Introdução
O objeto da política educacional ainda é um tema pouco debatido entre aqueles que se dedicam à investigação neste campo de conhecimento. As pesquisas sobre a construção desse campo no Brasil vêm sendo realizadas mediante estudos de revisão (VOSGERAU; ROMANOWISKY, 2014), em geral relacionados a aspectos específicos da política educacional, como gestão (WITTMANNN; GRACINDO, 2001) e financiamento da educação (VELLOSO, 2001; OLIVEIRA, 2006; DAVIES, 2014).
Este estudo teve como ponto de partida o banco de dados da pesquisa “Questões epistemológicas e metodológicas da produção acadêmica em políticas educacionais no Brasil (2000-2010)”, que consiste em esforço coletivo de reflexão sobre a construção do campo da política educacional, mediante a análise de teses e dissertações produzidas no período de 2000 a 2010 nos programas de pós-graduação em educação, que alcançaram nota igual ou superior a cinco na avaliação trienal do ano de 2010 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).5
O critério de seleção dos programas resultou na inclusão de 20 instituições de ensino superior, localizadas todas nas cinco regiões do país: 13 na região Sudeste, estando entre elas as Universidades Federais Fluminense (UFF), Rio de Janeiro (UFRJ), Minas Gerais (UFMG), Uberlândia (UFU), São Carlos (UFSCar) e Espírito Santo (Ufes); Universidades Estaduais de São Paulo (USP, Unesp/Marília-SP, Unicamp) e Rio de Janeiro (Uerj); Pontifícias Universidades Católicas do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e São Paulo (PUC-SP6) e Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep); cinco na região Sul, como Universidades Federais de Pelotas (UFPel), Paraná (UFPR) e Rio Grande do Sul (UFRGS), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos); uma no Centro-Oeste, sendo a Universidade Federal de Goiás (UFG); e uma na região Nordeste, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O levantamento da produção em política educacional realizado no ano de 2012 resultou na coleta de 1.283 resumos do banco de teses e dissertações da Capes. Com base em um conjunto de palavras-chave, foi realizada a classificação dos trabalhos em nove eixos: Estado e Reformas Educacionais; Planejamento e Gestão; Políticas de formação de professor e carreira docente; Análise de Programas e Projetos; Políticas Inclusivas; Avaliação; Financiamento; e Qualidade e Abordagens teórico-metodológicas. O foco do presente artigo, que tem por objetivo analisar as formas de delimitação do objeto de conhecimento em política educacional, é o eixo Análise de Programas e Projetos, que foi o quarto com maior número de relatórios de pesquisa defendidos nos programas de pós-graduação selecionados, representando 14% dos trabalhos.
A definição pelo uso dos resumos como fonte documental decorreu do entendimento de que são fontes que permitem a extração de informações necessárias ao propósito deste artigo, em que pese o reconhecimento dos limites dessa opção para propostas de pesquisa que demandem a interpretação de elementos não contemplados no resumo.
Não obstante o eixo Análise de Programas e Projetos da pesquisa nacional seja composto por 171 trabalhos, neste artigo foram selecionados 149 resumos de teses e dissertações, porque foram excluídos aqueles voltados a outras áreas sociais, como assistência social e saúde, sem interface direta com a escola pública, embora defendidos na pós-graduação em educação.
Os resumos selecionados foram submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2009), organizada em quatro agrupamentos: I) o tipo de objeto estudado na política educacional; II) as características do objeto analisado quanto ao nível, etapa, modalidade e abrangência; III) a delimitação geográfica e temporal dos estudos e IV) a identificação dos sujeitos da pesquisa. O resultado é apresentado neste texto que realiza uma discussão sobre o objeto de conhecimento em política educacional e analisa a delimitação dos objetos de pesquisa nas produções selecionadas para o estudo.
O objeto do conhecimento e as escolhas do pesquisador
O ser humano, na luta pela superação de sua relação natural com o mundo, tem um esforço sistemático para dominar a natureza, visando extrair dela os elementos que viabilizem sua sobrevivência, movimento pelo qual, simultaneamente, transforma a natureza e se transforma, avançando no processo de construção do conhecimento. Nesse sentido, não está no mundo somente como ser biológico, ele faz história, produz cultura e se relaciona com outros humanos; a forma como se dá essa relação terá repercussões para o desenvolvimento do conhecimento.
Há séculos a humanidade busca caminhos para explicar a realidade. Na base do trabalho intelectual estão dilemas que, além de suscitarem reflexões e análises, configuram formas diversas de conceber o mundo: a relação sujeito e objeto na produção do conhecimento e nas formas de assimilação da realidade; a relação entre teoria e prática, entre empiria e abstração; a aproximação ou separação da ciência dos processos históricos.
As diferentes concepções de ciência vão se expressar nos pressupostos éticos e filosóficos que orientarão toda a condução da atividade de pesquisa. Gamboa (1998, p. 42) ressalta a necessidade de uso de categorias concretas historicamente determinadas, que, juntamente com os conceitos, desempenharão função teórico-metodológica no processo de produção do conhecimento, com vistas “à construção do concreto no pensamento”. Dessa forma, é necessário um esforço para situar e delimitar o objeto no contexto da totalidade.
Partindo da compreensão de que existem epistemologias no plural, porque são vários posicionamentos e perspectivas epistemológicas, Tello (2015, p. 45) advoga que, na relação investigador e objeto, não pode haver separação, especialmente em educação, em que o objeto também é sujeito: “o objeto não é entendido como um ente neutro, recortado de seu contexto, no qual o investigador não está envolvido. Se assume a implicância mútua como ponto de partida”. Assim, é a realidade a ser conhecida e analisada que serve de mediação entre os sujeitos no trabalho de pesquisa.
Não há neutralidade na produção do conhecimento. As formas de conceber o ser humano, a realidade, a sociedade, bem como o modo de escolha do problema de pesquisa são fortemente influenciados pela percepção política e social do pesquisador. No campo das políticas educacionais, há um reconhecimento de que os pesquisadores, em geral, têm intensa aproximação com seus objetos de investigação, dada a militância pelo direito à educação, o que suscita críticas, como a de Souza (2014, p. 358), para o qual alguns "pesquisadores desse campo dão preferência por fazer a política ao invés de estudá-la", portanto, parte dos trabalhos "expressam mais a verve crítico-política do pesquisador" do que a própria análise da política.
Sem desconsiderar a ponderação do autor sobre a importância do rigor nas pesquisas, a constituição e a consolidação do campo de conhecimento da política educacional no Brasil também esteve assentada na inserção dos pesquisadores em associações científicas, como a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped), criadas em 1961 e 1978, respectivamente, com forte compromisso político na luta pelo direito à educação.
Tello (2015) adota o pressuposto de que a política educacional é um campo teórico que se define a partir da perspectiva e do posicionamento epistemológico do intérprete. O desenvolvimento histórico do campo pauta os novos objetos que serão enfrentados, cuja compreensão requer a adoção de um esquema de análise da produção e da investigação sobre política educacional, que perpassa por definições epistemológicas e metodológicas.
O autor diferencia política educacional no singular, definida como campo teórico ou epistemológico, das políticas educacionais no plural, relacionadas à realidade sociopolítica a ser analisada (gestão da política, ação política, tomada de decisão, exercício do poder, relação macro e micro no sistema educacional). Por se apresentar em constante construção, o objeto da política educacional precisa, pois, ser entendido em suas múltiplas dimensões, sendo possível a sua abordagem a partir de diversas perspectivas de análise e de diferentes modelos interpretativos.
Para Souza (2016), a pesquisa em políticas educacionais toma como objeto de estudo tanto a ação do Estado no atendimento às demandas da sociedade por educação como as próprias demandas dessa sociedade, incluindo, portanto, a ausência do Estado na oferta de políticas que viabilizem o direito à educação. Na perspectiva do autor, a não ação também se constitui em uma forma de política. Desse entendimento resulta a compreensão de que o objeto do campo de pesquisa em políticas educacionais consiste na "relação entre demanda social por educação e o posicionamento do Estado diante desta demanda" (p. 84), portanto uma arena de disputa que envolve diferentes agentes sociais.
As múltiplas dimensões das políticas educacionais no Brasil e a variedade de recortes de investigação proposta pela comunidade científica foram identificadas na pesquisa que origina este artigo e serão apresentadas nas próximas seções.
A delimitação do objeto da política educacional no corpus do banco de teses e dissertações
Por estarem em constante construção, as políticas educacionais oferecem várias possibilidades de análise. Sem deixar de reconhecer a profunda e inerente relação existente entre a escolha do objeto e a teoria do conhecimento que sustenta qualquer investigação, este estudo pretende identificar os movimentos que acontecem na produção científica brasileira no campo da política educacional, a partir da discussão sobre o tipo e as características do objeto estudado.
O tipo de objeto na pesquisa
O planejamento e a organização das políticas educacionais seguem modelos de gestão próprios dos grupos que os coordenam e são guiados por critérios políticos e técnicos. Esses processos de tomada de decisão sofrem maior ou menor influência do conjunto da sociedade, na medida em que é exercido algum tipo de pressão para a inclusão ou exclusão de determinada pauta da agenda política. Alguns estudos vão se debruçar justamente na análise dessas orientações e identificar o peso que exercem na configuração de uma determinada política, mais ou menos voltada para a conservação ou para a transformação social, o que, evidentemente, vai depender do próprio conteúdo da política como também dos pressupostos epistemológicos que direcionam o olhar do pesquisador.
O ponto de partida do planejamento da política educacional é o diagnóstico da realidade e a identificação de problemas em determinados contextos. De acordo com Souza (2006, p. 26), “[...] políticas públicas, após desenhadas e formuladas, desdobram- se em planos, programas, projetos [...]. Quando postas em ação, são implementadas, ficando daí submetidas a sistemas de acompanhamento e avaliação”. Nos planos são expostos os fundamentos, os direcionamentos e os propósitos mais globais do que se pretende alcançar. Os programas fazem o desdobramento dos planos com o propósito de delinear as ações contidas nesse documento. O projeto é a sistematização das ações que serão executadas com prazos previamente definidos para a sua realização.
Neste estudo, no universo de 149 trabalhos, 68% analisam programas; 17%, projetos; 12%, políticas; 1%, Planos e 2% são estudos que combinam a análise de projetos e programas, não sendo possível a classificação em uma única categoria. Observa-se que, na maior parte das pesquisas, o objeto fica delimitado à investigação de uma proposta de ação. Em três delas, a delimitação é ampliada para mais de um programa ou projeto.
Na organização dos dados levantados no conjunto dos trabalhos, foi possível identificar a investigação de 101 diferentes ações (projetos, programas, planos, políticas), como expressam os quadros7 a seguir apresentados.
Plano | Quantidade de Estudos |
---|---|
Nacional de Qualificação do Trabalhador | 1 |
Nacional de Qualificação do Trabalhador /Plano Nacional de Qualificação | 1 |
Fonte: Dados da pesquisa.
O quadro 1 expõe o menor interesse da comunidade científica em realizar estudos sobre o planejamento mais amplo das ações educacionais. Apenas dois trabalhos definiram como objeto de investigação a análise de um plano governamental na área educacional, sendo que o mesmo plano está presente nos dois estudos.
Programa | Quantidade de Estudos |
---|---|
Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos |
12 |
Universidade para Todos | 7 |
Expansão, Melhoria e Inovação no Ensino Médio | 5 |
Alfabetização Solidária | 4 |
Bolsa Escola | 4 |
Nacional de Informática na Educação | 4 |
Educação de Jovens e Adultos | 3 |
Nacional de Educação na Reforma Agrária | 3 |
Aceleração da Aprendizagem | 2 |
Brasil Alfabetizado | 2 |
Escola da Família | 2 |
Nacional do Livro Didático | 2 |
TV Escola | 2 |
Agente Jovem | 1 |
Alfabetiza Rio Grande | 1 |
Alfabetização de Adultos | 1 |
Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais | 1 |
Aumento de Escolaridade | 1 |
Bibliotecas da Comissão do Curso Técnico e do Livro Didático | 1 |
Bolsa Família | 1 |
Bom na Escola | 1 |
Cidade Educadora | 1 |
Criança Petrobrás | 1 |
Cuidar e Educar | 1 |
Educação Continuada de Formação Universitária | 1 |
Educacional de duas universidades | 1 |
Educom.radio | 1 |
Educriança | 1 |
Ensino de Qualidade | 1 |
Escola Aberta | 1 |
Escola Campeã | 1 |
Escola da Paz | 1 |
Escola em Rede | 1 |
Escola Jovem | 1 |
E-Tec | 1 |
Expansão da Rede Federal de Educação Profissional | 1 |
Gestão Única | 1 |
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica | 1 |
Integrado de Qualificação | 1 |
Ler e Escrever | 1 |
Movimento Brasil de Alfabetização | 1 |
Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos | 1 |
Nacional Biblioteca na Escola | 1 |
Nacional de Alimentação Escolar | 1 |
Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego | 1 |
Nacional de Incentivo à Leitura | 1 |
Nacional de Inclusão de Jovens | 1 |
Parceiros para o Futuro | 1 |
Primeira Escola | 1 |
Proqualidade | 1 |
Qualidade Total | 1 |
Reengenharia do Ensino das Engenharias | 1 |
Reforma da Educação Profissional | 1 |
Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos | 1 |
Ressocialização | 1 |
Seriado de Ingresso na Universidade | 1 |
Socialização Infanto Juvenil | 1 |
Telecurso 2000 | 1 |
Trabalho Educativo | 1 |
Um Salto para o Futuro | 1 |
União faz a Vida | 1 |
Universidade Corporativa | 1 |
Fonte: Dados da pesquisa.
No quadro 2, que reúne os estudos sobre os programas, está elencada a maior concentração de trabalhos e temáticas encontradas nesta pesquisa. Os programas que mais despertaram o interesse de pesquisa da comunidade científica foram propostos pela esfera federal. O Programa mais estudado, com 12 pesquisas, é voltado para a educação de jovens e adultos; seguido de um programa direcionado à oferta de bolsas a instituições privadas de ensino para realização de formação em nível superior, com sete estudos. Encontra-se um número expressivo de trabalhos sobre programas de alfabetização distribuídos em diferentes ações governamentais, evidenciando um significativo interesse por investigações voltadas para grupos que não puderam realizar seus estudos na idade esperada, isto é, aquelas ações inseridas, também, na modalidade educação de jovens e adultos.
Projeto | Quantidade de Estudos |
---|---|
Correção de Fluxo | 2 |
Digitando o Futuro | 2 |
Educação Juvenil | 2 |
Escola Cidadã | 2 |
A Escola de cara nova na era da informática | 1 |
Alunos Residentes | 1 |
Amigos da Escola | 1 |
Desenvolvimento de Ensino Curricular | 1 |
Educação de jovens e adultos na universidade | 1 |
Educação Física em tempos de Reestruturação Produtiva | 1 |
Escola do Campo- Casa Familiar Rural | 1 |
Escola Jovem | 1 |
Escolas de Empresas | 1 |
Evolução | 1 |
Formação Continuada | 1 |
Informática | 1 |
Juventude Cidadã | 1 |
Nordeste | 1 |
Parceria Universidade-Escola | 1 |
Semear | 1 |
Universidade para Todos | 1 |
Fonte: Dados da pesquisa
A escolha do projeto, como objeto de análise da política educacional, ocupa a segunda maior concentração de pesquisas nas dissertações e teses que constituíram o foco deste estudo. É também a ação em que se observa a maior dispersão nas investigações. Muitos projetos analisados fazem parte do leque de ações de programas educacionais, como, por exemplo, o Projeto A Escola de Cara Nova integra o Programa Nacional de Informática. Nesse caso, o objeto de investigação é delimitado pela autoria da pesquisa à análise de um único projeto.
Política | Quantidade de Estudos |
---|---|
Políticas Educacionais | 6 |
Expansão do Ensino Superior | 2 |
A Escola de Cara Nova | 1 |
Ampliação da Jornada | 1 |
Atividades Pedagógicas | 1 |
Ciclos de Formação | 1 |
Educação Ambiental | 1 |
Educação Básica do Empresariado | 1 |
Inserção de Ferramentas Computadorizadas | 1 |
Intercâmbio Universitário | 1 |
Línguas Estrangeiras | 1 |
Parcerias Público-Privado | 1 |
Fonte: Dados da pesquisa.
Entre os estudos expostos no quadro 4, seis propuseram uma análise da concepção de uma determinada política ou das ações mais amplas na área educacional de uma gestão. São estudos em que o objeto é tratado na sua perspectiva histórica, conceitual ou conjuntural. Os demais se voltam para temas diversos da educação, menos relacionados a níveis e modalidades e mais a temas afins ao trabalho educacional, como educação ambiental, informatização na educação, intercâmbio universitário. Em menor escala aparecem os trabalhos que realizam análises de mais de uma ação governamental, conforme mostra o quadro 5.
Nome da Política | Quantidade de Estudos |
---|---|
Programa Circuito Campeão, Programa Alfa Beta, Programa Alfabetização Pós- construtivista | 1 |
Projeto Recuperação de Ciclo, Programa Classes de Recuperação de Ciclo | 1 |
Projeto Ciclo Básico de Alfabetização, Programa de Qualidade Total em Educação, Projeto de Melhoria da Educação Básica | 1 |
Fonte: Dados da pesquisa.
A maior parte dos estudos concentra as análises em ações de governos (federal, estadual, municipal) e poucos são os que investigam ações de setores privados (empresas, sistema S, organizações não governamentais e sindicais), embora já vigorasse o incentivo ao estabelecimento das parcerias público-privado na educação nos anos 2000.
A quantidade e a diversidade de ações definidas pelos autores, como objeto de estudo, são a expressão da pulverização de políticas das três esferas governamentais. A descontinuidade é uma característica muito particular das políticas educacionais brasileiras, que ficam sujeitas às vontades dos grupos que conduzem a gestão pública8. Mesmo no caso de ações que se voltam para um determinado público, como é o caso da educação de jovens e adultos, identifica-se uma diversidade de propostas que é reveladora de uma certa desarticulação entre municípios, estados e União na condução das questões educacionais, ainda que prevista constitucionalmente a autonomia dos entes na condução das suas políticas.
Stremel (2016), ao realizar uma análise histórica da constituição do campo acadêmico da política educacional no Brasil, evidencia a necessidade de se examinar a formação de um campo a partir das mudanças ocorridas no tempo, bem como do conjunto de elementos que determinam o objeto de estudo. A autora argumenta que se trata de um campo em expansão e ainda em construção e conclui que uma parte significativa das pesquisas e das publicações na área refere-se ao estudo de políticas educacionais específicas.
Os quadros 2 e 3, que concentram a maior parte dos trabalhos (127) desenvolvidos, corroboram a constatação da pesquisa de Stremel (2016) de que há uma tendência da comunidade científica de opções por estudos de ações educacionais específicas. Contrariamente, estudos voltados para o planejamento mais amplo da política educacional, como a análise de planos ou políticas, são pouco expressivos.
Características do objeto da pesquisa sobre planos, programas e projetos
A análise sobre as características dos objetos da política educacional e sobre os recortes adotados pelos pesquisadores requer que se apresente no âmbito do corpus da pesquisa, os níveis, etapas e modalidades aos quais os planos, programas e projetos estão vinculados, bem como a abrangência das ações, a delimitação geográfica e temporal do estudo e os sujeitos da pesquisa.
Os níveis de ensino implicados nas pesquisas são um primeiro aspecto a ser destacado no conjunto dos trabalhos. A maior parte dos estudos (74%) foi realizada sobre planos, programas e projetos voltados à educação básica. As investigações sobre essas ações estatais no ensino superior ficaram restritas somente a 15% do total de 149 pesquisas sistematizadas. Em algumas situações, os resumos não permitiram identificar a etapa relacionada (7%) ou a classificação não se aplicava, decorrente do tipo de pesquisa (4%).
A predominância de estudos sobre a educação básica, situação também identificada nos estudos de Souza e Kerbauy (2015), pode estar relacionada com a história recente das políticas educacionais, especialmente com os direitos conquistados no âmbito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), pois essa lei, além de reconfigurar a educação básica, previu mecanismos complementares para a garantia do direito à educação obrigatória, mediante programas voltados ao acesso e à qualidade da educação, os quais são adotados como objeto de estudo em pesquisas nos programas de pós-graduação.
No que se referem às etapas da educação básica contempladas nas pesquisas, os resumos revelaram alguns limites, uma vez que não foi possível identificar a informação em 38% deles. Em 19% a classificação por etapa não se aplicava, seja porque as pesquisas ocorreram no âmbito do ensino superior ou da educação não formal9, ou porque se tratavam de estudos que analisavam políticas de um modo geral.
Naqueles resumos, no total de 65, em que a informação foi detectada, houve a predominância de pesquisas sobre o ensino fundamental (55%), seguido pelo ensino médio (37%), havendo situações de investigação das duas etapas articuladamente (2%). A prevalência de investigações sobre o ensino fundamental também foi detectada nos estudos de Souza e Kebauy (2015), no entanto, diferentemente dos resultados das autoras, houve maior expressividade no número de pesquisas sobre o ensino médio, denotando o interesse por programas e projetos que visam apoiar a oferta dessa etapa da educação básica, que passou a ser obrigatória desde o ano de 2009, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 59.
Pesquisas voltadas a programas e projetos direcionados à educação infantil foram 6% dos trabalhos identificados. Apesar dos “reclames sociais por mais ou melhor educação” (SOUZA, 2016, p. 81) e do reconhecimento da educação infantil como direito educacional, as políticas para a criança pequena são insuficientes, o que se reflete no próprio interesse da academia e no número de pesquisas desenvolvidas na área durante a década analisada.
O material submetido à análise de conteúdo permitiu conhecer as modalidades da educação básica envolvidas em 42% dos estudos cujos resumos explicitaram a informação, pois, na maioria dos casos (58%), essa classificação não se aplicava. Entre as modalidades, houve, de forma predominante (dois terços), pesquisas sobre a educação de jovens e adultos ou sobre a educação profissional, inclusive articuladas entre si ou com outras modalidades, refletindo a questão social no campo da educação e trabalho10.
A análise da abrangência dos planos, programas, projetos, no que se refere à sua vinculação, contemplou somente os resumos nos quais a esfera promotora estava explicitamente identificada, cerca de três quartos do total do universo analisado. A esfera promotora foi entendida como aquela que desenha e financia a política investigada. A maior parte dos estudos (48%) foi sobre ações promovidas pelo governo federal, portanto, predominaram aquelas de caráter nacional. Estados (25%) e municípios (23%) também tiveram significativa responsabilidade sobre os objetos de pesquisa aos quais se dedicaram os pós-graduandos das IES analisadas. Ações financiadas pela iniciativa privada no âmbito da educação pública também foram foco de análise, porém restritas a 4% do universo, o que denota a necessidade de mais estudos sobre as relações entre o público e privado na educação.
A abordagem dos planos, programas e projetos, a partir da perspectiva da esfera executora, leva a evidenciar uma multiplicidade de composições que remetem à colaboração federativa no processo de implementação das políticas educacionais. Em geral, os municípios foram executores da maior parte das políticas analisadas, com 45% do universo da pesquisa, seguidos pelos estados (37%), pelo governo federal (11%) e pelo setor privado ou sociedade civil organizada (7%), individualmente ou em colaboração, com a predominância do financiamento público, sobretudo federal.
No universo das investigações analisadas, a maior parte esteve circunscrita às esferas municipais (30%) ou estadual (27%), sendo que 22% dos trabalhos foram circunscritos ao âmbito das unidades de ensino, secretarias de educação ou outros tipos de instituições educacionais. Estudos de abrangência nacional ficaram restritos a somente 13% dos trabalhos, embora quase a metade dos objetos de pesquisa tenha a esfera federal como promotora, denotando a importância das políticas federais desenvolvidas em regime de colaboração. Portanto, há evidências da necessidade de investigações que tomem a análise dos planos, programas e projetos em âmbito nacional, como condição para avançar na construção do campo da política educacional.
A distribuição das 149 pesquisas sobre análise de planos, programas e projetos desenvolvidas na década analisada (2000 a 2010) entre as Instituições de Ensino Superior (IES) revela a concentração na região sudeste do país, com 69% dos estudos, seguida pela região sul (26%) e centro-oeste (5%). O problema da concentração foi apontado por Santos e Azevedo (2009), mas, no âmbito deste artigo, essa realidade decorre, também, do critério de seleção das IES para compor a amostra da pesquisa: as maiores notas na avaliação trienal da Capes em 2010.
Na relação entre a delimitação geográfica do objeto da pesquisa com a disposição geográfica da IES, verifica-se que, em geral, a maior parte dos estudos desenvolvidos investigou planos, programas e projetos executados na região sudeste (56%) e sul do país (31%), com pouca participação na análise voltada às políticas desenvolvidas nas regiões centro-oeste (9%) e nordeste (4%). Os dados esclarecem a tendência de as pesquisas serem sobre programas e projetos das mesmas regiões e estados onde se localizam as IES, com poucas exceções.
A distribuição dos trabalhos entre as IES contempladas no estudo pode ser observada no gráfico 1.
O gráfico revela que os programas de pós-graduação que mais produziram teses e dissertações vinculadas à análise de planos, programas e projetos foram Unicamp (18), PUC-RJ, UFMG e USP (13 trabalhos cada), UFF, Unisinos, UFPR, UFRGS e UFF (12 trabalhos cada) e Unimep (11 trabalhos).
No entanto, a análise do limite geográfico dos planos, programas e projetos pesquisados nos programas de pós-graduação das referidas IES, com base nos resumos que fizeram a identificação, revela que, além de contemplarem seus próprios estados, algumas IES incorporam, também, propostas de análise de políticas de outros estados ou regiões, de modo que foi possível identificar estudos sobre Pernambuco (dois), Piauí (três), Mato Grosso (dois) e Santa Catarina (um) em IES de outros estados ou regiões do país11. Nota-se a ausência de estudos sobre todos os estados do norte brasileiro, assim como de sete estados nordestinos e um estado do centro-oeste.
O recorte temporal foi abordado com base nas informações disponíveis nos resumos. No entanto, cerca de 60% deles não informaram o período coberto pela pesquisa. A maior parte das produções que informaram recorte temporal investigou planos, programas e projetos em período recente, ou seja, na mesma década de realização da pesquisa de pós-graduação, entre os anos de 2000 a 2010, representando 46% do total. 28% investigaram períodos anteriores a 2000 e 26% adotaram recortes que mesclam período anterior e posterior ao ano 2000. Esses dados sugerem uma tendência da produção focada em períodos recentes.
Ao considerar o interstício em número de anos, foi possível verificar que a maior parte dos trabalhos investiga os planos, programas e projetos em curto prazo de implementação, pois 33% têm um recorte temporal de até um ano, 25% de dois a cinco anos e 11% de seis a nove anos, totalizando 69% dos trabalhos que informaram o recorte temporal. Trabalhos com recorte mais amplo também foram encontrados, já que 23% investigaram de uma a duas décadas, 5% de três a quatro décadas e 3% mais de quatro décadas.
No período de 2000 a 2010 foram produzidas, em média, 13 pesquisas por ano sobre planos, programas e projetos nas IES analisadas, com progressivo aumento no decorrer do interstício. O maior interesse da comunidade acadêmica por análises ou avaliações de políticas demanda a permanente realização de revisões sistemáticas sobre a produção em política educacional, visando o avanço e a consolidação do campo.
A abrangência, no que se refere aos sujeitos da pesquisa, foi analisada a partir da menção a 114 interlocutores nos estudos, que apareceram individualmente ou agregados a outros, conforme o desenho da pesquisa, informação apresentada em cerca de 40% dos resumos. Foram sujeitos privilegiados nesses estudos os alunos (43%), os professores (35%), as famílias (10%), as equipes gestoras (9%) ou outros membros da comunidade (3%). Se por um lado alunos e professores são sujeitos importantes na análise da política educacional, nota-se a pouca menção à comunidade externa à escola. A sociedade civil organizada, representada pelos movimentos sociais e sindicais, associações, partidos políticos e outros agrupamentos, tem um papel importante no processo de construção da agenda de programas e projetos, demonstrando a necessidade da escuta de diferentes vozes da sociedade civil nesse campo de estudo.
Tanto a ausência dessas outras vozes quanto as demais lacunas ou prevalências identificadas neste artigo são decorrentes das escolhas do pesquisador, que não são neutras, e das condições objetivas de produção da ciência no país - em especial, do financiamento para as pesquisas e da limitação de tempo para o encerramento das investigações - que acabam por interferir na delimitação do objeto.
Conclusão
O estudo a respeito da delimitação do objeto em teses e dissertações sobre análise de planos, programas e projetos permitiu apreender algumas das características da produção científica no campo da política educacional brasileira. Nesta conclusão, alguns aspectos podem ser destacados.
O reduzido número de trabalhos sobre a educação infantil e o expressivo interesse pela modalidade educação de jovens e adultos. Neste percebe-se o peso na sociedade brasileira de um sistema educacional que não oferece as possibilidades de realização dos estudos na idade esperada e acaba por produzir a necessidade de ações voltadas para esse público. Naquele identifica-se a fragilidade de uma etapa da educação básica cujo direito ainda não é assegurado à população e, consequentemente, não é alvo das análises acadêmicas pela pouca expressividade nas políticas, situação também observada em outras modalidades, como educação quilombola e indígena, totalmente ausentes na base de pesquisa.
A concentração de investigações sobre ações educacionais realizadas nas regiões sudeste e sul do Brasil. Esta é uma constatação que corrobora o modelo tradicional de desenvolvimento do país, cujas assimetrias econômicas entre as regiões se refletem na formação acadêmica. Especificamente na pós-graduação stricto sensu, os critérios de financiamento e organização têm produzido severas desigualdades regionais nas condições de oferta nos programas. Não há dúvidas de que essa realidade repercute nas escolhas dos objetos e no desenho das pesquisas desenvolvidas. Assim, o conhecimento produzido, que deveria servir de instrumento de intervenção e transformação da realidade, acaba por não cumprir esse papel.
A diversidade e a quantidade de ações selecionadas como objeto de investigação pelos autores das teses e dissertações e o limitado número de trabalhos que se debruçam sobre a análise da política em âmbito nacional. Esta pesquisa permitiu concluir que a pulverização de políticas nas três esferas governamentais se reflete na definição e na delimitação dos objetos de pesquisa, pois cria condições favoráveis à dispersão da produção. Do ponto de vista do direito à educação, essa dispersão cria dificuldades para a formação de coletivos que busquem, na produção científica, subsídios para fundamentar proposições de continuidade ou ampliação do financiamento de determinadas ações, assim como propostas para mudanças ou interrupções de políticas que não atendam a seus interesses e necessidades.
Por fim, o estudo permite inferir que a política educacional pauta a agenda de pesquisa na pós-graduação e que a fragmentação das ações no setor público tem reflexo direto na produção de conhecimento no campo da política educacional no país. No período analisado (2000-2010) foi possível perceber um aumento progressivo do interesse da comunidade acadêmica por análises de programas e projetos, o que reforça a relevância da realização permanente de estudos de revisão sistemática que apontem tanto as características da produção, quanto as lacunas e prevalências neste campo do conhecimento.