Introdução
No contexto do capitalismo de predominância financeira, a educação deixou de ser direito social e foi transformada em serviço altamente lucrativo favorecendo a expansão do setor privado-mercantil, principalmente no seu nível superior de ensino. Diversas pesquisas5 analisam o processo de expansão e mercantilização da educação superior brasileira ocorrida, principalmente, a partir da última década do século XX, com a adoção de medidas de cunho neoliberal (ampla abertura do mercado nacional aos produtos estrangeiros, privatização de empresas estatais, desregulamentação, etc), por meio de uma gama de alterações políticas e constitucionais com vistas a firmar a adesão do País à ordem capitalista mundializada (CHESNAIS, 1996).
As políticas neoliberais ganham relevo a partir de 1995, com a chegada ao poder do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que apresenta à sociedade brasileira o seuPlano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995). O governo propõe um conjunto de reformas – macroeconômicas, político-administrativas, jurídicas e sociais -, que visava transformar o país numa economia atrativa para novas formas de valorização de capital, baseando-se, sobretudo, na privatização, flexibilização, desregulamentação das relações trabalhistas, na gestão monetária da economia e na atração de Investimento Externo Direto – IED (PAULANI, 2008).
As últimas ações visando à consolidação desse projeto configuram-se na aprovação da Emenda Constitucional 95/20166, na contrarreforma trabalhista e da previdência social, medidas que imprimem um novo patamar de desmonte dos direitos sociais e de destruição da condição de cidadania da população brasileira.
A expansão da educação superior por meio de instituições privadas de caráter estritamente mercantil deve ser analisada no contexto global de valorização do capital. É a partir da “mundialização financeira do capital” (CHESNAIS, 1996), que se consolida o atendimento educacional via grandes empresas, cujo objetivo é declaradamente o lucro. O desfecho desse processo é viabilizado com a participação do capital financeiro, por meio dos grandes fundos de investimento, nacionais e internacionais, com a entrada no País de grupos educacionais estrangeiros, de capitais fechado ou aberto, e, com o ingresso de grupos educacionais brasileiros no mercado de ações das bolsas de valores.
O objetivo central desse artigo é apresentar parte dos resultados de pesquisa realizada com a finalidade de analisar as implicações para a educação superior brasileira da nova estrutura empresarial do setor privado-mercantil no contexto da concentração de capital, de sua oligopolização e de financeirização do setor, com foco para os grandes grupos empresariais de capital aberto: Estácio Participações S.A; Kroton Educacional, Ser Educacional e Ânima Educação.
Utilizando-se de pesquisa documental buscou-se levantar, categorizar e analisar fontes documentais para evidenciar o modo como a financeirização do setor lucrativo têm se consolidado por meio dos incentivos governamentais, sobretudo, dos programas federais destinados à iniciativa privada como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni). Os dados foram coletados nos bancos disponibilizados on line no site da Câmara dos Deputados e nos Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).
O texto se organiza em três seções, além da introdução e considerações finais, as quais tratam respectivamente de: a) apresentar os aspectos econômicos e políticos que pavimentaram o caminho para a expansão privada-mercantil da educação superior brasileira; b) analisar as novas configurações da educação privada-mercantil sob a determinação dos fundos de investimentos; e, c) demonstrar como a política governamental de acesso de estudantes no setor privado se tornou um mecanismo estatal de fortalecimento da mercantilização, privatização e financeirização da educação superior brasileira.
1. A mercantilização do ensino superior no Brasil: fundamentos políticos
O capital financeiro deve ser compreendido a partir de duas dimensões complementares: a dimensão funcional e a dimensão funcional-organizacional. Na primeira estão “os recursos que conservam a forma dinheiro e que se valorizam – transformando-se assim em capital sob a forma de créditos (empréstimos, obrigações), de direito de propriedade (ações) ou de combinações múltiplas entre uns e outros”, enquanto na segunda estão localizadas as organizações (bancos, seguros, fundos de pensão, fundos mútuos7, etc.) “cuja função consiste em centralizar o dinheiro sob a forma de créditos e de direitos de propriedades para fazê-lo frutificar, bem como as instituições (as bolsas, os mercados financeiros)”. (SERFATI, 2003, p.55)
Para Serfati (2003), desde as duas últimas décadas do século XX, existe uma relação diretamente proporcional entre a prosperidade do capital financeiro e a redução da acumulação industrial. Para o autor, as primeiras organizações de acumulação de capital financeiro necessitavam de mudanças no padrão da gestão e alterações no ambiente institucional. Nesta direção, políticas de corte neoliberal que incluíssem a reforma do Estado, novos ordenamentos jurídicos ou medidas de desregulamentação permitiriam a valorização do capital financeiro em detrimento do capital produtivo.
Paulani (2008) ao analisar as primeiras medidas de política econômica que favoreceram a financeirização da economia no Brasil afirma que ocorreram no governo do Presidente Itamar Franco (1992-1994), com a renegociação da dívida externa e sua securitização e com a oferta de títulos da dívida pública brasileira nos mercados internacionais.
Além das medidas econômicas adotadas, a autora também chama atenção para o papel, especialmente da mídia, na construção de uma ampla ideologia sobre a necessidade de modernização do país, de ingresso na globalização financeira e que redundaram em uma série de políticas e reformas de cunho neoliberal.
Na discussão sobre a financeirização da economia brasileira Lenas Lavinas, Araújo e Bruno (2017) demonstram como o Brasil se tornou a “vanguarda” no processo de financerização entre os países emergentes. Para estes autores, o Brasil, é bastante singular com relação à tendência à financeirização, em razão das empresas e bancos do país darem preferência à acumulação de ativos financeiros em detrimento e/ou desvinculado do compromisso com inversões no setor produtivo. Defendem, ainda, a hipótese de que o fenômeno da financeirização no Brasil foi gestado nos anos de 1970 e avançou nos anos de 1980, antes mesmo que esse conceito fosse elaborado e objeto de pesquisa nas décadas subsequentes. Contudo, tratava-se de uma “financeirização elitizada” por ser propulsada pela alta burguesia e pelas classes médias abastadas na preservação de suas rendas patrimoniais. Creditam ao Plano Real, criado em 1994, o surgimento de um “novo padrão de financeirização em que os ganhos inflacionários são substituídos pela elevada renda de juros” (LAVINAS, ARAÚJO E BRUNO, 2017, p17)
Steffen e Zanini (2012) observam que o aumento do volume financeiro negociado no mercado de capitais brasileiro pode ser explicado pelas reformas estruturais, iniciadas desde os anos de 1990, que prepararam política e juridicamente o terreno para inserção do País e de suas empresas no circuito da financeirização, mais recentemente, a inclusão do setor educacional privado-mercantil nesse circuito.
Com relação à provisão mercantilizada de serviços públicos, Ruas e Oliveira (2016), afirmam que partir da segunda metade do século XX com a inserção do Brasil na economia globalizada também ocorre uma forte indução à mercantilização de espaços sociais. No caso da educação superior, mesmo que em décadas anteriores, notadamente nas décadas de 1960 e 1970, tenhamos experimentado reformas e incentivos à expansão, orientados pela lógica privatista, somente a partir de 1995, com o ingresso definitivo do Brasil no circuito de valorização financeira (PAULANI, 2010), é que este setor torna-se uma opção rentável e profícua para investimentos.
Até a década de 1990 o setor educacional era pouco atrativo para os investidores nacionais e internacionais, sobretudo, porque apresentava forte regulação por parte do Ministério da Educação (MEC), além de rígido modelo administrativo que prescrevia a expansão pela via do modelo universitário (indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão), e ainda por seu limitado regime jurídico (MATHIAS; CALEFF, 2017). Com a aprovação da CF/1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9394/96, que liberam a atividade de ensino à iniciativa privada, é que se abriu a possibilidade da aferição de lucro por meio da exploração da oferta de educação superior. Esses novos dispositivos legais pavimentaram o caminho para a chegada das IES à bolsa de valores.
Segundo as análises de Vale, Carvalho e Chaves (2014), a expansão da Educação Superior, a partir dos anos 1990, pode ser dividida em dois grandes períodos: num primeiro momento, após a aprovação da LDB 9394/96 em que, pela via legislativa, a expansão do setor privado lucrativo é favorecida pelo incremento no número de cursos, IES e matrículas. Tal estímulo à expansão do setor privado foi sendo efetivado pelo governo federal por meio da adoção de uma série de mecanismos legais, tais como: a liberalização dos serviços educacionais; isenção do pagamento do salário-educação; programa do crédito educativo hoje transformado em FIES; empréstimos financeiros a juros subsidiados por instituições bancárias oficiais como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social- BNDES; o Programa Universidade Para Todos- PROUNI.
Já o segundo período corresponde às novas configurações que a educação superior assume a partir de 2007 com o aparecimento, no mercado educacional, de grandes fundos de investimentos e a formação de grandes conglomerados de ensino superior (VALE; CARVALHO; CHAVES, 2014).
Para Carvalho (2013), a evidência mais significativa da mercantilização da educação superior brasileira pode ser observada em dois movimentos ocorridos no final dos anos 2000: as aquisições realizadas por fundos private equity e a abertura de capital das empresas educacionais na bolsa de valores (IPOs), a partir de 2007.
Nos casos dos private equity estes são fundos de investimento em particip ações de empresas de capital aberto ou fechado, com envolvimento posterior da entidade gestora/ investidora nos foros de gestão da entidade investida. Entre 2006 e o primeiro trimestre de 2010 foram realizadas cinco grandes operações. O banco Pátria realizou a aquisição por meio de um fundo de investimento em participações de 68% da Anhanguera Educacional; a GP Investimentos adquiriu 20% da Estácio Participações (2008); o Cartesian Capital Group comprou a Faculdade Maurício de Nassau (2008); o Advent adquiriu 50% da Kroton Educacional (2009); Capital Intl efetuou a compra, no início de 2010, do IBMEC Educacional. Os Fundos Private Equity têm condições de injetar somas elevadas de recursos nos negócios educacionais por intermédio de grupos fechados de grandes especuladores (nacionais e internacionais), mediante a exigência de reestruturação baseada na redução de custos, na racionalização administrativa, na profissionalização da gestão (OLIVEIRA, 2009), e, sobretudo, na adoção dos princípios de “governança corporativa” (CARVALHO, 2013, p.771).
A partir de 2007, portanto, ocorre o aprofundamento da mercantilização da educação superior, concretizada pela opção política de expansão privada da oferta desse nível de ensino e pela entrada de Instituições de Educação Superior (IES) nas Bolsas de Valores. Com a oferta das ações das empresas educacionais na bolsa de valores, pode-se afirmar que a educação superior passa a ser financeirizada uma vez que segue as regras do mercado financeiro.
Uma empresa de capital aberto é aquela que está autorizada a ter seus valores mobiliários negociados junto ao público tanto em bolsas de valores quanto em mercados de balcão, organizados ou não, tendo, para tanto, que realizar registro apropriado junto a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e estar constituída juridicamente sob a forma de Sociedade Anônima (S.A) conforme a legislação brasileira. Tal abertura se dá por meio do lançamento de ações junto ao público – Initial Public Offering (IPO). (PORTO, 2012)
2. O capital especulativo e as novas configurações do ensino superior privado- mercantil
No âmbito do comportamento das empresas educacionais a financeirização ocorre à medida que a lógica dos negócios passa a ser orientada pela especulação, ou seja, “por decisões de compra (venda) de ativos comandadas pela expectativa de revenda (recompra) com lucros em mercados secundários de ações, imóveis, moedas, créditos, commodities e vários outros ativos” (BASTOS, 2013, p.02). Essa nova lógica financeira das IES mercantis, acompanhada de estratégias organizacionais como a governança corporativa, favorece a oligopolização do setor e é incompatível aos princípios que devem nortear o processo educativo entendido como direito e não como uma mercadoria.
A inserção do capital especulativo no ensino superior brasileiro se deu de duas maneiras: 1) pela inclusão de grupos educacionais no mercado de ações em bolsas de valores; 2) pela presença de grandes fundos de investimentos no controle das IES e pelo ingresso de grupos educacionais estrangeiros, de capitais fechado e aberto, no sistema educacional brasileiro.
No primeiro caso, a abertura do capital das empresas no mercado de ações e a grande valorização das ações, assegurada em grande medida pelo fundo público, possibilitaram o aumento do capital das empresas, dando início a um amplo movimento de concentração de capital, com a formação de grandes oligopólios, decorrentes da compra e venda de instituições pelos grupos financeirizados.
Desse modo, Universidades e Centros Universitários privados passam a formar grandes conglomerados ou holdings estabelecendo uma concorrência predatória e dificuldades para a manutenção de estabelecimentos de menor porte, gerando crise financeira nesses, o que contribui para que os mesmos possam ser adquiridos pelo capital mercantil dos grandes grupos. A partir de 2007 se observa um intenso movimento de fusões e aquisições de IES, de tal modo, que o setor educacional passou a ocupar as primeiras colocações no ranking das Fusões e Aquisições do mercado econômico nacional divulgado pela consultoria KPMG (empresa responsável por publicar trimestralmente informações sobre as fusões e aquisições na economia brasileira). Em 2008, por exemplo, o setor ficou em terceiro lugar no conjunto de fusões e aquisições de todos os setores econômicos do País.
Atualmente, as grandes companhias educacionais de capital aberto brasileiras (sociedades anônimas) com inserção no mercado de ações (BM&FBovespa), são a Kroton/Anhanguera (que se fundiram em um único grupo, em 2014), a Estácio Participações S.A, a Ânima Educação e a Ser Educacional.
No segundo caso, o capital estrangeiro é evidenciado com a presença dos fundos de investimento private equity 8 , que também capitalizaram as empresas para as aquisições e fusões. Esses fundos são formados por grupos fechados de investidores/especuladores (nacionais e internacionais), com “condições de injetar somas elevadas de recursos nos negócios educacionais” (VALE et al., 2014, p. 206). A presença do capital especulativo e do capital estrangeiro também se evidencia com o ingresso de grandes grupos educacionais internacionais que passam a atuar diretamente no sistema educacional brasileiro por meio da compra de instituições nacionais. São os casos da Laureate Education (conglomerado americano de universidades, com inserção em diversos países, que têm entre seus sócios o fundo de private equity da KKR9, o Banco Mundial e a Universidade Harvard) e a Wyden, ex-Devry Internacional (empresa americana de capital aberto pertencente ao grupo Adtalem Global Education com inserção em diversos países).
Além desses grupos empresariais que operam no ensino superior privado- mercantil, outros grupos se sobressaem: os grupos educacionais Unip (Universidade Paulista), Uninove (Universidade Nove de Julho), Unicsul (Universidade Cruzeiro do Sul) e Tiradentes que ainda não abriram o capital no mercado de ações.
É importante destacar que esses grupos listados ou não nas bolsas de valores vêm operando com o incentivo financeiro do Estado, que tem destinado um grande volume de recursos do fundo público ao setor, principalmente, por meio dos dois programas de financiamento público para o setor privado-mercantil: o ProUni e o Fies.
3. Recursos do Fundo público para o setor privado-mercantil
Ao privilegiar a ampliação do acesso do ensino superior por meio de instituições privadas o governo federal aumentou significativamente o financiamento público a tais instituições. Essa política, alicerçada em orientações do Banco Mundial, contribui para viabilizar os lucros dos grupos financeiros/educacionais em especial os grupos de capital aberto como a Kroton/Anhanguera, Estácio Participações S.A, Ânima Educação e a Ser Educacional. A reorganização do setor privado foi fortalecida pelo mercado de capitais, mas, sobretudo lastreada pelo investimento público, principalmente, por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e do Programa Universidade Para Todos (ProUni).
A adesão ao ProUni criado em 2004 por meio de Medida Provisória n. 213 e transformado em Lei n. 11.096/2005 pelas IES privadas, com ou sem fins lucrativos, propiciou isenção fiscal de importantes tributos recolhidos pelas IES mercantis (Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS e a Contribuição para o Programa de Integração Social – PIS).
Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU, 2014, p.36), ingressaram no ensino superior através do ProUni cerca de 620 mil bolsistas integrais e 300 mil parciais, em mais de 1.400 IES participantes do Programa. No entanto, o Órgão também alertou sobre a não ocupação das bolsas, além de falhas no controle do processo de seleção de beneficiários e das vagas ociosas “que possibilitava às IES se beneficiar das renúncias fiscais disponibilizadas pelo governo federal, sem conceder a respectiva contrapartida em bolsas”10. De acordo com o Tribunal de Contas, de 2009 a 2012, as renúncias de receitas referentes ao Programa passaram de R$ 442 milhões para R$ 734 milhões (TCU, 2014). Mas, conforme ressaltado por Leher (2018, p. 60), 65% das 252 mil bolsas ofertadas em 2013 foram bolsas integrais, contudo, apenas 60% destas foram efetivamente preenchidas, “confirmando que a isenção tributária é altamente vantajosa para as corporações”.
Mas a principal indução estatal à acentuada expansão mercantil “se deu por meio do Fies, criado por Fernando Henrique Cardoso, e ampliado de modo impetuoso pelo governo Lula da Silva” (LEHER, 2018, p. 60). O Fundo de Financiamento Estudantil, criado em 1999, em substituição ao Programa Crédito Educativo para Estudantes Carentes (Creduc), financia estudantes de cursos superiores em IES privadas. Desde sua criação o Fundo passou por reformulações importantes, até 2006 a taxa de juros para o financiamento era de 9%, a partir deste ano até 2009, a taxa passa a ser de 6,5% ao ano, com uma tarifa diferenciada para os cursos de licenciatura (3,5% ao ano). Mudanças profundas vão ocorrer, sobretudo, com a Lei nº 12.202/2010. A partir de 2010, os ajustes no programa culminaram no crescimento exponencial dos contratos e, consequentemente, dos gastos com impacto direto nos recursos orçamentários da União para a educação.
As alterações promovidas no Fies em 2010, em especial a redução da taxa de juros ao ano e a dispensa de fiador na celebração dos contratos, contribuiu para o aumento exponencial dos recursos financeiros destinados ao referido fundo. Essas alterações estão relacionadas às demandas do lobby privatista, que concebe esse programa como potencial ferramenta de lucro, de captação de alunos, de ocupação de vagas ociosas e de consolidação do setor.
Além das alterações promovidas pela Lei nº 12.202/2010, a Resolução do Banco Central nº 3.842/2010 vai fixar a taxa efetiva de juros para todos os cursos em 3,4% ao ano. Tal medida passa a valer para os novos contratos, mas também para o saldo devedor dos contratos antigos. Mas, segundo Gilioli (2017), a criação do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC) consistiu na inovação mais importante feita no Fies ao retirar a exigência de fiador para a concessão do financiamento e garantir às mantenedoras até 90% do risco de inadimplência das operações de crédito educativo. Os efeitos dessas medidas foram imediatos: o aumento significativo no número de novos contratos em decorrência da não exigência de fiador; e, a diminuição inadimplência do Fies11. De 2010 a 2014 o Fundo vivenciou um enorme crescimento do número de novos contratos e do montante de recursos financeiros destinados ao Fundo.
O Fies e o ProUni tiveram uma evolução extraordinária de recursos, no período de 2003 a 2017, com queda expressiva no ano de 2018. Em 2003, o governo federal liberou R$ 1,707 bilhão para o Fies. A partir de 2005, para viabilizar o Prouni, o governo federal passou a conceder benefícios tributários para as instituições privadas de educação superior que aderissem ao Programa. Tais benefícios são contabilizados, pela Receita Federal, como gastos tributários da União. Em 2017, o governo federal liberou R$ 24.176 bilhões para o Fies e para o Prouni. Comparando os gastos da União com o setor privado em relação às despesas com as universidades federais é possível evidenciar que os programas Fies e ProUni tiveram uma evolução extraordinária de recursos no período de 2003 a 2017, em relação aos recursos destinados às universidades federais. No ano de 2017, as despesas com esses dois programas representaram 44,2 % do Gasto Federal com todas as 63 (sessenta e três) Universidades federais do país, como pode ser constatado na Tabela 1 a seguir.
ANO | DESPESAS COM AS UNIVERSIDADES FEDERAIS | PROUNI | FIES | TOTAL PROUNI + FIES | % |
---|---|---|---|---|---|
(A) | (B) | (C) | D = (B+C) | D/A | |
2003 | 21.412.211.978 | - | 1.707.118.374 | 1.707.118.374 | 8,0 |
2004 | 24.253.554.956 | - | 1.574.795.637 | 1.574.795.637 | 6,5 |
2005 | 23.423.236.359 | 225.330.289 | 1.661.705.823 | 1.887.036.112 | 8,1 |
2006 | 28.709.169.379 | 437.458.373 | 1.851.580.530 | 2.289.038.903 | 8,0 |
2007 | 30.821.469.585 | 681.872.653 | 1.896.601.036 | 2.578.473.689 | 8,4 |
2008 | 33.176.536.853 | 803.242.970 | 2.162.818.158 | 2.966.061.128 | 8,9 |
2009 | 39.071.256.923 | 935.886.574 | 2.446.478.257 | 3.382.364.831 | 8,7 |
2010 | 45.078.135.956 | 970.783.780 | 2.896.403.489 | 3.867.187.269 | 8,6 |
2011 | 48.101.514.657 | 888.995.704 | 3.884.084.063 | 4.773.079.767 | 9,9 |
2012 | 49.102.743.126 | 1.133.069.163 | 8.003.929.024 | 9.136.998.187 | 18,6 |
2013 | 53.737.174.922 | 1.487.415.261 | 10.653.336.960 | 12.140.752.221 | 22,6 |
2014 | 54.775.867.040 | 1.494.915.271 | 16.209.835.088 | 17.704.750.359 | 32,3 |
2015 | 51.868.137.999 | 2.099.566.088 | 17.849.417.942 | 19.948.984.030 | 38,5 |
2016 | 51.958.956.964 | 2.422.469.919 | 19.960.855.435 | 22.383.325.354 | 43,1 |
2017 | 54.730.077.935 | 2.463.467.258 | 21.712.662.718 | 24.176.129.976 | 44,2 |
2018 | 54.767.653.430 | 2.491.008.342 | 12.909.632.486 | 15.400.640.828 | 28,1 |
Δ 2003-2018 | 155,8 | 993,3 | 656,2 | 802,1 | |
Δ 2003-2017 | 155,6 | 1005,5 | 1171,9 | 1316,2 |
Fonte: Câmara dos Deputados, 2019. Secretaria da Receita Federal, 2018, 2017, 2015, 2014, 2013, 2012, 2011; IPEA, 2008.
Nota: O ∆ em relação ao ProUni tem como base inicial para o cálculo o ano de 2005.
Em termos financeiros, os recursos destinados à expansão da educação superior privada, por meio do Fies e do Prouni, cresceram 1.316,2% no período de 2003 a 2017 enquanto o aumento de recursos para todas as universidades públicas federais ficou em 155,6%. Cabe ainda ressaltar que em 2003, os recursos destinados pelo governo federal à expansão da educação superior privada representavam 8,0% do total de recursos destinados ao financiamento das universidades federais e em 2017 passaram a representar 44,2%. A mudança das regras do Fies realizada em 2015 passou a ter efeito financeiro somente em 2018, como pode ser constatado na Tabela acima quando ocorreu a redução significativa de recursos do fundo público para o Fies cujo valor repassado ficou em 12.909 bilhões. Observa-se, no entanto, que em relação ao Prouni não houve mudanças na política de isenção fiscal.
Os dados orçamentários evidenciam uma significativa ampliação do financiamento público para o setor privado de educação superior o que, de fato, tem contribuído para aumentar os lucros dos grandes grupos financeiros educacionais.
O estudo realizado evidencia, portanto, que tanto o Prouni quanto o Fies constituem mecanismos governamentais de fortalecimento da mercantilização, privatização e financeirização do ensino superior brasileiro ao contribuírem para o aumento do patrimônio líquido dos grupos educacionais privados-mercantis. Tal situação se confirma com a análise do desempenho financeiro dos grupos Kroton Educacional, Estácio Participações S.A, Ânima Educação e Ser Educacional, que indica também um crescimento desses grupos acima da média das demais empresas brasileiras, principalmente, em decorrência do sólido financiamento estatal realizado nos últimos anos.
O incremento de recursos ao Fies, assim como o aumento da participação desse programa na receita dos grandes grupos privado-mercantis indicam como o financiamento público tem garantido a expansão e a lucratividade dos negócios dessas empresas. A tabela 2 a seguir indica, respectivamente, o impacto do Fies no rendimento líquido nos quatro grupos educacionais de capital aberto. A pesquisa foi realizada no período de 2010 a 2016.
Ano | Kroton Educacional | Estácio Participações | Ser Educacional | Ânima | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Fies (A) | Receita Líquida (B) | % (A/B) | Fies (A) | Receita Líquida (B) | % (A/B) | Fies (A) | Receita Líquida (B) | % (A/B) | Fies (A) | Receita Líquida (B) | % (A/B) | |
2010 | 39,35 | 802,06 | 4,91 | 57,57 | 1.495,95 | 3,85 | - | - | - | 26,32 | 330.62 | 7,96 |
2011 | 192,01 | 833,21 | 23,04 | 146,36 | 1.540,55 | 9,50 | - | - | - | 71,85 | 366.91 | 19,58 |
2012 | 525,11 | 1.192,17 | 44,05 | 372,48 | 1.735,18 | 21,47 | 104,53 | 387.93 | 26,94 | 122,97 | 443.27 | 27,74 |
2013 | 926,63 | 1.534,53 | 60,38 | 765,78 | 2.231,98 | 34,31 | 210,48 | 588.95 | 35,74 | 245,63 | 538.58 | 45,61 |
2014 | 2.128,96 | 2.926,85 | 72,74 | 1.374,43 | 2.915,85 | 47,14 | 425,98 | 855.00 | 49,82 | 361,86 | 785.56 | 46,06 |
2015 | 2.928,73 | 4.151,80 | 70,54 | 1.558,46 | 2.824,85 | 55,17 | 532,64 | 1.148.32 | 46,38 | 419,24 | 925.82 | 45,28 |
2016 | 2.496,95 | 4.019,03 | 62,13 | 1.440,57 | 2.893,11 | 49,79 | 553,26 | 1.151.08 | 48,06 | 344,35 | 931.29 | 36,98 |
Fonte: Relatórios trimestrais - release 4º trimestre, 2010-2016 (Estácio Participações S.A; Ser Educacional; Ânima GAEC Educação; Kroton Educacional)
* Valores em R$, milhões, atualizados a preços de jan/2019 – IPCA.
Um dos grupos mais beneficiado com os recursos do Fies é o grupo Kroton. Em 2015, o Fies representou 70,5% da receita líquida da graduação presencial do grupo Kroton, o que equivale a aproximadamente R$ 4,2 bilhões. O grupo Estácio, obteve 55% da receita líquida com o Fies, quase R$3 bilhões. No grupo Ser Educacional o Fies representou 46% do rendimento líquido e no grupo Ânima representou 45%.
As facilidades de acesso ao programa (redução das taxas de juros, dispensa do fiador e criação do fundo garantidor, entre outras medidas) fizeram do Fies um excelente negócio para as IES mercantis, os recursos do programa reduziram a inadimplência dos estudantes e garantiram a sustentabilidade econômica e financeira das empresas educacionais. Juntamente com o Prouni, com a abertura capital na bolsa de valores e a presença dos fundos de investimentos (private equity) essas companhias cresceram exponencialmente.
Os aportes de recursos financeiros do orçamento destinados ao setor privado- mercantil, particularmente com o Fies, foram sistematicamente ampliados. Isso revela que as iniciativas governamentais de incentivo às instituições privado-mercantis de ensino superior não foram afetadas com o aprofundamento da crise estrutural do capital. O Fies e o Prouni, caracterizados como política governamental de acesso e permanência de estudantes no setor privado se configura como fundamental neste contexto de financeirização da educação visto que se insere “num processo mundial de valorização do capital financeiro, com arranjos que favorecem o ganho de escala, a inserção no mercado educacional e, consequentemente, aumento de lucros aos proprietários” (SANTOS FILHO, 2016, p.65) contribuindo para a expansão de empresas educacionais e favorecendo a acumulação financeira.
Em um contexto de corte dos contratos do Fies com as mudanças operadas no programa, a partir de 2015, criou-se o cenário propício para a proliferação das linhas de crédito estudantil privadas, o que em potencial culminará no acirramento da concepção da educação superior brasileira enquanto mercadoria subordinada aos interesses do capital.
Considerações Finais
Os indicadores do crescimento da educação superior privada e os dados referentes ao financiamento da educação, nos últimos anos, nos permite afirmar que o Prouni e o Fies foram os principais programas governamentais de acesso à educação superior, sendo o Fies o programa que recebeu grandes aportes de recursos públicos, principalmente, a partir de 2010, com consequente incremento do número de novos contratos até 2014. A partir de 2015, houve diminuição na concessão de novos contratos, no entanto, se observa o enorme volume de recursos orçamentários para o Fies, destinados à sobrevivência das controladoras de IES privada-mercantis.
A crescente destinação de recursos públicos para os grandes grupos financeiros educacionais, especialmente por meio do Fies, estimula a transformação da política educacional em espaço de acumulação capitalista, amplamente lastreado por estratégias mercantis capazes de criar grandes conglomerados educacionais de caráter financeirizado e concentrado. Assim, o ensino superior, comercializado por instituições privadas de ensino, constitui-se, deliberadamente, com incentivo estatal direto, em negócio altamente rentável no Brasil.
De fato, após a débâcle de 2007-2008, os negócios educacionais tornaram-se atraentes pelos grandes fundos de investimentos em busca de ativos reais, acentuando de forma vertiginosa a monopolização da educação privada no Brasil. A constatação de que o exponencial crescimento do setor privado-mercantil só foi possível com generosos aportes de recursos diretos e indiretos do fundo público torna ainda mais urgente a necessidade de se buscar compreender qual o significado da presença do capital monetário para a educação brasileira (LEHER, 2018).
O congelamento dos recursos para financiar a saúde e a educação em prol das elites financeiras assume caráter estrutural com a Emenda Constitucional aprovada em dezembro de 2016 - EC 95/2016. Sem financiamento suficiente, qualquer meta de expansão da educação superior pública será totalmente inviabilizada, comprometendo também, a expansão ocorrida nos últimos anos, que longe de representar uma real democratização do acesso à educação superior, resultará no aprofundamento da precarização das condições de trabalho, na degradação da qualidade do ensino e da produção científica realizada nas instituições públicas.
A EC 95/2016 estabelece um teto declinante das despesas primárias do Estado por vinte anos, comprometendo, de modo severo, as verbas orçamentárias das áreas sociais. Com a EC 95/2016, o setor financeiro se fortalece e o movimento de expansão privado- mercantil por meio dos grandes conglomerados pode ampliar-se ainda mais no País.
Por fim, cabe ressaltar que no contexto atual de financeirização e de crises econômicas, a educação superior é transformada de direito público e dever do Estado em uma atraente mercadoria a ser transacionada no mercado capitalista de serviços, nacional e internacional. Dos desafios advindos dessa conjuntura decorre a importância da continuidade de estudos que tenham como foco os desdobramentos do movimento de financeirização da educação superior e suas repercussões quanto ao direito à educação superior.
A proposta de reforma em curso para as universidades federais por meio do Future-se12 deve ser compreendida a partir do aprofundamento do processo financeirização do capital uma vez que esse programa visa alterar de forma profunda a estrutura dessas instituições que deverão seguir a lógica do mercado financeiro com conceitos típicos do mercado como fundos de investimento, rentabilidade, risco, cotas, ações, governança corporativa e empreendedorismo. Esse programa, caso seja implementado, dificultará, ainda mais o acesso da maioria da população ao ensino superior público e de qualidade, que é um direito de todo(a)s e deve ser garantido pelo Estado brasileiro.