Apontamentos iniciais
Historicamente, a assistência às crianças pequenas em espaços com atendimento em tempo integral teve suas raízes firmadas na passagem do Império para a República no Brasil. Nesse período, intensas transformações econômicas, culturais e sociais em curso no país reestruturaram a sociedade de forma a legitimar a nova ordem urbana que se estabelecia. Considerando a necessidade de mão de obra livre e homens sadios que respondessem às demandas de um mercado emergente, o período compreendido entre o final do século XIX até meados do século XX foi marcado pela propagação de hábitos higiênicos com extenso apoio feminino na aplicação de conhecimentos acerca dos cuidados pessoais, da alimentação e da amamentação dos bebês (RIZZINI; PILOTTI, 2011).
Em um contexto de significativas mudanças no ordenamento social, Guimarães (2017) evidencia a defesa dos médicos higienistas pela criação de creches no Brasil como uma forma de administrar a salubridade dos mais pobres, por meio do cuidado com a saúde e a nutrição dos bebês das escravas e ex-escravas. O foco dessas ações teve forte assento na liberação da mão de obra das mulheres pobres para o mercado de trabalho, como garantia dos privilégios financeiros das elites (CIVILETTI, 1991).
A ampla atuação dos higienistas favoreceu a circulação do periódico Mãi de Família, em 1879, com o escopo de instruir a mulher a se tornar uma boa mãe, ao mesmo tempo em que defendia a construção de espaços para receber seus filhos enquanto se ausentasse devido ao trabalho. Ainda no primeiro ano de sua criação, foram publicados artigos escritos pelo médico Dr. K. Vinelli nos quais a creche era defendida como “[...] um estabelecimento de beneficência que tem por fim receber em todos os dias úteis e durante as horas de trabalho, as crianças de dois anos de idade para baixo, cujas mães são pobres, de boa conduta e trabalham fora de seu domínio” (JORNAL MÃI DE FAMILIA, 1879, apud CIVILETTI, 1991, p. 3).
A constituição desses espaços de guarda para as crianças desvalidas se diferenciava dos jardins de infância privados, destinados ao trabalho pedagógico com os filhos das famílias abastadas. Para Kulhmann Jr. (1998), a diferença entre essas instituições estava justamente naquilo que se pretendia alcançar socialmente; de um lado, a educação pré-escolar para os filhos das senhoras, e de outro lado, a institucionalização por longas horas diárias dos filhos de serviçais nas creches, no intuito de “minimizar os problemas sociais decorrentes do estado de miséria de mulheres e crianças” (GUIMARÃES, 2017, p. 10). Nesse cenário, o decorrer dos séculos XIX e XX foi marcado pelo aumento acentuado da atividade profissional feminina, acompanhado do desenvolvimento da institucionalização de crianças pequenas de classes populares, em tempo integral, desencadeando práticas assistencialistas de atendimento em creches, asilos infantis, patronatos etc. (BARBOSA; RICHTER; DELGADO, 2015).
Guimarães (2017) e Campos (1999) evidenciam que o alvorecer de um novo quadro econômico iniciado com a república culminou, na década de 1920, na ampliação dos direitos dos trabalhadores, principalmente das mães trabalhadoras, que passaram a ter, a partir da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT (BRASIL, 1943), espaços próprios para a amamentação em seus postos laborais, além do estabelecimento de vínculos entre as empresas com mais de 30 funcionárias e as creches, para atender aos seus filhos sob vigilância e assistência.
Aos poucos, as ações destinadas aos filhos das mães trabalhadoras foram ampliadas para além da amamentação dos bebês. A exemplo disso, segundo Kramer (2003), esse trabalho assistencial, inicialmente desenvolvido sob a responsabilidade de instituições particulares, progressivamente foi assumido por órgãos públicos voltados ao atendimento da criança, de tal forma que, na década de 1940, em pleno Estado Novo, o Governo Federal inaugurou uma política de proteção e assistência ao menor e à infância com a criação de órgãos oficiais de atendimento público e privado, ambos administrados pelo Estado. Dentre essas iniciativas, Kramer (2003) destaca a Legião Brasileira de Assistência - LBA, fundada em 1942, com o escopo de ofertar atendimento assistencial voltado para a proteção da maternidade e da infância.
Em 1974, a LBA deu início à implementação do Projeto Casulo, com o objetivo de prestar assistência a crianças de até seis anos de idade, oferecendo, para tanto, cuidados de saúde e higiene, nutricional e biopsicossocial realizados por meio de uma relação com a família e com a comunidade (KRAMER, 2003). Embora as diretrizes do projeto ensejassem um distanciamento de práticas compensatórias, sem a pretensão de solucionar os problemas sociais, na prática, percebemos uma conformação ao ideário nacional capitalista.
Ao atender às crianças, o Projeto Casulo pretende, também, proporcionar às mães tempo livre para ingressar no mercado de trabalho, para que possam elevar a renda familiar. As Unidades Casulo estão implantadas em todo o Território Nacional, atendendo a crianças durante quatro ou oito horas diárias, conforme condições locais (KRAMER, 2003, p. 73, grifo nosso).
No que diz respeito ao Projeto Casulo no estado do Espírito Santo, conforme o Relatório dos Encontros Regionais de Educação Pré-Escolar do Brasil divulgado pelo MEC em 1981, por meio da integração com a LBA, o Projeto Casulo foi implementado no estado em 1979, revelando, inclusive, um aumento da frequência escolar após a implementação do projeto nas escolas. As estatísticas divulgadas pelo documento mostraram que, em 1980, cerca de um ano após a implementação do programa na região, já haviam sido criadas no estado mais de 120 unidades-casulo, responsáveis por atender mais de 5.500 crianças com idades entre quatro e seis anos (BRASIL/MEC, 1981). As informações apresentadas pelo documento (BRASIL/MEC, 1981) ainda nos dão pistas de que já havia no estado uma tentativa de sistematizar ações pedagógicas voltadas às crianças em idade pré-escolar, embora, como é sabido, a grande ênfase recaísse na proteção e assistência.
Em um contexto em que as instituições pré-escolares foram criadas partindo de uma abordagem compensatória destinada às crianças das camadas populares (KRAMER, 2003), tornou-se crescente a demanda das famílias por instituições educativas que atendessem às crianças de zero a seis anos de idade, até que, ao final da década de 1970 e durante a década de 1980, deflagrou-se, no Brasil, segundo Gama (2012), uma grande força de movimentos sociais, especialmente o de mulheres, que lutavam pelos direitos trabalhistas, assim como pelos direitos das crianças. De acordo com Campos (1999, p. 122), a creche foi incluída na agenda dessas reivindicações, pois as mulheres entendiam que ela era “[...] um desdobramento de seu direito ao trabalho”.
Para Campos (1999), esses movimentos sociais foram importantes para a constituição da Carta de Princípios Criança: Compromisso Social (CNDM, 1986), que defendia o direito da criança à educação e não apenas da mulher que trabalhava, e ressaltava a importância de educar as gerações mais novas. Essa Carta apresentou importantes avanços, a saber: ênfase que a oferta das creches seria um direito e não um favor; defesa das creches como instituições de educação formal; e reconhecimento que todas as crianças deveriam ter o direito de frequentar a creche.
Fruto de amplos debates, emendas populares e mobilizações de diferentes setores da sociedade que marcaram o final do século XX, promulgou-se a Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, trazendo como prerrogativa o reconhecimento da educação como um direito de todos e dever do Estado, e, ainda, como bem destacam Nunes e Corsino (2012, p. 17, grifo nosso):
[...] a educação infantil, que até então era direito dos filhos de mães trabalhadoras, passa, com a Constituição de 1988, a ser direito das crianças: é responsabilidade do poder público municipal oferecer creches e pré-escolas a todas as crianças cujas famílias desejem esses serviços ou deles necessitem.
A nova Constituição estabeleceu um marco histórico para o campo da educação da infância, pois ela deixa de ser subordinada à assistência social e passa a ser vista sob a perspectiva do direito à educação. Em diálogo com a Lei Magna, tendo como finalidade normatizar as formas de acesso e permanência das crianças e dos adolescentes no ensino público, bem como garantir seu direito à educação, foi criado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990).
Segundo Araújo (2011, p. 200), “pela primeira vez na história do país, a criança aparece como prioridade absoluta [...] inaugura-se uma nova fase de reconhecimento do menor de 18 anos [...]”, onde ela passa a ser reconhecida sob o status jurídico como um “sujeito de direitos”. Vale aqui destacar que o ECA (BRASIL, 1990, p.14) resguardou o direito à proteção das crianças ao afirmar em seu art. 7º que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
Adiante, a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases Nacionais da Educação Brasileira - LDB (BRASIL, 1996) reconheceu a educação infantil como primeira etapa da educação básica e complementou o texto constitucional. Segundo Campos (1999, p.125), as prerrogativas anunciadas na LDB representaram muitas das conquistas “[...] pelas quais lutaram inicialmente os movimentos de mulheres [que] foram incorporados à lei educacional”. Publicado em 1998, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil teve como objetivo “[...] apontar metas de qualidade que contribuam para que as crianças tenham um desenvolvimento integral de suas identidades, capazes de crescerem como cidadãos cujos direitos à infância são reconhecidos” (BRASIL, 1998, p. 6).
Passados anos desde o reconhecimento da educação infantil como primeira etapa da educação básica, são publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEIs (BRASIL, 2010). Elas reafirmam a obrigatoriedade da matrícula das crianças de quatro e cinco anos na educação infantil, considerando o tempo de permanência em jornada de tempo parcial (mínimo de quatro horas diárias) e jornada de tempo integral (igual ou superior a sete horas diárias). O documento ratifica o dever do Estado com a educação e pressupõe que a oferta da educação infantil seja “pública e de qualidade, sem requisito de seleção” (BRASIL, 2010, p. 14, grifo nosso).
Em contrapartida ao reconhecimento legal do direito à educação infantil de todas as crianças nas prescrições normativas, sem distinção de situação familiar ou condição econômica, pesquisa realizada por Araújo (2015) 4 observa que, em um contexto de precarização de vagas, selecionam-se algumas para frequentarem o tempo integral em função dos critérios predominantes de matrícula concernentes às condições socioeconômicas das famílias, o que têm se apresentado muitas vezes como uma legitimidade inquestionável na política da educação infantil em tempo integral.
No estudo de Araújo (2015), realizado em 20 instituições de educação infantil em tempo integral de dez municípios capixabas em contextos rurais e urbanos, a indispensável comprovação das necessidades das mães trabalhadoras também se constituiu importante critério de matrícula no tempo integral, o que não se observava no contexto do tempo parcial. Essa questão continua a trazer sérias implicações ao campo da educação infantil, já que a matrícula se configura primordialmente como um suporte às demandas das mães e não prioritariamente às crianças, razão primeira do direito à educação infantil.
Alguns aspectos que marcaram a história do atendimento da infância pobre no Brasil continuam atravessando a atualidade. Se, historicamente, o surgimento das instituições de educação infantil em tempo integral está atrelado ao trabalho feminino, sua oferta em determinados municípios utilizam a mesma justificativa. Tais reflexões despertaram como interesse o objetivo de discorrer sobre as percepções das famílias em relação à educação infantil em tempo integral, assim, algumas questões foram sistematizadas: quais as motivações ao matricularem as crianças na educação infantil em tempo integral? Quais as expectativas em relação à matrícula das crianças? O que conhecem acerca dos critérios de matrícula adotados para o acesso ao tempo integral na educação infantil? Além disso, percebemos que as famílias discorreram sobre outros aspectos nas entrevistas, sobretudo em relação às suas perspectivas acerca da experiência de seus filhos no tempo integral, o que também foi considerado em nossas análises. Tomando por referência o estudo realizado por Araújo (2015) 5, foi realizada uma análise descritiva e explicativa das entrevistas semiestruturadas realizadas com 86 famílias, cujos filhos encontravam-se matriculados nas instituições investigadas.
Metodologia
Como ferramenta de apoio a algumas etapas para o tratamento e interpretação dos dados, utilizamos o software NVivo6 (Pro, versão 12). Inicialmente, criamos um ‘projeto’ NVivo (Figura 1) para o qual importamos todos os arquivos da pesquisa, com destaque às transcrições das entrevistas com as famílias. Em seguida, na etapa de codificação, geramos os ‘códigos’ no programa, que representam as categorias pré-definidas conforme as principais variáveis do estudo, a saber: motivações das famílias para a matrícula na educação infantil em tempo integral; expectativas em relação à permanência das crianças na instituição; e conhecimento acerca dos critérios predominantes de matrícula. Para cada um desses ‘códigos’ matriz, geramos novos ‘códigos’ hierárquicos, correspondentes aos municípios onde a pesquisa foi desenvolvida e, em sequência, ‘códigos’ subjacentes a estes, relativos aos contextos da pesquisa (urbano e rural).
Utilizamos o programa para codificar as transcrições das entrevistas a partir da realização de uma ‘consulta de frequência de palavras’ para os códigos criados. Esse processo nos forneceu uma lista de palavras mais frequentes, as quais limitamos à quantidade de 80, excluindo-se os artigos, conjunções e preposições irrelevantes para o estudo, adicionados à ‘lista de palavras impedidas’, da mesma forma que foi realizado o ‘agrupamento com palavras derivadas’. Essa consulta ainda nos permitiu gerar ‘nuvens de palavras’, que representam, em um formato visual, a lista de palavras mais frequentes. Consideramos importante, para este artigo, a utilização desse suporte visual para ilustrar de maneira simples e de fácil compreensão as análises, uma vez que, nas nuvens, a frequência das palavras está relacionada ao tamanho que aparecem; quanto maiores, mais frequentes.
A reflexão sobre resultados fornecidos pelo software nos permitiu identificar temas representativos nas respostas das famílias, e, atrelada à leitura sistemática de todas as entrevistas na íntegra, fundamentaram a categorização das informações. Cordeiro (2019) afirma que a abordagem acerca da análise qualitativa dos dados ocorre de maneira construtiva, em que o NVivo assume apenas uma função de suporte na comunicação de dados e ideias. Nesse contexto, ressaltamos que a utilização desse programa não dispensou a leitura e análise criteriosa dos documentos de dados.
O que dizem as famílias: algumas análises
As entrevistas semiestruturadas foram realizadas no momento em que as famílias levavam ou buscavam as crianças nas instituições de educação infantil. A maioria dos entrevistados (82%) corresponde ao gênero feminino e se declaram pardos (50%), possui entre 20 e 39 anos de idade (84%), com renda familiar mensal menor do que três salários mínimos (85%), sendo as famílias constituídas por quatro membros (41%) e com uma criança matriculada na instituição de educação infantil em tempo integral (74%). Chama-nos atenção o fato de mais de 80% dos familiares que levam e buscam as crianças nas instituições serem mães, avós, tias e babás, o que faz reiterar a afirmação de Gama (2012) sobre o cuidado das crianças ser uma responsabilidade atribuída principalmente às mulheres.
A recorrência das respostas sobre os fatores que motivam a matrícula na educação infantil em tempo integral, bem como a frequência de algumas menções retratadas na nuvem de palavras gerada para o código ‘motivações’ (Figura 2), fundamentaram a criação das categorias trabalho, tempo integral como única opção de matrícula, aprendizado e socialização, a seguir analisadas.
O trabalho aparece como a motivação preponderante, mais especificamente, as famílias indicam o trabalho rural, o trabalho dos responsáveis, sobretudo o trabalho da mãe, demonstrando que o tempo integral “[...] continua a se constituir como um dispositivo da mãe trabalhadora e uma estratégia recriada para atender as demandas do mercado” (ARAÚJO, 2017, p. 196). De acordo com Gama (2012), nas sociedades capitalistas, além das mulheres acessarem o mercado de trabalho como um modo de lhes assegurar bem-estar, elas também dependem de políticas sociais que garantam as necessidades básicas de suas famílias e que contribuam para compatibilizar o trabalho e a vida familiar, o que nos leva a reiterar que o tempo integral vem sendo requerido com vistas à ampliação da atividade profissional feminina.
Ao analisar as condições da mulher na sociedade brasileira, Vieira (2005) evidencia a importância de ela assumir postos de trabalho extradomiciliar a fim de alcançar a independência feminina que, segundo a autora, “só será alcançada pelo poder econômico, o que é obtido principalmente pelo trabalho [...] como força estruturante da identidade feminina [que] desempenha papel altamente significativo” (VIEIRA, 2005, p. 234), em um mundo desigual e “[...] instável, em crise de valores, fragmentado, sem direção clara sobre o que ser, o que fazer, o que sentir e pensar, de como viver uma vida significativa e plenamente realizada” (VIEIRA, 2005, p. 234). Nesse sentido, é possível afirmar que a permanência das crianças na educação infantil em tempo integral pode contribuir para “[...] a luta política pela igualdade e emancipação da mulher” (VIEIRA, 2005, p.234), o que consequentemente também colabora para suprir certas necessidades vitais de suas famílias, como observado no contexto investigado, em se tratando de famílias desfavorecidas socioeconomicamente. Segundo as famílias respondentes, a matrícula na educação infantil em tempo integral é uma forma de afastar as crianças das ruas, inferindo que nestas há criminalidade e as crianças não aprendem nada de bom quando estão nesses espaços, necessitando, portanto, de um local seguro para sua proteção. Algumas famílias afirmam não ter nenhuma motivação específica para a matrícula de seus filhos na educação infantil em tempo integral, mas realizam a matrícula porque as instituições de educação infantil do seu município oferecem exclusivamente a modalidade em tempo integral, o que inviabiliza que as crianças frequentem o tempo parcial, uma vez que as mães não têm essa opção de matrícula. Os autores Peixoto, Schuchter e Araújo (2015) consideram que a educação infantil em tempo integral deve se firmar com um direito, especialmente da criança, de acordo com a preferência da família nessa modalidade de matrícula e não como a única escolha apresentada pela instituição.
Ainda se tratando dos fatores que motivam a matrícula na educação infantil em tempo integral, entendemos que, para além de atender às reivindicações em relação ao trabalho em função das contingências das necessidades, a matrícula das crianças poderia implicar sobretudo “[...] a criação de novos suportes materiais e simbólicos que introduzem as crianças na arte do com-viver e do bem-viver” (ARAÚJO, 2017, p. 201). Considerando que Araújo (2017) discute sobre a relevância das crianças terem contato com outros universos sociais e culturais, as famílias vão ao encontro dessa prerrogativa ao ressaltarem o aprendizado e a socialização como importantes motivações educacionais para a matrícula, tendo como horizonte o desenvolvimento das crianças. Assinalam, ainda, que é fundamental a criança permanecer mais tempo na instituição de educação infantil, pois, segundo as famílias, se ela ficar em casa apenas com adultos, ela deixa de ser criança, o que a nosso ver demonstra uma preocupação com as relações intrageracionais.
Dentre os dez municípios investigados, tanto aqueles que ofertavam a educação infantil somente na modalidade em tempo integral quanto aqueles que ofertavam também a modalidade em tempo parcial, quando não conseguiam contemplar a demanda de vagas em tempo integral, adotavam critérios predominantes de matrícula, ora associados à lista de chegada/espera, ora discriminados pela condição de vulnerabilidade social daqueles que buscavam realizar a matrícula, conforme observado por Araújo (2015). Diante desse contexto, as famílias são questionadas se conhecem os critérios predominantes de matrícula (Figura 3) nas instituições de educação infantil em tempo integral em que seus filhos estão matriculados.
A palavra “vaga” tem grande destaque, pois, ao responderem à questão acerca do conhecimento sobre os critérios de matrícula, parte das famílias menciona essa palavra nas respostas, ora para afirmar se havia vaga, ora para negar. Em determinados contextos onde a oferta das instituições de atendimento em tempo integral era maior do que a demanda, grande parte das famílias apontam que as vagas foram universalizadas, indicando que não há critérios específicos de matrícula nas instituições, uma vez que existem vagas disponíveis para todos. Contudo algumas famílias evidenciam que há critérios condicionados ao trabalho dos pais, especialmente das mães, além das situações de risco e vulnerabilidade social que também são levadas em conta para a matrícula das crianças em tempo integral.
Ao serem indagadas sobre quem deveria ter o direito de ser matriculado na educação infantil em tempo integral, algumas famílias afirmam que todos deveriam ter esse direito, o que demonstra uma clareza de que o direito deveria ser dirigido a todos, independentemente da condição socioeconômica. Contudo as pessoas que trabalham aparece como resposta mais recorrente, deslocando a compreensão de que quem tem direito de ser matriculado são as crianças e não suas famílias. A pesquisa nos revela que o direito à educação infantil em tempo integral vem sendo evidenciado também como uma resposta às reivindicações das famílias (ARAÚJO, 2015).
Nesse campo de debate, Gama (2012) ressalta que os adultos com filhos pequenos constituem um dos grupos sociais mais vulneráveis, e isso, com os baixos salários das famílias e ao desemprego, pode fazer com que as crianças se encontrem desprotegidas, o que demandaria medidas de proteção. Vale aqui recuperar dados do último censo publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010) sobre a composição das famílias residentes no estado do Espírito Santo que nos levam a identificar que mais da metade dessas famílias são constituídas por mulheres sem cônjuge com filhos, além disso, dentre o total de famílias residentes no estado, aproximadamente 80% vivem apenas com um salário mínimo (IBGE, 2010). A exemplo disso, se de um lado, Vieira (2005, p. 236) discorre sobre a identidade da mulher no século XXI, entendendo que ela “[...] trabalha, possui próprio salário, sustenta-se e não depende do sexo masculino para sobreviver”, de outro lado, é importante destacar que, no contexto analisado, o trabalho extradomiciliar aparece para muitas mulheres como a única saída diante da condição de vida das suas famílias.
Quanto às expectativas das famílias em relação à matrícula das crianças na educação infantil em tempo integral, embora a palavra “cuidado”, especificamente, não seja verbalizada na fala de muitas famílias e, por isso, ela não tenha ganhado destaque na nuvem de frequência de palavras (Figura 4), outras menções dos familiares, tais como, a alimentação das crianças, o zelo, a atenção e o carinho dos professores com as crianças e o fato delas serem bem tratadas na instituição, corroboram com a ação do cuidar que faz com que essa seja a maior expectativa evidenciada pelas famílias em relação à permanência das crianças na educação infantil em tempo integral. Há que se destacar que a palavra “escola” aparece com maior recorrência, uma vez que grande parte das famílias, ao responderem, inicia a fala dizendo a escola é importante [...], a escola tem a função de [...], e assim completam suas colocações, remetendo-se ao espaço da educação infantil como uma escola.
A referência ao cuidado aparece de forma mais evidente, seguida pela educação e socialização no sentido da convivência como elementos que referendam suas expectativas. Pelo que podemos depreender, as famílias preocupam-se com as possíveis aprendizagens oportunizadas pelas instituições, com a educação das crianças, seu desenvolvimento e sua socialização, ao também esperarem da instituição de educação infantil ações que complementam o aprendizado que as crianças recebem em suas casas. Sem querer subestimar a proteção e a provisão social das crianças atribuídas pelas famílias à educação infantil em tempo integral, percebemos que, se o cuidado é algo esperado, também se considera relevante a educação, mostrando-nos que a matrícula no tempo integral não se resume à busca por proteção e provisão social.
Ainda sobre as expectativas que se sobressaem em relação à matrícula das crianças na educação infantil em tempo integral, aprender a ler e escrever também aparece. Por conseguinte, notamos a preocupação das famílias com a alfabetização precoce na educação infantil, fazendo-nos pensar que essa etapa educacional acaba sendo demandada por um processo de escolarização próprio às etapas posteriores de ensino. Além disso, as famílias ressaltam que o fato de as crianças estarem vinculadas a um processo de educação formal desde pequenas pode possibilitar que elas tenham um bom futuro. Elas também mencionam como expectativa que haja na instituição atividades que orientem sobre as profissões para as crianças se tornarem cidadãs de bem.
Embora se tratasse de contextos rurais e urbanos, as respostas das famílias têm muitas similaridades ao serem questionadas sobre retirar ou não as crianças das instituições, caso tivessem algum adulto em casa para ficar com elas. Entre aquelas que tirariam as crianças da educação infantil em tempo integral, enfatizam como razões centrais: deixar a criança com alguém da família; colocá-la no tempo parcial; e impedir que ela fique o dia inteiro “presa” na instituição. Nesse sentido, embora o espaço dessas instituições seja concebido como seguro, algumas famílias relatam que as crianças poderiam ficar melhor se estivessem com um parente ou se frequentassem o tempo parcial.
Em relação às famílias que afirmam não tirar as crianças da educação infantil em tempo integral mesmo se tivessem alguém em suas casas para cuidar das crianças, as possíveis explicações apresentadas justificam-se em função do aprendizado que a criança constrói no espaço da instituição, mas, também, deve-se ao fato de a criança gostar do lugar e do cuidado recebido. Todavia nos chama atenção o fato de muitas famílias não desejarem retirar as crianças mesmo se houvesse a possibilidade de alguém ficar com elas enquanto trabalham, já que a maior parte delas aponta como principal motivação da matrícula o próprio trabalho, consequentemente, não tendo ninguém para ficar em casa com as crianças, necessitam das instituições em tempo integral.
Nesse sentido, é possível inferir, em alguns casos, que as famílias reconhecem que há também oportunidades para as crianças aprenderem sobre determinados assuntos que dificilmente teriam acesso diante de sua condição social. Isso posto, Carvalho (2015, p. 38) expõe que a política de educação em tempo integral “[...] pode desempenhar um papel importante na transformação das funções da educação pública” desde que a educação da infância seja compreendida “[...] enquanto espaço de afirmação dos direitos das crianças e de sua cidadania” (CARVALHO, 2015, p. 39), o que, sem dúvida, inclui o direito ao aprendizado e à convivência que, a nosso ver, foram mencionados pelas famílias.
Ao serem questionadas se desejam fazer críticas ou sugestões à política de educação infantil em tempo integral, destacam: a importância de um número maior de funcionários, e, sobretudo, a necessidade de uma estrutura física melhor. As famílias entrevistadas salientam que a estrutura física deixa a desejar e gostariam que as instituições fossem mais seguras e que tivessem prédios com mais salas de aula, câmeras instaladas nos diferentes espaços e parquinhos. No que diz respeito à infraestrutura das instituições de educação infantil em tempo integral, vale ressaltar que a Estratégia 6.2 da Meta 6 do Plano Nacional de Educação visa “instituir, em regime de colaboração, programa de construção de escolas com padrão arquitetônico e de mobiliário adequado para atendimento em tempo integral, prioritariamente em comunidades pobres ou com crianças em situação de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2014, p. 7).
As famílias entrevistadas também direcionam críticas à formação insuficiente dos professores e à falta de assistência financeira da Prefeitura à educação infantil em tempo integral. No que diz respeito aos problemas financeiros apontados, as autoras Araújo, Auer e Neves (2019, p. 8) confluem com essa discussão ao evidenciarem que “embora o Fundeb materialize financeiramente as necessidades inerentes à ampliação da jornada, a aplicação não vinculada dessa verba às matrículas de tempo integral pode contribuir para manutenção do quadro de defasagem já descrito”. Todos esses aspectos destacados pelas famílias podem afetar o funcionamento das instituições de educação infantil.
Ao discorrerem sobre como a criança chega em casa após um dia inteiro na instituição de educação infantil, enquanto a maioria das famílias afirma que a criança chega feliz e conta o que fez, outras apontam que a criança chega cansada. Côco et al. (2010) aborda que o número de horas que compõem o tempo integral pode fazer com que se enfrente alguns problemas, tais como: o cansaço das crianças e o desempenho delas nas atividades. Apesar de o tempo integral constituir-se por sete horas diárias ou mais, conforme destacado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) e no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014), grande parte das famílias vê essa experiência de seus filhos como positiva, mesmo quando a permanência deles na instituição de educação infantil ultrapassa dez horas diárias.
O Parecer 17/12 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2012) orienta - não representando uma normativa obrigatória - que a permanência das crianças na educação infantil em tempo integral não exceda dez horas diárias, sob o risco de elas não terem “atendidas suas necessidades de recolhimento, intimidade e de convivência familiar” (BRASIL, 2012, p. 9). Desse modo, a falta de consenso entre os documentos e a possibilidade sob o ponto de vista legal de que as crianças fiquem nas instituições para além de dez horas diárias pode provocar o afastamento das crianças de relações sociais mais amplas.
Em diálogo com a legislação, Barbosa, Richter e Delgado (2015) apontam que a instituição em tempo integral, por ser contemplada com um tempo maior de permanência das crianças na educação infantil mais que a de tempo parcial, pode estar voltada aos acontecimentos da comunidade em que está inserida, de modo que as crianças tenham oportunidades de frequentar outros lugares que constituem essa comunidade, construindo vínculos de pertencimento com eles e propiciando experiências significativas. Para Carvalho (2015, p.38), a educação em tempo integral pode “[...] criar oportunidades de formação em dimensões vivenciais, cognitivas, afetivas, emocionais, contribuindo, em amplitude, para a formação humana”.
Ainda sobre as diferenças entre o tempo parcial e o tempo integral, as famílias afirmam não conhecer as crianças que frequentam o tempo integral, como se elas não estivessem presentes também na instituição de educação infantil com as crianças que frequentam o tempo parcial. Conforme apontado por Araújo (2015), outra questão que chama atenção em alguns municípios pesquisados é a ausência de menção sobre planejamento específico da proposta de tempo integral no projeto político-pedagógico, o que “[...] tem sido causa de muitas distorções quanto aos objetivos da permanência das crianças pequenas na jornada ampliada na educação infantil” (ARAÚJO, 2015, p. 42). Ademais, entendemos que seria importante um debate sobre a política e o planejamento no âmbito da educação infantil em tempo integral que também contemple a expressividade das famílias e de toda a comunidade escolar, de modo a romper com a distância ainda existente.
À guisa de conclusão
A oferta da educação infantil em tempo integral vem sendo demandada pelas famílias em função da subsistência familiar, revelando uma necessidade de as crianças estarem seguras em um local específico enquanto seus responsáveis trabalham. Dessarte, apesar de todas as crianças indiscriminadamente terem o direito à educação, em alguns municípios investigados, no estudo de Araújo (2015), não necessariamente todas têm a possibilidade de serem matriculadas na modalidade do tempo integral, já que são privilegiadas aquelas consideradas em situação de risco e vulnerabilidade social. Portanto as crianças de diferentes classes sociais podem não estar compartilhando um tempo comum estendido, uma vez que a política de educação infantil em tempo integral parece destinar-se a um público específico.
Ainda que haja uma inescapável formulação do direito à educação infantil em tempo integral em torno do direito das mães trabalhadoras, como afirma Araújo (2017), ele é um direito especialmente das crianças. Contudo, em um contexto de vagas insuficientes, determinados critérios de matrícula juntamente ao cuidado, enquanto principal expectativa das famílias em relação à inserção das crianças nessas instituições, levam-nos a problematizar as políticas adotadas para a educação infantil, considerando a sua experiência em tempo parcial e em tempo integral.
Parte das famílias afirma que não tiraria seus filhos do tempo integral mesmo se eles estivessem sob responsabilidade de outro adulto enquanto elas trabalhassem, pois, além do cuidado, há uma expectativa de que a permanência da criança em tempo integral pode proporcionar maiores aprendizagens. Entretanto elas também apontam inúmeros desafios que perpassam as políticas e as experiências na educação infantil, constatações essas que são desejadas que aconteçam de forma mais qualificada, de modo que a ampliação do tempo na instituição seja traduzida no reconhecimento público das crianças como sujeitos que têm direito à educação infantil de qualidade.
Por fim, os dados apresentados não objetivam generalizar questões referentes ao contexto da educação infantil em tempo integral, mas provocar reflexões e debates que demonstrem a importância de novos estudos dedicados às percepções das famílias, visto que se trata de um tema pouco estudado academicamente7, cujos desdobramentos precisam ser melhor aprofundados.