Primeiras reflexões: programas de alimentação escolar no mundo
Nesse artigo apresentamos um resgate histórico acerca do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) com intuito de tornar possível o reconhecimento do quão ele se configura um importante instrumento para o alcance de uma alimentação adequada e garantia do bem-estar e proteção da saúde dos estudantes. Assim, delineamos a seguinte questão de pesquisa: Quais contradições emergem ao longo da história do PNAE em termos financiamento e, consequente, efetivação?
Para tanto, apresentamos um recorte de uma pesquisa de cunho qualitativo, caracterizada como pesquisa documental, uma vez que é a partir da análise de fontes históricas, historiográficas e de documentos legais que buscamos compreender as mudanças, retrocessos e avanços ocorridos ao longo da história do Programa. A opção pela análise documental se faz, posto que segundo Ludke e André (1989, p.38), ela “pode se constituir como uma técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos”.
Inicialmente importa dizer que os Programas Alimentação Escolar (PAE) surgem em todo o mundo com um objetivo comum: aliviar a fome e subnutrição, principalmente na larga escala da população infantil de classes econômicas inferiores, mais susceptíveis as deficiências nutricionais. Sua contribuição se estende ainda ao encorajamento de hábitos alimentares saudáveis e diminuição da evasão escolar.
Segundo o relatório Estado da Alimentação Escolar no Mundo, publicado no ano de 2020 pelo Programa Mundial de Alimentos (WFP) estima-se que pelo menos 388 milhões de estudantes, ou seja, uma em cada duas crianças, de 161 países, receberam refeições escolares todos os dias. Desse total, quase a metade vivem em algum dos cinco países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), sendo a Índia o país com o maior programa de alimentação escolar do mundo. Apesar dessa crescente os dados apontam que ainda é pouca a eficácia de atendimento às crianças em situação de vulnerabilidade, quando comparada com a necessidade dele, posto que 73 milhões de crianças vulneráveis não são alcançadas pela oferta de merenda escolar.
O país pioneiro no oferecimento de alimentação em escolas públicas foi a França, que, como um “reflexo da Revolução Francesa, marco histórico de defesa dos direitos humanos”, implementou seu programa ainda no ano de 1791. A vizinha Alemanha, por sua vez, passou a ofertar alimentação em suas escolas públicas somente em 1883, por meio de um ato político do estadista Otto Von Bismarck, um aristocrata que pautava sua luta política na busca por melhores desempenhos escolares enquanto reflexos de uma melhor saúde e nutrição dos estudantes (CARNEIRO, 2017).
Esse mesmo pensamento levou a Holanda, em 1900, a determinar que seus municípios oferecessem não somente a alimentação de forma gratuita nas escolas, como também roupas para os alunos mais pobres, entendendo que a situação de extrema carência refletia diretamente no desempenho escolar das crianças. No Japão, em 1889, crianças subnutridas e em condição de pobreza tinham acesso a um programa alimentar, por meio da distribuição de tigelas de arroz e peixe assado para os escolares mais pobres de Yamagata, região norte do arquipélago (STEFANINI, 1998). Após a Segunda Guerra Mundial, o programa foi ampliado e passou a atender todo o país e a grande maioria dos alunos de todos os níveis de ensino.
O pós Segunda Guerra Mundial também assinalou o desenvolvimento do programa de alimentação escolar na Grã-Bretanha, servindo como parâmetro de expansão do fornecimento de alimentos para alunos das escolas elementares, iniciado em 1904 com o ‘Ato de provisão das refeições”. Em 1917 e 1918 a escola pública americana introduziu no seu currículo a educação em nutrição. A Merenda Escolar, no entanto, surge na década de 1930 (STEFANINI, 1998), como resultado de uma ação realizada pelo governo “como mecanismo para reduzir os excedentes agrícolas incorporando-os aos cardápios das escolas atendidas” (CARNEIRO, 2017, p.25).
Na América Latina, o Uruguai é o país com o mais antigo Programa de Alimentação Escolar, datado no começo do século 20, enquanto nos demais os PAE generalizam-se a partir da década de 50, como no Brasil, por exemplo.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar: aspectos históricos e legais
As primeiras estratégias de alimentação escolar no Brasil aconteceram em Corumbá e Campo Grande, no Mato Grosso, através de um ato voluntário por parte da maçonaria em meados de 1908. Desde então, e de maneira crescente, estados mais desenvolvidos passaram a responsabilizar-se pela oferta da merenda em suas redes de ensino.
O Governo brasileiro passa a assumir financeiramente o Programa a partir da década de 1940, atingindo expansão de forma rápida, contando com apoio internacional de organizações como o United Nations International Children Emergency Fund (UNICEF) e United States Agency for International Development (USAID), através de doações e venda de alimentos a preços simbólicos, frutos da supersafra americana no pós-guerra na Coreia (STORLARSKI, 2005).
Desde a sua primeira versão, denominado como Campanha de Merenda Escolar (CME) em 1955, o Programa incorporou importantes mudanças em todo seu contexto: ideológico, técnico e operacional. Sua ideologia inicial de programa assistencialista deu espaço para a ênfase na descentralização, o que acabou facilitando um discurso de prevalência à democratização e finalmente à articulação entre políticas públicas. Para Martinez (2016) essa descentralização financeira e de gestão, iniciada na década de 80, possibilitou o fim de certos desgastes e inconvenientes que cercaram o programa em suas primeiras três décadas (1955 a 1993); dentre eles destaca-se o desrespeito a regionalidade e seu impacto nos hábitos alimentares das crianças beneficiárias do programa, que, em um formato centralizador acabava por fazer uso em sua totalidade de alimentos industrializados.
Com a Lei nº 8.913 de 1994, a responsabilidade de compra e distribuição dos gêneros alimentícios para suprir o Programa foi delegada às conveniadas, denominadas Entidades Executoras (EEX) e representadas pelas secretarias de educação dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Essa mudança de caráter contribuiu com a autonomia municipal, tal qual com a regularidade e melhoria na oferta das refeições escolares, pois além de atender as práticas alimentares de cada região dos estudantes, garantiu incentivo a economia local e menores custos operacionais para o desenvolvimento do mesmo.
A lei marca, ainda, a criação dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), responsáveis pelo controle e fiscalização do Programa, o que possibilitou aos estados e municípios uma maior potência de suas ações e a inclusão da participação social.
Ainda na seara histórica e evolução legal do Programa, tem-se a integração do PNAE à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional enquanto eixo norteador do acesso aos alimentos, ocorrida em 2005. Com ela, busca-se atender as necessidades básicas da pessoa para não sentir fome, respeitando seus aspectos culturais, territoriais, socioeconômicos, ambientais e político-institucionais na oferta dos alimentos de suprimento dessas necessidades (CARVALHO e CASTRO, 2009).
Considerada uma das mais relevantes alterações do Programa, em 2009, a Lei nº 11.947 obrigou o investimento de, no mínimo, 30% do repasse financeiro para aquisição de alimentos provenientes da agricultura familiar, incentivando para além desse formato de agricultura, o desenvolvimento da economia local e sustentável de comunidades atuantes nesse campo econômico (STORLARSK, 2005).
No que concerne as alterações do Programas na última década, destaca-se a Resolução CD/FNDE nº 26, de 17 de junho de 2013, onde se é considerada a inserção de novas orientações ao público, ao tempo que reconhece a necessidade da consolidação de normativas dispersas em vários dispositivos legais. Assim, a resolução estabelece, em um só documento direcionado aos Estados, Distrito Federal, Municípios e entidades federais, todas as diretrizes para execução técnica, administrativa e financeira do PNAE. Em 2017, uma alteração significativa na transferência dos recursos: o estabelecimento dos valores per capita de acordo com as etapas de ensino, dispostos na Resolução nº 1, de 08/02.
Para os anos de 2018 a 2020, reservam-se as disposições legais acerca do recebimento das prestações de contas do PNAE. Foi em abril de 2020 que pela primeira vez na história, uma resolução de execução do Programa para um período de estado de calamidade pública foi disposta. Nela, reconhece-se o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 e a “emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus – Covid-19” (BRASIL, 2020). Dentre as principais orientações legais, destaca-se a autorização em caráter especial para distribuição dos gêneros alimentícios adquiridos pelo Programa em forma de kits, compostos por alimentos in natura e minimamente processados, respeitando ainda os hábitos alimentares e cultura local.
Ainda em 2020, entra em vigor a Resolução nº 6, de 8 de maio de 2020. Na sua primeira versão, estabelece as novas diretrizes e normativas técnica, administrativa e financeira para o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do Programa, entendendo que alimentação escolar é “todo alimento oferecido no ambiente escolar, independentemente de sua origem, durante o período letivo” (BRASIL, 2009). Já no conjunto das alterações estabelecidas na sua segunda versão, que deu origem a uma nova resolução, a Resolução nº 20, de 02 de dezembro de 2020, encontram-se novas redações que se adequam ao melhor atendimento na oferta dos alimentos em forma de kits, a exemplo da troca de hortaliças por verduras e legumes.
Apesar de reconhecer os esforços que as resoluções representam na busca por um melhor formato de continuidade da oferta da alimentação escolar em tempos de calamidade pública, não se pode deixar de apontar para o risco de um possível agravamento da insegurança alimentar de boa parte da comunidade estudantil, uma vez que, no caso dessa normativa, não há referência à universalidade no atendimento, ao tempo que também não há obrigação por parte das EEx para execução do PNAE com os recursos recebidos pelo FNDE nesse período de interrupção das aulas, possibilitando, segundo Pereira et al. (2020), que os poderes executivos travem uma disputa por meios de suas diferentes estratégias de implementação da oferta da alimentação escolar:
[...] se por um lado, há relatos de entidades executoras que ofertaram cestas incluindo gêneros alimentícios oriundos da agricultura familiar, outros adotaram a estratégia da transferência de renda focalizada em estudantes em situação de vulnerabilidade social ou ainda a oferta de kits com alimentos que incluíam ultra processados (PEREIRA et al., 2020, p.63271).
O debate passa então a girar em torno da melhor utilização dos recursos federais na oferta dos kits de alimentos, uma vez que, pela ótica da logística e aspectos financeiros dessa estratégia, o poder de compra dos alimentos fica naturalmente limitado quando se é individualizado, diferente das aquisições em grandes quantidades, que garantem melhores condições de negociação dos preços.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar: política pública
O PNAE tem suas raízes estabelecidas no ano de 1939, onde os Departamentos Nacionais de Educação e de Saúde, por meio da Portaria nº. 153, aprovavam o “regime higiênico dietético” para internatos e semi-internatos, considerado, portanto, o primeiro ato administrativo voltado para a alimentação no contexto escolar (RODRIGUES, 2013).
Em 1940, os debates indicavam um primeiro esboço de estrutura organizacional e funcionamento, de um programa que oferecesse alimentação no cotidiano da escola, apresentado pelo atual Instituto de Nutrição Josué de Castro. Esboço que não se concretizou ante a falta de recursos financeiros. Dentre os atos políticos, no entanto, destacava-se a atuação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio do governo de Getúlio Vargas, enquanto pioneiro na instituição de uma política de alimentação, não direcionada à comunidade escolar, por meio da criação do Serviço de Alimentação da Previdência Social - SAPS, que tinha como objetivo melhorar as condições nutricionais dessa classe (RODRIGUES, 2013, p.139-41). Após a criação do SAPS, surge o STAN – Serviço Técnico de Alimentação Nacional, órgão que compunha a Coordenação de Mobilização Econômica, sendo essa uma instituição responsável pelo controle geral sobre qualquer atividade voltada para a alimentação no país após a Segunda Guerra Mundial.
O STAN incentivou o desenvolvimento de pesquisa e a criação da revista Arquivos Brasileiros de Nutrição (ABN). Editados de 1944 a 1968, os ABN surgem como revista pioneira na área de alimentação e nutrição e fomenta discussões fundamentais para a inserção da temática na agenda de políticas públicas. Entretanto, a instituição do primeiro formato regulamentado de programa de alimentação escolar brasileiro ocorreu somente no ano de 1954, sob responsabilidade pública da Comissão Nacional de Alimentação (CNA) (ARRETCHE, 2000).
Foi por meio da CNA e do seu Plano Nacional de Alimentação e Nutrição que um programa de alimentação escolar foi estruturado nacionalmente pela primeira vez. Os ABN, por sua vez, usavam suas publicações para convencer o governo a investir na Campanha de Merenda Escolar, posto que a Comissão não contava com aparato financeiro suficiente para atender todo o Plano, que tinha, para além da proposta da alimentação escolar, outras linhas de ação. Assim, em 1955 o programa passa a ser oficialmente chamado de Campanha de Merenda Escolar (CME) e entra para a lista de responsabilidades do Ministério da Educação e Cultura (MEC).
O Programa Nacional de Alimentação Escolar: objetivos, diretrizes e operacionalização
O PNAE se apresenta como um programa com vistas a contribuição do crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, rendimento escolar e apoio a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos de toda a educação básica pública, efetivada por meio de ações de Educação Alimentar e Nutricional (EAN) e distribuição universalizada de uma refeição/aluno da rede pública de ensino, em cada um dos seus 200 dias letivos, no intento de suprir as necessidades nutricionais referentes ao período em que ele estiver na escola.
A Figura 1 nos apresenta a estrutura do Programa em termos de fiscalização. Assim, embora seja de responsabilidade do Governo Federal, é fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria Geral da União (CGU). Além disso, o Ministério Público (MP), em parceria com o FNDE, recebe e investiga as denúncias relacionadas a má gestão do PNAE nas esferas locais. Ainda em termos fiscalização, reserva-se aos CAE2 o controle social, ou seja, a atuação direta da sociedade no que diz respeito ao acompanhamento da aquisição dos insumos para preparo da merenda. Com a Lei de Municipalização da Merenda Escolar (BRASIL, 1994), a atuação dos CAE também se relaciona com o funcionamento e execução financeira do Programa, uma vez que a existência do Conselho é um condicionante para o recebimento dos recursos do FNDE, além da tarefa de avaliar a prestação de contas apresentada pelas EEx e, com base nela, emitir Parecer Conclusivo.
Na sequência, a Figura 2 permite ao leitor a compreensão acerca dos aspectos de composição dos valores e execução prática do PNAE, repassados aos Estados, Municípios e Escolas federais em 10 parcelas mensais. Do valor final, calculado com base no número de matriculas disponibilizado pelo Censo Escolar do ano anterior, obrigatoriamente deve-se investir 30% na compra de insumos advindos diretamente da agricultura familiar (BRASIL, 2009), como meio de incentivo ao desenvolvimento sustentável e econômicos das comunidades. Assim, toda a educação básica, representada pelos milhões de alunos matriculados em escolas de caráter público, filantrópico ou conveniadas com o poder público3, é beneficiada com a oferta de alimentação dentro do ambiente escolar.
Do Financiamento da Educação ao Financiamento da Política de Alimentação Escolar
É notória a semelhança entre a logística histórica do surgimento e desenvolvimento de políticas educacionais e sociais no país, a exemplo da política de alimentação escolar, com a temática do financiamento da educação no Brasil. Com outorga em 1824, a primeira constituição brasileira autoriza o Estado a fornecer a instrução primária gratuita a todas as pessoas, entretanto não o obriga. Assim, segundo Chizzotti (2001, p.53) tem-se um “direito subjetivo dos cidadãos”, em vez de uma “obrigação efetiva do Estado”. A obrigatoriedade escolar enquanto princípio fundamentado no direito individual e coletivo, passou a compor a pauta de intensos debates no final do Império, contudo, apesar de constante no palco de defesa, por parte dos intelectuais, adentrava o início da República ainda não consagrada como princípio federativo.
Tem-se então no início da república um financiamento da educação frágil e desorganizado, cenário que viria a ser modificado “drasticamente” com o advento da Revolução de 19304 e a consequente condução que esse processo sociopolítico tomou em direção a Assembleia Nacional Constituinte realizada, em 1933, para elaborar a nova Constituição do Brasil, após movimentos revolucionários, iniciados em 1932, contra o governo autoritário de Getúlio Vargas. Em seu texto constitucional definitivo, o Brasil consagra em 1934 os princípios do direito à educação, devendo esta ser ministrada pelos poderes públicos e pela família, e da obrigatoriedade escolar, normatizando o ensino primário integral gratuito, a frequência obrigatória, bem como a “tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior primário” (HORTA, 1998, p.18). Registra-se neste ano também a transição do federalismo clássico, no qual os entes federados atuam separados, para o federalismo cooperativo, por meio da ampliação da competência da União, principalmente na esfera econômica (MASCARENHAS, 2021).
Inicia-se no país, pela primeira vez, um processo de vinculação de recursos para o desenvolvimento e manutenção do ensino de forma constitucional. Tal vinculação, no entanto, não se efetivou, pois foi suprimido no texto da nova Constituição de 1937, com a implantação do Estado Novo, sendo retomada somente no texto constitucional de 1946 e novamente ignorada na CF de 1967. Assim, é do retrocesso de 1937 à redemocratização de 1946, que a vinculação de recursos para a educação reconquista seu lugar na Carta Constitucional, promulgada logo após a queda de Getúlio Vargas.
É nesse contexto que, no fim dos anos de 1970, implementa-se a denominação oficial do PNAE (1979), o que acarretou um novo olhar por parte do Poder Público para a temática. Consequência disso foi a ampliação dos recursos para o financiamento da alimentação escolar, que, ainda que de cunho assistencialista, o Fundo de Investimento Social (FINSOCIAL) possibilitou o atendimento pelo PNAE de mais de 80% do total de alunos matriculados no país. Para além disso, é na CF de 1988 que se estabelecem fortemente as relações entre os entes federados, por meio da contemplação de responsabilidades dispostas a cada um:
Art. 212 A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (BRASIL, 1988, p.125).
O estabelecimento dessa, entre outras fontes, para os gastos com a educação surge com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), no ano de 1996. Além disso, o texto dispõe as normativas legais atribuídas a cada ente federado o que, para Castro (2001, p.13), caracteriza o regime de financiamento como um regime de colaboração, posto que:
a União divide a aplicação de seus recursos na manutenção do sistema federal, na execução de programas próprios e em transferências para os sistemas estaduais e municipais. Na composição de suas receitas, os Estados somam os recursos recebidos da União aos provenientes de suas fontes, os quais são utilizados na manutenção e expansão de seus sistemas de ensino. Na composição dos recursos destinados à manutenção e expansão de suas redes de ensino, os municípios recebem recursos da União e dos Estados, os quais são somados aos seus próprios recursos. (CASTRO, 2001, p. 13).
Destaca-se a forma de aplicação e execução dos gastos com a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), que teve suas despesas especificadas como forma de orientação aos gestores do setor financeiro da educação, conforme Quadro I:
Considerar-se-ão MDE despesas que se destinam a: | Não constituirão despesas MDE aquelas realizadas com: |
---|---|
I - remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; II - aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; III – uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV - levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI - concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VII - amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo; VIII - aquisição de material didáticoescolar e manutenção de programas de transporte escolar. |
I - pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivada fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão; II - subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural; III - formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos; IV - programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social; V - obras de infraestrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar; VI - pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino. |
Fonte:BRASIL, 1996 (grifo nosso)
Para Castro (2001), em se tratando de “defesa dos recursos para a educação”, a LDB se sobressai a CF de 88, uma vez que não somente possibilita a constância de um fluxo real dos recursos financeiros, como também estabelece um menor tempo de apuração e correção para a diferença entre receitas e despesas, passando a ocorrer de forma trimestral e não mais anual, como anteriormente. Como resultado dessa alteração o autor destaca a “proteção à área de educação”, que, ainda que a gestão financeira do Governo se depare com graves crises na economia, o setor educacional terá garantido um mínimo de recursos. (CASTRO, 2001, p.16).
Cabe apontar que, conforme o destaque no quadro supra disposto, despesas com programas suplementares de alimentação não se enquadram no MDE, logo, não podem usufruir dos recursos vinculados à educação, ainda que a oferta da alimentação escolar seja uma realidade em todas as escolas públicas de ensino fundamental no Brasil. Sobre isso, Koposch (2021) chama a atenção para a discussão latente em torno do financiamento da alimentação escolar por parte dos parlamentares, destacando a divergência de opiniões acerca da proposta pelo enquadramento dessas despesas como MDE, onde uma parte defende essa alteração com a justificativa da merenda escolar enquanto rotina da educação básica, ao tempo que outra parte apoia que a União não deve ser a única responsável pela provisão da alimentação escolar, cabendo aos Estados e Municípios usarem de suas cotas para financiá-la, exercendo, para tanto, sua função supletiva.
Isso porque cabe a cada gestor das esferas que compõem a federação a função de suplementar os recursos para aquisição dos gêneros alimentícios perecíveis e não perecíveis da alimentação escolar, ou seja, em face de não haver uma legislação especifica acerca do valor fixado para essa suplementação, a execução do programa e oferta da merenda enquanto produto são mantidas conforme cada gestão local.
Com isso, reafirmamos a importância do PNAE, concordando com Oliveira (2010) quando infere que se trata de um “programa que extrapola o contexto escolar”, defendendo, portanto, a previsão da alimentação escolar nos recursos com vinculação para educação, que deveria receber ainda, para além da suplementação dos recursos federais, “suplementação de outras áreas” e “com valores coerentes com o orçado para atender de forma correta o quantitativo de alunos cadastrados no censo anual”. (OLIVEIRA, 2010, p.53). Assim, nos caminhamos ao fechamento desse artigo, convidando o leitor a uma reflexão acerca das contradições na relação entre a política e o seu financiamento.
Reflexões finais: um olhar para as contradições
Vejamos o art. 212, da CF de 1988, em seu quarto parágrafo: “Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais [...]” (BRASIL, 1988) (grifo nosso). Para Peixinho (2013), trata-se da representação do direito universalizado à alimentação escolar, assegurado pelos governos federal, estaduais e municipais a todos os alunos do ensino fundamental da rede pública de ensino, como também a “renovação das ideias emergentes da atuação do movimento social, em um tempo de retomada da abertura política” (PEIXINHO, 2013, p.911).
No entanto, vale relembrar que essa fonte de recursos sociais foi quem de fato garantiu a continuidade do financiamento dessas ações de alimentação e assistência à saúde dos alunos, uma vez que os mesmos não se enquadram nas despesas MDE, portanto não podem ser beneficiados com recursos advindos da vinculação de impostos para a educação (CASTRO, 2001), o que instiga à contradição, posto que apesar de não haver mudanças no quadro de despesas consideradas MDE, não é incomum encontrar falas de legisladores que admitem a alimentação dentro das escolas como parte das funções pedagógicas da mesma.
Ademais, um destaque para a Emenda Constitucional (EC) nº 59 de 2009, responsável pela redução progressiva5 do efeito da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para a educação. A saber, a DRU, considerada por Pinto (2018, p.852) como a “estratégia mais ostensiva de fuga da vinculação”, foi criada em 1994 com o então nome Fundo Social de Emergência (FSE), sendo alterado para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) em 1996 e, somente três anos depois, substituído para DRU, no qual, apesar das mudanças de nomenclatura, manteve sua fonte principal – 20% sobre a arrecadação de todos os impostos e contribuições da União -, mas excluiu o salário-educação de seus efeitos (PINTO, 2018, p.852). O exposto indica parte das estratégias que afetaram a vinculação de recursos para a educação na história do seu financiamento, usadas como mecanismos de desvio para o “pagamento de juros aos rentistas, que aplica, em títulos da dívida pública”, conforme afirma Pinto (2018, p. 853).
Em se tratando de um país demasiado heterogêneo, não se pode deixar de considerar ainda, o impacto que a grande disparidade nos recursos disponíveis por aluno entre as diferentes regiões do país exerce sobre a qualidade do ensino, principalmente nas regiões com maiores diferenças, como a Região Nordeste, considerando que “boa parte dos municípios brasileiros possui uma capacidade mínima de arrecadação [...]” (PINTO, 2012, p.161).
O mesmo se aplica ao complemento de recursos para a execução local do PNAE, posto que, a depender do município e de sua capacidade econômica, as desigualdades de investimento para a oferta da alimentação escolar ainda seriam uma realidade para as EExs, ou seja, apesar de deter um avanço no texto legal, o desenvolvimento do Programa em termos de “práticas relevantes aos entes federados com baixa arrecadação financeira” não condiz com tais avanços (OLIVEIRA e CARVALHO, 2021, não paginado). Para os autores, esse cenário reforça o palco das contradições existentes no PNAE, a considerar a garantia do padrão de qualidade e equidade disposto no Art. 212, § 3º da CF/1988, ao tempo que o FNDE/MEC não reconhece as disparidades de valores per capita do Programa, tratando de maneira análoga municípios que apresentam índices desiguais.
Sendo assim, é mister emanar o pensamento de Bobbio (1998, p. 604) acerca do reconhecimento de que igualdade de direitos não necessariamente condiz com o acesso a eles, posto que “há necessidade de distribuições desiguais para colocar os primeiros ao mesmo nível de partida; são necessários privilégios jurídicos e materiais para os economicamente não privilegiados”.
É nesse contexto de respeito às características regionais do Brasil que a maior conquista do Programa Nacional de Alimentação Escolar, ocorrida em coerência ao fio temporal seguido até aqui e ainda dentro do cenário das contradições de seu financiamento, se apresenta nos termos apresentados pela Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, bem como às pautas que assinalam o financiamento na segunda década dos anos 2000. Para além do princípio de equidade e atenção aos hábitos e tradições de cada região do país, foram elencados ainda princípios de universalidade, participação social, entre outros eixos norteadores. Tem-se com essa Lei não mais um Programa dentro dos dispositivos legais, mas uma temática completa referente a alimentação escolar brasileira, que representa o início da desconstrução do discurso de política assistencialista e a afirmação de sua importância dentro das políticas educacionais, bem como do seu caráter universal, conforme a CF de 1988 e a LDB de 1996.
Em resumo, a Lei:
Universaliza o PNAE para toda educação básica, ou seja, da educação infantil ao ensino médio, além dos jovens e adultos; define a educação alimentar e nutricional como eixo prioritário para o alcance dos objetivos do Programa; fortalece a participação da comunidade no controle social das ações desenvolvidas pelos Estados, DF e Municípios; formaliza a garantia da alimentação aos alunos mesmo quando houver suspensão do repasse dos recursos por eventuais irregularidades constatadas na execução do PNAE (PEIXINHO, 2013, p.913) (grifo nosso).
Reafirmando seu caráter educacional a partir da Lei em questão, destaca-se a inclusão das modalidades Ensino Médio (EM) e Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como a previsão do Programa no Plano Nacional de Educação (PNE)6 vigente (2014-2024), por meio das ações de atendimento aos alunos das escolas públicas do país em três metas: 7, 9 e 20. Na última, (20.7) surge um novo parâmetro sugerido para o financiamento da educação: “implementar o Custo Aluno Qualidade - CAQ como parâmetro para o financiamento da educação de todas etapas e modalidades da educação básica [...]” (BRASIL, 2014, não paginado) (grifo nosso), compromissado a superar as desigualdades de base e de garantir o padrão de qualidade do ensino no Brasil no que diz respeito os investimentos públicos para a educação pública, por meio da elevação do patamar do PIB, de maneira progressiva.
O CAQ é resultado da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, realizada em 2011 e fruto da influência que uma sociedade civil organizada e comprometida com a educação pública pode gerar na disputa em torno das políticas públicas (XIMENES, 2015). Reaparece no debate do financiamento da educação em 2020, no texto da EC nº 108 do mesmo ano, que estabelece novos critérios para distribuição da cota municipal e torna permanente o FUNDEB, que a essa altura chegaria ao fim de sua vigência7 de dez anos.
Em tese, pode-se dizer que a sua regulamentação é determinante para o critério de qualidade que se almeja com a “elevação dos dispêndios em relação ao PIB”, corroborando a compatibilidade desse critério com o regime de financiamento proposto com o Fundef e aprimorado com o Fundeb (XIMENES, 2015, p. 29). Tem-se com o um denominador comum: uma busca incessante por equidade, seja a nível geral da temática do financiamento da educação, seja especificamente ao contexto da alimentação escolar.
Entretanto, vale lembrar que, mesmo com todo esforço que assegure essa equidade e defesa por parte dos estudiosos do financiamento acerca do CAQ enquanto melhor parâmetro no combate as fragilidades da vinculação mínima de recursos que geram desigualdades educacionais, seus valores, previstos na meta 20 do PNE ainda não estão fixados, portanto, em se tratando diretamente do financiamento da alimentação escolar, permanece o repasse de valores diretamente8 aos entes federados, por parte do FNDE.
Retoma-se, para tanto, o questionamento principal de Oliveira e Carvalho (2021) no que tange a contrariedade do atual formato de financiamento da educação e, por consequência, da alimentação escolar no atendimento do ensino, principalmente na modalidade de tempo integral, considerando que os alunos “deverão ter atendidas, no mínimo, 70% (setenta por cento) das necessidades nutricionais diárias, por meio de, no mínimo, 3 (três) refeições diárias” (BRASIL, 2009, não paginado). Para os autores, como o valor repassado não é ajustado anualmente, o cumprimento dessa tarefa é “quase impossível.
Aliado a contradição do não enquadramento de programas alimentares como despesas MDE, vale o destaque para a preocupação acerca da dependência que a implementação de uma alimentação escolar alinhada as necessidades nutricionais dos alunos têm com o “sucesso da implementação da Meta 20 do PNE 2014/2024, citada anteriormente. Tal preocupação gira em torno, principalmente, do atual cenário político e legislativo, instalado após a PEC do teto dos gastos públicos (EC nº 95/2016), acompanhada das “medidas de contingenciamento de gastos no orçamento do MEC para a educação” no ano de 2019, o que naturalmente dificulta o alcance da meta, bem como da correção e ampliação dos valores per capita do Programa Nacional de Alimentação Escolar (OLIVEIRA e CARVALHO, 2021, não paginado).
Destarte, utilizo das palavras de Gouveia e Souza (2015, p. 60) para encerrar apontando que a trajetória do financiamento da educação brasileira é reflexo de uma “intensa luta social pela materialidade do direito à educação”, tal qual o grande cenário de debates em prol da vinculação de impostos no século 20, que perdura no século 21 na constante busca pelo desenvolvimento da qualidade da educação brasileira, bem como da “ruptura definitiva da desigualdade educacional”, e alimentar, que assola nosso país.