Introdução
Sessenta e cinco mil, este é o quantitativo de estudantes do Ensino Fundamental do Distrito Federal (DF) cujas vidas escolares receberam a marca indelével da reprovação em 20145, montante que equivale a 1.640 salas de aula com aproximadamente 40 estudantes em cada. Soma-se a essa retenção, consequente e progressiva distorção idadesérie/ano que, uma vez produzida, acompanha os estudantes por toda a escolarização. Isso gera implicações diversas, não apenas no âmbito escolar, mas, principalmente, no social (MOURA; FRAZ; SANTOS, 2021; VILLAS BOAS, 2017).
Além dos estudantes retidos nas etapas e anos de escolarização, há aqueles que, desmotivados e convencidos de seu fracasso pessoal após sucessivas retenções, antecipam sua inadequação para os estudos e abandonam a escola, fisicamente (BOURDIEU, 1998; FREITAS, 2018). Nessa etapa, são mais perceptíveis os efeitos de uma escola que tem reproduzido as desigualdades sociais, tanto no seu interior quanto no exterior.
Parte dessa problemática se assenta no acesso à educação, que, obviamente, não tem sido acompanhado da qualidade (TEIXEIRA; MOREIRA, 2021), o que surte efeitos não desejáveis, pois ambos são partes de um mesmo todo equânime. Assim, “o acesso perde sentido sem a qualidade” e pode causar a eliminação adiada (FREITAS, 2002) ou exclusão branda (BORDIEU, 1998), que significa o estudante estar na escola por mais tempo, sem garantia ao direito à educação (FREITAS, 2002, p. 301).
No momento em que a falta de qualidade começa a ser vista como entrave (década de 1990) frente às finalidades capitalistas de preparação de mão-de-obra para o mercado de trabalho, há uma busca por medidas em forma de políticas públicas e avaliações em larga escala (MOREIRA; ORTIGÃO; PEREIRA, 2021). O objetivo é readequar o processo educacional aos padrões da ideologia da elite vigente, que, por vezes, busca imprimir à escola modos de produção regidos pela lógica empresarial. No entanto, a problemática educacional não pode ser resolvida somente “a partir de uma gestão eficaz das mesmas formas vigentes de organização pedagógica, associada a novas tecnologias educativas, responsabilização, meritocracia e privatização” (FREITAS, 2014, p. 1088).
Diante desse cenário e dos altos índices de reprovação que conduzem à seletividade e à exclusão social/escolar e na tentativa de reorganizar o trabalho pedagógico da escola que supere a lógica classificatória, em 2015, deu-se continuidade à implantação progressiva do sistema de ciclos de aprendizagem, estendendo-o aos Anos Finais do Ensino Fundamental no DF. Esse processo havia sido iniciado em 2005 nos três primeiros anos da alfabetização, denominado Bloco Inicial de Alfabetização (BIA). A implantação para o 2º ciclo (4º e 5º anos) e 3º ciclo (Anos Finais) passou a ser obrigatória em todas as escolas do Ensino Fundamental a partir de 2017.
O sistema de ciclos de aprendizagem no DF admite retenção nos Anos Iniciais, ao final do ciclo de alfabetização 3º e no 5º ano. Nos Anos Finais, a retenção é admissível no 7º e 9º anos. Em face disso, parte-se do pressuposto que implantar os ciclos e não reorganizar o trabalho da escola pode repercutir em manutenção da distorção idadesérie/ano.
O fluxo escolar considerado a partir de dados de promoção, de retenção e de evasão dos estudantes ao longo dos anos de escolarização fica prejudicado. Este, por sua vez, é um importante indicador, visto que é um dos fatores considerados pelo Inep para gerar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Este é composto pelo fluxo escolar, que advém do Censo Escolar com dados recolhidos anualmente, e pelas médias do desempenho nas avaliações de larga escala.
Em face dessas reflexões iniciais, questiona-se se houve alteração no fluxo escolar após a implantação do ciclo de aprendizagem no DF no período de 2014 e 2019. Assim, este artigo objetiva discutir os ciclos de aprendizagem nos Anos Iniciais e Finais do Ensino Fundamental com foco no fluxo escolar e na distorção idade-série/ano. O percurso de desenvolvimento na pesquisa que gerou os dados contemplados neste texto assentou-se em metodologia qualitativa descritiva e documental (LÜDKE; ANDRÉ, 1986), cuja fonte de informação e coleta de material de análise foram os dados extraídos do Censo Escolar no período de 2014 a 2019.6
O levantamento dos dados de retenção, evasão, distorção idade-série/ano foi feito no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) (Censo Escolar) nos meses de março e abril de 2021. Organizada pelos filtros Distrito Federal “DF” e “Escola Pública Total” nos anos de 2014 a 2019. Os dados referentes ao quantitativo de matrículas deste período foram coletados também no site da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) no Censo Escolar do DF.
Ciclo de aprendizagem: aspectos contextuais
A lógica de escola seriada no Brasil é implantada a partir de 1890 por meio da Reforma Benjamim Constant, que a torna obrigatória, prevendo a aprovação por série e nível de conhecimento dos estudantes. Em continuidade, a Reforma de Epitácio Pessoa, datada de 1901, consolidou a estrutura seriada do modelo educacional. Somente a partir de 1930 a discussão sobre os resultados dos estudantes na escola passa a ser considerada como um problema no sistema educativo (CORRÊA, 2010; GIL, 2018; MOREIRA; ORTIGÃO; PEREIRA, 2021;). Destarte, a década de 1930, com o Movimento dos Pioneiros da Escola Nova, além da defesa de democratização do acesso de grupos sociais populares à educação formal, também assume a defesa da reorganização da escola, especialmente dos métodos de ensino, visando atender às especificidades desse novo perfil de estudantes.
A despeito de iniciativas individuais de sistemas de ensino, a organização escolar seriada, historicamente, tem ocasionado lacunas no percurso de escolarização dos estudantes, em função das reprovações anuais que, sendo cumulativas, causam rupturas no processo de desenvolvimento do estudante, além dos custos das retenções para o Estado e as famílias.
Neste cenário, a proposta de organização por ciclos de aprendizagem traz em sua gênese teórica, quando analisada sob o ponto de vista pedagógico (DISTRITO FEDERAL, 2014a), potencial para minorar os problemas concernentes à educação, principalmente os referentes à exclusão resultante da retenção, distorção idade-série/ano e evasão. O que seria possível com “experiências educativas que possibilitem a aprendizagem, a inclusão e o compromisso com a mudança de relações assimétricas de poder” (DISTRITO FEDERAL, 2014b, p. 9) na escola e na sala de aula.
Desse modo, segundo Mainardes (2009), o ciclo é um modo específico de organização que apresenta algumas mudanças no currículo, na avaliação e na estruturação da escola e do sistema. Assim, o ciclo pode ser entendido como uma possibilidade de superação da organização seriada, especialmente no que se refere à relação tempo-espaço escolar, à seleção e composição de conteúdos e aos métodos, visando à progressão continuada das aprendizagens e às concepções e práticas avaliativas com intenção formativa, com foco na aprendizagem.
No Brasil, as primeiras experiências com a lógica das trilhas de progressão aconteceram nos anos 1960 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 4.024/1961. Contudo, é a partir dos anos 1980 que a palavra ciclo começa a ser utilizada com a conotação que tem na atualidade. Depois da LDB nº 9394/96, ao estabelecer no artigo 23 que a Educação Básica pode ser organizada em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudo, grupos não seriados, entre outras formas. Nesse contexto, alguns sistemas de educação passaram a aderir aos ciclos como forma de organização escolar, como São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina (BARRETTO; MITRULIS, 2001; MAINARDES, 2015).
Em 2005,7 acontece, no DF, a adesão ao sistema de ciclos de aprendizagem, apenas para o 1º bloco do 2º ciclo – à época 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino Fundamental. A partir de 2015, a implantação passou a ser progressiva tanto para o 2º bloco do 2º ciclo (4º e 5º anos) quanto para os dois blocos do 3º ciclo (6º e 7º e 8º e 9º anos). Desse modo, em 2017, o sistema de ciclos de aprendizagem passa a ser desenvolvido obrigatoriamente em todas as escolas em todo o Ensino Fundamental.
A estrutura dos ciclos de aprendizagem no DF é de progressão continuada a partir da relação existente entre avaliação e a flexibilização dos tempos e ritmos diferenciados de aprendizagens dos estudantes (BUORO, 2013). A retenção no 1º ano e nos anos pares acontece quando as faltas ultrapassam 25% do total anual de aulas previstas no calendário escolar. Já a retenção nos 3º, 5º, 7º e 9º anos acontece pelo critério das faltas e/ou pelos critérios que levam em consideração aspectos relacionados à avaliação formal e informal, o que, de certa forma, alimenta a distorção idade-série/ano.
A SEEDF vem, ao longo dos anos, organizando programas de correção de fluxo, tais como o Acelera, que teve vigor entre os anos de 2007 e 2009, e a Correção da Distorção idade-série/ano (CDIS), que depois passou a ser chamado de Correção da Distorção Idade-Ano (CDIA), com vigência de 2012 a 2015. Outra política pública dessa natureza foi o Programa para Avanço das Aprendizagens Escolares (PAAE), que vigorou entre 2016 e 2019. A nova proposta, Programa Atitude – Correção de Fluxo no DF – com possibilidades para continuar avançando, foi escrita em 2019 para substituir o PAAE. Contudo, com a pandemia, a ação não foi efetivada.
Entretanto, os dados de distorção idade-série/ano que foram analisados neste texto nos revelam que os programas de correção de fluxo adotados não alcançaram os objetivos propostos. A própria SEEDF admite que, “a partir das análises e dos estudos realizados, considerou-se que os programas, desenvolvidos ao longo dos últimos 10 anos, ainda não conseguiram resolver a questão da distorção” (DISTRITO FEDERAL, 2019, p. 47). Esses programas, apesar dos diferentes nomes e de terem como base a proposta de “enfrentar a reprovação e os percursos diferenciados de escolarização” (DISTRITO FEDERAL, 2015-2024), por vezes, configuram-se como trilhas diferenciadas de aprendizagem e trazem em seu bojo a diferenciação entre os estudantes. Além disso, dão margem à avaliação informal feita por colegas, professores e até mesmo por familiares.
Esse fato pode causar insatisfação tanto das famílias quanto dos discentes, posto que a escola/sistema, atendendo aos ideais burgueses e reprodutivistas que se apossam dos espaços a partir de discursos e projetos dissimulados, mantém o estudante na escola sem lhe garantir o direito de aprender. Ao mesmo tempo, reforçam-se o controle e a internalização de custos (FREITAS, 2014, 2002; VILLAS BOAS, 2017), introjetando a exclusão sem a garantia da aprendizagem.
Os formuladores de programas e projetos educacionais, visando alterar as formas de organização dos tempos e espaços escolares, precisam ter ciência que apenas essa ordenação, por si só, não pode garantir produção de qualidade na educação. Os problemas concernentes à qualidade estão envoltos nas concepções que se têm de educação (FREITAS, 2018, 2014, 2007). Consentaneamente, Mainardes (2015) aponta que a política de ciclos de aprendizagem não tem como garantir avanços significativos na democracia, igualdade e inclusão nos sistemas escolares em que são implantados. São necessários investimentos em formação continuada de professores, carreira e salários, melhoria de estrutura física e tecnológica das escolas, entre outros.
No que tange à questão da qualidade, Freitas (2005), Sordi e Freitas (2013) defendem a qualidade negociada, a partir de explicação de (BONDIOLI, 2004) como um modo de ação de contrarregulação e suporte aos processos de mudança nas escolas por meio de negociação que leva em consideração os aspectos gerais do sistema de ensino e as questões singulares de cada unidade escolar.
Segundo Bondioli (2004, p. 14), a ideia de qualidade negociada formula-se como uma transação na qual acontece um debate entre as pessoas e grupos que se responsabilizam e estão envolvidos nas redes educativas, têm interesses comuns relacionados a elas e que “trabalham para explicitar e definir, de modo consensual, valores, objetivos, prioridades, ideias sobre como é a rede (...) e sobre como deveria ou poderia ser”.
As dimensões da qualidade negociada são a confiança relacional que está imbricada na responsabilidade dos atores escolares e do Estado como pólos da negociação, a mudança, a participação, a autoreflexão, a contextualização que considera a diversidade, a processualidade, a transformação e a negociação. Estas precisam ser consideradas de modo dialético, ou seja, com respaldo nas contradições da realidade para possibilitar ações de resistência. Nas palavras de Sordi e Freitas (2013, p. 89) “são os atores sociais envolvidos com os problemas os que detêm conhecimentos importantes sobre a natureza deste, seus limites e possibilidades”. Esses fatos colocam centralidade no Projeto Político Pedagógico e na avaliação institucional coletiva.
Os ciclos podem significar mecanismos de resistência à lógica seriada (FREITAS, 2002, 2004). Mas para isso, faz-se necessária a elevação da conscientização e a atuação dos professores, famílias e estudantes, para que percebam o ciclo a partir de suas possibilidades e potencialidades. Nesse contexto, os ciclos são uma possibilidade de pensar a avaliação formativa como um dos eixos principais de mudança dessa lógica (FERNANDES SILVA, 2021; VILLAS BOAS, 2017).
Diante dessas contradições, tem-se a urgência de movimentos de contrahegemonia. Neste sentido, Tonet (2019) explicita que o sentido do trabalho que o professor realiza nos espaços educativos precisa estar imbuído de provocação e autorreflexão sobre como se reproduz o que se apresenta sem problematizar. Isso porque os sujeitos fazem leituras ingênuas da realidade na busca pelo entendimento dos sentidos. Do mesmo modo, faz-se necessário romper com esses fatores, pois, assim, poderemos ser críticos e ter a chance de compreender o sentido oculto e as amarras que nos atravessam.
O fato de não haver equidade sem igualdade é ressaltado por Burgos (2019), visto que a instituição escolar, em uma perspectiva crítica, tem como um dos objetivos problematizar os determinismos sociais que são usados como justificativa para o fracasso, pois essa ação pode auxiliar na construção de uma sociedade mais justa. Dessa forma, é fundamental igualar as condições de integração de todos no processo de aprendizagem, tornando justas apenas as desigualdades que assegurem resultados iguais, trabalhando a partir da ideia de equidade.
Fluxo escolar: análises
Nesta seção, discutem-se gráficos e tabelas referentes à retenção, à evasão e à distorção idade-série/ano considerando o fluxo escolar. As taxas de retenção por ano de escolarização do período 2014 a 2019, apresentadas no Gráfico 1, revelam diminuição significativa com a implantação dos ciclos nas escolas da rede pública de ensino do DF, especialmente nos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Os anos escolares nos quais a diminuição das taxas de retenção, de 2014 e 2019, foi mais evidente são os 4º, 6º e 8º anos. A explicação disso está no fato de que, a partir da implementação da política de ciclos de aprendizagem no DF, a reprovação, nos anos pares, não pode mais acontecer, a não ser em caso de mais de 25% de faltas no decorrer do ano letivo. Isso não significa que a não retenção seja resultante da garantia da aprendizagem dos estudantes. Para melhor compreensão dessa realidade, esses dados devem ser analisados em relação às taxas de distorção.
O destaque está nos 6º e 8º anos, em que a queda de 2014 para 2019 foi, respectivamente, 18,7 e 16,6 pontos percentuais, uma diminuição substancial das taxas de retenção. No entanto, fazendo a mesma comparação entre as taxas de retenção de 2014 e 2019 com os 7º e 9º anos, obtêm-se, respectivamente, apenas 3,4 e 3,3 pontos percentuais de baixa, ou seja, taxas preocupantes de reprovação para o ano de 2019.
A análise, apesar de estar restrita ao campo quantitativo, revela uma dissimulação dos fatos em relação à aprendizagem. Uma vez que se os estudantes foram capazes de avançar do 6º para o 7º ano, o que os impediu de avançar nas aprendizagens do 7º para o 8º ano? Estamos falando de mais de 9.750 estudantes do 7º e 9º anos que foram retidos no ano de 2019. Esse questionamento justifica-se tendo em vista que a implementação dos ciclos veio acompanhada de diretrizes pedagógicas para subsidiar as escolas na reorganização do trabalho escolar, formação continuada no espaço-tempo da coordenação pedagógica, que no DF é de 15% da jornada de 40 horas do professor e formação na Escola de Formação dos Profissionais da Educação.
O Gráfico 2, complementar ao Gráfico 1, apresenta as taxas de retenção no Ensino Fundamental de 2014 a 2019, considerando a totalidade desses estudantes, o que possibilita uma análise mais visual e ampla sobre as taxas de retenção.
As taxas de retenção no Gráfico 2 se mantêm decrescentes com relação ao quantitativo total de estudantes retidos no Ensino Fundamental. Assim, é possível inferir que a política de ciclos de aprendizagem tem obtido avanços no que se refere à retenção escolar, posto que o quantitativo de estudantes retidos no período passou de 12,7% em 2014 para 6,7% em 2019. Houve uma redução de 6 pontos percentuais no período. Todos os períodos indicam queda nas taxas de retenção, à exceção de 2019, que apresentou aumento de 0,4 pontos percentuais.
A fim de proporcionar maior visibilidade dos dados ao longo dos anos e analisar as tendências, a Tabela 1 traz os dados da retenção do Ensino Fundamental por etapa, Anos Iniciais e Anos Finais, e o somatório total do Ensino Fundamental.
Ano | Anos Iniciais EF | Anos Finais EF | Total EF |
---|---|---|---|
2014 | 7,5 | 18,7 | 12,7 |
2015 | 7,5 | 17,9 | 12,4 |
2016 | 6,7 | 16 | 11,1 |
2017 | 6,1 | 13,8 | 9,7 |
2018 | 5,1 | 7,7 | 6,3 |
2019 | 5 | 8,8 | 6,7 |
Fonte: Dados do Censo Escolar do Inep (INEP, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019).
Analisando os dados da Tabela 1, tem-se que as maiores taxas de retenção se concentram nos Anos Finais do Ensino Fundamental, com baixa progressiva entre 2014 e 2018 para todos esses anos. Todavia, há uma alta de 1,1 pontos percentuais em 2019 para os Anos Finais. Nos Anos Iniciais, apesar de não haver alta em 2019, observa-se que a diminuição foi a menor para esta etapa com relação aos períodos anteriores, de apenas 0,1 ponto percentual, o que revela a mesma tendência dos Anos Finais.
Os dados mostram que, entre 2014 e 2017, a diferença entre os Anos Iniciais e Finais era mais que o dobro, contudo, em 2018, já como resultado da implantação final do ciclo em 2017, a diferença decresce para cerca de 3 pontos percentuais. Na mesma tendência de decréscimo, mas com diferença em relação à proporcionalidade tem-se o Gráfico 3, referente à distorção idade-série/ano dos anos de 2014 e 2019.
O Gráfico 3 demonstra diminuição do número de estudantes em situação de distorção entre a lógica seriada (2014) e a ciclada (2019) em todos os anos do Ensino Fundamental. A distorção idade-série/ano configura-se pela proporção de estudantes com mais de dois anos de atraso escolar.
A análise ano a ano de escolaridade revela que a distorção ganha destaque no 3º ano do Ensino Fundamental, ano final do 1º bloco, no qual se admite a primeira retenção. A partir desse marco, 3º ano, pode-se observar que as taxas aumentam progressivamente, com os respectivos picos de retenção de distorção idade-série/ano, em 2014 no 6º ano, e, em 2019, no 7º ano. Esse fato pode ser explicado pelas retenções sucessivas nessa etapa e pela evasão entre blocos (FREITAS, 2014) dos estudantes (ver Gráficos 4 e 5). Uma análise mais detalhada pode mostrar esta evasão quando se verifica o quantitativo de matrículas para os 8º e 9º anos.
No movimento de distorção de 2014 para 2019 há destaque para o 6º ano, no qual as taxas de distorção foram de 35,1%, em 2014, e 22,5% em 2019. Uma possível explicação é o fato da implantação dos ciclos nos Anos Iniciais ter ocorrido em 2005, o que pode ter causado alterações internas com relação à organização do trabalho pedagógico e, consequentemente, na progressão dos estudantes. Analisando as taxas do ano de 2019, o movimento mais brusco acontece na taxa de distorção idade-série/ano do 6º para o 7º ano, que passa de 22,5 do 6º ano para 31,4 no 7º ano.
A Tabela 2, em consonância com os dados do Gráfico 3, apresenta as taxas de distorção idade-série/ano por etapa do Ensino Fundamental de 2014 a 2019.
Ano | Anos Iniciais | Anos Finais | Total EF |
---|---|---|---|
2014 | 13,8 | 32 | 22,4 |
2015 | 13,8 | 32,2 | 22,5 |
2016 | 13,4 | 32 | 22,2 |
2017 | 13,2 | 31,2 | 21,6 |
2018 | 12,5 | 29,8 | 20,5 |
2019 | 11,4 | 26,7 | 18,4 |
Fonte: Dados do Censo Escolar do Inep (INEP, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019).
A análise do Ensino Fundamental mostra que comparando 2014 com 2019 houve queda de 4 pontos percentuais; e verificando ano a ano, acontece manutenção nos anos de 2015 e 2016. Em 2017 inicia-se a diminuição das taxas de distorção, ano em que ocorre a implantação do ciclo nos Anos Finais.
Mesmo com as taxas de retenção tendo diminuído ao longo do processo de escolarização, como pode ser verificado na Tabela 1, isso não se reflete de forma proporcional nas taxas de distorção, fato que pode ser ratificado pela eliminação adiada (FREITAS, 2002).
Os dados do Gráfico 3 e da Tabela 2 enfatizam que a partir da implantação dos ciclos, a taxa da distorção idade-série/ano tem diminuído progressivamente. Todavia, quando comparada às taxas de retenção, ela teve menor decréscimo, ou seja, ainda é elevada. Esse fato demonstra que ampliar o acesso sem investir na qualidade pode resultar em processos de exclusão no interior da escola e de internalização da exclusão (BOURDIEU; CHAMPAGNE, 1998; FREITAS, 2002), que, posteriormente, se convertem em eliminação dos estudantes, seja na forma de evasão entre blocos, seja na forma de sucessivas retenções, seja migrando para a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A Tabela 3 detalha os dados da distorção idade-série/ano ao longo dos anos de 2014 a 2019.
Ano | 1º | 2º | 3º | 4º | 5º | 6º | 7º | 8º | 9º |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2014 | 3,6 | 5,3 | 16,7 | 17,8 | 22,1 | 35,1 | 32,8 | 30,1 | 28,8 |
2015 | 5,6 | 5 | 17,9 | 17,6 | 20,8 | 34,2 | 33,4 | 31,2 | 29,1 |
2016 | 3,3 | 4,5 | 17,5 | 19 | 20,7 | 33,8 | 32,3 | 31,2 | 29,9 |
2017 | 3,4 | 5,7 | 15,3 | 19,5 | 22,4 | 30,9 | 30,5 | 27,8 | 27,3 |
2018 | 2,7 | 3,9 | 16,1 | 17,1 | 20,9 | 30,9 | 31,2 | 28,6 | 28,1 |
2019 | 2,2 | 3,5 | 14,5 | 14,8 | 20,2 | 22,5 | 31,4 | 24,7 | 27,6 |
Fonte: Dados do Censo Escolar do Inep (INEP, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019).
A Tabela 3 demonstra que os ciclos de aprendizagem, por terem como pressuposto a retenção ao final dos blocos, continuam gerando índices de distorção. Isso porque é no final do Bloco Inicial de Alfabetização (BIA) no 3º ano que as taxas têm aumento significativo e, a partir daí, mantém-se taxas acima de 14 pontos com pico de 31, 4 no 7º ano, se tomarmos como referência o ano de 2019.
Na comparação com o ano de 2014, em 2015 tem-se o aumento da taxa no 1º ano, fator que se repete nos 3º, 7º, 8º e 9º anos. Em 2016, a baixa se dá na maioria dos anos, exceto no 4º e no 9º. Em 2017, verifica-se o aumento nos 1º, 2º, 4º e 5º anos. Em 2018, o aumento ocorre no 3º, 7º, 8º e 9º anos. Em 2019, observa-se aumento somente no 7º ano.
Os dados deixam evidente que a distorção é muito maior nos Anos Finais e possibilitam uma reflexão acerca do fato de que a dissolução das taxas de distorção idadesérie/ano dos Anos Iniciais com as dos Anos Finais resulta em uma média em torno de 20, descrevendo taxas quase lineares de distorção. Contudo, quando comparadas separadamente, veem-se taxas de distorção que chegam a passar da casa dos 30% em alguns anos.
Com isso, o Gráfico 4 apresenta visualização mais contundente da internalização da exclusão (BOURDIEU, 1998; FREITAS, 2002, 2014). Os estudantes são retidos mais de uma vez e passam a fazer parte do grupo que está fora da faixa etária adequada para o ano escolar, mas que permanecem na escola.
Além disso, as altas taxas de distorção idade-série/ano, principalmente para os últimos anos do Ensino Fundamental, podem retratar a eliminação adiada/exclusão branda explicada por Freitas (2002), (2014) e Bourdieu e Champagne (1998). Essas taxas refletem as sequelas ocasionadas pelos processos de avaliação informal, culminando na eliminação do estudante, definitivamente, em algum percurso mais adiante, uma vez que ele não se sente “feito para a escola”. Trata-se de uma construção constante da exclusão subjetiva e responsabilização por meio da disseminação da ideia de meritocracia (FREITAS, 2021), que tem sido recorrentemente propagada nas escolas e redes de ensino.
Diante dos dados e análises da distorção idade-série/ano, apresenta-se o Gráfico 5 das taxas de evasão, que pode ter entre os elementos de agravamento, a distorção idadesérie/ano, ou seja, o aluno desiste de continuar na escola sem aprender. Esse fato traz consequências nefastas para ele, sua família e para a sociedade.
Analisando o Gráfico 5, é possível perceber que as taxas de evasão diminuem consideravelmente de 2014 para 2019 com picos de aumento proporcional nos Anos Finais do Ensino Fundamental, para os anos nos quais o sistema de ciclos de aprendizagem admite retenção, 7º e 9º anos, ou seja, uma evasão entre os blocos do ciclo (FREITAS, 2002, 2014). Essa constatação dialoga com os dados da Tabela 3, uma vez que o estudante retido por um período, ou mais, nesse processo de exclusão continuada e processual, ancora-se em uma enganosa equidade que resulta em seu fracasso escolar, pelo qual ele se sente responsável, uma decepção. Tal problema pode, ao final, levar o estudante a considerar o tempo passado na escola como tempo perdido, levando-o a evadir-se (BOURDIEU, 1998).
A análise dos gráficos e tabelas viabiliza a discussão acerca da exclusão objetiva e da exclusão subjetiva, uma vez que a existência da retenção e da evasão compromete o fluxo escolar, resultando em taxas altas da distorção idade-série/ano, ainda que com índices menores, pois a exclusão é a diferenciação exposta no cotidiano escolar (FREITAS, 2002, 2014) e exclusão subjetiva que atua de forma dissimulada e distendida.
A discussão fez emergir o fato de que o sistema de ciclos de aprendizagem tem acarretado diminuição das taxas de retenção, evasão e distorção idade-série/ano desde sua implementação no DF; contudo, são índices ainda preocupantes.
Considerações Finais
Compreender a lógica reprodutivista da escola é de suma importância, pois, a partir desse conhecimento, torna-se mais viável pensar em modos de luta contra as desigualdades e a busca por igualdade, equidade, justiça social e por outro modo de organização social. Neste sentido, desvelar os mecanismos de dissimulação da exclusão, que criam e renovam modos de manter a escola como meio de dar continuidade a diferenciação social, é um desafio permanente da educação na perspectiva crítica.
Este texto analisou o sistema de ciclos de aprendizagem do Ensino Fundamental no DF no horizonte do fluxo escolar, no período de 2014 a 2019, abordando a retenção escolar, a evasão e a distorção idade-série/ano.
Os resultados e análises evidenciam que a mudança da lógica seriada para os ciclos de aprendizagem aponta alterações significativas em relação ao fluxo escolar no DF no período de 2014 e 2019 para o Ensino Fundamental. Observou-se diminuição das taxas de retenção, distorção idade-série/ano e evasão. No entanto, apesar de ter havido, no período, um encolhimento dessas taxas, elas permanecem preocupantes, principalmente devido às taxas de distorção idade-série/ano que podem ser indicativas de um processo de internalização da exclusão e da evasão como indicativo da eliminação adiada.
Diante disso, faz-se necessário investimento em melhorias das condições subjetivas e objetivas, na qualidade negociada, na formação de professores na problematização do papel da educação no ciclo de aprendizagem e pesquisas específicas sobre a dinâmica das relações no interior dos ciclos. Isso porque a diminuição das taxas de retenção e distorção idade-série/ano não implica, necessariamente, melhoria da qualidade da educação.
É importante destacar que, de acordo com os resultados e análises desta pesquisa, a política de ciclos de aprendizagem apresenta potencial para alterar a lógica de exclusão e dissimulação posta pela realidade da escola na lógica capitalista. O funcionamento dos ciclos de aprendizagem cria brechas para que o sistema educacional procure meios de garantir aprendizagem e favorecer relações sociais menos desiguais por meio da mudança nas formas de avaliação, tanto formal quanto informal. Isso propicia centralidade para a avaliação formativa, cenário no qual os ciclos de aprendizagem se configuram como possibilidade de resistência.
A discussão limitou-se a investigar possíveis alterações no fluxo escolar na mudança do sistema seriado para a lógica dos ciclos de aprendizagem a partir de indicadores quantitativos. Os resultados revelaram aspectos referentes ao âmbito desses indicadores – retenção, distorção e evasão. Portanto, não foi possível fazer inferências sobre questões didático-pedagógicas relativas à organização do trabalho pedagógico.
Foi possível, no entanto, a partir das análises, perceber brechas para questionamentos que podem ter origem no contexto escolar, tais como: a diminuição das taxas de retenção e evasão representa uma melhoria na qualidade da educação? Quais os motivos da manutenção da retenção diante da proposta pedagógica dos ciclos de aprendizagem? Quais os motivos da evasão escolar? Diante da obrigatoriedade da Educação Básica, onde estão os estudantes que evadem? Estas perguntas configuram-se como provocações para futuros estudos.
Agradecemos ao Grupo de Pesquisa Dzeta Investigações em Educação Matemática (DIEM), à Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), aos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (PPGE/UnB, Chamada PPGEMP Nº 02/2021) e à Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF, Edital 03/2021 – Demanda Induzida).