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Jornal de Políticas Educacionais

On-line version ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.13  Curitiba  2019  Epub July 18, 2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v12i0.65205 

Dossiê: Pesquisa em políticas educacionais e a constituição do campo da educação

Equidade e desigualdade escolar em um recorte da produção acadêmica da sociologia da educação sobre políticas educacionais no Brasil (2006-2017)

Equity and School Inequality in a Sample of Academic Production of Sociology of Education on Educational Policies in Brazil (2006-2017)

Equidad y Desigualdad Escolar en un Recorte de la Producción Académica de la Sociología de la Educación sobre Políticas Educativas en Brasil (2006-2017)

Vanda Mendes Ribeiro1 

Alicia Bonamino2 

Cynthia Paes de Carvalho3 

1Doutora em Educação (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicid e do Mestrado Formação de Gestores Educacionais da mesma instituição

2Doutora em Educação e Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coordenadora do Laboratório de Avaliação em Educação (LAEd)

3Doutora em Educação e Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) e coordenadora do GESQ - Gestão e Qualidade da Educação


Resumo

Este artigo apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa que analisa o modo como estudos que investigam políticas de educação básica no Brasiltêm definido e operacionalizado os conceitos de desigualdade escolar e equidade educacional. Foram analisados 55 textos publicados no GT 14 - Sociologia da Educação da Anped, entre 2006 e 2017. A seleção dos textos fez uso de dois critérios: trabalhos que tinham a indicação das palavras-chave “desigualdade”, “desigualdade escolar” e “equidade”; e um “olhar de pertinência” das autoras, a partir da leitura dos resumos.Com base em discussão teórica sobre noções contemporâneas de justiça, que fundamentam os conceitos de equidade e desigualdade escolar, foram estabelecidas duas categorias de análise: 1 - definições e operacionalizações que consideram a perspectiva da redistribuição; 2 - definições e operacionalizações pautadas na noção de reconhecimento.A análise traz indícios de que a Sociologia da Educação que estuda políticas educacionais no país operacionaliza os conceitos de desigualdade ou equidade fazendo uso mais frequente da perspectiva de justiça redistributiva e raramente da concepção de justiça como reconhecimento. O estudo sinaliza para a relevância de a pesquisa sobre políticas de educação básica avançar em direção a um novo enquadramento conceitual, que incorpore as duas perspectivas de justiça tratadas neste texto como referência para os estudos sobre o cumprimento do Direito à Educação no Brasil.

Palavras-chave Desigualdade Escolar; Equidade; Políticas Educacionais; Estado do Conhecimento

Abstract

This article presents the first results of a research that analyzes the way in which studies investigating basic education policies in Brazil defined and operationalized the concepts of school inequality and educational equity. Fifty-five texts published in Work Group 14 - Sociology of Education - of the National Association for Research and Post-Graduation between 2006 and 2017 were analyzed. The selection of the texts made use of two criteria: papers that indicated the keywords "inequality", "school inequality" and "equity" "; and a "look of pertinence" of the authors, from the reading of the abstracts. Based on a theoretical discussion about contemporary notions of justice that underlie the concepts of school equity and inequality, two categories of analysis were established: 1 - definition and operationalization that consider the perspective of redistribution; 2 - definition and operationalization based on the notion of recognition. The analysis brings indications that the Sociology of Education studies about educational policies in the country operationalize the concepts of inequality or equity more frequently using the perspective of redistributive justiceand rarely the conception of justice as recognition. The study indicates the relevance forthe research on basic education policies to move towards a new conceptual framework that incorporates the two perspectives of justice discussed as a reference for studies on the fulfillment of the Right for Education in Brazil.

Keywords: School Inequality; Equity; Educational Policies; State of Knowledge

Resumen

Este artículo presenta los primeros resultados de una investigación que analiza el modo como estudios que investigan políticas de educación básica en Brasil, definieron y operacionalizaron los conceptos de desigualdad escolar y equidad educativa. La selección de los textos hizo uso de dos criterios: trabajos que tenían la indicación de las palabras clave "desigualdad", "desigualdad escolar" y "equidad" "; y una "mirada de pertinencia" de las autoras, a partir de la lectura de los resúmenes. Con base en discusión teórica sobre nociones contemporáneas de justicia, que fundamentan los conceptos de equidad y desigualdad escolar, se establecieron dos categorías de análisis: 1 - definiciones y operacionalizaciones que consideran la perspectiva de la redistribución; 2 - definiciones y operacionalizaciones pautadas en la noción de reconocimiento. El análisis trae indicios de que la Sociología de la Educación que estudia políticas educativas en el país operacionaliza los conceptos de desigualdad o equidad haciendo uso más frecuente de la perspectiva de justicia redistributiva y raramente de la concepción de justicia como reconocimiento. El estudio señala la relevancia de la investigación sobre políticas de educación básica avanzar hacia un nuevo marco conceptual que incorpore las dos perspectivas de justicia tratadas en este texto como referencia para los estudios sobre el cumplimiento del Derecho a la Educación en Brasil.

Palabras claves Desigualdad Escolar; Equidad; Políticas Educativas; Estado del Conocimiento

Introdução

Este artigo apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa que analisa o modo como estudos que investigam políticas de educação básica no Brasil têm definido e operacionalizado os conceitos de desigualdade escolar e equidade educacional. Avaliou-se que a produção acadêmica divulgadanos anais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), principal fórum de discussão das pesquisas nacionais da área, poderia ser um bom indicador do que o campo educacional vem produzindo sobre a temática abordada. Os primeiros resultados, tratados neste texto, dizem respeito atrabalhos publicados no GT 14 - Sociologia da Educação, entre 2006 e 2017. Como a partir de 2013 as reuniões da Anped passaram a ser bianuais, foram cobertas, ao todo, 10 edições do evento. A decisão de iniciar a pesquisa por esse Grupo de Trabalho se deve à natureza dos seus objetivos, conforme explicitados no site da Anped, os quais indicam interesse central nas desigualdades sociais e escolares4, considerando seus reflexosnas análises de políticas educacionais. O levantamento dos 55 textos analisados seguiu dois critérios: trabalhos que tinham a indicação das palavras-chave “desigualdade”, “desigualdade escolar” e “equidade”; e um “olhar de pertinência” das autoras, a partir da leitura dos resumos.

A pesquisa encontra-se inspirada no estado de conhecimento sobre a relação família-escola realizado por Nogueira (2015) com base em um conjunto de dissertações de mestrado e de teses de doutorado defendidas de 1997 a 2011 nos Programas de Pós- Graduação brasileiros. Nogueira diferencia as tipologias dos estudos “estado de conhecimento” e “estado da arte” a partir de sua abrangência. Enquanto o segundo tipo “abrange a produção de conhecimento em uma determinada área, focalizando os diversos tipos de publicações disponíveis”, o estado do conhecimento “aborda um único setor das publicações sobre um tema” (NOGUEIRA, 2015, p.1).

Para a análise, os 55 trabalhos encontrados com base no critério de busca foram distribuídos entre as três autoras. Para fins deste artigo, as leituras foram conduzidas de modo a encontrar, nos textos, informações referentes à forma de apreensão e operacionalização do conceito de desigualdade escolar e equidade.

A busca por estudos sobre equidade e educação básica, por meio da palavra- chave “equidade”, no ano de 2010, levou Ribeiro (2012) a concluir que artigos, teses e dissertações que estudavam essa temática, considerando explicitamente a etapa de ensino fundamental, no Brasil, eram poucos (foram localizadas no total, naquele momento, apenas 11 teses ou dissertações; um artigo na base Scielo; e três artigos no site Google) e recentes (a maior parte dos trabalhos tinha sido publicada depois de 2006). A maioria das pesquisas identificadas podiam ser classificadas como pertencentes ao campo de estudos nomeado como “eficácia escolar”. Goldstein e Woodhouse (2008, p. 411) afirmam que esses estudos têm foco em “demonstrar que, mesmo quando fatores sociais ou outros fatores eram levados em consideração, ainda permaneciam algumas diferenças entre as escolas que poderiam ser atribuídas à qualidade da educação escolar em si”.

A autora observou serem esses estudos relevantes porque caracterizavam os níveis de equidade educacional de sistemas de ensino e identificavam fatores que incidiam sobre o desempenho dos alunos e sobre a desigualdade escolar, além de oferecerem pistas para o desenho de políticas educacionais. A autora não encontrou, porém, reflexões a respeito do conceito de equidadee sua relação com a questão da desigualdade escolar e da justiça social.

No entanto, para Ribeiro (2012), essas noções estão fundamentalmente atreladas aos princípios de justiça que regem as formas legítimas de distribuição de um bem social altamente valorizado nas sociedades democráticas contemporâneas: o conhecimento. Equidade constitui-se, para ela, mais especificamente, em um dos critérios que sustentam as decisões e a efetivação de políticas públicas, situando-se, assim, no centro dos conflitos de interesses da sociedade. Na área da educação, a compreensão do critério de justiça presente no campo da gestão das políticas educacionais se vincula à discussão sobre a pertinência do enfrentamento da desigualdade escolar e como ele deve se efetivar. Desnudar o modo como tais conceitos têm sido usados na pesquisa da Sociologia da Educação sobre políticas educacionais, foco deste trabalho pode, portanto, trazer indicativos sobre as percepções de justiça subjacentes às pesquisas. Santos (1979) considera que um dos fatores que interferem nas políticas públicas é o conhecimento e as intencionalidades das elites políticas. Esse apontamento leva a inferir a existência de uma relação, ainda que não direta, entre a produção do conhecimento e as políticas públicas. Assim sendo, o modo como a Sociologia da Educação vem operando os conceitos de desigualdade educacional e equidadepode fornecer indícios da influência dessa compreensão nos desenhos e na implementação das políticas educacionais, enquanto meio legítimo de distribuição do conhecimento e do reconhecimento, importantes para a garantia de Direitos Sociais, conforme indica a literatura a seguir.

Discutindo fundamentos dos conceitos de equidade e desigualdade escolar

Desde os gregos, critérios de justiça para legitimar a distribuição do que é valorizado socialmente têm lugar entre pensadores e na política. Aristóteles (1987) buscou compreender e explicitar o que seriam a justiça e a injustiça na distribuição de bens. Em “Ética a Nicômaco”, o autor afirma que quem pratica a lei é tido como justo, uma vez que está assegurando o que é legítimo, ou seja, o bem comum. Aristóteles divide a justiça em duas “espécies”:

... a que se manifesta nas distribuições de honras, de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (pois aí é possível receber quinhão igual ou desigual ao de um outro); e aquela que desempenha um papel corretivo nas transações entre indivíduos (p. 84).

De acordo com Aristóteles, essa última espécie de justiça é normalmente conduzida por um juiz. A primeira seria baseada no mérito individual: o justo, nesse caso, viria da proporcionalidade. Já a justiça corretiva não se vincularia ao mérito, mas a uma proporção que Aristóteles chamou de aritmética e destinada à igualdade. Na relação com esses tipos de justiça, o autor introduziu a noção de equidade, que, para ele, é uma correção da justiça legal, sendo, assim, superior à justiça. O autor afirma que a justiça legal diz respeito ao que é universal, sendo, por isso, passível de erro em sua aplicação. Por essa razão, a equidade seria superior, pois diz respeito à correção de um erro “proveniente do caráter absoluto da disposição legal”.

Em Aristóteles, encontramos, não somente uma discussão sobre justiça na distribuição de bens sociais, como também a noção de equidade como algo que corrige a aplicabilidade da lei universal, em favor da igualdade. Para Fleischacker (2006), se é verdade que a discussão sobre critérios justos para a distribuição de bens atravessa milênios, também é verdade que o tipo de bens para o qual se definem critérios de justiça varia no decorrer do tempo e entre as sociedades.

Até muito recentemente, as pessoas não reconheciam que a estrutura básica de distribuição de recursos em suas sociedades era uma questão de justiça, e tampouco consideravam que a justiça deveria exigir uma distribuição de recursos que satisfizesse as necessidades de todos. [...]. Durante muito tempo se acreditou amplamente que certos tipos de pessoas deveriam viver em estado de necessidade, que essas pessoas não trabalhariam se não fosse assim, ou que a pobreza delas fazia parte de uma ordem divina. (p. 4-5).

A concepção de que a distribuição de bens econômicos pode ser injusta, necessitando de critérios legítimos pactuados para sua distribuição, é fruto de uma determinada construção histórica. Maffettone e Veca (2005) situam o papel de Marx nessa mudança por ter este elaborado uma das teorias responsáveis pelo atrelamento da ideia de justiça aos bens socioeconômicos e às relações sociais. Para Maffettone e Veca (2005), até então, tanto junto aos antigos (Platão e Aristóteles), como junto aos modernos (contratualistas), a justiça se reportava unicamente ao âmbito da política, das instituições de base.

Se para Hobbes a incerteza, a escassez e o conflito geram a resposta em termos de prioridade da política, para Bentham, Mill e Marx, incerteza, escassez e conflito concentram-se no âmbito das interações e das relações propriamente sociais. Desse modo, é a sociedade que assume prioridade sobre a política. A questão da justificação atinge, então, os modelos de distribuição de custos e benefícios da cooperação social e as relações sociais de produção. Assim, a justiça reinterpreta-se propriamente como justiça social [...]. A relação entre justiça política (instituições de base) e justiça social constitui um pano de fundo apropriado para justificar os desenvolvimentos e as controvérsias que caracterizam neste século a noção de justiça distributiva como noção central da teoria política normativa (p. XX).

A leitura de “A Questão Judaica”, de Marx (1980), permite, de fato, verificar que esse autor construiu um modo de compreender as razões pelas quais bens sociais como a riqueza e os meios usados para a produção encontram-se distribuídos nas sociedades capitalistas, modo esse que se tornou uma das principais referências teóricas para o mundo moderno, conforme apontam Maffettone e Veca (2005). De acordo com Marx (1980), na vida real, há graus deliberdade e de igualdade, no marco das sociedades democráticas modernas, que são dependentes da maneira como duas distintas e complementares classes sociais 5 se relacionam com os meios de produção. Os capitalistas são os donos dos meios de produção - o que também lhes garante poder e dominação - e os proletários, donos apenas da força de trabalho, necessitam vendê-la para sobreviver. De acordo com o autor, a igualdade estabelecida na Declaração dos Direitos do Homem6 é a anulação abstrata das “diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação do homem como diferenças não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças [...]; ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado” (MARX, 1980, p. 25). “O Estado político acabado é, pela própria essência, a vida genérica do homem em oposição a sua vida material” (MARX, 1980, p. 26). Na vida material percebe-se a contradição, na visão de Marx, “entre o trabalhador e o cidadão, [...] entre o indivíduo vivendo e o cidadão, [...] entre o interesse geral e o particular” (ibid, p. 27).

O acesso a qualquer bem social nas sociedades capitalistas está, para Marx, condicionado à posição de cada um nas classes sociais constituintes dessas sociedades. As chamadas teorias contratualistas surgiram nas sociedades ocidentais a partir do século XVI, no vácuo da desconstrução dos fundamentos da sociedade aristocrática, a qual pressuponha lugares sociais fixos e justiça transcendental. Um novo grupo social estava em ascensão, a burguesia. Os indivíduos passam a serem representados como livres e iguais. Por isso, a necessidade de um pacto, com mecanismos de proteção da propriedade e de definição das regras sociais num tipo de sociedade onde o poder encontra-se fluido (LEFORT, 1991).

De acordo com Marx (1980), a igualdade real somente pode ser alcançada com mudanças nas relações sociais no que tange ao seu vínculo com o modo como os meios de produção estão distribuídos. Dialeticamente, é por meio do poder político, da emancipação política (que se consolida com o estabelecimento do Estado moderno) que se pode chegar à verdadeira emancipação humana (quando os proletários conseguem ter acesso aos meios de produção, havendo uma divisão igualitária dos bens sociais, instauradacom o fim da propriedade privada). Dessa forma, Marx explicita em teoria, o que as conturbadas revoltas sociais anunciam no plano social e político: a discussão sobre justiça na distribuição dos bens econômicos. A distribuição desses bens passou a ser considerada, nesse momento histórico, injusta, ilegítima, gerando assim a percepção da existência de uma “questão social” a ser solucionada .A proposição de Marx (1978, 1980) tem implicações, ainda hoje, no modo de pensar a justiça, mesmo entre aqueles que não acreditam na possibilidade da igualdade total e na bondade entre todos os homens, como Strike (1989). Ou ainda entre aqueles que não desejam a igualdade total, como Rawls (2003), por valorizar a forma de sociedade democrática com seus pilares sobre igualdade e também sobre liberdade, sem proeminência de uma sobre a outra.

As chamadas “teorias da justiça distributiva” contemporâneas, das quais John Rawls e Robert Nozick são representantes antagônicos, têm posições distintas quanto a aceitar ou não a proposição de Marx, adotada como marco sociológico, de que também nas sociedades democráticas modernas o acesso aos bens econômicos depende de relações sociais sobre as quais o indivíduo não tem total governabilidade: os igualitaristas liberais, tais como Rawls (2003), aceitam tal proposição; os libertaristas “puros”, como Robert Nozick (1991), não.

A política, para Rawls (2003), pode garantir instituições regidas por critérios de justiça que visam manter as liberdades básicas (direito de ir e vir, direito a se organizar, direito a proferir ideias) e a igualdade nas distribuições dos recursos econômicos, de modo a garantir a dignidade de todos. Rawls (2003) propôs a teoria da justiça como equidade, que abraça bons argumentos daqueles que, como Marx (1980), relacionaram injustiça e desigualdade social: o foco somente na liberdade do indivíduo não garante justiça social. A justiça seria, segundo ele, fruto do equilíbrio entre liberdade e igualdade. A compreensão do conceito rawlsiano de justiça como equidade exige esclarecimentos sobre como o autor entende a ideia de talento natural, expressa por ele como a “inteligência inata e aptidões naturais”. Para Rawls (2003), aptidões e talentos não seriam algo independente da sociedade e de suas instituições. Mesmo quando tais instituições estão adequadamente organizadas para a boa expressão ou educação dos talentos e aptidões que existem potencialmente nos indivíduos, não há como mensurar se eles são totalmente efetivados na vida social.

A teoria da justiça de Nozick (1991) defende o direito do indivíduo à propriedade e à igualdade formal de oportunidades. Seria, para ele, um equívoco afirmar, como faz Rawls (2003), que “a cooperação social cria o problema da justiça distributiva”. Nozick (1991) pressupõe a possibilidade de existência de um homem em uma ilha, produzindo pelos seus próprios esforços, sem consideração a determinações da cooperação social.

Coloca-se assim uma das grandes diferenças entre Nozick (1991) e Rawls (2003). Nozick (1991) focaliza seu argumento sobre a noção de mérito, “de se ser mais ou menos bem-dotado”. Esse mérito é algo individual, sem vínculo ou relação de dependência com instituições, prévias ou atuais, políticas ou sociais. A proposição de

Rawls (2003) não somente afirma que o indivíduo não pode existir com capacidade de julgamento e com possibilidade de expressar seus talentos e aptidões, de forma independente do que a vida social lhe permitiu, como também sustenta não ser razoável adotar uma teoria de justiça com base unicamente na ideia de mérito individual.

Para Rawls (2003), o princípio da igualdade formal de oportunidades (com seu princípio meritocrático) não pode ser anulado, uma vez que, nas sociedades democráticas, é preciso garantir a ideia de liberdade básica do indivíduo e não somente a de igualdade. A liberdade é a garantia da preservação da noção de mobilidade social, base do tipo de sociedade em que vivemos. Na busca de equilíbrio, o autor, para a organizaçãoda vida social e política, apresenta o conceito de igualdade equitativa de oportunidades: o foco não é sobre o indivíduo que merece mais ou menos devido a seus talentos, mas, sim, sobre os arranjos institucionais menos ou mais capazes de gerar igualdade de oportunidades e garantir, simultaneamente, igualdade e liberdade.

O autor recupera, assim, a noção corretiva de equidade cunhada por Aristóteles, como critério de justiça superior à noção de proporcionalidade meritocrática nas distribuições entre indivíduos. A cooperação social é superior ao mérito porque os indivíduos se constituem nas relações sociais. Advém desse suposto seu critério de justiça como equidade que implica considerar o princípio da diferença. De acordo com esse princípio, nas sociedades democráticas contemporâneas, uma distribuição deve sempre favorecer os mais desprovidos. Com esse princípio, o autor busca corrigir o acúmulo de privilégios nas distribuições de bens econômicos que ocorrem ao longo de gerações, devido à tendência de, no capitalismo, haver produção constante de desigualdade e, portanto, de concentração de riquezas.

O modo como se compreendem as consequências das distribuições dos bens sociais também diferencia abordagens nas diversas teorias da justiça distributiva. Para Waltenberg (2008), libertaristas puros, como Nozick, focalizam apenas os processos de distribuição dos bens, sem considerar suas consequências. O resultado seria uma medida exata do mérito do indivíduo. Assim, se o processo for justo, seus resultados serão necessariamente justos. Igualitaristas, ao contrário, valorizam o peso da origem social sobre o mérito e, portanto, explicitam a necessidade de tratar da distribuição realizada e das consequências dos processos que realizam as distribuições. Rawls critica o utilitarismo7. O resultado das distribuições de bens, para ele, vincula-se à ideia de cooperação social ao longo do tempo entre pessoas iguais e livres, sendo fruto dos direitos que se estendem a todos e à coletividade, considerando a preservação da cooperação social por gerações. A consideração ao resultado estará, portanto, vinculada aos interesses da vida coletiva, mas de modo a favorecer a todos nos processos distributivos, sem que essa distribuição pressuponha igualdade total.

Definições sobre quais são os bens sociais valorizados para os quais a sociedade necessita estabelecer critérios para gerar justiça social implicam também em distintas concepções. Para Fraser (2007, 2014), o grande debate da justiça social hoje se centra na tensão entre compreendê-la como decorrente da distribuição de bens sociais econômicos (materiais) ou concebê-la como fruto do reconhecimento, do enfrentamento à subordinação de grupos sociais, construída no terreno cultural e da “pessoalidade”. Infere-se da leitura dessa autora que, tanto o conceito de equidade, tal como trazido por Rawls, quanto à proposição de fim da propriedade privada de Marx, associam-se à noção redistributivade justiça social.

A leitura de Fraser (2007; 2014) permite corroborar Fleischacker (2006), para quem a noção de bens sociais valorizados para os quais se devem ter critérios legítimos para a justiça social, varia segundo contextos sociais e históricos. Depreende-se da leitura de Fraser (2007), que, no processo de assentamento das bases do Estado de Bem-Estar Social, construído a partir das lutas pela distribuição de bens econômicos, movimentos sociaisconseguiram desnudar o fato de que a social democracia expressa um “acordo histórico de classe [que] repousava sobre uma série de exclusões de gênero, raça e etnia, sem mencionar a exploração neocolonial” (FRASER, 2007, p. 294).

Fraser (2007) irá detalhar diferenciações na forma de conceber a justiça social, decorrentes de diferentes momentos das lutas sociais no século XX, que implicam em formas distintas de compreender o que são os bens sociais para os quais as sociedades contemporâneas necessitam de critérios legítimos para sustentar a justiça social. Para ela, na primeira fase do movimento feminista, evidenciou-se a dominação masculina no plano pessoal, na clássica divisão entre esfera pública e privada. Ela afirma que o declínio das utopias de esquerda elevou “as questões culturais em primeiro plano”, o que culminou com a chamada “política de reconhecimento”, que acabou ficando confinada às lutas pelas identidades. Num momento em que o neoliberalismo crescia, desconstruindo a social democracia e gerando ampliação da concentração dos bens econômicos nas mãos de poucos, os movimentos feministas (sobretudo nos EUA), focados na discussão do respeito às identidades, não estabeleceram estratégias de luta pela justiça social em termos de distribuição de bens econômicos. Assim, para a autora, o movimento feminista passa de uma aproximação com o socialismo para a ênfase na necessidade de “reconhecer a diferença”. Fraser (2007) afirma que o principal problema foi que, no terreno do reconhecimento, os princípios de justiça ficaram subsumidos apenas ao terreno cultural, dissociados da questão da distribuição dos bens econômicos. Como consequência, os movimentos sociais perderam em capacidade de atuar contra as políticas neoliberais. “O resultado foi ter nos deixado sem defesa contra o fundamentalismo do livre-mercado, que tinha se tornado hegemônico” (p. 297).

Menos do que discutir a visão de Fraser (2007) sobre o modo como a questão do reconhecimento entrou na agenda dos movimentos sociais e suas consequências, o mais importante para este artigo é ressaltar que essa nova agenda gerou uma tensão na problemática da justiça social nas sociedades contemporâneas, impondo novidades ao debate sobre quais são efetivamente os bens sociais legítimos para os quais são necessários princípios de justiça acordados. Para Fraser (2007), o ponto nevrálgico da resposta a essa questão coloca a “pergunta-chave de nossa época”: como seria possível combinar, nos processos de distribuição de bens sociais, a distribuição de bens socioeconômicos, o reconhecimento e a representação política?

Essa questão se coloca devido à recente “percepção” de injustiça relativa à hierarquização de grupos sociais, determinando que, nas interações sociais, alguns grupos são menos relevantes, inferiores, gerando vantagens para outros. Fraser (2014) irá afirmar que nossa noção de justiça exige que “todos os governados por um conjunto comum de regras básicas sejam reconhecidos como relevantes, no sentido de que pertencem ao mesmo universo moral. Nenhum participante deve ser instrumentalizado para o benefício de outrem” (p. 269).

A forma como Fraser (2007; 2014) irá tentar solucionar essa tensão envolve dois movimentos. Trata-se, por um lado, do acolhimento da perspectiva da equidade de

Rawls, isto é, da noção de que é preciso distribuir bens econômicos a partir da estrutura básica da sociedade. Por outro lado, com os devidos cuidados para não reificar a cultura e a dimensão da “pessoalidade”, trata-se da aceitação de que a dimensão do reconhecimento, do universo da consideração moral, precisa compor a base de princípios de justiça, na busca pela justiça social nas sociedades democráticas contemporâneas. Em síntese, para Fraser, a dimensão do reconhecimento não deve ser apartada da questão da estrutura da distribuição de bens e, portanto, da justiça como equidade.

Essa discussão, própria para reflexões sobre justiça na distribuição de bens sociais, econômicos ou não, passou a fazer sentido no meio educacional, a partir dos anos 1960, quando influentes pesquisadores mostraram a existência de uma forte correlação entre desigualdade social e desempenho escolar (BOURDIEU; PASSERON, 1975; COLEMAN, 2008), fazendo com que a Sociologia da Educação se abrisse para investigações sobre a questão da produção e reprodução da desigualdade escolar e social.

Meuret (1999), Derouet (1992), Crahay (2000), Dubet (2009), Benadusi (2009), Rochex (2009) são alguns dos pensadores europeus que têm se dedicado a refletir sobre critérios justos na distribuição do que se poderia nominar de bem social “educação escolar” ou “conhecimento”. Dubet (2009), por exemplo, à luz de Rawls, irá propor a igualdade de base como critério de justiça na educação básica: numa etapa da escolaridade em que o direito à educação é obrigatório, seria incongruente definir como critério de justiça, o mérito individual. Trata-se de um critério que pressupõe que todos, independentemente de sua origem social, tenham recursos escolares capazes de lhes assegurar o domínio dos conteúdos que o Estado, expressando um consenso social historicamente construído, define como necessários na educação básica. Crahay (2000), por diferentes fontes de pesquisa, propõe um critério similar para a educação básica: a igualdade de conhecimentos adquiridos. São princípios de justiça vinculados à noção de equidade, de correção de desigualdades no âmbito escolar: dada a correlação entre desigualdade social e escolar, é necessário que, no processo de aprendizagem, haja atenção especial das políticas e práticas educacionais àqueles cuja origem social franqueia menor acesso a recursos socioeconômicos e culturais.

Conforme é possível observar, as noções de desigualdade social ou escolar somente fazem sentido quando se considera que existe algo que grupos sociais ou indivíduos deveriam ter acesso e não têm. Essas noções são posterioresa uma construção social que gera a percepção de que algo é injusto. E a noção de equidade, de acordo com as teorias aqui elencadas, está voltada para a correção de injustiças, para a consecução de uma percepção de igualdade.

As definições sobre quais princípios de justiça devem embasar a distribuição de bens sociais, numa perspectiva redistributiva ou de reconhecimento, são pertinentes para tratar de políticas públicas, que podem ser consideradas como o meio legítimo de estabelecer os modos como os direitos chegam até os cidadãos. Nesta pesquisa, considerando a relação entre conhecimento e políticas públicas, buscamos verificar que tipo de concepção de justiça tem influenciado o modo de operacionalizar os conceitos de desigualdade escolar e de equidade na pesquisa em Sociologia da Educação sobre políticas educacionais de Educação Básica.

Com base na discussão teórica feita acimaa respeito das noções contemporâneas de justiça, que fundamentam os conceitos de equidade e desigualdade escolar, foram estabelecidas duas categorias básicas para uma análise do modo como esses conceitos vêm sendo definidos e/ou operacionalizadosnos estudos das políticas educacionais de Educação Básica no país,vistos a partir do GT 14, da Anped: 1 - definições e operacionalizações dos conceitos de equidade educacional e desigualdade escolar, considerando a perspectiva da redistribuição; 2 - definições e operacionalizações dos conceitos de equidade educacionale desigualdade escolar considerando a noção de reconhecimento.

Análise

Para a análise, foram lidos 55 textos divulgados no âmbito do GT 14 Sociologia da Educação. Do total, 23 foram considerados não pertinentes, uma vez que, embora tivessem sido selecionados pela leitura do resumo, a segunda leitura, do texto completo, notificou não se tratar da temática política educacional e equidade e/ou desigualdade escolar. Esses textos, descartados, tratavam, em sua maioria, da relação família-escola e das desigualdades educacionais de acesso, permanência e desempenho, segundo variáveis sociais clássicas como gênero e origem social familiar do aluno, ou de acordo com o território de localização da escola, mas sem referência à política educacional. Dos 32 textos analisados, 29 foram produzidos na região Sudeste (RJ=18; SP=8; MG=3) e 2 na região Sul (PR e RS) e 1 da região Centro-Oeste (MS). Em relação às instituições de origem, cada uma das seguintes instituições contribuiu com 1 trabalho no período: UERJ, IBGE, UFF, UFSCAR, FCC, Unicamp, UFPR, UFMS, IFRS. A PUC-Rio apresentou 9 textos, a FEUSP, 4, a UFRJ, 5, a UFMG, 3 e o Cenpec, 2.

Dos 32 textos completos analisados, apenas 11explicitam claramente o conceito de desigualdade escolar ou de equidade utilizado. Quatro deles, ao fazer uma discussão teórica sobre princípios de justiça na Educação Básica, definem equidade educacional, conforme Dubet (2009) e Crahay (2000): um princípio de justiça que visa corrigir desigualdades, na escola, por meio de práticas e políticas educacionais propícias a zelar para que, aqueles que têm menos recursos, possam adquirir o conhecimento que o Estado propõe como necessário. Outro texto discorre, com base em Goffman (1988), sobre a desigualdade escolar como fruto das diferenças construídas na escola pela estigmatização, que geram desvalorização e exclusão de pessoas ou grupos sociais. Um terceiro texto se referencia em Dubet (2003), na noção de quea desigualdade escolar advém da exclusão/classificação de indivíduos, na escola, devido ao uso do mérito como princípio de justiça, o que gera grupos de “perdedores” e de “ganhadores”. Há também um texto que define desigualdade racial baseado em Florestan Fernandes (1978), outro que entende desigualdade escolar como fracasso escolar associado a determinados grupos socioeconômicos, étnico-raciais e de gênero, com base em Patto (1990). Três outros trazem definição, mas sem apresentar referências. Um dos trabalhos considera as hierarquias sociais e escolares existentes e aborda a estruturação das desigualdades de oportunidades escolares em uma rede pública do ensino fundamental. Utiliza, para tanto, o conceito de “ecologia do mercado escolar” de Yair (1996),de modo a revelar a existência de algumas escolas destacadas por sua proficiência média, em meio a pequenos agrupamentos de outras instituições comdesempenho marcadamente inferior. Esses agrupamentos formariam um “ecossistema” com equilíbrio próprio entre demanda e oferta, em contextos de cobertura plena no ensino fundamental.

Em seis dos 11 textos que explicitam o conceito infere-se o uso de uma perspectiva redistributiva de justiça para tratar de desigualdade escolar/equidade, com foco exclusivo sobre a distribuição do conhecimento como recurso social valorizado, sem estabelecer, no entanto, relação com a questão da hierarquização de grupos sociais por razões culturais, de identidade ou étnicas. Os outros cinco trabalhos abordam a questão da justiça como reconhecimento, indicandohierarquização de grupos sociais, que gera estigma, discriminação ou exclusão de determinados alunos, sobretudo os negros.

Os demais21 textos, dos 32 analisados no total, não explicitam os conceitos de desigualdade escolar/equidade que utilizam. As análises das referências presentes nesses 21 textos e/ou da operacionalização de dados estatísticos permitiram às autoras realizar inferências sobre o modo como parecem ser compreendidos tais conceitos: 8 fazem uso da perspectiva de justiça como reconhecimento e relacionam a desigualdade escolar com interações e relações sociais que estigmatizam, excluem, hierarquizam e/ou dominam determinados indivíduos em razão dos grupos sociais aos quais pertencem, conforme suas identidades, cor/raça e/ou gênero. Desses mesmos 21trabalhos que não explicitam os conceitos, 11 podem ser situados no âmbito da perspectiva da justiça redistributiva, concentrando a noção da desigualdade escolar em dois grandes eixos. O primeiro eixo, com sete textos, trata da noção da desigualdade escolar como diferenças de desempenho, isto é, como expressão da distribuição do conhecimento, na sua relação com a distribuição de bens econômicos ou materiais, na forma do nível socioeconômico dos seus familiares ou dos alunos, ou considerando, ainda, a infraestrutura presente na própria escola. Um desses artigos trata de equidade de modo a deixar entrever que a compreende como princípio de justiça, em favor daqueles estudantes que têm menos recursos na distribuição de bens econômicos ou materiais ou que têm dificuldades de rendimento, visando à correção das desigualdades escolares. Há ainda outro texto no qual se infere que equidade é compreendida como equiparação entre os resultados acadêmicos dos alunos, também sem apresentar referências para o conceito. O segundo eixo, com quatro textos, trata do conceito de desigualdade, na relação com a distribuição das oportunidades educacionais, considerando o desempenho dos alunos, (e remete ao debate sobre a equidade entre estabelecimentos de ensino, sem indicar relação com o nívelsocioeconômico das famílias). Nesses casos, não há, tampouco, conforme já mencionado, definição do conceito de equidade.

Finalmente, cabe ressaltar que, em apenas dois destes 21 trabalhos que não apresentam uma definição explícita dos conceitos, foi possível inferir o uso da combinação da perspectiva da justiça redistributiva com a do reconhecimento, na linha proposta por Fraser (2007). Por meio da literatura usada em um desses artigos, observou-se uma compreensão de desigualdade escolar como diferença de desempenho associada a distintos grupos sociais, em razão do seu nível socioeconômico e de questões étnico-raciais. Em comum, esses dois trabalhos se referem a fatores de seleção de alunos, no âmbito da escola, decorrentes das percepções dos professores que hierarquizam e excluem por razões relativas ao gênero e/ou raça/cor.

Considerações Finais

Este artigo apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa que analisa o modo como estudos, do campo da Sociologia da Educação, que investigam políticas de educação básica no Brasil têm definido e operacionalizado os conceitos de desigualdade escolar e equidade educacional. A pesquisa encontra-se pautada na justificativa de que o conhecimento influencia as políticas públicas. Optou-se por analisar a produção acadêmica divulgada nos anais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), por ser o principal fórum de discussão das pesquisas nacionais da área. Segundo a literatura, definições sobre desigualdade e equidade estão relacionadas com princípios de justiça para embasar a distribuição de bens sociais, enquanto direitos de todos. Conforme mostra a discussão teórica apresentada neste texto, atualmente, segundo Fraser, há duas fortes perspectivas de justiça em voga: a redistributiva e a de reconhecimento. A autora defende a combinação das duas, para que se consiga níveis de justiça aceitáveis nas sociedades contemporâneas.

A análise traz indícios de que a Sociologia da Educação brasileira que estuda as políticas educacionais de Educação Básica operacionaliza os conceitos de desigualdade ou equidade fazendo uso mais frequente da perspectiva de justiça redistributiva e raramente da concepção de justiça como reconhecimento. Assim, o desenvolvimento dos recursos conceituais e sua operacionalização, na pesquisa, numa perspectiva bidimensional, que contemple, ao mesmo tempo, as perspectivas da justiça redistributiva e do reconhecimento, se mostra ainda tímido e pode ser considerado um desafio na área.

O estudo sinaliza, para a pesquisa em educação, a relevância de se avançar em direção a um novo enquadramento conceitual, que incorpore as duas perspectivas de justiça tratadas neste texto como referência para os estudos sobre o cumprimento do Direito à Educação no Brasil. Vale lembrar a obrigatoriedade da oferta pública da educação básica no país para todos, independentemente do nível socioeconômico e das identidades culturais das pessoas, ou ainda das desigualdades, discriminações e hierarquias que regem as nossas relações sociais.

Como aponta a literatura, trata-se de perspectivas que permeiam a sociedade contemporânea, que precisam ser levadas em conta na construção de um olhar mais completo sobre os resultados das políticas educacionais e sobre os fatores que produzem desigualdades, de forma a desvelar as especificidades dos conflitos subjacentes à distribuição da bem social “educação escolar”.

O desafio de operacionalizar uma articulação dessas duas perspectivas de justiça na pesquisa, se expressa tanto no plano conceitual como no metodológico. No primeiro caso, envolve o aprofundamento da discussão conceitual na fronteira da sociologia com a filosofia e a ciência política. Do ponto de vista metodológico, trata-se de aprofundar a discussão sobre as formas possíveis de operacionalização desses conceitos enquanto ferramentas e estratégias de pesquisa empírica, de cunho quantitativo, qualitativo ou misto.

4 Conforme o site da Anped, o GT 14“tem focado as relações família-escola, as questões de gênero e, de um modo geral, as conexões entre desigualdades sociais e escolares, tanto na educação básica quanto no ensino superior”. A proximidade das pesquisadoras com este último GT também contribuiu com a decisão.

5 A leitura de O Capital deixa interpretar que classes sociais são agrupamentos de pessoas que têm em comum a forma como se relacionam com os meios de produção em uma dada sociedade. No caso das sociedades capitalistas, as principais classes sociais seriam os capitalistas (detentores dos meios de produção, o que é assegurado pelo direito à propriedade privada) e os proletários (detentores da força de trabalho, necessitando vendê-la para sua subsistência).

6 Trata-se da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada em 1789, na primeira fase da Revolução Francesa, proclamando os ideiais burgueses, com foco na igualdade e na liberdade.

7 Trata-se de um princípiode justiça que surgiu naInglaterra, com JeremyBentham e Stuart Mill, queapregoa que uma políticapode ser julgada comojusta se satisfaz ou trazresultados para uma maioria.Rawls (2003) o critica poravaliar que, nesse tipo deproposição, a justiça podeser alcançada mesmo queminorias sejam prejudicadas.

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Recebido: Janeiro de 2019; Aceito: Fevereiro de 2019; Publicado: Fevereiro de 2019

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