Introdução
A política educacional, definida em Souza (2016) como a análise da ação (ou não ação) do Estado perante a demanda por educação, pode ser debatida a partir de vários objetos. No estudo das condições de trabalho do magistério brasileiro, um objeto de análise importante das políticas educacionais, o problema da precariedade a que estão submetidos os professores é pauta recorrente de discussão. Diante dessa situação, cada vez mais tem se proliferado estudos acerca de doenças decorrentes do exercício da docência (VICENTINI; LUGLI, 2009).
Conforme Souza (1997, p. 133) a produção sociológica na área educacional tem se centrado no trabalho docente como prática pedagógica e “pouco se discute as relações entre as condições de trabalho na escola e as relações sociais a que este trabalho está submetido”. Nessa vertente, aspectos como o afastamento dos professores do exercício do magistério, seja por doença, acidente, entre outros motivos, constitui-se em um tema de relevância como um provável reflexo da precarização das condições de trabalho docente.
A partir desse contexto, este estudo tem como objetivo explorar o afastamento dos profissionais do magistério público municipal no Brasil no ano de 2016, delimitando como universo de análise 1.253.295 vínculos trabalhistas.
Em termos metodológicos, recorreu-se à pesquisa bibliográfica e documental, visando a construção de um contexto de discussão acerca da precarização das condições de trabalho dos profissionais do magistério. A partir desse aporte, foi realizada uma análise quantitativa, explorando informações nacionais acerca dos afastamentos docentes, utilizando como fonte secundária de dados a Relação Anual de Informações Sociais - Rais.
Precarização das condições de trabalho e afastamento/adoecimento docente: aportes teóricos
A docência é uma atividade social fundamental, caracterizando-se como uma forma peculiar de trabalho, de face a face com o outro, uma vez que se trata de uma profissão na qual o trabalhador tem outro ser humano como ‘objeto’ de trabalho. Nessa vertente, Tardif e Lessard (2012, p. 35) afirmam que “a docência é um trabalho cujo objeto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos, mas de relações humanas com pessoas capazes de iniciativa e dotadas de uma certa capacidade de resistir e de participar da ação dos professores”, constituindo-se como um trabalho interativo e reflexivo.
Todavia, essa relação humana no trabalho docente é permeada por uma série de mudanças. Para Fanfani (2007), as transformações recentes do ofício docente podem sintetizar-se em algumas proposições básicas: a) a docência é uma ocupação em desenvolvimento quantitativo permanente, devido ao crescimento contínuo da escolarização da população; b) o ofício docente possui uma heterogeneidade crescente, pois as posições que o constituem se diversificam; e c) há uma forte tendência de deterioração das recompensas materiais e simbólicas associadas à atividade docente. O cenário descrito pelo autor aponta justificativas para o quadro de desvalorização da profissão na atualidade.
Em complemento a essa perspectiva, Oliveira (2008, p. 45) afirma que o trabalho docente, assim como o trabalho em geral, vem sofrendo com o processo de precarização quanto às relações de emprego no Brasil, diante da ampliação dos contratos temporários nas redes públicas de ensino, o arrocho salarial, a inadequação ou mesmo ausência de planos de cargos e salários, e a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias devido aos processos de reforma do Estado, o que “têm tornado cada vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público”. Cumpre destacar que, atualmente, a Reforma Trabalhista, legalizada pela Lei nº 13.467/2017, legitima tais práticas, como a supremacia do acordado sobre o legislado na relação do empregador com o empregado e a flexibilização dos contratos de trabalho.
Todavia, mesmo com o reconhecimento legal de que os sistemas de ensino devem promover a valorização dos profissionais do magistério e condições adequadas de trabalho (BRASIL, 1996, 2014), a literatura aponta que, apesar do reconhecimento da necessidade de se avançar em questões como a remuneração, ao menos pareada com a média remuneratória de outras profissões com mesma exigência de formação, planos de carreira, jornada de trabalho, vínculos por concurso público, tempos remunerados para o planejamento e trabalho coletivo, formação continuada e redução de número de alunos por turma (CARISSIMI, 2011; GROCHOSKA, 2015; ABREU, 2015; SILVA, 2017), o cenário nacional é caracterizado pela desigualdade em termos de condições de oferta e de trabalho docente (SILVA, 2017).
No que tange ao adoecimento/afastamento docente, alguns estudos abordaram a questão como provável decorrência das condições de trabalho impostas a esses profissionais. Gasparini, Barreto e Assunção (2005), por exemplo, estudaram o adoecimento de um grupo de professores da rede municipal de Belo Horizonte - MG. De acordo com as autoras, as doenças psíquicas lideram os motivos de afastamento, com base nos atestados médicos apresentados. As pesquisadoras ainda elencam que a ampliação do papel do professor, para além da função de mediador do conhecimento, seja na escola ou na relação deste com a comunidade, bem como as parcas políticas públicas de contratação de professores e melhoria das condições de trabalho são fatores em potencial para a ampliação de tais afastamentos. Em outro trabalho, Noronha, Assunção e Oliveira (2008) também abordam a temática na mesma perspectiva, atribuindo o sofrimento da profissão docente à ampliação de suas responsabilidades, mas sem as condições de trabalho necessárias para tal.
Assim sendo, há indícios de que a precarização das condições de trabalho docente se relaciona à ampliação dos casos de adoecimento nessa área. Sobre essa constatação, Reis et al. (2006) relatam que ensinar é uma atividade geralmente muito estressante, com repercussões evidentes na saúde física, mental e no desempenho dos profissionais; as queixas mais recorrentes são: doenças cardiovasculares, distúrbios advindos do estresse, labirintite, faringite, neuroses, fadiga, insônia, tensão nervosa, ansiedade, depressão, irritabilidade, hostilidade e exaustão emocional. Todavia, para os autores, no Brasil, há relativa escassez de estudos acerca da saúde dos trabalhadores da educação.
Portanto, o diagnóstico que norteia essa pesquisa é que “a intensificação e a precarização do trabalho docente contribuem para a degradação do protagonismo do professor e silenciamento de sua voz na organização do trabalho escolar” (MOREIRA; SILVA, 2011, p. 2), o que pode reverberar em outras atividades de sua vida pessoal, gerando a necessidade de afastamentos, inclusive por adoecimentos.
Nesse sentido, há uma série de intempéries na profissão docente que podem influenciar em uma gama de afastamentos; o estudo desta temática oferece a possibilidade de traçar um panorama acerca do afastamento de professores municipais em 2016, entendendo-o como um possível efeito da precarização das condições de trabalho sobre o magistério brasileiro.
Procedimentos metodológicos
Este trabalho apresenta uma abordagem quantitativa, na medida em que uma pesquisa dessa natureza consiste na criação de base de dados repertoriando fatos sociais, a qual é explorada com auxílio de programas de tratamento estatístico, a fim de interpretar os resultados a partir de um ponto de vista sociológico (SELZ, 2015). Entretanto, reconhece-se a necessidade de análises qualitativas para a interpretação quantitativa de tais dados.
Sobre o processo de construção da fonte de informações, este se encaixa no que Selz (2015) tipifica de análise secundária, pois as bases de dados utilizadas não foram construídas pelos pesquisadores, mas coletados pela Rais, com o complemento de algumas informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep.
A Rais é um instrumento de coleta de informações instituído pelo Decreto Presidencial nº 76.900/1975 e disponibilizada pelo Ministério do Trabalho, com o objetivo de controlar as atividades trabalhistas, elaborar estatísticas relacionadas a essa atividade e disponibilizar informações sobre o mercado de trabalho, influente em questões como abono salarial e benefícios previdenciários, por exemplo. Os empregadores com Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica são obrigados a lançar as informações de seus trabalhadores, e, para o caso de uma empresa sem empregados ou inativa durante o ano base, é necessário entregar a Rais Negativa. Há uma série de vínculos empregatícios que precisam ser relacionados, como estatutários, celetistas, avulsos, por contrato, entre outros, todos vinculados a uma atividade econômica codificada. A disponibilidade de suas desagregações, como município, ocupações, idade, formação, tipo de vínculo, admissões, afastamentos, carga horária contratual semanal, remuneração média e mensal, permite uma série de pesquisas em diversas vertentes.
Inicialmente, a seleção de casos municipais se baseou na natureza jurídica do vínculo empregatício, selecionando apenas os profissionais vinculados ao poder público municipal. Além disso, foram utilizados dois filtros aplicados em estudo realizado pelo Inep, no ano de 2017, e disponibilizados em nota técnica: a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), envolvendo as atividades vinculadas à educação básica, e a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), mais específica no que tange à função exercida.
Em complemento a essa seleção de casos, foram utilizados mais dois filtros, referentes aos profissionais que tiveram vínculo empregatício durante o ano todo e casos em que não houve motivo de desligamento, ou seja, o trabalhador permaneceu com vínculo com o empregador de 01/01/2016 até 31/12/2016. Essas escolhas se deram na medida em que, quando os casos exclusos permaneciam na análise, houve uma série de inconsistências, principalmente com aposentadorias, particularmente na relação de dias de afastamento.
A opção de seleção de casos supracitada teve como reflexo outra escolha metodológica: não explorar o vínculo trabalhista. Essa opção se justifica na medida em que, ao se inserir os filtros, houve uma perda significativa de casos de professores vinculados por contrato, avulsos e temporários. O gráfico abaixo auxilia nesse entendimento.
Os campos de informações disponíveis para o empregador lançar os dados de seus trabalhadores possibilitam 19 tipos de vínculos trabalhistas. Agregou-se esses vínculos em quatro categorias: trabalhadores estatutários, efetivos ou não; regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); contratados de forma avulsa, temporária ou por contrato; além do vínculo como diretor, que não é necessariamente um gestor escolar, mas uma forma de vinculação de trabalho disponibilizada pela base. A perda de quase 90% dos vínculos avulsos, temporários ou por contrato poderia trazer informações não compatíveis com a realidade das redes municipais, principalmente porque a vinculação trabalhista é elencada pela literatura como uma importante condição de trabalho docente (FERREIRA, 2013; SILVA, 2017).
Outras duas questões são importantes nessa descrição metodológica. A primeira refere-se à construção de categorias referente às etapas/modalidades de ensino na qual os docentes municipais são vinculados. Para isso, foi construída seis categorias de agrupamentos de professores com base na CBO: a) Educação Infantil; b) Ensino Fundamental; c) Ensino Médio e Profissionalizante; d) Educação Especial; e) Equipe Pedagógica; e f) Outros.
A segunda questão diz respeito aos afastamentos. Na Rais é permitido o lançamento de até três afastamentos, sendo que, segundo o manual de orientação para o seu preenchimento, caso o profissional se afaste mais do que três vezes, é atribuído ao empregador lançar os três períodos mais longos. Entretanto, os dias afastados são lançados em uma coluna e de forma cumulativa, o que não permite fazer uma avaliação dos motivos de forma individualizada, a não ser nos casos em que o profissional tenha apenas um afastamento.
Os afastamentos são delimitados a oito possibilidades de registro: i) acidente de trabalho típico; ii) acidente de trabalho no trajeto; iii) doença relacionada ao trabalho; iv) doença não relacionada ao trabalho; v) licença maternidade ou paternidade; vi) serviço militar obrigatório; vii) licença sem vencimentos; e viii) sem afastamentos. Como opção para a pesquisa, optou-se por explorar detalhadamente os quatro primeiros motivos, agregando os três seguintes em uma categoria única, compreendendo que os demais teriam outros motivos que não fossem infortúnios por doença ou outro tipo de malefício ao trabalhador, além de uma categoria dos profissionais que não se afastaram.
Finalizando as opções metodológicas, o estudo se delimitou a explorar os dados de afastamento nacionalmente, enfatizando aspectos de regionalidade e diferenciação entre etapas/modalidades, particularmente por serem elementos que trazem questões bem características quanto à diferenciação das condições de trabalho docente (SILVA, 2017).
Análise de dados
A abordagem teórica deste estudo traz como hipótese que, em várias situações apresentadas empiricamente, a precarização das condições de trabalho docente pode ser um fator preponderante para o adoecimento/afastamento docente. Com isso, o limite da empiria do trabalho é apresentar um panorama nacional acerca do fenômeno, inferindo que, possivelmente, algumas das causas desse cenário envolvem a ação (ou falta de) por parte do poder público na melhoria das condições de trabalho.
Para esta pesquisa, foram selecionados 1.253.295 vínculos trabalhistas de profissionais do magistério público municipal no ano de 2016, o que corresponde a 72,42% do total de vínculos de docência disponibilizados pela Rais. Em relação à etapa/modalidade na qual o docente é vinculado, o gráfico abaixo elucida esse cenário.
No ano de 2016, a distribuição de matrículas disponibilizada pelo Censo Escolar do Inep indica que, do total de estudantes das redes municipais de ensino, 73,65% são vinculados ao ensino fundamental, regular ou não, e 25,49% da Educação Infantil. Além disso, a Constituição Federal de 1988 e a LDB atribuem, prioritariamente, ao ente federado municipal a responsabilidade da oferta educacional em tais etapas. Nesse sentido, já se esperava que a maioria dos professores selecionados para a pesquisa atuassem nessas etapas.
Dos 1.253.295 vínculos de docência selecionados para a pesquisa, a maioria atende ao ensino fundamental (66,87%), seguido pela educação infantil (20,61%) e uma parcela menor de casos do ensino médio e profissionalizante (7,08%), equipe pedagógica (3,93%), educação especial (0,33%) e outros tipos de vínculo como instrutores, professores práticos e leigos (1,18%). A Tabela 1 caracteriza os casos quanto à escolaridade e a etapa/modalidade na qual os docentes atuam.
Escolaridade | Ed. Infantil | Ens. Fundamental |
Ens. Médio e Profissionalizante | Ed. Especial |
Equipe Pedagógica | Outros |
---|---|---|---|---|---|---|
EF 1 incompleto | 484 | 671 | 105 | 0 | 0 | 11 |
EF 1 completo | 925 | 551 | 153 | 1 | 0 | 79 |
EF 2 incompleto | 1170 | 737 | 191 | 4 | 0 | 52 |
EF completo | 4356 | 6550 | 839 | 11 | 2 | 178 |
EM Incompleto | 1578 | 2967 | 483 | 5 | 2 | 92 |
EM completo | 63118 | 141619 | 17444 | 562 | 365 | 2815 |
ES incompleto | 9498 | 22118 | 2334 | 155 | 2 | 487 |
ES completo | 186629 | 623988 | 63167 | 3124 | 47162 | 10856 |
Mestrado | 5168 | 20569 | 3878 | 206 | 1418 | 212 |
Doutorado | 610 | 3151 | 134 | 32 | 258 | 19 |
Fonte: Rais (2016). Dados trabalhados pelos autores (2019).
Nota: EF 1 e EF 2 correspondem, respectivamente, a séries iniciais e finais do Ensino Fundamental; EM a Ensino Médio e ES a Ensino Superior.
Os dados nacionais reúnem informações interessantes. Mesmo com a reconhecida desvalorização da docência da educação infantil em relação às demais etapas, uma vez que pesquisas demostraram que há profissionais atuando nessa etapa sem formação compatível (ALVES; PINTO, 2011; OLIVEIRA, 2017), sendo recorrente que trabalhadores ingressem leigos na função e busquem formação posteriormente (GOMES, 2016; CONCEIÇÃO; BERTONCELI, 2017), os dados indicam que cerca de 70% dos professores com vínculo empregatício têm ensino superior completo. Nas demais etapas ou modalidades, o cenário de formação é mais favorável, mas percebe-se um percentual de 16% a 24% de profissionais, com exceção da equipe pedagógica, apenas com ensino médio atuando na educação básica pública municipal. Ainda no que tange à caracterização dos dados, a tabela abaixo traduz os casos da pesquisa em termos de regionalidade.
Região | Municípios | Percentual | Casos |
---|---|---|---|
Norte | 411 | 8,01% | 101778 |
Nordeste | 1589 | 30,97% | 369400 |
Centro Oeste | 418 | 8,15% | 60672 |
Sudeste | 1562 | 30,45% | 505586 |
Sul | 1150 | 22,42% | 215859 |
Total | 5130 | 100 | 1253295 |
Fonte: Rais (2016). Dados trabalhados pelos autores (2019).
O total de vínculos selecionados para a pesquisa é maior do que a quantidade de docentes municipais no Censo Escolar, que totaliza 1.155.780 professores em 2016. Isso se dá porque o Inep trabalha com número de profissionais e a Rais com vínculos empregatícios; assim sendo, um professor pode ter mais de um vínculo trabalhista com a rede em que atua e, nesse caso, aparecerá outras vezes na Rais e apenas uma no Censo.
A maior quantidade de vínculos de docência nos municípios brasileiros se concentra no Sudeste e Nordeste, cenário já esperado, pois, de acordo com o Censo Escolar, a maioria dos professores e matrículas municipais são dessas regiões, 34,12% e 35,82% de docentes e 36,14% e 34,82% de estudantes, respectivamente. A tabela a seguir expõe os afastamentos agregados especificamente pelas etapas da educação básica na qual o professor é vinculado; destaca-se ainda que se optou por agregar ensino médio e educação profissional.
Especificidade | Acidente de trabalho típico | Acidente de trabalho no trajeto | Doença relacionada ao trabalho | Doença não relacionada ao trabalho | Outro afastamento | Não afastado |
---|---|---|---|---|---|---|
Educação Infantil af1* |
1,181% | 0,022% | 0,183% | 24,363% | 3,531% | 70,720% |
Educação Infantil af2** | 0,288% | 0,010% | 0,088% | 15,120% | 0,854% | 83,639% |
Educação Infantil af3*** |
0,114% | 0,007% | 0,055% | 9,596% | 0,355% | 89,873% |
Ensino Fundamental af1* | 0,114% | 0,009% | 0,318% | 9,720% | 3,131% | 86,708% |
Ensino Fundamental af2** | 0,043% | 0,004% | 0,144% | 5,490% | 0,623% | 93,695% |
Ensino Fundamental af3*** |
0,019% | 0,002% | 0,085% | 3,582% | 0,228% | 96,084% |
Ensino Médio e Profissional af1* | 0,087% | 0,014% | 0,174% | 8,384% | 2,975% | 88,367% |
Ensino Médio e Profissional af2** | 0,027% | 0,006% | 0,066% | 4,717% | 0,489% | 94,695% |
Ensino Médio e Profissional af3*** | 0,011% | 0,000% | 0,044% | 3,097% | 0,170% | 96,677% |
Fonte: Rais (2016). Dados trabalhados pelos autores (2019).
*af1: primeiro afastamento.
**af2: segundo afastamento.
***af3: terceiro afastamento.
Em todos os casos, a tendência é que o sujeito que se afasta uma primeira vez não tem necessidade de outro afastamento, haja vista que há uma diminuição dos percentuais, ou seja, a reincidência de afastamento tendencialmente mostra-se baixa. Esse é um panorama em praticamente todos os cruzamentos de dados neste estudo. O destaque dessa tabela é relacionado aos profissionais vinculados à educação infantil, que, percentualmente, têm afastamentos superiores aos demais profissionais, com pelo menos 25,75% se afastando por algum motivo de doença ou acidente; observa-se, ainda, que os professores de ensino médio e profissional são os que menos se afastam.
A precariedade das condições de trabalho e carreira na educação infantil é uma questão já sinalizada em algumas pesquisas (ALVES; PINTO, 2011; HECK, 2014; ROCHA, 2017). Apesar dessa situação também ser recorrente em outras etapas e modalidades (FERREIRA, 2013; SILVA, 2017), aspectos como planos de carreira, cargos e remuneração, infraestrutura, reconhecimento social, desgaste físico, entre outros, tendem a ser mais problemáticos na educação das crianças de 0 a 5 anos, fato que pode ser associado à recente incorporação da educação infantil ao sistema educacional; historicamente, tal etapa esteve associada à assistência social e à filantropia, o que se altera somente após a Constituição de 1988 (KUHLMANN Jr., 1998). Nesse sentido, a necessidade de afastamento/adoecimento ser maior nessa etapa aparenta ser um dos efeitos colaterais desse contexto.
A tabela abaixo trabalha com essa mesma informação, mas com os trabalhadores da educação especial, equipe pedagógica e outros profissionais, como instrutores, professores leigos, de prática profissional ou docentes com algum vínculo com o ensino superior.
Especificidade | Acidente de trabalho típico |
Acidente de trabalho no trajeto |
Doença relacionada ao trabalho |
Doença não relacionada ao trabalho |
Outro afastamento | Não afastado |
---|---|---|---|---|---|---|
Educação Especial af1* | 0,220% | 0,024% | 0,098% | 17,634% | 3,878% | 78,146% |
Educação Especial af2** | 0,098% | 0,000% | 0,000% | 12,561% | 1,000% | 86,341% |
Educação Especial af3*** |
0,171% | 0,000% | 0,000% | 9,390% | 0,341% | 90,098% |
Equipe Pedagógica af1* | 0,256% | 0,014% | 0,234% | 10,317% | 3,410% | 85,769% |
Equipe Pedagógica af2** | 0,059% | 0,004% | 0,091% | 5,575% | 0,494% | 93,783% |
Equipe Pedagógica af3*** |
0,020% | 0,002% | 0,041% | 3,379% | 0,146% | 96,411% |
Outros af1* | 0,230% | 0,000% | 0,074% | 14,364% | 4,466% | 80,866% |
Outros af2** | 0,115% | 0,000% | 0,041% | 8,364% | 0,608% | 90,872% |
Outros af3*** | 0,081% | 0,000% | 0,027% | 5,236% | 0,318% | 94,338% |
Fonte: Rais (2016). Dados trabalhados pelos autores (2019).
*af1: primeiro afastamento.
**af2: segundo afastamento.
***af3: terceiro afastamento.
Em relação à tabela anterior, os três grupos apresentam índices menores que a educação infantil. Entretanto, no caso da educação especial, essa modalidade se apresenta com uma quantidade substancial de docentes que precisaram se afastar ao menos uma vez, percentual maior em relação aos demais profissionais. No comparativo dos grupos de docentes, os profissionais do ensino médio e profissionalizante permaneceram com as menores necessidades de afastamento.
Os dados a seguir apresentam os motivos de afastamento por doença ou acidente agregados pela média de idade dos profissionais que necessitaram se afastar.
Nos casos de doença, os primeiros afastamentos sempre estão relacionados a uma média de idade maior, ainda que as diferenças não sejam, em nenhum dos motivos, acima de um ano. Apenas no que tange ao acidente no trajeto do trabalho há uma variação média em que os que tem um terceiro afastamento tem maior média em relação ao segundo. No gráfico seguinte, explora-se a média de dias afastado por motivo e frequência de afastamento.
Há maior variação no trabalho com a média de dias dos afastamentos. Nos acidentes, seja de trabalho ou não, os dias afastados são maiores que os relacionados às doenças. Nesse gráfico, não há uma relação linear bem definida como nos afastamentos agregando professores aos seus vínculos empregatícios por etapa/modalidade educacional.
Outra questão a ser analisada mais detidamente é a relação dos afastamentos com o sexo. Acerca desta temática, destaca-se a feminização do magistério, pois trata-se de um processo que pode ser observado não somente no contexto brasileiro, mas também em outros países (APPLE, 1988); tal fato, provavelmente, está vinculado ao processo de urbanização e industrialização que ampliou as oportunidades de trabalho para os homens (LOURO, 1997), deixando para as mulheres o magistério. Nesse sentido, convém problematizar que, conforme Tardif e Lessard (2012), as mulheres são a maioria do corpo docente e, muitas vezes, têm de encarar dupla tarefa, no trabalho e em casa. Assim, em uma sociedade patriarcal em que a mulher ainda assume, em boa parte das famílias, uma terceira jornada como administradora do lar e a principal responsável pelo cuidado dos filhos, é de se esperar que, percentualmente, ela se afaste mais que os homens. O gráfico abaixo apresenta esse panorama.
Percebe-se que, nos quatro motivos que envolvem doença ou acidente, o percentual de mulheres afastadas é maior que dos homens, seja no primeiro, segundo ou terceiro afastamento. Ou seja, nesse cenário, a política educacional não parece ser a única explicação, mas elenca-se como hipótese a questão social do papel da mulher para além dos seus afazeres profissionais, refletindo na saturação física e mental de tais professoras.
A regionalidade das informações é trabalhada nas tabelas abaixo, explorando as informações de afastamentos por região geográfica.
Região | Acidente de trabalho típico |
Acidente de trabalho no trajeto |
Doença relacionada ao trabalho |
Doença não relacionada ao trabalho |
Outros afastamentos | Não afastado | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
NORTE af1* | 0,032% | 0,003% | 0,139% | 3,388% | 3,849% | 92,590% | |
NORTE af2** | 0,014% | 0,001% | 0,037% | 1,217% | 0,390% | 98,341% | |
NORTE af3*** |
0,010% | 0,000% | 0,003% | 0,603% | 0,047% | 99,337% | |
NORDESTE af1* |
0,006% | 0,003% | 0,035% | 1,223% | 1,786% | 96,947% | |
NORDESTE af2** |
0,001% | 0,000% | 0,005% | 0,388% | 0,207% | 99,398% | |
NORDESTE af3*** |
0,001% | 0,000% | 0,001% | 0,177% | 0,033% | 99,788% | |
CENTRO- OESTE af1* |
0,193% | 0,003% | 0,176% | 16,929% | 4,508% | 78,191% | |
CENTRO- OESTE af2** |
0,092% | 0,002% | 0,071% | 9,975% | 1,060% | 88,800% | |
CENTRO- OESTE af3*** |
0,053% | 0,000% | 0,031% | 6,644% | 0,257% | 93,015% | |
SUDESTE af1* |
0,759% | 0,025% | 0,422% | 22,861% | 3,499% | 72,433% | |
SUDESTE af2** |
0,209% | 0,013% | 0,200% | 14,116% | 0,853% | 84,610% | |
SUDESTE af3*** |
0,085% | 0,007% | 0,121% | 9,175% | 0,408% | 90,203% | |
SUL af1* | 0,110% | 0,001% | 0,423% | 12,023% | 4,431% | 83,011% | |
SUL af2** | 0,023% | 0,000% | 0,202% | 6,332% | 0,978% | 92,464% | |
SUL af3*** | 0,009% | 0,001% | 0,129% | 4,027% | 0,334% | 95,500% |
Fonte: Rais (2016). Dados trabalhados pelos autores (2019).
*af1: primeiro afastamento.
**af2: segundo afastamento.
***af3: terceiro afastamento.
No que tange ao primeiro afastamento, as regiões Norte e Nordeste têm os menores percentuais. Várias hipóteses podem ser levantadas a partir desse panorama, inclusive a possível falta de lançamento de dados. Todavia, nesse panorama de mais de um milhão de vínculos, o diálogo com a questão das condições de trabalho do professor em nível nacional é controverso.
Em pesquisa realizada com base em informações dos questionários de contexto da Prova Brasil de 2013, Silva (2017) trouxe um cenário em que as condições do professor de ensino fundamental do Brasil, traduzidas em um indicador denominado Índice de Condições do Professor (ICP), eram bastante diversas no cenário nacional, com tendência a piores remunerações nas regiões Norte e Nordeste. Apesar do cenário, redes municipais de estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, ambos do eixo Sul-Sudeste, também tinham condições abaixo da média nacional. Ou seja, nesse diálogo, as condições do professor, traduzidas em remuneração, vínculo trabalhista, experiência profissional e escolaridade, parecem auxiliar na explicação do problema, particularmente quando consideradas em conjunto.
Destaca-se, no entanto, que a referida pesquisa não envolveu a educação infantil, que, por hipótese, tem na precarização das condições de trabalho um fator explicativo para o panorama de afastamentos, já problematizado nesse texto. Dialogando com a tabela anterior, o mapa a seguir apresenta o percentual de professores das redes municipais de ensino agregados por estado que tiveram um primeiro afastamento em decorrência de acidentes ou doença, decorrentes do trabalho ou não.
As redes municipais dos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro apresentam percentuais de afastamento de 30,54%, 29,85% e 21,96%, respectivamente, o que os difere em grande escala dos demais estados. Com a inclusão de Rondônia, os estados do Sudeste, Centro Oeste e Sul lideram em termos de afastamento docente.
Considerações Finais
Para Vicentini e Lugli (2009), uma compreensão mais ampla acerca da história da categoria docente, assim como de suas condições de trabalho, permeadas pela política educacional, é imprescindível para o debate quanto às possibilidades do magistério e seus significados na sociedade. Nesse sentido, este artigo buscou contribuir com a discussão desse tema, trazendo à tona um panorama nacional acerca do afastamento e adoecimento docente com a seleção de 1.253.295 vínculos profissionais de magistério das redes municipais de ensino em 2016, bem como o levantamento de hipóteses explicativas para o cenário.
Alguns apontamentos merecem destaque. Há uma forte tendência de os professores vinculados à educação infantil apresentarem maior necessidade de se afastarem por doença ou acidente. Esse cenário corrobora com estudos acerca da desvalorização dos profissionais da educação infantil, especialmente porque em muitos casos a ampliação do atendimento nessa etapa se deu em virtude da criação de cargos com salários inferiores e/ou sem exigência de formação específica (HECK, 2014; ROCHA, 2017).
Outro aspecto se refere à questão do sexo. Mulheres tendem a necessitar de afastamento mais do que os homens. Questões como o esforço físico da profissão e a exigência de atividades extraprofissionais impostas pela sociedade à mulher podem ser fatores explicativos. Além disso, há uma relação de regionalidade com os afastamentos, evidenciando que as redes municipais das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste têm, percentualmente, mais professores com necessidade de afastamento do que as demais regiões. Fato surpreendente, na medida em que as condições de oferta, incluindo o trabalho docente, tendem a apresentar maior nível de precarização nas regiões Nordeste e Norte (SILVA, 2017).
A falta de dados acerca de professores readaptados que continuam a trabalhar na escola, mas sem ministrar aulas, os motivos de adoecimento ou acidente com maior especificação ou a questão de gênero, por exemplo, são lacunas apontadas por este estudo que podem servir como um ponto de partida para novas investigações. Assim sendo, ressalta-se que estudos em abordagem qualitativa acerca de temas que aprofundem os tópicos dos campos genéricos de preenchimento da Rais são fundamentais para elencar informações mais precisas. Apesar das limitações apontadas na fonte de dados, reitera-se sua potencialidade de estudo acerca de adoecimento/afastamento docente.
Ademais, concorda-se com Oliveira (2008) de que aprofundar o conhecimento sobre a questão docente é fundamental a fim de se instruir políticas efetivas voltadas à valorização do magistério e melhoria da educação pública. Espera-se que esse panorama auxilie no fomento à discussão sobre a temática deste trabalho.