Introdução
Destacar-se-á nas análises presentes neste estudo, aspectos relacionados ao papel dos entes federados no modelo federativo de organização do Estado e da educação brasileira, ao processo de municipalização da educação básica e ao regime de colaboração para a efetivação de políticas no âmbito da educação infantil frente ao desafio de superação das desigualdades educacionais nesta etapa educacional. Importa-nos refletir acerca de algumas evidências que revelam iniciativas dos entes federados que poderão representar, em curto prazo, retrocessos nas políticas educacionais que vinham sendo desenvolvidas ao longo das últimas décadas no sentido de ampliar as oportunidades educacionais em relação ao acesso, permanência, conclusão e qualidade educacional, sobretudo, àquelas parcelas de população que tiveram, historicamente, acesso negado à educação.
Ressaltam-se neste trabalho aspectos advindos do processo de municipalização da educação fortemente pautado num discurso de descentralização das políticas públicas, o que tem gerado efeitos para a execução das políticas educacionais pelos municípios em diferentes âmbitos, tais como, no planejamento educacional, na política curricular, no financiamento, na gestão e avaliação da educação. Para tanto, foi realizada análise conceitual da descentralização das políticas educacionais, via municipalização do ensino; a seguir, uma abordagem das implicações da conjuntura frente às políticas e ao direito à educação infantil e, posteriormente, dados de oferta da creche e pré-escola no Brasil no sentido de colocar em tela que, mesmo com expansão da oferta no período analisado, os desafios impostos pelas alterações constitucionais, tais como a restrição orçamentária para as políticas sociais no âmbito da União, conferidas pela aprovação da Emenda Constitucional n.º 95 (BRASIL, 2016), limitam essa expansão com padrão mínimo de qualidade.
As análises dos aspectos elencados foram realizadas via pesquisa bibliográfica da produção do campo específico, bem como, de análise documental e de dados educacionais para identificação de elementos que influenciam a efetivação do direito ao acesso à educação infantil, considerando as iniciativas do poder público que representam retrocessos frente ao declarado legalmente para a garantia deste direito. Resultados parciais dessas análises demonstram que estas iniciativas pouco contribuem para o avanço das políticas educacionais desenvolvidas ao longo das últimas décadas e do que prevê a EC 59/2009 e o Plano Nacional de Educação 2014-2024 na ampliação do acesso à educação infantil e superação das desigualdades educacionais no nosso país.
Democratização da educação via descentralização das políticas educacionais: pela efetivação do regime de colaboração
A descentralização do ensino via municipalização é uma discussão que se faz presente historicamente na educação brasileira, mas foi durante o processo de redemocratização do país que esse tema reapareceu com toda força devido às demandas sociais cada vez mais intensas pelo acesso aos direitos sociais, dentre estes, o direito à educação. De acordo com Arretche (2002, p. 27) “Uma das grandes reinvindicações democráticas dos anos de 1970 e 1980 consistia na descentralização das políticas públicas” um processo que emergia em contraposição a um Estado centralizador nos processos decisórios que envolviam as políticas públicas. Na educação, a ênfase foi na descentralização via municipalização do ensino e as diversas formas de organização da municipalização da educação abriram caminhos para os convênios, arranjos e diferentes ofertas de programas educacionais (ABRUCIO, 2010, p. 8). A modalidade municipalizadora no Brasil representou para os municípios grandes demandas, por vezes compartilhadas com os estados, sendo que, “o município se encarrega de parte das matrículas, convivendo no mesmo território com a rede estadual” que contribui via programas complementares (OLIVEIRA, C. de, 1999, p. 17).
Ainda, segundo Arretche (2002), a recuperação das bases federalistas do Brasil, cujo marco jurídico inicial consistiu na Constituição Federal de 1988 (CF/1988) (BRASIL, 1988), implicou na redistribuição da dimensão política entre os entes federados, incluindo os municípios como atores políticos autônomos, significando, entre outras questões, a possibilidade de os estados, o Distrito Federal e os municípios, ao lado da União, formularem e implementarem suas próprias políticas. Nesse sentido, a ideia de um sistema nacional de educação, o reconhecimento dos municípios como ente federado, a articulação dos mesmos por meio dos seus respectivos sistemas, o Plano Nacional de Educação e os planos municipais, distrital e estaduais de educação, são considerados aspectos centrais, tanto no processo da Constituinte quanto na promulgação da CF/1988. A retomada da autonomia política, financeira e administrativa dos anos de 1980, num contexto pós regime militar com forte centralização das políticas no poder central, estava vinculada à descentralização voltada à democratização das políticas de Estado. Porém, o projeto da descentralização das políticas públicas na década de 1990 é implementada a partir de um novo contexto, com base nos princípios presentes na Reforma de Estado e numa concepção de racionalidade financeira (SOUZA; FARIA, 2004). Segundo Dias e Macedo (2010, p. 176) “não há consenso entre os cientistas sociais a respeito da descentralização no Brasil”, alguns estudiosos apresentam argumentos favoráveis à descentralização no que diz respeito à democratização e participação local nas decisões da política e dos serviços do Estado com vistas à maior eficiência na gestão pública, outros autores dedicados aos estudos sobre a descentralização apontam que a mesma pode significar a desresponsabilização do Estado e a transferência das políticas públicas ao mercado (ARRETCHE, 2002; DIAS; MACEDO, 2011).
A municipalização pressupõem uma articulação entre os entes federados - ao considerar o modelo federativo sob o qual se dá a organização da educação nacional - principalmente entre os estados e municípios que detém a maioria das matrículas na educação básica pública em todo o país e, no caso dos municípios, quase que a totalidade das matrículas na educação infantil - de um total de 6.321.951 matrículas, 6.262.879 são nas redes municipais - e no ensino fundamental, os municípios detém cerca de 50% a mais de matrículas do que os estados - de um total de 22.511.839 matrículas nos anos iniciais e finais do ensino fundamental, 7.062.312 são nas redes estaduais e 15.427.206 nas redes municipais (Laboratório de Dados Educacionais da UFPR, 2020). Estes dados revelam a necessária consolidação de mecanismos de colaboração e articulação mediante as responsabilidades legais para cada ente federado em relação à oferta das etapas da educação básica ao se considerar o previsto constitucionalmente - Art. 23, CF/1988 (BRASIL, 1988). Sobre este aspecto Cury (2015, p. 2) alerta que,
[...] a articulação federativa, em regime de colaboração mediante ações integradas, deverá se dar dentro de um sistema nacional de educação, obrigação associada a outras metas deverão ter em si um padrão de qualidade e de equidade dentro de um Plano Nacional de Educação. (Grifo do autor).
Entretanto, a recente conjuntura tem revelado iniciativas do poder público que caminham na contramão da colaboração entre os entes federados e da constituição de um sistema nacional de educação – mesmo que tal sistema exista “como conceito e como positivação jurídica” (CURY, 2015, p. 2) – na medida em que, a partir do referido autor, essa existência carece de consistência, no sentido de garantia de recursos para a efetivação do direito à educação.
Atualmente se visualiza como desafio a intensificação das diferentes formas de privatização da educação pública na oferta educacional, gestão, questões curriculares, produção de materiais, assessoria e formação de profissionais (ADRIÃO, 2018), num crescente movimento de desresponsabilização do Estado pela execução das políticas educacionais, transferindo suas responsabilidades para a iniciativa privada que faz uso de financiamento público para colocar em ação seus projetos educacionais específicos. Um retrato que significa um retrocesso histórico, na medida em que a democratização da educação pública era o esforço das últimas décadas para essa consolidação.
Esse processo denota a influência das macropolíticas no planejamento educacional dos entes subnacionais, num movimento de inviabilização da efetivação dos planos de educação, elaborados com participação de diferentes atores sociais e, em certa medida, num processo democrático, tanto em nível nacional, como nos estados, DF e municípios por meio da realização de Conferências municipais, intermunicipais, estaduais e duas Conferêcias Nacionais de Educação (CONAE), nos anos de 2010 e 2014, além de ampla participação frente à tramitação do PNE no legislativo.
A oferta e responsabilidade pela educação básica está praticamente concentrada na atuação dos estados, Distrito Federal (DF) e municípios, o que demanda para estes entes federados um grande esforço na expansão da oferta e na qualidade social da educação, de forma colaborativa, a fim de garantir o direito legalmente proclamado. Sobre o regime de colaboração e responsabilidades dos entes federados ressalta-se o que está previsto legalmente acerca da viabilização das políticas educacionais, mediante o que se estabelece constitucionalmente quando à existência deste regime, uma vez que a CF/1988, tendo por princípios o pacto federativo e a cooperação entre os entes, define no seu Art. 211 que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.” (BRASIL, 1988, não p.). Desse modo, e como a execução das políticas educacionais deve ser viabilizada via normatização dos diferentes sistemas de ensino, a relação entre regime de colaboração no âmbito da educação e a ação dos entes federados para garantia de implementação de políticas educacionais é entendida como indissociável.
Neste contexto, o papel da União precisa ser cuidadosamente analisado, pois a ela compete prestar assistência técnica e financeira aos estados, DF e aos municípios, garantindo a equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade, exercendo função redistributiva e supletiva (BRASIL, 1988). Neste sentido, o estudo de Cavalcanti (2019, p. 2) ao analisar ampla literatura sobre o modelo federalista de organização do Estado, destaca acerca desta função da União que, num contexto de um país como o Brasil marcado por intensas desigualdades, o papel da União é diretamente relacionado por um lado “ao princípio do direito de todos aos bens públicos fundamentais” e por outro lado “no princípio da equidade horizontal e vertical entre os entes da federação, ou seja, que o direito seja efetivado na perspectiva da correção das desigualdades, o que evoca também o princípio da justiça social”.
Este papel tem sido essencial no conjunto de conquistas para o campo educacional nas últimas décadas, ainda que a ampliação e equalização das oportunidades educacionais para todos e todas seja um grande desafio no que se refere ao acesso e qualidade com a ampliação dos recursos para a educação, de acordo com o que revelam pesquisas do campo (ALVES; SILVA, 2013; TEIXEIRA; OLIVEIRA, R. R. A., 2014; SAMPAIO; OLIVEIRA, R. P., 2015) e dados de Institutos de pesquisa, tais como, os indicadores de acesso à educação em todas as suas etapas, níveis e modalidades (INEP, 2018). Ressalta-se que os dados de acesso ora apresentados revelam, por um lado, a expansão do atendimento, mas, por outro, o desafio que se coloca na direção do cumprimento do previsto no PNE, sobretudo para a oferta de educação infantil às crianças até 3 anos de idade, mesmo que tal análise demande um estudo aprofundado de dados desagregados.
Ainda sobre o papel da União, a Carta constitucional estabelece que esta exercerá função articuladora na organização dos sistemas de ensino, com a definição do papel de atuar na equalização das oportunidades educacionais e busca da efetivação da educação nacional com padrão mínimo de qualidade (BRASIL, 1988). Como competências privativas e específicas dos demais entes subnacionais, se estabelece que “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição” (Art. 25, CF/1988, não p.). Quanto aos Municípios, regidos por Leis orgânicas, o Art. 30 define como suas competências, “legislar sobre assuntos de interesse local e manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental.” Já em relação ao DF o Art. 32 determina que também será regido por Lei orgânica e que terá as mesmas competências legislativas reservadas aos estados e Municípios (BRASIL, 1988, não p.). A CF/1988 demarca em seu Art. 24 as competências concorrentes e define que estados, Municípios e o DF deverão observar em sua legislação específica, os princípios constitucionais.
A partir do estabelecido constitucionalmente, a legislação educacional nacional – LDB 9394/1996, também define em seu artigo 8º, §1º e §2º, que a União, os estados, o DF e os municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino, e que caberá à União “a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais” (BRASIL, 1996, não p). Destaca-se, aqui, a responsabilidade na oferta de educação básica dos estados e municípios, prioritariamente e, de modo específico, destes últimos em relação à oferta da educação infantil (BRASIL, 1988; 1996).
A CF/1988 prevê a consolidação de um sistema nacional de educação, com articulação entre os sistemas de ensino e instituindo o PNE e os planos estaduais, distrital e municipais de educação, como instrumentos para uma melhor democratização das políticas educacionais rumo à efetivação do direito à educação para todos e todas, conforme o promulgado no arcabouço jurídico-legal brasileiro. Nesse contexto, se considera o PNE um marco na constituição de um efetivo regime de colaboração ao estabelecer que os entes federados, com suas responsabilidades constitucionais já definidas, devem atuar “em regime de colaboração, visando ao alcance das metas e à implementação das estratégias” previstas no plano (BRASIL, 2014, não p.).
O PNE enquanto uma política pública de Estado, é considerado o “epicentro das políticas educacionais” e a sua materialização “implica ações e políticas que se efetivam, a partir de vários embates e conjunturas, que contribuem para a efetivação do plano ou para a sua secundarização” (DOURADO, 2017, p. 12). Do mesmo modo, os planos estaduais, distrital e municipais de educação que deveriam, em sua elaboração, ter consonância com as diretrizes, metas e estratégias do PNE, têm sido entendidos como importantes instrumentos para a materialização das políticas educacionais, o que não será objeto de aprofundamento neste artigo.
Todavia e ainda que se tenha um conjunto de dispositivos legais e normativos para a organização do sistema educacional, com responsabilidades e competências de cada ente federado claramente delineadas, com vistas à democratização da educação, o que se assiste no contexto brasileiro é a descontinuidade e a ruptura de políticas educacionais de acordo com as concepções e interesses dos agentes que ocupam o poder (BOURDIEU, 2011). A partir destes pressupostos, entende-se que a consolidação de políticas de Estado que materializem políticas no âmbito da democratização da educação mediante o legalmente declarado, está permeada por uma complexidade de fatores das diferentes conjunturas, muitos destes ainda por ser evidenciados.
Possíveis implicações da conjuntura atual às políticas educacionais e ao direito à educação infantil
Numa análise do desafio que se coloca para as políticas de educação infantil, e para o pleno acesso a este direito, o movimento a seguir será de um olhar para alguns dados levantados pelo INEP os quais evidenciam que, mesmo com ampliação dos percentuais de acesso à creche e pré-escola em direção ao que prevê a Meta 1 do Plano, o desafio de universalização da pré-escola previsto para se efetivar até o ano de 2016 ainda se mantém, assim como, do atendimento de, no mínimo, 50% das crianças brasileiras em creche até o final da vigência do Plano, no ano de 2024 (INEP, 2018). Tal desafio tem exigido esforços do poder público, muitas vezes na contramão de uma oferta pública, gratuita e em condições de qualidade (ALVES; SILVA, 2013). Nos gráficos e tabelas a seguir têm-se um panorama da desigualdade educacional a ser superada na educação infantil, com maior ênfase na faixa etária dos 0 aos 3 anos de idade devido aos desafios a serem enfrentados para a democratização da oferta desta faixa etária, conforme revelam os dados.
Embora os percentuais do gráfico 1 demonstrem crescimento no atendimento em creche no país no período, numa análise desagregada por região, revela-se a desigualdade no acesso que ainda persiste no Brasil (gráfico 2).
Os menores percentuais de atendimento às crianças de 0 a 3 anos estão presentes nas regiões Norte e Centro-Oeste conforme os dados do gráfico 2, o que indica a necessária análise de aspectos específicos daqueles territórios para a implementação de políticas para expansão deste atendimento. Sobre este aspecto, é importante ressaltar que segundo dados da Pesquisa Nacional Caracterização das práticas educativas com crianças de 0 a 6 anos de idade residentes em área rural, há municípios da região Norte que não contam com atendimento às crianças de 0 a 3 anos de idade em Instituições de educação infantil. (BARBOSA, et al., 2012). A pesquisa revela alguns fatores que dificultam essa oferta e que explicam a baixas taxas de atendimento na região, tais como, as peculiaridades culturais das famílias e dificuldades devido à distância, o que demanda transporte escolar por via fluvial, existente de forma inadequada para o transporte de crianças bem pequenas.
Os dados apresentados evidenciam que o atendimento em pré-escola tem avançado de forma expressiva no período, o que pode revelar um efeito da obrigatoriedade de matrícula a partir da EC 59/2009 que, dentre outras alterações no que se refere ao financiamento da educação, pode ter estimulado o crescimento das matrículas com prioridade para a expansão da oferta (BRASIL, 2009).
FONTE: Inep com base em dados da Pnad/IBGE (2004-2015) e Pnad contínua/IBGE (2016). Indicador 1A: Percentual da população de 4 a 5 anos que frequenta a educação infantil.
Contudo, mesmo com a expansão do atendimento, ainda se visualiza desigualdade regional na oferta em pré-escola, conforme os percentuais apresentados no gráfico 4.
Embora o desafio seja menor em relação ao atendimento de crianças de 0 a 3 anos, este ainda persiste nas regiões Norte e Centro-Oeste em relação aos percentuais das demais regiões.
Os dados denotam que o país avançou em relação ao atendimento, sobretudo, no que tange às crianças de 4 e 5 anos, e não se manteve estagnado quanto à oferta do atendimento de crianças de 0 a 3 anos, mesmo que esta ampliação seja mais desafiante. Contudo, ainda se visualiza a existência de desigualdade regional, entre a área urbana e o campo, entre negros e brancos, e pobres e ricos, o que corrobora com a afirmação de que estes sujeitos ainda não têm pleno acesso ao direito educacional. Segundo o INEP (2018, p. 30), “(...) o quadro da cobertura da educação infantil sugere a necessidade de políticas para estimular os municípios a atenderem com prioridade, em creche e as crianças do grupo de renda mais baixa.”
Já em relação à meta de expansão do atendimento das crianças de 4 e 5 anos “(...) a Meta 1 de universalização da pré-escola para o ano de 2016 não foi alcançada. Contudo, a meta poderá ser atingida entre 2018 e 2020, uma vez mantida a tendência observada no período de 2004 a 2016.” O que se pode concluir, ainda que sejam necessários estudos desagregados, é que as metas almejadas no PNE - e em decorrência destas nos planos estaduais e municipais de educação - podem ser inviabilizadas, colocando em risco as previsões para o alcance das mesmas, envolvendo diretamete as políticas de educação infantil, e nste caso, no que se refere à expansão do acesso com qualidade. Outras variáveis analisadas pelo INEP, também evidenciam a permanência das desigualdades na oferta em toda a educação infantil no que se refere à localização de moradia, raça-cor e renda per capita que revelam uma distância na oferta educacional entre as crianças de diferentes segmentos sociais, negando acesso a esse direito sobretudo às crianças mais pobres, negras e residentes no campo.
Acrescido a este contexto de não realização do direito à educação na dimensão do acesso, somam-se iniciativas governamentais que retrocedem na garantia dos direitos, dentre elas, destaca-se a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 (BRASIL, 2016) a qual instituiu um novo regime fiscal, limitando a implementação de políticas públicas no sentido da redução das desigualdades (AMARAL, 2017), dentre elas as educacionais, comprometendo programas e ações sob responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), essenciais para a execução das políticas educacionais no âmbito dos demais entes federados.
Alguns estudos apontam para o efeito de medidas governamentais, sobretudo as que se referem ao orçamento e financiamento da educação. Dentre os estudos que indicam inviabilidade do cumprimento das metas do PNE destaca-se a análise de Amaral (2017) sobre os efeitos da Emenda Constitucional nº 95 (BRASIL, 2016) que estabelece que o orçamento do Poder Executivo da União - incluindo o do MEC – não terá reajuste por percentuais acima da inflação do ano anterior num período de 20 anos, gerando um efeito de redução dos recursos para que as metas do PNE possam ser alcançadas. Para o autor, o cumprimento de tais metas demandaria o financiamento previsto na meta 20 de aplicação de 10% do PIB até o ano de 2024, o que significaria “quase que dobrar o volume de recursos financeiros”, um cenário improvável a partir deste novo regime.
Importante considerar que, para além das metas de expansão da oferta educacional, das 20 metas do PNE a maioria se relaciona à política educacional no âmbito da educação básica e, ao analisar o conjunto das metas, Pereira (2017, p. 67) ressalta que, 8 delas estão diretamente relacionadas às políticas que também envolvem educação infantil. Portanto, a redução orçamentária dos recursos advindos da União afetará o compromisso estebelecido no PNE frente a essas metas na implementação de políticas para a sua materialização. Tal cenário, mesmo relacionado ao orçamento da União, evidencia que o papel do MEC na coordenação da política nacional de educação e como indutor na efetivação de programas e ações executados pelos municípios, tais como os casos de políticas como o Proinfância4 e o Brasil Carinhoso5, estarão comprometidos, uma vez que os municípios mantêm em cooperação técnica e financeira com a União, programas de educação infantil (BRASIL, 1996). É importante evidenciar o contrassenso da atividade legislativa que é aprovar emenda constitucional para aumentar o tempo de educação formal obrigatória e na contramão da garantia do direito à educação, aprovar nos anos subsequentes emenda constitucional para limitar o investimento em educação. Ou seja: a segunda emenda inviabiliza a primeira, e ou, a primeira emenda, caso efetivada, ocorrerá sem a garantia de oferta educacional em condições de qualidade.
Num contexto de estagnação e restrição orçamentária, muitos programas e ações sofreram cortes significativos já no ano de 2016 acentuando os desafios para ampliação do acesso à educação infantil. No caso do Proinfância, a responsabilidade pela construção de novas Unidades recaiu sobre estados e municípios; já o Brasil Carinhoso sofreu atraso e redução de repasses em até 50% do valor previsto no ano de 2016 (ZINET, 2016; PEREIRA, 2017), um panorama que demandará análises mais aprofundadas e que demonstrem a evolução dessa redução de recursos no âmbito dos municípios no período posterior. Desse modo, pode-se inferir que, mesmo com a autonomia garantida aos entes federados na execução de suas políticas - um tanto relativa, uma vez que o modelo federativo brasileiro pressupõe a interdependência e, muitas vezes, dependência dos entes subnacionais ao poder central - as medidas tomadas no âmbito da União e que se referem ao planejamento para as diferentes áreas, dentre elas a educação, impactam o alcance de metas locais e poderão atingir de forma mais aguda o conjunto dos municípios com menor capacidade de financiamento. Tal realidade exigirá destes municípios a alocação de recursos para ampliação da oferta, para além de recursos advindos do FUNDEB (BRASIL, 2007) – considerando que nem todos os municípios contam com essa fonte e num contexto de incertezas frente à tramitação do novo FUNDEB no legislativo federal - e de outras receitas, como as transferências legais e constitucionais para manutenção e desenvolvimento da educação (MDE) (BRASIL, 1996), de programas suplementares via FNDE, dentre outras. Um esforço complexo em contextos de baixa capacidade de financiamento da educação, significará que muitos municípios lançarão mão de iniciativas que representem a precarização da oferta, tais como, a privatização do atendimento sem as condições adequadas de qualidade e em diferentes modalidades no que se refere à infraestrutura, formação inicial e continuada dos profissionais, projeto curricular, materiais didáticos, gestão, dentre outras, numa clara tendência que tem se demonstrado cada vez mais intensa em muitos municípios (ADRIÃO, 2018; CAMPOS et al., 2019).
Ressalta-se que, desde a ruptura política no ano de 2016, evidencia-se um desmonte das políticas sociais, gerando retrocessos em políticas reconhecidas e consolidadas nas áreas da educação, cultura, saúde e assistência social. No âmbito da educação infantil se revelaram efeitos deste cenário, corroborando com o fato de que a União, dentro de sua responsabilidade de indução de políticas na direção da democratização e qualidade da educação, induziu retrocessos (ALBUQUERQUE; FELIPE; CORSO, 2017), dentre eles, a redução de recursos para programas e ações, projetos em curso foram alterados ou excluídos, incentivo a iniciativas de baixo custo, como o Programa Criança Feliz6, de caráter intersetorial nas áreas da saúde, educação, assistência social, cultura, direitos humanos, dentre outras, que prevê ações junto às famílias e crianças até 6 anos de idade em situação de vulnerabilidade, com a finalidade de promover o desenvolvimento integral na primeira infância. O programa tem sido objeto de análise crítica de especialistas por representar retrocesso em concepções como o papel da mulher e da família num contexto de profundas desigualdades, com uma lógica que não considera a política social como direito (CAMPOS, 2016).
Do mesmo modo, as perspectivas anunciadas no plano de governo do grupo que assumiu o poder em 2019 no âmbito federal, apontaram para um agravamento de retrocessos promovidos desde o governo Temer e que têm gerado efeitos nos demais entes subnacionais. Tais perspectivas, amplamente anunciadas por representantes de um governo que tem atuado por Decretos, via canais oficiais, redes sociais e representantes de grandes grupos midiáticos, se revelaram num verdadeiro desmonte das políticas educacionais em construção no sentido da equalização das oportunidades educacionais e redução das desigualdades: ênfase militarização da gestão das escolas, negação de instâncias colegiadas e de participação social, incentivo à programas de baixo custo para atendimento às crianças pequenas e negação do direito à creche como o caso do Programa Criança Feliz mencionado anteriormente, desrespeito ao acúmulo de conhecimentos do campo educacional promovido por especialistas das Universidades públicas, ênfase na transferência do papel do Estado para a iniciativa privada no que se refere à educação pública desde a educação infantil, não consideração às metas previstas no PNE, dentre outras iniciativas em curso numa lógica antidemocrática e de descontinuidade de políticas educacionais anteriores com vistas à democratização da educação desde a creche até o ensino superior.
Considerações finais
Os desafios aqui apresentados indicam o necessário aprofundamento do debate quanto às responsabilidades da União, dos estados, do DF e dos municípios para com a educação de acordo com o estabelecido legalmente, tanto no âmbito acadêmico como em outras arenas de incidência, formulação e execução das políticas específicas. Embora o regime de colaboração esteja previsto no modelo federativo e a cooperação seja um princípio constitucional necessário para a organização do sistema educacional brasileiro, o que tem prevalecido no Brasil - ainda que o discurso da descentralização tenha se consolidado no contexto da redemocratização - é o deslocamento do poder decisório para o executivo federal nas articulações políticas com o legislativo, como no caso da aprovação da EC n.º 95. Desse modo, políticas em desenvolvimento como algumas citadas no texto, sofreram redução de recursos, o que tem submetido os entes subnacionais às políticas de governo e não de Estado, culminando numa tendência histórica de descontinuidade das políticas públicas.
Destaca-se que a descentralização do ensino via municipalização se caracterizou como uma forma de democratização do poder local e foi incentivada como necessária para a oferta de uma política educacional mais efetiva. A CF/1988 teve como premissa a concepção do pacto federativo e na área da educação o regime de colaboração tinha como princípio a necessária articulação entre os entes federados para a formulação e execução das políticas de educação no sentido da efetivação do direito à educação, uma concepção cada vez mais sob risco.
A ideia da constituição de um sistema nacional de educação, o reconhecimento dos municípios como ente federado, a articulação dos mesmos por meios dos seus respectivos sistemas, o Plano Nacional de Educação e os planos municipais, distrital e estaduais de educação, foram considerados tanto no processo da Constituinte quanto na promulgação da Carta constitucional e leis complementares, contudo, isso não tem garantido ao longo do tempo sua efetivação, tampouco, o pleno acesso ao direito à educação, conforme revelam os dados educacionais.
Por conseguinte, uma das conclusões que se depreende, ainda que tais dados revelem somente o panorama do acesso na educação infantil, é a de que se mantém a desigualdade educacional, sobretudo em relação à oferta de educação infantil para as crianças de 0 até 3 anos de idade, na contramão da promessa constitucional e do previsto na legislação infraconstitucional. Ou seja, o pleno direito à educação infantil ainda não é uma realidade para uma parcela da população.
É importante evidenciar também a descontinuidade da formulação das políticas por parte da atividade legislativa ao aprovar uma emenda constitucional para aumentar o tempo de educação formal obrigatória (EC 59/2009) e em seguida aprovar, nos anos subsequentes, uma emenda constitucional (EC (95/2016) para limitar o investimento em educação. Ou seja: a segunda emenda inviabiliza a primeira, e ou, a primeira emenda, se efetivada, ocorrerá precariamente e, portanto, sem a garantia do padrão de qualidade previsto pelo PNE.
Neste sentido, também se conclui que programas e ações importantes para o estímulo da expansão da oferta em educação infantil nos municípios e DF, como o Brasil Carinhoso e o Proinfância, numa conjuntura de restrição orçamentária dos recursos do executivo federal, também sofrem redução. No caso dos municípios com fragilidade fiscal e que dependem de complementação orçamentária, o desafio de expansão desse atendimento com recursos além dos provenientes do FUNDEB, dentre outras fontes de receitas, significará a opção destes por estratégias que precarizam o atendimento, como a parcialização e privatização da oferta, nas suas variadas modalidades, dentre elas, a implementação de programas de vouchers e a gestão de Instituições públicas por organizações privadas, conforme se anuncia tanto pelo governo federal, como já se materializa em alguns municípios.
As mudanças na recente conjuntura nacional e a reorganização da estrutura política, administrativa e também ideológica do governo federal eleito em 2018 - ao se analisar as iniciativas já tomadas e que repercutem em estados e municípios - colocou a educação infantil numa posição de estagnação e retrocesso frente às conquistas alcançadas ao longo de pelo menos duas décadas.
Entretanto, para que se revelem os efeitos dos desafios que a conjuntura impõe às políticas educacionais, tais análises merecem ser aprofundadas trazendo à tona evidências empíricas dos efeitos de medidas tomadas pelo poder público e que têm comprometido tanto a articulação entre os entes federados na expansão da oferta de educação infantil pública, gratuita e em condições de qualidade, quanto ações e programas essenciais na inclusão de sujeitos aos quais tem sido negado o direito à educação declarado nos marcos legais. Desse modo, a pesquisa em políticas educacionais ao analisar as possíveis implicações de um modelo de colaboração que não tem se efetivado plenamente, contribuirá para que se comprove como se dá a ação (ou não) do Estado via atuação dos atores que o compõem na direção da superação dos desafios que se colocam e que impedem a democratização da educação para todas e todos.