Introdução
O presente estudo busca analisar o documento Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor aprovada pelo Conselho Nacional de Educação - CNE. O estudo se dá a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental que busca recuperar os princípios contidos na Constituição Federal de 1988 e na LDB 9394/96 relativos à gestão democrática, bem como traçar historicamente como a visão empresarial contida na Nova Gestão Pública e nas políticas neoliberais tem se apresentado como referência para o trabalho do diretor escolar e na formulação da Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor.
A aprovação da Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor retoma um debate de décadas referente às competências e atribuições dos diretores escolares. Segundo a literatura da área, o papel do diretor escolar estaria diretamente associado ao fortalecimento da gestão democrática nas escolas públicas, assim, a pesquisa pretende analisar o documento para verificar a concepção de gestão presente e os possíveis efeitos no trabalho do diretor. Nesse sentido, a aprovação da Matriz Nacional de Competências do Diretor nos conduz a pensar a respeito das motivações relativas às competências do diretor na escola, a saber, como um articulador de práticas democráticas ou um gestor focado em uma visão gerencialista da gestão educacional pautada no modelo da Nova Gestão Pública.
O estudo foi organizado em três partes. Na primeira, analisa-se a escola enquanto organização educativa e o papel dos diretores/as. Na segunda, conceitua-se a gestão democrática e como os princípios da Nova Gestão Pública se manifestam no universo escolar. Por fim, o texto trata da própria Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor buscando identificar os princípios de uma visão gerencialista e empresarial na realização do trabalho dos diretores/as.
A escola como organização educativa e o papel do diretor escolar
Ainda hoje, muitas pessoas defendem que a escola é uma organização semelhante a qualquer outra empresa, deste modo, acreditam que a administração escolar não pode desvincular-se do tipo de administração capitalista. Nessa perspectiva, um bom administrador escolar é considerado peça chave para o sucesso da escola, sendo capaz de garantir resultados satisfatórios. Evidentemente, essa discussão ultrapassa a dimensão acadêmica, pois a percepção econômica da educação enquanto mercadoria corrobora a visão gerencial da função do diretor escolar. Diante disso, enfatiza-se que o trabalho pedagógico tem suas especificidades que diferem das organizações empresariais e a administração escolar deve ser feita por professores e professoras, a fim de garantir suas singularidades.
De acordo com Paro “a administração é a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados” (PARO, 2010, p.25). Se refletirmos a respeito da escola, a administração deve estar voltada para relações de ensino e aprendizagem, pois todas as outras ações dentro do ambiente escolar envolvendo todos os profissionais da educação devem ser direcionadas para o mesmo fim: educar. Conforme Anísio Teixeira, a administração da escola deve estar voltada para o aprendizado dos alunos e não para a produção de bens materiais como nas empresas capitalistas,
Jamais, pois, a administração escolar poderá ser equiparada ao administrador de empresa, à figura do manager (gerente) ou do organization-man, que a industrialização produziu na sua tarefa máquino-fatura de produtos. Embora alguma coisa possa ser aprendida pelo administrador escolar de toda a complexa ciência do administrador de empresa de bens materiais de consumo, o espírito de uma e outra administração são de certo modo até opostos. Em educação o alvo supremo é o educando a que tudo mais está subordinado (TEIXEIRA, 1968, p. 15).
Para Paro, o trabalho pedagógico não é material, não resulta na produção de objetos, ora, como então pensar a atividade pedagógica nos modelos capitalistas em que o objetivo é a mais valia? “Quando transportamos esses conceitos para o trabalho pedagógico (...) é preciso ter presente que se trata de um trabalho não material”. Na prática, compreende-se que o trabalho pedagógico contempla dimensões que extrapolam os limites da sala de aula e dos conteúdos padronizados. Para o autor, o processo de aprendizado associa-se a incorporação, pelo sujeito, da cultura historicamente produzida, que pressupõe a compreensão, tanto dos fundamentos e dos valores, como dos procedimentos políticos capazes de intensificar as contradições próprias de uma determinada sociedade (PARO, 1995a, p.104).
Isso significa que a complexidade do processo pedagógico e dos procedimentos educativos demandam práticas de gestão democrática que potencializem o efetivo aprendizado dos alunos e a participação dos diversos agentes educativos no processo de decisão. Ainda sobre a estrutura das organizações escolares no que se refere à gestão democrática, concorda-se com Lima,
A gestão democrática da escola não é apenas, nem sobretudo, um problema organizacional e de gestão, mas antes uma questão central ao processo de democratização da educação, de expansão e realização do direito à educação, de possibilidade de educar para e pela democracia e a participação (2018, p.26).
Lima (2001) esclarece que a escola segue cada vez mais modelos industriais de gestão, lógica que também se aplica à dinâmica de ensino e aprendizagem. Assim, percebe-se uma educação voltada para a produção em série associada com os valores tayloristas, que visam racionalização do trabalho, foco no aumento da eficiência e eficácia e redução de gastos. Nesse sentido, a escola deixa de ser um espaço de criação de culturas, de liberdade, de construção conjunta do conhecimento passando a hierarquização do conhecimento (currículo) e da gestão, racionalizando tempos e espaços escolares. O autor nos esclarece que durante a história, a escola não teve como principal objetivo ser democrática, pois a instituição escolar esteve associada aos interesses fabris de disciplinar os corpos e ensinar os costumes da sociedade industrial, desde o princípio. Salienta-se que, ao mesmo tempo, percebe-se uma série de contradições e ambiguidades que definiram o papel dessa instituição para além de sua função principal.
Diferentemente das empresas, na escola, a formação cultural e profissional dos professores e diretores é a mesma. Assim, seria congruente que ambos estivessem articulados para a construção da escola democrática. Não podemos perceber os alunos/as enquanto consumidores da aula, do conhecimento ou do próprio espaço escolar. Os discentes são protagonistas, participantes e membros da comunidade escolar. Nesse sentido, professoras/es só conseguem ensinar quando os alunos e alunas querem aprender. Como ressalta Licínio: “os professores, na sua ação, dependem em grande parte dos seus alunos e só ensinam verdadeiramente se estes quiserem aprender, uma vez que não existe verdadeiro ensino sem aprendizagem” (LIMA, 2018, p.23).
Por fim, a melhor maneira de ensinar sobre democracia é vivenciando: Conforme Lima,
Ao contrário do que muitos supõem, é por esta razão que a gestão democrática é parte constituinte do próprio currículo escolar lato sensu considerado, não só um contexto ou um modelo de gestão, mas também uma das dimensões do processo educativo (2018, p.26).
A escola como uma organização educativa, não é apenas um local para a reprodução de normas. Percebemos a escola como um organismo vivo e não linear. Esse entendimento é importante para que possamos compreender que as instituições educativas possuem certo grau de autonomia. Conforme Lima,
Daí a considerar que cada escola é, sobretudo uma unidade elementar de um macro sistema que, como tal, encerraria as propriedades essências deste e as reproduziria local e institucionalmente, vai como se sabe um pequeno passo; capaz, no entanto, de condenar a escola (e os atores escolares), logo no plano teórico, à reprodução normativa e a hétero-organização, assim lhe denegando a possibilidade de se constituir como instância auto-organizada para a produção de regras e a tomada de decisões políticas e não lhe reconhecendo as suas margens de autonomia relativa (2001, p. 166).
A gestão democrática nas escolas pode ser vista como uma possibilidade de estimular mais autonomia pedagógica aos diretores/as. No entanto, uma contradição se instaura nesse debate, existem no conjunto da sociedade, grupos conservadores que não têm interesse de que a escola seja um espaço público criado para a transformação social, sendo assim, a gestão democrática se desenvolve de forma limitada nos sistemas de ensino e unidades escolares ao preconizar os interesses e proposições dos órgãos governamentais. Ainda que o discurso seja de autonomia para cada instituição escolar, diretores e diretoras se vêem compelidos a responder as demandas vindas dos governos. Essa percepção se dá, prioritariamente, no que diz respeito à tomada de decisões relacionadas aos resultados educacionais e aos investimentos financeiros na escola.
Entende-se que o propósito dessa limitação da autonomia dos diretores/as é o de enfraquecer a unidade escolar para que as regras impostas pelos governos sejam seguidas à risca. Caso contrário, haveria fortalecimento da comunidade escolar, como ressalta Paro,
Na medida em que se conseguir a participação de todos os setores da escola - educadores, alunos, funcionários e pais - nas decisões a respeito de seus objetivos e de seu funcionamento, ter-se-ão melhores condições para pressionar os escalões superiores no sentido de dotar a escola de autonomia e de recursos (1995b, p. 3).
Compreender o papel de diretores/as, em uma perspectiva democrática, enquanto um processo pedagógico é importante para que possamos desvencilhá-los da perspectiva que os considera como gerentes da escola. O trabalho deve ser pedagógico e objetivar a efetiva aprendizagem dos alunos/as. Mas não é possível dicotomizar a questão administrativa da pedagógica que exercem, pois no ambiente escolar, elas estão intrinsecamente ligadas.
Conforme Dias,
Teoricamente é preciso lembrar, em primeiro lugar, que um diretor de escola não é apenas um administrador. Ele é, antes de tudo, um educador. Sua forma de conduzir a vida escolar tem repercussões profundas, se bem que nem sempre aparentes, na vida dos alunos. [...] A administração não é um processo desligado da atividade educacional, mas, pelo contrário, acha-se inextricavelmente envolvida nela, de tal forma que o diretor precisa estar sempre atento às consequências de suas decisões e de seus atos. Quando desempenha sua função, quando decide alguma coisa, o diretor é antes um educador preocupado com o bem-estar dos alunos, que um administrador em busca da eficiência (1967, p. 9).
A gestão democrática e os princípios da nova gestão pública no universo escolar
A gestão democrática da escola pública está expressa na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 206 “VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (BRASIL, 2016a). Além das leis complementares como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9394/96) e o Plano Nacional da Educação (Lei 13.005/2014) que também reforçam esse modelo de gestão. Com isso, fica entendido que a gestão escolar deve contar com a participação de toda a comunidade escolar (BRASIL, 2021a; BRASIL, 2014).
No período histórico que antecedeu a democratização da sociedade brasileira, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil vivia um momento de luta contra a ditadura militar, com a intenção de diminuir as desigualdades sociais e construir uma sociedade mais justa. Com ideais democráticos a Constituição Federal de 1988 traria consigo esperança de dias melhores,
Assim, capítulos e artigos dessa Constituição ficaram imbuídos de uma natureza sócio distributiva, sob o concurso do Estado, muito próxima a da proteção dos direitos humanos e no horizonte do Estado do Bem-Estar Social. E ela não cessa de convocar para uma democracia eivada de espaços públicos de construção coletiva. Esse mesmo Estado abriu para todos, explicitamente, as portas da cidadania para algo que vinha da cidadania ateniense: a convocação à participação consciente em novas arenas de deliberação (CURY, 2007, p.4).
O anseio por um novo paradigma de política e gestão educacional pautado na democracia e consubstanciado no exercício da autonomia encontrou eco na legislação educacional. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, Seção I e Capítulo III, intitulado “da Educação, da Cultura e do Desporto” (BRASIL, 2016a), resguarda o princípio da gestão democrática do ensino público. Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional corrobora o sentido emanado na Carta Magna ao estabelecer, em seu artigo terceiro, a gestão democrática como princípio para a organização jurídica dos sistemas de ensino. Saliente-se que a LDB regulamenta também o processo de execução da gestão democrática nos sistemas e nos estabelecimentos de ensino. Em seu artigo 12, incisos I e VI, define que os estabelecimentos de ensino terão a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica e articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola (BRASIL, 2021a).
Percebe-se que a partir da década de 1990, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, as políticas neoliberais se fortaleceram no Brasil. Essas conquistas jurídicas decorrentes da luta política dos educadores sofreram significativas alterações no decorrer da década de 1990, em parte manifestas na própria LDB, mas principalmente na legislação educacional posterior. Em geral, as novas propostas educacionais distanciaram-se demasiadamente da conotação democrático-popular materializada na Constituição Federal de 1988, que instituía a educação como direito público e social. Na prática, as novas propostas consolidaram, no plano das políticas e da gestão educacionais, a lógica produtivista e gerencial ao reproduzirem, adaptadas ao contexto brasileiro, as orientações e as expectativas dos organismos multilaterais de financiamento
Isto posto, planejava-se uma nova forma de administração do Estado de forma a torná-lo mais eficiente e menor em sua estrutura, a saída proposta pelo grande capital foi a privatização de empresas estatais. Mas, podemos destacar também, que os direitos sociais foram atingidos por essa nova percepção de administração. Conforme Cury,
No âmbito dos direitos sociais, repassam-se os mesmos ou para esferas próprias da “responsabilidade social” da sociedade civil sob a forma de assistência social ou filantropia, e na perspectiva mais conservadora, para a responsabilidade do próprio indivíduo (2007, p. 2).
Essa nova maneira de administrar o Estado, pretendia deixar de lado o Estado de bem-estar social. Para os conservadores neoliberais, o Estado seria responsável, segundo Cury (2007, p.2), “apenas as tarefas clássicas da segurança das fronteiras, da moeda, da diplomacia, da guerra e da paz, da justiça e das grandes diretrizes e coordenadas das ações”. Criaram-se agências reguladoras, órgãos governamentais que fiscalizam, regulam e controlam produtos e serviços dividindo o Estado transferindo as questões sociais para o terceiro setor.
Segundo Cury,
Esse primeiro movimento se guiará, fundamentalmente, pelo princípio da liberdade, entendida tanto como liberdade de iniciativa própria do sistema contratual de mercado embora considere desejáveis as liberdades civis protegidas por direitos e deveres individuais correspondentes tais como de expressão, de consciência, de culto, de organização entre outras (2007, p. 3).
No que tange a educação pública, as reformas foram realizadas por determinações de organismos internacionais, a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos, em 1990, que associavam novos investimentos a adesão dos países as recomendações internacionais. Dentre elas, em concordância com Perrude (2011, p. 49) destacamos: “descentralização, autonomia escolar, participação escolar, cogestão e consulta social tornaram-se marcos das orientações reformistas” que transfere para a escola o sentido tecnicista de formação em contraposição a sua função social. Conforme Perrude,
A escola formaria o trabalhador necessário para atender às novas exigências das novas relações de trabalho, preparando os indivíduos para a denominada “sociedade do conhecimento”, sustentada pelo prisma das competências e habilidades, marcadas pela flexibilização, pela polivalência e multifuncionalidade (2011, p. 49).
A educação não fica de fora desta nova perspectiva de gestão, pois podemos perceber como a Nova Gestão Pública (NGP) se engendrou nos sistemas de ensino e como a gestão escolar foi alterada após a inclusão de seus princípios reguladores. O objetivo do novo padrão de gestão, conforme Laval é “gerir a escola como uma empresa” (2019, p. 251). Utilizando os princípios administrativos e organizacionais de empresas que seguem a lógica do mercado, visam lucros, pregam a competitividade, são individualistas e valorizam a eficiência e eficácia, as escolas percebem seus alunos, alunas e familiares como clientes.
Segundo Mészáros,
No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. [...] Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo se vende, tudo se compra”, “tudo tem preço”, do que a mercantilização da educação (2008, p. 16).
A NGP traz consequências nefastas acerca das relações existentes na comunidade escolar. Com uma perspectiva conservadora de descentralização com foco na autonomia financeira e administrativa das instituições públicas, sem o devido aporte de recursos públicos necessários para assegurar a melhoria da educação associada a ideias de mais liberdade de escolha para professores e diretores, essas supostas autonomia e descentralização articuladas com severos mecanismos de regulação acabaram por trazer maior controle por parte dos órgãos governamentais para dentro das unidades escolares. O que vemos é um contrassenso criado pelo Estado, que prevê, por meio da legislação, a autonomia das unidades escolares para definição de metas, mas as políticas públicas que orientam a prática escolar centralizam o poder de decisão para agentes externos.
Conforme Laval,
Contudo, a pretexto de descentralizar e desburocratização, vem ocorrendo transferências de poder que não correspondem as lógicas oficiais nem surtem os efeitos pretendidos. Não é a democracia que vence, não é a iniciativa da base que é incentivada [...] trata-se, isso sim, de mudanças que fortalecem o domínio dos controles e das injunções sobre os professores e consequentemente sobre os alunos (2019, p. 251).
Constitui-se um novo perfil para os diretores escolares. Se anteriormente a função de diretores/as estava atrelada à organização da escola, no sentido de controle de horários, organização das aulas, etc., percebe-se hoje uma transformação ou acumulação de tarefas destes profissionais. Segundo Anne Barrère (2013), o trabalho dos diretores/as vincula-se centralmente a mobilizar suas equipes, tanto professores/as, como alunos/as. Conforme Barrère: “Os diretores teriam a oportunidade de aprender uma nova profissão de “chefia”, em que as competências de animação e de direção de equipes são centrais” (BARRÈRE, 2013, p. 287). Com o acúmulo de funções, esses profissionais precisam “fazer o estabelecimento se movimentar” (BARRÈRE, 2013, p.288), mobilizar a comunidade escolar objetivando “resultados nos exames, redução das repetições de ano” (BARRÈRE, 2013, p. 289).
A questão do conflito entre diretores/as e professores/as, se evidencia quando se coloca a avaliação qualitativa no centro dessa relação. Dentro deste universo escolar e no que tange o papel do diretor com as concepções na NGP, considera-se que há também, o “diretor burocrata” (BARRÈRE, 2013). Esse perfil “consiste em permanecer no status quo e no controle burocrático oficial de atribuição de notas administrativas. Esses diretores também não se envolvem nas áreas do controle do ensino” (BARRÈRE, 2013, p. 292), porém, neste caso, fica claro o modo de funcionamento díptico, conceito de Lima (2001), que evidencia regras informais no funcionamento cotidiano das unidades escolares.
Este novo perfil de diretores/as advindo a partir da NGP, precisa estar articulado com as novas demandas que surgiram nas escolas, que mais se parecem com empresas e, os diretores, com chefes. Chefes que hierarquicamente “controlam” alguns, e que supostamente tem certa autonomia, mas, na realidade, acabam por obedecer a ordens dos sistemas de ensino, como as secretarias de educação e as próprias políticas educacionais do MEC.
Com isso, a individualização do trabalho, vista enquanto uma qualidade positiva, é mais uma manifestação do neoliberalismo. Em concordância com Laval,
O que esses métodos de poder visam não é desenvolver uma política plena ou parcialmente autônoma pela livre deliberação, mas mobilizar recursos individuais para aumentar a eficiência no trabalho, dando a aparência de uma “consulta”, uma “participação” dos subordinados. [...] O que domina é o ponto de vista da eficiência e da mobilização a favor da empresa, e não o dos conflitos férteis e arbitrados da democracia (2019, p. 258).
A educação escolar entra também na era da “modernização”. Segundo Laval,
Em sentido mais estrito, porém, o verbo “modernizar” também significa buscar mais eficiência nas organizações e instituições, a fim de equiparar sua produtividade – supondo-se que o termo tenha um sentido universal – à de empresas privadas de melhor desempenho (2019, p. 196).
Na sociedade neoliberal, sob esse discurso equivocado, a “modernização” da escola promove a perda de sua razão primeira, a saber, a formação integral dos alunos. Quando as instituições de ensino se rendem a essa “modernização”, estão se justapondo ao sistema capitalista. Outra questão relacionada a essa perspectiva refere-se ao padrão de eficiência, que, como sugere Laval (2019), torna-se uma “eficiência econômica”, centrada em “maximizar os resultados contáveis” (LAVAL, 2019, p. 213). Sob esse aval, entendemos que a função da escola se dissocia, coagindo profissionais da educação a visarem taxas de aprovação, avaliações externas de resultados para terem financiamento por parte dos governos.
A formulação da matriz nacional comum de competências do diretor e a dicotomização de perspectivas relativas ao trabalho do diretor escolar
Com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, o vice-presidente Michel Temer assume a função de presidente da república e condiciona várias mudanças no campo da educação, em especial, ao aprovar a Emenda 95/2016 que reduz novos investimentos públicos nas instituições de ensino e alterar a configuração dos conselheiros que compunham o Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2016b).
A Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor foi elaborada pelo Ministério da Educação e aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em Maio de 2021, suas ideias foram formuladas a partir de referências oriundas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para estruturar os sistemas de ensino. O principal objetivo da Matriz é parametrizar a função do diretor escolar dialogando, supostamente, com a meta 19 do Plano Nacional de Educação que trata sobre a gestão democrática:
Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto (BRASIL, 2014).
A Matriz responde, mais especificamente, à estratégia 19.8 do Plano Nacional de Educação/2014-2024 e da Lei nº 14.113 que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)
A estratégia 19.8 do PNE (2014-2024) descreve a articulação dos critérios de definição da Matriz com o provimento dos cargos
desenvolver programas de formação de diretores e gestores escolares, bem como aplicar prova nacional específica, a fim de subsidiar a definição de critérios objetivos para o provimento dos cargos, cujos resultados possam ser utilizados por adesão (BRASIL, 2014).
Porém, é possível perceber uma visão gerencial da função de diretores/as escolares. Segundo Ramos, conselheiro-relator da Matriz, “O diretor é o grande líder da escola e vai precisar de novas competências neste século 21” (RAMOS, 2021, p.1). O objetivo dessa perspectiva é transformar o perfil do diretor escolar aproximando-o de atribuições realizadas por diretores/as de escolas privadas ou empresários, o que na prática representa responsabilizar os diretores/as e induzi-los a organizar a gestão da escola em razão do alcance de resultados educacionais.
Evidentemente, há visões diferentes em relação à Matriz. De acordo com o posicionamento da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), a Matriz representa um retrocesso no que tange a gestão democrática da escola pública.
A Matriz, ao transpor concepções neoliberais para a área educacional, incorporando a visão do mundo corporativo empresarial, acolhe a adoção do ideário pragmático e competitivo nas organizações educacionais, em detrimento da gestão democrática como princípio constitucional (ANPAE, 2021, s/p).
Na Matriz aprovada pelo Conselho Nacional de Educação constam 27 competências (dez gerais e 17 específicas), que, segundo Mozart Ramos3, “norteiem a formação, a seleção e a avaliação dos diretores escolares em todas as redes de ensino do país”.
O quadro 1 apresenta uma síntese das dez competências gerais do diretor escolar
1. Coordenar a organização escolar nas dimensões político-institucional, pedagógica, pessoal e relacional e administrativo-financeira exercendo liderança transformacional e focada em objetivos definidos. |
2. Configurar a cultura organizacional em conjunto com a equipe, incentivando o estabelecimento de ambiente escolar organizado e produtivo, concentrado na excelência do ensino e aprendizagem. |
3. Comprometer-se com o cumprimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) promovendo a efetivação das Competências Gerais da BNCC e suas competências específicas. |
4. Valorizar o desenvolvimento profissional da equipe escolar, promovendo formação e apoio com foco nas Competências Gerais dos Docentes e nas competências específicas BNC-Formação Continuada. |
5. Coordenar o programa pedagógico da escola, aplicando os conhecimentos e práticas que impulsionem práticas exitosas realizando monitoramento e avaliação constante do desempenho e engajando a equipe para o compromisso com o projeto pedagógico da escola. |
6. Gerenciar os recursos e garantir o funcionamento eficiente e eficaz da organização escolar realizando monitoramento das atividades com postura profissional para solucioná-los. |
7. Ter proatividade para buscar diferentes soluções para aprimorar o funcionamento da escola, com espírito inovador, criativo e orientado para resolução de problemas sendo capaz de criar o mesmo senso de responsabilidade na equipe escolar. |
8. Relacionar a escola com o contexto externo incentivando a parceria entre a escola, famílias e comunidade, mediante interação positivas orientadas para o cumprimento do projeto pedagógico. |
9. Exercitar a empatia, o diálogo e a resolução de conflitos e a cooperação, promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos. |
10. Agir e incentivar pessoal e coletivamente, com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência, a abertura a diferentes opiniões e concepções pedagógicas, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivo, sustentáveis e solidários. |
Fonte: Brasil (2021b)
O estudo pretende, a seguir, apresentar alguns destaques relativos às dez competências gerais propostas pelo documento aprovado que define a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor e reflexões críticas sobre as perspectivas de formação contidas nessas prerrogativas e os seus efeitos na escola.
A cultura refere-se ao conjunto de hábitos, crenças, valores de uma sociedade. Quando se traz o conceito de cultura organizacional para o âmbito dos sistemas educacionais, na realidade, se introduz, ainda que de forma não muito clara, uma percepção da cultura empresarial. Nesses termos, descritos na competência 2, percebese que funcionários ou, no caso, específico, professores e demais profissionais da educação devem incorporar os valores da empresa, no entanto, muitas vezes, nas escolas são normas informais e não escritas que guiam os caminhos dos funcionários. Agora, pensando nos diretores/as entende-se que esse tipo de cultura nas escolas pode corroborar uma postura de subserviência as orientações provenientes dos altos escalões, ou seja, esses profissionais perdem sua autonomia e trabalham para buscar eficiência, que, dentro da escola, mede-se, de acordo com essa lógica, por meio das avaliações em larga escala, avaliações externas e de resultados, bem como pela promoção da competitividade entre os profissionais e escolas cujo foco são os resultados.
Competência 2
Configurar a cultura organizacional em conjunto com a equipe, incentivando o estabelecimento de ambiente escolar organizado, e produtivo, concentrado na excelência do ensino e aprendizagem e orientado por altas expectativas sobre todos os estudantes (grifos nossos) (BRASIL, 2021b).
Diante disso, fica claro que as “altas expectativas” relacionadas aos estudantes e profissionais da educação estão intimamente ligadas à qualidade da eficiência escolar.
Conforme Laval,
A concepção de eficiência que se impôs progressivamente na educação, [...] considera que a eficiência é sempre mensurável e pode ser atribuída a dispositivos, métodos totalmente definidos, padronizados e replicáveis em grande escala, desde que haja “formação”, “profissionalização”, “avaliação” e controle dos agentes de execução, ou seja, os professores (2019, p.210).
Além disso, compreende-se que essa forma de organização pode levar ao pagamento de bônus para professores e professoras que obtiverem melhores resultados. Não congruente com as especificidades das instituições escolares e em desacordo com a função social da escola.
Nota-se como na Competência 5 fica claro que um dos papéis de diretores é regular às práticas dos docentes e considerar exitosa as questões pedagógicas de acordo com a avaliação constante de desempenho dos alunos. Como sabemos essa questão avaliativa desconsidera o processo de ensino e aprendizagem e de transformação dos discentes.
Competência 5
Coordenar o programa pedagógico da escola, aplicando os conhecimentos e práticas que impulsionem práticas exitosas, pautando-se em dados concretos, incentivando clima escolar propício para a aprendizagem, realizando monitoramento e avaliação constante do desempenho dos estudantes e engajando a equipe para o compromisso com o projeto pedagógico da escola (BRASIL, 2021b).
Competência 6
Gerenciar os recursos e garantir o funcionamento eficiente e eficaz da organização escolar, realizando monitoramento pessoal e frequente das atividades, identificando e compreendendo problemas, com postura profissional para solucionálos (BRASIL, 2021b).
Em consonância com a lógica empresarial pressupõe que os problemas relacionados com verbas para a educação devem ser resolvidos pelos diretores com bom gerenciamento das verbas, tornando a escola eficiente e eficaz nos resultados. Porém, a PEC 95/2016, determinou uma legislação que modifica o regime fiscal e tem como foco, um congelamento por 20 anos na área da educação e saúde. Ao comprometer o Plano Nacional de Educação (PNE), (aprovado em 2014 que antecipava em 2019, 7% do PIB teria que ser investido em educação, e em 2024, alcançar o patamar de 10%), fica muito difícil para diretores/as conseguirem gerenciar recursos tão limitados, além de permitir a responsabilização dos profissionais da educação pelos maus resultados.
A lógica gerencial das empresas se manifesta em outras competências da Matriz. O texto se utiliza de palavras conhecidas do mundo empresarial. Disfarçado de inovação, de autonomia e se afastando da visão democrática que está estabelecida na LDB, a Matriz de Competências do Diretor, na competência 7, foca a gestão nos resultados, individualiza e responsabiliza os profissionais da educação.
Ainda sobre a Matriz de Competências destaca-se a competência 9.
Competência 9
Exercitar a empatia, o diálogo e a resolução de conflitos e a cooperação, promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza, para promover ambiente colaborativo nos locais de aprendizagem (BRASIL, 2021b).
Neste sentido, percebe-se que os diretores se afastam de seus pares, considerando que a grande maioria de diretores/as são professores por muitos anos antes de assumirem a direção. Conforme Barrère, diretores/as como mediadores de conflito, podem promover uma “ruptura identitária” (2013, p. 288). Assim, entende-se a importância do diálogo, da escuta à comunidade escolar, da empatia, mas existe uma sobrecarga de trabalho e acumulo de funções. Se considerarmos uma escola pequena, acredita-se que talvez haja a possibilidade de se ter uma relação próxima com os professores/as, mas se tratando de uma escola grande, fica muito difícil para o diretor/a corresponder a essas expectativas. Conforme Oliveira, “a mediação de conflitos entre os profissionais e entre docentes e alunos/famílias também ocupa parte das atividades do (as) diretores (as) e reflete certa concepção motivacional para lidar com os diferentes atores” (2017, p. 723).
Considerações Finais
Entende-se que as situações das escolas públicas no Brasil são muito heterogêneas. Em um país de dimensões continentais, precisa-se colocar no cerne das políticas educacionais as singularidades. Os recursos que são repassados para a escolas estão longe de serem igualitários, a formação dos professores/as distinta e as comunidades escolares têm demandas específicas. Ao considerar as diferenças e peculiaridades regionais que as unidades educativas experimentam, é congruente acreditar que práticas de gestão democrática podem reunir essas especificidades de cada escola com maior precisão, no sentido de valorizar as necessidades e características de seus atores. Não é possível acreditar que um diretor de escola será capaz de provocar em toda comunidade escolar o senso de responsabilidade quando não se tem condições adequadas de trabalho, com os baixos salários e cargas horárias extensas.
De acordo com Paro,
A valorização exacerbada do papel do diretor escolar é empregada às vezes como mero álibi para causas do mau ensino, por parte de autoridades governamentais e indivíduos interessados em minimizar a carência de recursos e baixos salários dos profissionais da educação. Tais pessoas atribuem ao diretor a responsabilidade quase total pelos destinos da escola (2015, p.20).
A definição de parâmetros tão específicos para a ação destes profissionais gera uma sobrecarga de trabalho, distanciamento da comunidade escolar, separação ou promove a ruptura entre professores e diretores, ou seja, perde-se a essência da escola como instituição formadora, transformadora e democrática. Como Paulo Freire nos deixa claro, “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica” (FREIRE, 1984, p. 89).
Faz-se uma referência a lógica empresarial e de mercado que nossas escolas estão circunscritas no atual contexto. Percebe-se que, de forma similar, a BNCC e a Base Nacional Comum de Formação de Professores, a nova matriz de diretores tenta padronizar e uniformizar processos na gestão das escolas, além de reduzir a autonomia e limitar o potencial criativo e crítico da gestão escolar.
Na realidade, a organização da matriz coaduna com um projeto de educação sintonizado com os interesses de mercado ao transferir o sentido uniforme e padronizado, presente no setor privado, para as escolas públicas. A análise crítica dos conteúdos desse documento nos permite compreender os limites dessa perspectiva de educação e como essa proposição tende a limitar o potencial público e democrático da gestão escolar.