente do ensino público, que eram 43,1% em 2012 e passam a 55,0% em 2016, um aumento de 11,9%. Novamente, o perfil da Unifesp assemelha-se aos dados da pesquisa Fonaprace (2014), que informa serem mais de 60% os matriculados nas Ifes provenientes de escolas públicas de ensino médio.
No gráfico a seguir, é possível acompanhar a evolução do percentual de ingressantes por tipo de escolarização básica na Unifesp:
Embora exista um acréscimo progressivo de ingressantes oriundos da escola pública na instituição, ao se considerar a taxa de matrícula no ensino médio (EM) paulista por esfera administrativa, é possível notar que a Unifesp ainda está distante de reproduzir a realidade da população do estado: em 2016, 85,2% das matrículas no EM no estado de São Paulo foram realizadas em instituições públicas, conforme o Censo Escolar do MEC (MEC/INEP, 2016), e na Unifesp, entre os ingressantes de 2016, apenas 55,2% haviam cursado o EM integralmente na escola pública e outros 7,2% haviam cursado parcialmente, uma diferença significativa de, no mínimo, 30%. Esse fato revela a extrema importância das políticas de expansão e de cotas para minimizar a profunda desigualdade de acesso ao ES público de qualidade entre os jovens paulistas oriundos de trajetórias distintas de escolarização básica, ainda que as políticas isoladas se mostrem insuficientes para equalizar a oportunidade em vista das diferentes condições existentes entre os jovens.
Em termos de renda familiar, o perfil geral dos ingressantes mostrou relativa estabilidade entre os anos de 2012 e 2015 e uma mudança de tendência em 2016. Até 2015, quase a metade dos estudantes declarava vir de famílias com rendimentos totais de até a 5 SM: eram 47,5%, em 2012, e 48,0% em 2015. Já em 2016, esse percentual sobe para 56,8%, como se pode verificar no gráfico abaixo:
Para fins comparativos, apresentam-se a seguir os dados do Censo 2010, segundo a distribuição por faixa de renda nominal mensal no estado de São Paulo em domicílios particulares permanentes:
Rendimento em salários mínimos | % |
---|---|
Sem rendimento | 4.5 |
+ de 1/2 a 1 SM | 5.4 |
+ de 1 a 2 SM | 15.9 |
+ de 2 a 5 SM | 38.4 |
+ de 5 a 10 SM | 21.7 |
+ de 10 a 20 SM | 9.2 |
+ de 20 SM | 4.8 |
Fonte: IBGE, disponível em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=sp&tema=censodemog2010_rend (acesso em: 10/04/2019)
Ao compararmos a configuração da população do estado de São Paulo e o perfil de renda familiar dos ingressantes na Unifesp, em 2016, podemos detectar uma diferença significativa: se na Unifesp 42,5% dos alunos declararam vir de famílias com rendimentos totais superiores a 5 SM, no estado nota-se um percentual inferior de domicílios particulares permanentes que apresenta rendimento nominal mensal superior a 5 SM, são 35,7%, ou seja, em termos do perfil de renda, a instituição também ainda não conseguiu reproduzir em seu interior a mesma configuração da sociedade paulista. É preciso lembrar, no entanto, que quase dois dos ingressantes (63,0%) em 2016 declaram renda per capita de até 1 e ½ SM e 7,2% informaram já ter feito parte de algum programa social de transferência de renda, quadro relativamente distinto da histórica configuração populacional que vem frequentando as universidades públicas paulistas (UNIFESP, 2016b, p. 117).
Ainda no que se refere ao perfil de renda dos ingressantes em 2016, destaca-se variação acentuada de acordo com a carreira escolhida. Na faixa de renda mais alta, encontram-se carreiras como Medicina, em São Paulo, e Ciências Atuariais e Ciências Econômicas, em Osasco, todas oferecidas em cursos de período integral. A família desses ingressantes apresentam mediana superior a seis salários mínimos (UNIFESP, 2016b, p. 73 e 75). Embora parte importante dos ingressantes desses cursos apresente faixa de renda familiar alta, é possível verificar no gráfico 4 os efeitos da política de cotas para a modificação do perfil de renda estudantil, com dispersão descendente de valores de renda.
Na outra ponta, os cursos de Letras Português-Espanhol, Letras Português-Inglês, História da Arte e Pedagogia, em Guarulhos, e de Serviço Social, na Baixada Santista, apresentaram medianas de renda familiar próximas de 2 SM (UNIFESP, 2016b, p. 70 e 72). São todos cursos que funcionam em turno parcial no período noturno. Nota-se, portanto, que a oferta de cursos em tempo integral parece estabelecer, em si, uma divisão no acesso dos estudantes, marcada por extração de classe, por necessidade de trabalho e por outras responsabilidades que supõem ausência de suporte familiar, e ainda, possivelmente, por tornar inviável a própria intenção de muitos candidatos a concorrerem a essas vagas.
Na Unifesp, mais da metade dos ingressantes (51,3%) em 2016 vieram de grupos familiares em que nem pai e nem mãe haviam completado um curso superior. Em 2012, esse percentual foi praticamente o mesmo (51,2%). Em 2016, 1 a cada 4 ingressantes tinha pais sem formação universitária e família cuja renda era igual ou inferior a 3 SM; já em 2012 o percentual referente a essa relação foi um pouco inferior, de 17,6%, como é possível verificar na tabela abaixo:
Índice | Ano | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
2012 | 2015 | 2016 | ||||
N | % | N | % | N | % | |
1 | 338 | 17,6 | 567 | 20,6 | 706 | 25,5 |
2 | 647 | 33,6 | 782 | 28,4 | 713 | 25,8 |
3 | 103 | 5,3 | 199 | 7,3 | 229 | 8,3 |
4 | 836 | 43,5 | 1203 | 43,7 | 1116 | 10,4 |
Total | 1924 | 100 | 2751 | 100 | 2764 | 100 |
Fonte: Unifesp, 2016b, p. 86.
Quando a observação é feita por campus, os perfis da Baixada Santista, Osasco, São José dos Campos e São Paulo se aproximam. Nesses campi, menos de metade dos ingressantes estão nas duas faixas de maior vulnerabilidade do índice (faixas 1 e 2) e, embora inspire atenção, a proporção com maior nível de vulnerabilidade fica abaixo da média da Unifesp. É o campus Guarulhos que mais diverge desse padrão por registrar o maior percentual de ingressantes com o nível mais elevado de vulnerabilidade. Entre os ingressantes de Guarulhos em 2016, mais de um terço (ou 35,0%) declaram vir de famílias com renda de até 3 SM e sem genitores com ES completo (faixa 1). Outros 25,7% (mais de ¼) têm pais com a mesma característica, mas vêm de famílias com renda superior a 3 SM (faixa 2). Ainda que em menor proporção, o campus Diadema também tem maioria de ingressantes nas duas faixas de maior vulnerabilidade: são 27,8% na faixa 1 do indicador e 28,0% na faixa 2. Além disso, nota-se no gráfico 5 que a vulnerabilidade não se distribui uniformemente entre os diferentes grupos de cor/raça/etnia:
Pardos e pretos que iniciaram a graduação em 2016 apresentam maior vulnerabilidade do que os outros grupos. Entre os pardos, 68,3% dos ingressantes têm pais sem instrução superior; entre os pretos, esse índice é de 67,1%. Nesses grupos, portanto, 1 em cada 3 estudantes se encontra na faixa 2 de vulnerabilidade e 1 em cada 3, na categoria mais extrema de vulnerabilidade. No que se refere às categorias de maior vulnerabilidade, amarelos (30,7%) e brancos (43,4%) ficam abaixo da média institucional (51,4%).
Os dados do IVS organizados e apresentados por cor/raça/etnia mostram claramente a importância da expansão e da Lei de Cotas para fazer frente à tendência persistente de exclusão circular que marca historicamente o ingresso nas instituições públicas de ES, ainda que tais políticas não sejam suficientes para superar, fundamentalmente entre os cursos mais prestigiados, a tendência de maior concentração de ingressantes ricos, brancos/amarelos, oriundos de escolas privadas e filhos de pais formados no ES.
Considerações finais
Como se pôde notar, o perfil dos ingressantes na Unifesp vem se modificando paulatinamente. Entre os campi, nota-se maior nível de vulnerabilidade socioeconômica e cultural em Guarulhos. No geral, as mudanças referem-se fundamentalmente ao decréscimo contínuo no percentual de ingressantes brancos, com uma queda de 10,8%, desde o início da série histórica, o aumento de pardos (de 6,5%) e o crescimento dos oriundos exclusivamente do ensino público (de 11,9%), todas variações relacionadas às políticas de expansão e de cotas.
Esses dados ganham relevância, quando confrontados com a realidade recente da educação superior nacional. Como visto na introdução deste texto, o número de vagas no ES presencial cresceu significativamente (34,3%), entre 2007 e 2016, com destaque para a atuação da iniciativa privada, que tem sido financiada por transferência de recursos públicos ou por empréstimos, em programas governamentais como o ProUni e o Fies3.
Ao considerarmos as opções da população brasileira em idade e condições de ingressar no ES, frente ao crescimento do número de vagas, fica claro que, ainda hoje, para a maioria dos jovens, é muito mais difícil acessar um curso de graduação público, historicamente mais concorrido. Além do menor número de vagas, essa dificuldade está relacionada também às marcas da profunda e histórica desigualdade social brasileira, reproduzida inclusive pela segmentação presente na educação básica, que não tem proporcionado um padrão educativo comum a todos os brasileiros, suficiente para atenuar as diferenças sociais.
Há grande diferença que marca a formação nas universidades públicas - que se caracteriza pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão - daquela que ocorre em instituições privadas. Nas públicas, a formação dá-se mediante a produção intelectual institucionalizada, o escrutínio sistemático de temas e problemas relevantes, de forma crítica, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional, nacional e internacional. Além de possuírem as mais altas titulações acadêmicas e de trabalharem, frequentemente, em regime de tempo integral, os docentes das públicas permanecem desenvolvendo atividades de pesquisas, extensão e ensino ao longo da vida acadêmica, o que proporciona um universo consistente e variado de conhecimentos, a experiência com a produção intelectual, cultural e social e o hábito da reflexão, em um ambiente verdadeiramente universitário, alimentando qualitativamente a formação - distinto das instituições privadas, nas quais em geral o acesso é apenas a aulas, os docentes são remunerados tão somente para ministrá-las, não sendo estimulados e, por vezes, sem tempo para produzir conhecimentos e experiências acadêmicas variadas, estando restritos à reprodução de conhecimentos e técnicas anteriormente desenvolvidos.
Para além das diferenças apontadas, há que se mencionar, ainda, as questões de permanência e assistência estudantil e aquelas específicas decorrentes de ações afirmativas. Atendendo a políticas e programas nacionais, as Ifes criam seus próprios programas, serviços e estruturas de permanência e de assistência, os quais são fundamentais para o desenvolvimento dos estudos, principalmente para os discentes mais vulneráveis. Na Unifesp, por exemplo, existem os restaurantes universitários com subsídios no valor das refeições, bolsas e auxílios diversos, atendimento em saúde e apoio pedagógico. Nas instituições particulares, com poucas exceções, esses serviços, estruturas e preocupações são menos frequentes.
Por fim, faz-se necessária uma observação relacionada ao significado do corte de renda estabelecido pela Lei de Cotas, em vista do custo de vida no estado de São Paulo. As cidades paulistas estão entre as que possuem os mais altos custos do país. Os ingressantes com famílias que recebam até 1 e ½ SM per capita estão de fato em situação muito vulnerável para sobreviverem na região. O mesmo se pode dizer daqueles que foram classificados a partir do corte estabelecido no indicador de vulnerabilidade, como atesta também a classificação do IBGE, em que famílias que possuem entre 2 e 4 SM estão na classe D e as que possuem menos de 2 SM estão na classe E (POMAR, 2013).
Como se pode perceber, diante do panorama apresentado, o perfil dos ingressantes da Unifesp joga luz e coloca em xeque o mito de que a educação superior pública tem se constituído como mecanismo reprodutor de injustiças sociais. As mudanças que o perfil sofreu na série histórica são significativas para comprovar que a diversidade e a inclusão na Unifesp vêm crescendo paulatinamente. Importante mencionar que, de acordo com recente divulgação de um indicador intitulado “Impacto da Universidade”, calculado pela consultoria britânica Times Higher Education (THE), cujo objetivo é o de medir os efeitos social e econômico da atuação de universidades com base nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas (ONU), a Unifesp figura na 34a posição do ranking mundial na redução das desigualdades. O resultado pode ser lido como mais um indicativo de que o Reuni e a Lei de Cotas, aliados aos procedimentos institucionais de ingresso e permanência, têm se constituído como ferramentas capazes de ampliar o acesso e diversificar o perfil dos estudantes na Unifesp4.
Entretanto, vale pontuar que, ainda que imprescindível, certamente, apenas a política de cotas não foi e nem será suficiente para democratizar de fato o acesso à formação de qualidade da universidade pública e ajudar a promover as condições para a superação das desigualdades sociais, econômicas e culturais presentes no Brasil. Tal como ocorreu até o momento na Unifesp, o caminho mais consistente para o ES é o da expansão do número de carreiras e vagas em instituições públicas. Estas precisam, cada vez mais, de autonomia, compromisso e respaldo financeiro para propiciarem uma formação verdadeiramente universitária, capaz de minimizar as desigualdades e injustiças sociais.