Introdução
A conquista pelo direito a educação para crianças de 0 a 6 anos no Brasil é marcada pelas lutas de movimentos sociais e, especialmente, dos movimentos feministas e de mulheres. A questão da creche no âmbito da política social adentrou ao debate público e político, com a preocupação inicial da guarda das crianças para que as mães pudessem trabalhar, visando assim exclusivamente a assistência, em que os locais organizados para as crianças que visavam apenas uma ação que substitui o papel de cuidado da mãe e não de fato uma ação complementar ao da família. A construção do debate a partir dessas lutas elevou a discussão e as pautas reivindicatórias para questões como a qualidade do atendimento e seus objetivos (FINCO; GOBBI; FARIA, 2015).
Os movimentos sociais também se mobilizaram em prol da participação como um direito das famílias, tendo como princípio a gestão democrática. A participação, ao se tornar um direito, também se tornou um dever e a legislação aponta alguns caminhos que a favorecem, como a existência e efetividade de órgãos colegiados. A questão de superar o (ainda existente) cunho assistencialista é fundamental para se pensar em espaços participativos na gestão das escolas que atendem a Educação Infantil (EI) no Brasil, pois é preciso enxergar as famílias como protagonistas em uma ação compartilhada e não meros usuários de um serviço, pauta de preocupação.
Nesse contexto, o presente artigo teve como objetivo realizar uma reflexão sobre os processos que favorecem uma gestão democrática e as possibilidades atuais de participação das famílias no cotidiano de seus filhos em creches e pré-escolas a partir da existência de órgãos colegiados.
No caminho metodológico proposto, pautado em uma análise quantitativa crítica a partir de pressupostos teóricos e legais, retomou-se a constituição histórica da EI a partir de parte da literatura especializada. Além disso, reuniu-se pressupostos legais que embasam aspectos da gestão democrática no Brasil para, posteriormente, explorar informações acerca dos órgãos colegiados existentes nas 28.453 instituições municipais que ofertam exclusivamente a EI em âmbito nacional, disponíveis no Censo Escolar de 2019 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), através da compilação de respostas dos questionários respondidos pelos seus dirigentes.
Nessa leitura, considerou-se de importância a abordagem quantitativa na perspectiva de Selz (2015), pois, mesmo que o envolvimento de informações quantificadas para o entendimento da proposta de investigação seja a base empírica, compreende-se que a estatística neste trabalho é um meio auxiliar para a compreensão do fenômeno. Na perspectiva da autora, as informações numéricas em trabalhos de natureza sociológica ganham relevância se nutridas de arcabouço teórico que as auxilie a compreender o fenômeno.
A luta pelo direito à educação infantil no Brasil: a questão da participação na sua constituição histórica
A participação popular em movimentos sociais no Brasil foi fundamental para o processo de redemocratização do país e pela luta por direitos, após o fim da ditadura militar. O mesmo aconteceu com as mulheres que, por meio dos movimentos feministas que no final da década de 1970, enxergavam a luta pelo direito a creche como uma possibilidade de emancipação (FINCO; GOBBI; FARIA, 2015).
Os movimentos feministas questionavam o papel da mulher na família, visando uma quebra de estrutura patriarcal, na qual a mulher lutava por sua inclusão no mercado de trabalho e defendia que a responsabilidade pelos filhos não era só da mãe, mas de toda uma sociedade,
as mulheres lutando pelo atendimento de necessidades básicas em seus bairros, incluíram a creche na agenda de reinvindicações dos movimentos que protagonizaram, entendendo-a como um desdobramento de seu direito ao trabalho e à participação política (FINCO; GOBBI; FARIA, 2015, p. 9).
As primeiras conquistas por creche no Brasil aconteceram pelas leis trabalhistas, pois ao se inserir no mercado de trabalho remunerado, a mulher não tinha com quem deixar seu bebê. Segundo Teles (2015, p. 22), “a creche, num primeiro momento, foi considerada como um direito trabalhista de trabalhadoras mães de crianças bem pequenas”. Sendo assim, a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) estabeleceu no ano de 1943 que as empresas que tinham em seu quadro de funcionários mais de 30 mulheres acima de 16 anos, deveriam oferecer um lugar para guarda de seus filhos durante o período de amamentação. Teles (2015) ressalta que, além do cunho assistencialista da referida normativa, ela não foi efetiva, na medida em que foi pouco fiscalizada e, quando não havia o cumprimento das normas, as multas eram irrisórias.
No ano de 1975, contextualizado por um período de repressão e violência vivida no período da ditadura militar, as mulheres começaram a reconstruir o movimento feminino, apoiadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), que estabeleceu o Ano Internacional da Mulher. Sob o clima de libertação, busca por maior participação política na sociedade e sua entrada no mercado de trabalho é que se deu também a luta pela creche (TELES, 2015).
A ONU instituiu também “A Década da Mulher” (1975-1985), propondo que todos os países buscassem mecanismos para superar ou diminuir os obstáculos que travavam a emancipação feminina (ROSEMBERG; CAMPOS; PINTO, 1985), fato que impulsionou os movimentos de mulheres e feministas na luta por seus direitos, incluindo a luta pela creche.
Esta luta era por um local de socialização para a criança e não apenas por um local de guarda. Assim, os movimentos ampliaram a sua participação para além da discussão do direito de ter um lugar para deixar seus filhos para também como esse local deveria ser organizado. Como afirma Teles (2015, p. 25), “as feministas exigiam a creche como espaço de socialização de crianças, e isso implica em adquirir qualidade profissional e condições adequadas para todos os atores envolvidos: crianças, mães, pais e profissionais”. Visando locais que tivessem como objetivo complementar o papel das famílias, as mulheres colocaram a creche no âmbito de disputa política.
A luta por creche foi ganhando espaço nas políticas públicas. Como mostra Teles (2015, p. 27) para o caso do estado de São Paulo, “de apenas 4 creches públicas e gratuitas em São Paulo no ano de 1979, em 1984 passou a ter uma rede de creches com mais de 120 unidades”. Mesmo assim, nem todas as crianças tiveram acesso, mas as mulheres continuaram a participar dos processos de criação e manutenção desses espaços como líderes comunitárias, mesmo com os movimentos paulatinamente enfraquecendo.
A perda de força dos movimentos sociais que lutavam por creche justifica-se por algumas questões que dizem respeito a participação (ROSEMBERG; CAMPOS; PINTO, 1985). As feministas se afastaram dos movimentos por enxergar que o acompanhamento e a avaliação das creches cotidianamente se aproximavam da tradicional de dona de casa, papel cujo estava tentando se romper. Além disso, suas atividades estavam ligadas a comparar preços e opinar sobre serviços de manutenção, tarefas pouco reflexivas e participativas nos processos de tomada de decisão dos rumos das instituições educativas. Algumas operárias ainda se afastaram por não terem o direito de colocar seus filhos na creche, já que os critérios priorizavam as famílias mais pobres. E por fim, ainda uma parcela considerável das mulheres que participaram dos movimentos foram incorporadas como empregadas nas creches e, portanto, deixando de fazer parte dos movimentos e passando a responder pelos interesses do Estado e não mais da população.
Nesse contexto, a questão da participação comunitária torna-se bastante complicada. Em muitos casos, em nome da participação, o que parece existir na realidade, é uma exploração de mão-de-obra gratuita ou sub-remunerada, sem o correspondente espaço de co-gestão que poderia justificar o recurso ao trabalho voluntário ou informal (ROSEMBERG; CAMPOS; PINTO, 1985, p. 46).
Em diversas situações, as mães eram chamadas para ajudar, o que poderia favorecer um processo de participação na gestão da unidade. Porém, essa ajuda se resumia à mão-de-obra gratuita para realizar serviços como limpeza e preparo de refeições. Assim, essas mães não tinham qualquer participação nos processos decisórios da instituição. Essa questão está ligada diretamente com a concepção de família que se tinha, pois a questão é se as profissionais que atuam na EI enxergam as famílias apenas como usuárias de um serviço ou de fato protagonistas (BONDIOLI, 2013) num processo de participação com decisões compartilhadas entre família e escola,
Conceber o papel dos pais essencialmente como usuários das instituições educativas para a infância implica uma espécie de ‘procuração’ das famílias relativamente à educação dos próprios filhos, procuração dada a profissionais da educação com os quais não é possível um debate paritário. Ao contrário conceber os pais como protagonistas significa pensar a educação das crianças como uma tarefa compartilhada entre famílias e profissionais. Isso implica também pensar a educação não como um fato individual, mas como um empreendimento coletivo, e as instituições extradomésticas para a educação infantil como lugares de discussão, negociação, reflexão acerca de uma pedagogia para a infância. (BONDIOLI, 2013 p. 28).
Apesar de os processos de participação ainda não serem efetivos no cotidiano das creches e pré-escolas, todo esse movimento de luta com a participação popular contribuiu para as conquistas legais, pois na Constituição Federal (CF) de 1988 o direito a educação incluiu as crianças menores de 7 anos,
Pela primeira vez a criança com menos de 7 anos de idade apareceu na legislação brasileira como sujeito de direitos. Embora de início se reivindicasse a creche sem uma reflexão maior sobre o seu significado, no decorrer da luta o próprio feminismo descobriu que a creche é um direito da criança pequena à educação, o “que não era assim entendido no início da construção da bandeira. Foi uma construção coletiva na qual as mulheres passam a inventar uma creche ideal” (TELES, 2015, p. 28).
Desta forma, o direito não é mais apenas da mãe da trabalhadora, mas também da criança pequena, além de romper com o estigma da creche como orfanato e de cunho assistencialista, pois “as feministas organizaram e construíram reflexões sobre a educação de crianças pequenas numa perspectiva de se conquistar e garantir direitos fundamentais para toda a sociedade” (TELES, 2015, p. 31).
Romper com o cunho assistencialista no atendimento às crianças que frequentam a EI é essencial para se avançar nas questões de participação das famílias no cotidiano das instituições, pois, de acordo com Rosemberg, Campos e Pinto (1985, p. 5), ao produzirem um relatório que mostra as conquistas dos movimentos de mulheres; feministas e sociais, na Década de Mulher (1975-1985),
O assistencialismo que predominou por longo tempo nas creches nem sempre deu a devida importância à questão a qualidade dos serviços prestados. Como nesses casos os serviços prestados são considerados favores oferecidos à população, os pais não têm direito a qualquer controle ou intervenção sobre o que acontece com seus na creche.
Então, apesar do histórico de luta e conquista pela creche, as famílias não podiam participar do que acontecia com seus filhos. O mesmo acontecia com as crianças que frequentavam a pré-escola. Como a preocupação predominante era em sua organização com a preparação das crianças para ingressar na escola, não eram previstas ações que complementassem o papel da família, colocando como desnecessária a sua participação.
Logo, é possível afirmar que os movimentos de mulheres e feministas trouxeram importantes contribuições para as modificações que se deram no sistema educacional brasileiro, materializadas na promulgação da CF/88 e legislação complementar.
O direito de participação comunitária: a legislação nacional em torno da gestão democrática
A EI ganhou espaço na legislação brasileira como um direito a educação e, junto com esse direito, a normatização dos processos que possam favorecer a participação das famílias no cotidiano das instituições. Assim, as famílias também tiveram asseguradas o direito de participar, visando uma ação compartilhada com as unidades educativas e, ao mesmo tempo, essa participação pode ser vista também como um dever (BONDIOLI, 2013).
Ao entender o papel das instituições de EI como complementar ao papel da família, a participação é um recurso para se romper com o cunho assistencialista que ainda vive em algumas organizações,
A participação é uma problemática complexa, pelas questões de ordem política (representação, direitos, possibilidades de tomar decisões) e pedagógica (responsabilidade e tratamento da relação educativa e dos processos de aprendizagem) que põe em jogo, e pela pluralidade dos personagens e papéis aos quais se refere (BONDIOLI, 2013, p.25).
Desta forma, é necessário retomar a legislação brasileira para entender como as questões de participação estão contempladas. A Constituição Federal de 1988 traz no artigo 206 os princípios de base pelos quais a educação deverá ser ministrada, colocando em seu inciso VI a Gestão Democrática (GD) como princípio, gestão democrática do ensino público, na forma da lei (BRASIL, 1988).
Em 1996 a LDB 9.394/96 também considerou a GD como princípio base pelo qual a educação deverá ser ministrada, colocando em seu art. 206, inciso VI, “gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei, e da legislação dos sistemas de ensino” (BRASIL, 1996, p. 9). Na LDB foi estabelecido alguns procedimentos para transformar o princípio em método, transferindo para os sistemas de ensino a organização de outras leis para o cumprimento do princípio,
Art.14. Os sistemas de ensino definirão as normas de gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - Participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - Participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 1996, s/p.).
Desta forma, entende-se que a LDB 9.394/96 transferiu para os sistemas de ensino a criação de métodos para colocar em prática o princípio da GD, mas estabeleceu procedimentos mínimos: a participação dos profissionais na elaboração da proposta pedagógica da escola e a participação da comunidade escola e local em conselhos ou equivalentes.
A LDB prevê como responsabilidade da União a elaboração decenal do Plano Nacional de Educação (PNE). Sendo assim, este é mais um documento que trata das questões da GD nacionalmente. O PNE 2014-2024, normatizado pela Lei 13.005/2014, apresenta em seu art. 2° as diretrizes do plano e coloca a gestão democrática como um princípio para a educação pública. Além disso, uma de suas vinte metas é dedicado à temática:
Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto. (BRASIL, 2014, Meta 19).
A referida meta prevê em sua primeira estratégia a transferência de recursos para os entes federados que aprovarem legislação própria sobre a GD, respeitando a legislação nacional, reforçando a transferência da responsabilidade para os sistemas de ensino, como já apontado na LDB.
Nas demais estratégias da meta, é perceptível que o PNE ampliou os procedimentos sobre a GD com o objetivo de transformar o princípio em método, reforçando a questão da importância dos conselhos escolares e da participação dos profissionais na elaboração do projeto pedagógico da escola, incluindo a participação das famílias e dos estudantes e tratando, dentre outras questões, de procedimentos sobre a forma de provimento dos diretores escolares.
Na especificidade da EI, ainda em âmbito nacional, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) (2010), fixadas pela Resolução n. 5, de 17 de dezembro de 2009, enfatizam questões relacionadas diretamente à democracia e a gestão democrática como princípio e um direito (BRASIL, 2010). Considerando tratar-se de um documento de caráter mandatório que orienta a formulação de políticas nos estados e municípios, também prevê como procedimento que as propostas pedagógicas das instituições de EI devem ser elaboradas num “processo coletivo, com a participação da direção, dos professores e da comunidade escolar” (BRASIL, 2010, p. 13), além da participação dos pais junto aos profissionais da instituição em conselhos e a possibilidade de formas de participação das crianças.
Os Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil de 2018 também compõem os documentos que tratam da especificidade da EI. Ele traz a atualização de quatro publicações de 2006, sendo elas: Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil - Volumes 1 e 2 e Parâmetros Básicos de Infraestrutura para as Instituições de Educação Infantil - Volumes 1 e 2. Este documento tem como um de seus objetivos orientar os sistemas de ensino com os padrões de referência de qualidade de organização, gestão e funcionamento das instituições de EI. Sendo assim, interessa para este trabalho as questões trazidas como referência de gestão.
A democracia é tida nos referidos parâmetros como princípio, discorrendo que os diretores das instituições de EI devem estimular a participação dos profissionais, das famílias e da comunidade na elaboração do Projeto Pedagógico, nos órgãos de decisões colegiadas e nas avaliações institucionais, trazendo como parâmetro de referência “conduzir, em conjunto com os Professores e profissionais da Instituição de EI, um processo de concepção, elaboração e implementação do Projeto Pedagógico participativo, envolvendo todos os profissionais da Educação Infantil” (BRASIL, 2018, p. 40) e “promover a gestão democrática e ter como princípio o estímulo e o fortalecimento de Conselhos Escolares e demais órgãos colegiados, em conjunto com os Professores e profissionais da Instituição de Educação Infantil” (BRASIL, 2018, p. 44).
Considerando a legislação vigente e os documentos específicos da EI, é possível identificar alguns procedimentos de participação, sendo eles: a participação dos profissionais na elaboração da proposta pedagógica da instituição de EI; a participação da comunidade escolar em órgãos colegiados e; a participação da comunidade na escolha dos diretores das instituições de EI, prevendo a seleção dos candidatos por critérios de mérito.
Gestão Democrática a partir da existência de órgãos colegiados nas unidades educativas: espaços de favorecimento à participação
Como a responsabilidade de organização das Leis que tratam da gestão democrática na educação foi passada para os sistemas de ensino, é um obstáculo encontrar uma unicidade nacional. Porém, essa investigação inicial buscou apresentar como os municípios se comportam frente à legislação nacional referente a GD, delimitando a discussão na existência de órgãos colegiados e as possibilidades de participação comunitária a partir destes.
Para tanto, os dados trabalhados nessa seção foram provenientes do Censo Escolar de 2019, sendo selecionado as escolas que atendem exclusivamente a EI, considerando apenas as instituições públicas municipais, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público (BRASIL, 1996), totalizando 28.453 instituições, localizadas em 5.200 municípios brasileiros.
A primeira questão se refere à uma lacuna da legislação nacional: afinal, como se define a gestão democrática? A democracia é, ao mesmo tempo princípio e procedimento. Na adoção desta como princípio, reconhece-se a importância da definição de Souza (2009):
A gestão democrática é aqui compreendida, então, como um processo político no qual as pessoas que atuam na/sobre a escola identificam problemas, discutem, deliberam e planejam, encaminham, acompanham, controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desenvolvimento da própria escola na busca da solução daqueles problemas (SOUZA, 2009, p. 125).
Para Souza (2009), a sustentação da GD é pautada no diálogo e na alteridade, reconhecendo as diversas funções técnicas da escola, bem como baseado na ampla participação de todos os segmentos envolvidos com a escola e transparência pública, seja na publicização das normas vigentes coletivamente construídas e/ou no respeito à elas, culminando na maior quantidade de pessoas possível nos processos de tomada de decisão na escola.
No que tange aos procedimentos, Bobbio (2015) enfatiza que não há democracia sem regras, ou, nos termos usados para este trabalho, procedimentos. Nesse viés, é possível nomear os órgãos colegiados como espaços normatizados por procedimentos, que podem ser mais ou menos (no sentido de ser maior ou menor) democráticos.
Os órgãos colegiados são formas de organizações nas quais estão previstos a participação das famílias, professores, funcionários, estudantes e comunidade local, pois é por meio deste tipo de organização “que são fornecidas as melhores condições para que os diversos setores participem efetivamente da tomada de decisões, já que estas não se concentram mais nas mãos de uma única pessoa, mas de grupos ou equipes representativos de todos” (PARO, 2012, p. 212), buscando assim uma gestão mais democrática.
De acordo com Souza et Al. (2005), os órgãos colegiados são instâncias democráticas que favorecem a GD, que podem ser normatizados no âmbito da gestão da escola ou da rede/sistema de ensino. Baseados em experiências políticas anteriores desde a década de 1980, bem como de outras experiências político pedagógicas posteriores, os autores elencam, no espaço escolar, as seguintes possibilidades: a) Conselho de Escola: é a instituição que tem por objetivo a coordenação da gestão escolar, estudando, planejando, debatendo, deliberando e acompanhando o dia à dia da escola, seja na parte pedagógica, administrativa ou financeira. É composto por uma representatividade que reúne professores, funcionários, pais, alunos e equipe diretiva, e, b) Associação de pais e o grêmio estudantil: são citadas como relevantes no processo de gestão democrática. Seja para auxílio de captação de recursos e representatividade dos pais na escola ou para a mobilização dos estudantes em torno de uma entidade representativa, as duas associações são vistas como fundamentais para a participação de todos nas decisões da escola.
Além desses órgãos colegiados, tipicamente construídos e operados na escola, Souza et Al. (2005) elenca outras instâncias democráticas capazes de ampliar o favorecimento a uma gestão mais democrática, como os Conselhos Municipais de Educação (podendo contar com representação de famílias), rotatividade de dirigentes (induzida ou não por uma normativa municipal complementar), eleição direta de dirigentes, conselhos de acompanhamento e controle social, orçamento participativo e conferências locais de educação. Em todas essas possibilidades, os autores reconhecem a abertura para que a comunidade possa ter direito à participação nas tomadas de decisão. Operando a partir do diálogo, participação e alteridade, base proposta por Souza (2009), favorece a participação da comunidade escolar, “vivendo a prática da participação nos órgãos deliberativos da escola, os pais, os professores, os alunos, vão aprendendo a sentir-se responsáveis pelas decisões que os afetam num âmbito mais amplo da sociedade” (LIBÂNEO, 2001, p. 83).
Então, o ponto de partida para que haja um espaço procedimental que favoreça a GD na escola pública é a existência dele. Nesse viés, a tabela 1 apresenta um breve panorama acerca da existência de algum tipo de órgão colegiado em suas instituições. De acordo com os dados do Inep (2019), observa-se que em 18% das escolas de EI brasileiras não existe nenhum tipo de órgão colegiado. Sendo assim, nessas instituições não existe a participação da comunidade escolar e local na gestão da escola por meio desse mecanismo, ferindo o que está posto como uma das possibilidades de participação previsto na legislação nacional no que se refere a GD.
Respostas | Frequência | Percentual |
---|---|---|
Sim | 22337 | 78,5 |
Não | 5113 | 18,0 |
Não Informado | 1003 | 3,5 |
Total | 28453 | 100,0 |
Fonte: Censo Escolar do Inep (2019).
Ou seja, se o ponto de partida é a existência de um órgão normativo que amplie as possibilidades de participação, há uma quantidade de casos significativa, aliado aos 3,5% de respostas não informadas, sem qualquer espaço caracterizado como um colegiado.
O Conselho de Escola é um dos órgãos colegiados mais citados na literatura especializada (SOUZA, 2007, 2009; SOUZA et Al., 2005) e tido com um espaço importante na composição de um lugar em que os segmentos interessados nos processos decisórios da escola possam ser representados. De acordo com os dados explorados do próprio Inep para o ano de 2019, das 28.453 instituições, 62% tem o referido colegiado. É preciso considerar que o conselho escolar é uma instância que favorece a gestão democrática, com potencial de se tornar uma ferramenta de administração escolar participativa. Todavia, a realidade exposta é que em 34,4% das instituições que atendem exclusivamente a EI pública no Brasil, não consideram esse tipo de organização, pois entende-se que é
Por meio dessa modalidade de administração participativa, ocorre a extinção do autoritarismo centralizado, a eliminação da diferença entre dirigentes e dirigidos, a participação efetiva dos diferentes segmentos na tomada de decisões, alcançando-se assim o fortalecimento do líder da escola em relação às normas emanadas dos órgãos administrativos centrais. (HORA, 2012, p. 52).
Assim, sem um conselho instituído, há maior probabilidade de intervenção da mantenedora na gestão e autonomia da escola, pois, tendo apenas o diretor como sujeito na gestão escolar é mais fácil fazê-lo cumprir as orientações sem argumentação e participação efetiva em sua elaboração.
Dentro das associações envolvendo famílias e profissionais da educação, o Censo Escolar de 2019 oferece duas possibilidades de resposta: associação de pais e mestres e associação de pais. Com base nas informações de base para este trabalho, 57,2% das escolas não tem o primeiro órgão supracitado e pouco mais de 92% o segundo. Desta forma, a maioria das instituições que compuseram a pesquisa não considera essa organização como uma forma de ampliar a participação dos envolvidos no processo educativo nas tomadas de decisão.
Mesmo com a luta dos movimentos sociais, feministas e de mulheres, a atualidade evidencia a dificuldade de se efetivar uma gestão de fato democrática nas escolas de EI no Brasil. A inexistência de órgãos colegiados é um obstáculo para a representatividade das famílias e das mulheres nos processos de tomadas de decisão nas instituições educativas.
A ausência de espaços que privilegiem processos decisórios coletivos costuma manter como única abertura de participação das famílias no âmbito escolar a realização de tarefas, como a manutenção do parquinho, trazendo na verdade uma mão de obra gratuita e não uma ação compartilhada entre família e escola. Também é possível notar que, nestes espaços caracterizados por esse tipo de participação, “o contato creche-famílias se dá através de reuniões assistemáticas nas quais a administradora prega ‘sermões’ às mães sobre higiene, saúde, alimentação e disciplina dos filhos” (ROSEMBERG; CAMPOS; PINTO, 1985, p. 74). Ou seja, mesmo com os movimentos de luta em torno do direito a educação infantil, acesso universal à creche sem marcas assistencialistas e a ânsia por maior participação nos processos decisórios das instituições públicas educacionais, o caminho tecido pelas feministas e mulheres ainda carece de conquistas mais efetivas.
Na consideração de que a legislação nacional específica para a EI orienta para que a participação das crianças não se restrinja apenas ao usufruto do direito ao atendimento, ponderando a especificidade da faixa etária desta etapa, deve-se buscar formas de ouvir os bebês, as crianças bem pequenas e as crianças pequenas (BRASIL, 2010). De acordo com as respostas do Censo Escolar 2019, 96,2% das escolas declaram que não tem o grêmio estudantil instituído. Apesar da precisão da informação acerca da inexistência do colegiado, o limite de um estudo com dados secundários não esclarece se as instituições que declararam não ter instituído esse órgão colegiado foi devido ao mesmo ser característico de outras etapas da educação básica ou por de fato não existir nenhuma forma organizada de participação das crianças.
Do cenário supracitado, a principal questão desse debate é a possível distância entre a existência de um órgão colegiado e a sua efetividade em termos de GD, especialmente no que tange à participação comunitária. Nesse ponto, Souza et Al. (2005) salienta que
Todavia [...] pode significar muito pouco, particularmente se o princípio democrático não estiver sustentando a organização das instituições, insto é, de pouco vale a criação de conselhos e conferências e eleições se não há disposição dos profissionais que atuam na escola ou no sistema de ensino, ou dos estudantes e seus familiares ou mesmo da sociedade em geral, na edificação de espaços para o diálogo, nos quais todos, independente da condição social ou vínculo com a educação, possam participar, opinando e tendo suas opiniões ouvidas e respeitadas (SOUZA et Al., 2005, p. 22).
Nesse viés, o limite de análise das informações está no que as diretoras respondentes declararam. De fato, um espaço participativo só é possível se as pessoas que ocupam os espaços diretivos conduzem a gestão da escola pautada nos princípios da GD, resultando na existência dos órgãos colegiados como um favorecimento à democracia, e não um fim democrático em si.
Outra questão, tão importante quanto esse fato, se refere à participação das mulheres e movimentos feministas. Com a ampliação do acesso à EI, especialmente da pré-escola, o debate sobre a qualidade da educação em confronto com a perspectiva assistencialista e a garantia do direito de participação nos processos decisórios da escola são questões contemporâneas da pauta dos movimentos sociais. A história relembra as dificuldades de se avançar no direito à EI. O cenário apresentado indica que a inexistência de colegiados normatizados nas instituições municipais relacionadas para esse estudo aponta para entraves consideráveis para um espaço mais participativo.
Considerações finais
No debate relacionado ao espaço participativo, o desafio é romper com a perspectiva que “abrir” a escola é possibilitar que as mulheres cozinhem para as crianças e auxiliem na limpeza e cuidado, bem como na condução de atividades recreativas ou de manutenção/revitalização em um final de semana. Na perspectiva da autora e do autor dessa pesquisa, pensar de forma participativa em um princípio de gestão democrática é entender que o melhor cenário em uma tomada de decisão é a maior quantidade de pessoas envolvidas nesse processo.
Os movimentos feministas e de mulheres foram essenciais na conquista pelo direito à educação de crianças de 0 a 6 anos no Brasil. Porém evidencia-se na história que a participação dos movimentos sociais não foi suficiente para garantir também uma participação das famílias nas tomadas de decisão dos rumos das instituições educativas que ofertam exclusivamente a EI. Mesmo com a caminhada dos movimentos feministas e das mulheres, o que se evidencia é que, em um ponto de partida mínimo, a existência de órgãos colegiados, o cenário é incipiente na busca pela efetividade da participação comunitária nas instituições mantidas pelos poderes públicos municipais que ofertam exclusivamente a EI.
Considera-se oportuno que outras pesquisas, especialmente estudos de caso, aprofundem duas questões: os motivos da inexistência de órgãos colegiados e o referido contexto histórico e político nas instituições de EI e, em caso de existência, de que forma as famílias são convidadas a participar dos processos decisórios nessas instâncias e, em última medida, quais as relações dos espaços de representatividade com os movimentos sociais locais.