1. Introdução
A formação de professores, nomeadamente de História (ou Estudo do Meio, no caso do 1.º ciclo), surge consagrada na legislação portuguesa desde a implementação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986 (Decreto-Lei n.º 46/86, de 14 de outubro), segundo a qual aquela qualificação para o exercício docente provém “de cursos superiores organizados de acordo com as necessidades de desempenho profissional do respectivo nível de educação e ensino”.
Por sua vez, num momento que se nota cada vez mais conturbado e controverso, na realidade portuguesa, quanto ao número de professores disponíveis face às necessidades das instituições educativas e, por consequência, dos estudantes, parece fazer sentido pensar sobre as circunstâncias prévias ao exercício da profissão, ou seja, as condições de formação inicial, neste caso para uma componente curricular em específico.
Importa, pois, olhar para a realidade a montante e explicitar que rumos educativo-curriculares têm sido seguidos no que concerne à formação inicial de professores, enquanto elemento que pode, também, interferir na escolha de tal profissão a desempenhar. Este artigo procura, assim, responder à seguinte finalidade: identificar e compreender as políticas educativo-curriculares, após o Processo de Bolonha, que enquadram a formação inicial de professores responsáveis pelas componentes de História/Estudo do Meio, em Portugal.
De ressalvar que a Declaração de Bolonha (1999), destinada à criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior, é o ponto de viragem recente mais significativo e com reflexos evidentes na formação inicial dos professores do Ensino Básico e Secundário em Portugal, sendo a partir do mesmo que se consideram as especificidades que, desde 2007, vão marcando essa ação formativa no que diz respeito ao ensino da História.
Após este breve principiar, segue-se um enquadramento conceptual focado nos pontos mais significativos para a discussão posterior, nomeadamente, a docência e suas particularidades, os traços gerais que diferenciam o sistema educativo português e o docente de História/de Estudo do Meio enquanto profissional com certa identidade. As opções metodológicas, depois, clarificam uma espécie de lógica comparativa, com base em critérios definidos, dos dois documentos normativos que juridicamente, e após o mencionado Processo de Bolonha, passaram a enquadrar os cursos de formação inicial de professores - o Decreto-Lei n.º 43/2007 (entretanto revogado) e o Decreto-Lei n.º 79/2014 (em vigor). Posteriormente, analisam-se esses dados recolhidos, porventura com a inclusão de alguns aspetos mais prospetivos. Por último, as considerações finais sintetizam as principais ideias trabalhadas.
2. Apontamentos conceptuais
2.1. Docência: políticas, práticas, formação inicial
Para melhor compreendermos uma realidade educativa nacional contemporânea é insuficiente atentarmos nas particularidades de um sistema educativo único ou reduzirmos a análise à dimensão formativa ou escolar. Partindo das reflexões de Morin (2005), podemos reconhecer a dimensão recursiva no que concerne às relações entre a educação (os seus sistemas, organizações, agentes e práticas) e os contextos sociopolíticos mais alargados. Tal posicionamento implica uma observação mais complexa dos fenómenos educativos, pela necessidade de os enquadrar de acordo com características, estruturas e dinâmicas mais abrangentes, do foro político, cultural, ambiental, económico, entre outros (MORIN; DIAZ, 2017).
Nesta linha de pensamento, assumimos a necessidade de fazer dialogar os estudos ligados à educação com outros âmbitos da realidade e ação humanas. Para tal, importa convocar a descrição feita por Chomsky e Waterstone (2021, pp. 12-13):
o neoliberalismo tem sido um projeto permanente das elites para suprimir as poucas conquistas obtidas pelas outras classes no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Os seus princípios centrais são a eliminação (ou, de preferência, a privatização) de todos os serviços do Estado, um ataque geral à organização laboral, a desregulação maciça de todos os segmentos da economia e a fé absoluta nos princípios do mercado para avaliar todos os elementos da vida social, política, cultural e económica.
Este retrato, embora sintético, permite elucidar sobre aquelas que têm sido as principais correntes de pensamento e intervenção política no contexto internacional. Aliás, este ponto de vista ideológico estabeleceu-se como um dos posicionamentos dominantes no discurso e nas opções educativas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; GIROUX, 2021; TORRES SANTOMÉ, 2017; ZAJDA, 2018). Por esse motivo, pese embora cada país se aproprie destas correntes políticas transnacionais de modo particular (VERGER; FONTDEVILA; PARCERISA, 2019), é fundamental reconhecermos a existência de tendências educativas internacionais com inegáveis impactos na forma como se conceptualiza a docência, a sua profissionalização e as suas práticas.
Na verdade, tais orientações políticas internacionais têm recebido diferentes denominações, como School Autonomy with Accountability [SAWA] (PAGÈS; PRIETO, 2020) ou Global Education Reform Movement [GERM] (SAHLBERG, 2021). Independentemente das nomenclaturas ou linhas de análise que se tomam, de facto é possível identificar um conjunto plural de escolhas que, atualmente, e numa escala transnacional, muito condicionam as realidades educativas. Para o presente trabalho, salientamos cinco:
i) instrumentalização da educação em relação a propósitos económico-laborais. Com as reformas neoliberais, diferentes sistemas educativos recuperaram as teorias do capital humano, atribuindo o primado da educação ao desenvolvimento económico e à formação laboral e desconsiderando, por exemplo, os compromissos democráticos e democratizantes (GIROUX, 2021). Aos sistemas educativos confere-se, assim, a responsabilidade maior de formar os próximos trabalhadores e de garantir o acesso ao conhecimento num sistema capitalista globalizado, que exige novas competências a consumidores e funcionários (SALTMAN, 2018; ZAJDA, 2018);
ii) uma lógica de redução curricular, nos diferentes países. Neste âmbito, componentes curriculares entendidas como economicamente pouco valiosas – como as Ciências Sociais, as Expressões Artísticas ou a educação cidadã – são cada vez menos consideradas, com reduções nos horários e no reconhecimento social, em detrimento da hipervalorização da literacia, da numeracia e, mais recentemente, das STEM (GIROUX, 2021; TORRES SANTOMÉ, 2017);
iii) surgimento, em múltiplos contextos políticos, de ações associadas ao evidence based practice. De acordo com este referencial, as decisões educativas deverão resultar de evidências, tradicionalmente recolhidas e analisadas fora das organizações educativas, e, por vezes, construídas de acordo com propósitos ideológico-políticos específicos, sendo depois prescritas aos diferentes agentes educativos (MAYER, 2021), reduzindo-se a ação docente a uma ação técnica (DUARTE; MOREIRA, 2018);
iv) criação de estruturas de comparação a larga escala – nomeadamente, exames nacionais ou provas promovidas por organizações internacionais, como os testes PISA – que, simultaneamente, se estabelecem como instrumentos de recolha das evidências e de accountability e regulação (TORRES SANTOMÉ, 2017; VERGER; FONTDEVILA; PARCERISA, 2019);
v) promoção de lógicas de competitividade entre países, escolas, professores e estudantes. Em diálogo com este pressuposto, criam-se mecanismos como os rankings ou os vouchers escolares, apresentados como soluções técnicas para a melhoria dos sistemas educativos, mas ignorando-se os alicerces ideológicos que os enquadram (PAGÈS; PRIETO, 2020; SALTMAN, 2018; ZAJDA, 2018).
Sachs (2016) analisa estas opções políticas à luz da sua influência na ação quotidiana de educadores e professores, mencionando três processos principais que a marcam:
i) legitimação de culturas de performance, ou seja, através da definição de indicadores ‘objetivos’ procura-se quantificar a qualidade da ação pedagógica dos profissionais e medir o seu impacto nas aprendizagens dos estudantes;
ii) reforço de práticas de accountability que visam responsabilizar as crianças e os jovens pelo sucesso (e, especialmente, pelo insucesso), culpabilizando os professores, por exemplo, quando os estudantes não atingem determinadas notas em provas escritas de grande escala, como os exames nacionais;
iii) criação de standards (para estudantes e professores) que surgem como um elemento indissociável dos dois eixos acima indicados, quando o poder central pré-define as práticas pedagógicas e os seus impactos nas aprendizagens dos estudantes.
De acordo com Giroux (2021) e Torres Santomé (2017), estas opções derivam, de algum modo, da redução da reflexão e deliberação educativas a uma discussão meramente numérica. Numa espécie de instrução acrítica, a prática pedagógica e o desenho curricular são entendidos como processos meramente técnicos, desprovidos de alicerces e finalidades culturais, éticas, sociológicas ou políticas mais abrangentes.
Em certa medida, tal perspetiva coincide com a análise de Verger e colaboradores (2019). Com efeito, os autores esclarecem que distintas decisões políticas, no domínio educativo, pretendem simplificar a complexidade e multidimensionalidade dos processos e organizações escolares ao cingi-los a “categorias numéricas, para construir a perceção de que problemas educacionais profundos […] podem ser solucionados através do estabelecimento de padrões de conduta pré-definidos, da medição do desempenho dos atores e distribuição de incentivos” (p. 17, tradução própria).
Este enquadramento político, como referem outros autores (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; DUARTE; MOREIRA, 2018; SACHS, 2016), tem profundas repercussões no modo como se entende a docência e, consequentemente, a formação de professores. Ao privilegiarem-se lógicas de standardização e de auditoria, de predefinição da ação didática e de definição externa dos desenhos e práticas curriculares – com reforço das decisões das agências transnacionais e nacionais pela redução da autonomia curricular dos contextos locais –, legitimam-se entendimentos gerencialistas da docência (GAGO, 2018). Assim, nega-se o seu estatuto e conhecimento profissional, tratando-se antes de uma ação subsidiária às decisões heterónomas.
De acordo com estes referenciais, como esclarecem Duarte e Moreira (2018), Flores (2021) ou Mayer (2021), a formação inicial de professores através de cursos de Ensino Superior é preterida por programas como Teach for All ou Teach for Portugal. Nestes segundos, capazes de desprofissionalizar os professores, o seu conhecimento profissional circunscreve-se a técnicas didáticas/instrumentais e ao domínio dos conteúdos curriculares a ensinar, privilegiando-se formações de curta duração e com características predominantemente práticas e pragmáticas. Para Saltman (2018), estas opções coincidem com a ideia de praticismo, pela qual a docência, e a sua formação, é dominada pela aprendizagem das melhores práticas – em alguns contextos, pelo treino –, ao invés de se considerarem na mesma proporção os saberes teóricos, como os oriundos dos campos da sociologia, da filosofia, da política ou da história, que se dedicam à investigação em ou sobre educação, ou os provenientes da própria pedagogia e dos estudos curriculares.
Todavia, fará sentido olhar com maior amplitude para a docência e/ou a educação docente. Efetivamente, como identifica Sahlberg (2021), o foco na profissionalidade dos professores é um aspeto estruturante para os sistemas educativos, com profundos impactos na qualidade do ensino e da aprendizagem, quando permite a cada um analisar a realidade e deliberar de forma mais sustentada. Por consequência, urge a necessidade de entender a profissão docente como uma profissão efetiva, com conhecimentos específicos, que não são de aprendizagem fácil ou meramente técnica e antes decorrem de um diálogo sistemático e refletido, facilitador da interação entre dimensões conceptuais, práticas, éticas e políticas, que se traduz num saber praxiológico (DUARTE; MOREIRA, 2018). Como esclarece Saltman (2018), estes alicerces teóricos são fundamentais para a afirmação e legitimação da agência profissional dos educadores.
Tal pressuposto concorre com a ideia de Sachs (2016), quando a autora defende uma profissão docente ativista, de professores e educadores política e democraticamente conscientes, envolvidos colaborativamente na melhoria dos sistemas educativos e da própria realidade social. Esta ideia dialoga com a proposta de Giroux (2021), para quem os docentes são intelectuais públicos, pois não só perfilham um conhecimento específico da sua profissão, como mobilizam um conjunto mais amplo de fundamentos conceptuais para melhor analisar as realidades político-sociais e, assim, deliberar com maior esclarecimento. Por outras palavras, a ação docente não se restringe a uma instrumentalização instrutiva, mas emerge como um exercício político, curricular e pedagogicamente comprometido.
Portanto, em oposição às perspetivas dominantes (MAYER; 2021; SALTMAN, 2018; ZAJDA, 2018), dever-se-á contradizer qualquer programa profissionalizante circunscrito aos saberes técnicos, defendendo-se uma formação promotora de um abrangente e sustentado marco teórico-cultural, capaz de beneficiar o exercício crítico, reflexivo e eticamente envolvido da profissão
2.2. O professor de História/Estudo do Meio: perfil e competências
Podemos principiar esta subsecção com as palavras de Duarte (2021, p. 203):
Ser professor de História, por exemplo, implica um conhecimento distinto e complementar ao de um historiador. Esse saber desenvolve-se num interativo processo de diálogo entre a experiência profissional (individual e coletiva) e a investigação (formal e informal), resultando numa construção simultaneamente teórica e prática. Tal permite que aquele professor de História, […], mais facilmente analise os fenómenos educativos, os compreenda e, por esse motivo, melhor decida e intervenha.
Na verdade, espera-se que aquele docente adote um certo perfil de investigador social, apto a conhecer não só a epistemologia da História/Estudo do Meio, mas também a da Educação (num sentido mais lato), vivenciando um contínuo desenvolvimento profissional.
Portanto, será, desejavelmente, um professor que concilia, com cariz multifacetado, competências técnicas, intelectuais, políticas, éticas, relacionais, não se restringindo logo às primeiras (BARCA, 2019; DUARTE, 2021; NÓVOA, 2017). Alguém que protagoniza, sem receio, a adaptação das prescrições oficiais a determinado contexto, que confere dimensão didática aos conteúdos mais conceptuais, que faz a mediação entre os conhecimentos prévios e o desenvolvimento do pensamento histórico, por exemplo. Isto porque sustenta a sua intervenção pedagógica “em fundamentos atuais, pertinentes, baseados em pesquisas reais e contextualizadas e não se esgotando, enquanto profissional, em frases feitas, ideias ultrapassadas ou intenções desajustadas” (MOREIRA, 2018, p. 87).
Contudo, importa tomar em consideração que o mesmo professor de História/Estudo do Meio se depara, hoje, com circunstâncias que, por vezes, podem comprometer a autonomia e liberdade subjacente à sua ação. São múltiplas as imposições externas às instituições educativas, associadas, por exemplo, às aprendizagens estabelecidas por ano ou nível de ensino, aos processos avaliativos, aos rankings, o que tende a reforçar o controlo, a prestação de contas e, consequentemente, a emergência de uma atuação mais gerencialista (GAGO, 2018). No que concerne ao processo de ensino e de aprendizagem propriamente dito, tantas vezes os condicionamentos derivam das opções tomadas e baseadas numa lógica de responsabilidade maior do professor na construção do conhecimento depois transmitido, sob a forma de atividades de exposição oral, de sequências de tarefas a priori definidas, de documentos históricos selecionados (e cuja análise é regulada pelas suas questões) (BARTON; LEVSTIK, 2004).
A este propósito, diferentes estudos (GAGO, 2018; MOREIRA, 2018) continuam a dar conta de uma prática docente em parte coincidente com uma visão unidimensional, associada a uma História (ou às Ciências Sociais) que é essencial para o acesso à herança cultural acumulada e capaz de estimular o sentimento patriótico individual e coletivo. Como consequência, desde jovens idades cada um começa a perfilhar uma narrativa única, inerte, aquela que é nuclear, ou mestra, e que circunscreve a assunção de outros pontos de vista, de outras identidades (democráticas), de outras formas de contar tempos diferentes.
Quer isto dizer que, na realidade contemporânea, enformada em incertezas, factos inéditos, (in)verdades discutidas ao instante, outros enfoques formativos fazem sentido, assentes numa “conceção de História transformadora e promotora de um novo Humanismo” (GAGO, 2018, p. 517), além da perceção, também pelos docentes ainda em formação, que as práticas pedagógicas num qualquer contexto e as práticas investigativas no âmbito da Educação Histórica, Geográfica, Etnográfica, … conseguem, com impacto real, interconectar-se (BARCA, 2019). Mais do que fazer uma transposição linear do currículo nacional para o dia a dia da lecionação, mais do que seguir a normatividade do manual ou mais do que uma modesta especialização em técnicas e saberes restritos, um docente precisa, hoje, de explorar a sua capacidade para tomar decisões curriculares diversas, para adotar uma postura consciente e crítica, para ponderar sobre o provisório, o significativo, o possível (BARCA, 2019; DUARTE, 2021; NÓVOA, 2017).
A prática de ensino da História/Estudo do Meio, subjacente à ação de um docente orientado para a formação de cidadãos reais e comprometidos com o mundo atual, fundar-se-á, como afirma Alves (2016, p. 14), “no transformar um quadro conceptual inicial (tácito e, por vezes, preconceituoso) num outro mais sofisticado onde […] competências para pensar historicamente o mundo sejam a marca de um outro Humano”. Com efeito, considerando a dimensão ética que precisa de ser evidente no perfil daquele professor aqui descrito, será mais fácil preconizar uma aprendizagem ligada à desconstrução das identidades, à compreensão esclarecida dos nacionalismos que ocasionam opiniões sobre os problemas sociais existentes em cada época, ao distanciamento face ao presentismo e às visões românticas e idealizadas dos factos e fenómenos (ALVES, 2016; BARCA, 2019; MOREIRA, 2018).
Em jeito de súmula da perspetiva acima descrita, talvez seja conveniente terminar esta subsecção tal como a iniciamos, com uma citação suficientemente esclarecedora de Duarte (2021, p. 191):
alimento a ideia de que os professores são agentes sociais com responsabilidade cidadã acrescida, e, por conseguinte, desenvolvem a sua ação profissional com base numa reflexão intelectual, interativa com a realidade social e os enquadramentos axiológicos, epistemológicos e estéticos de cada qual.
3. Metodologia
Como esclarecemos na introdução, assumimos como finalidade maior deste artigo identificar e compreender as políticas educativo-curriculares, após o Processo de Bolonha, que enquadram a formação inicial de professores responsáveis pelas componentes de História/Estudo do Meio, em Portugal.
Partindo da mesma, e considerando a legislação que foi suportando tal formação superior – Decreto-Lei n.º 43/2007 e Decreto-Lei n.º 79/2014 – definiram-se os seguintes objetivos de investigação:
i) refletir sobre a linguagem utilizada e seus eventuais sentidos;
ii) discutir as conceções de docência que lhes subjazem;
iii) analisar as opções curriculares evidentes nas matrizes dos cursos de formação inicial de professores que habilitaram/habilitam para a docência de História/Estudo do Meio.
Optou-se por um estudo de natureza qualitativa, assente na análise de dados provenientes dos já mencionados documentos normativos. Como identifica Flick (2015), a investigação de cariz qualitativo privilegia a compreensão natural dos fenómenos em análise, não existindo um referencial metodológico único ou de validade universal, sendo antes relevante estabelecerem-se desenhos empíricos coerentes e adequados ao propósito do estudo.
O mesmo autor também esclarece que a pesquisa documental é uma técnica de realce, mas necessariamente assente em critérios definidores do corpus de documentos considerados e sua efetiva relação com os objetivos de investigação. Neste caso em concreto, apoiamo-nos no texto de Flores (2021), pois o mesmo clarifica que, após a implementação das resoluções de Bolonha, os cursos de formação inicial de professores foram juridicamente enquadrados por dois documentos normativos: o Decreto-Lei n.º 43/2007 e o Decreto-Lei n.º 79/2014. Os mesmos tornaram-se, assim, a base da análise levada a cabo.
À semelhança de Ball e colaboradores (2016), consideramos que a política não se restringe ao definido pelo poder central, nem se reduz aos documentos formais provenientes de qualquer um dos níveis de desenvolvimento e ação política. De facto, como aqueles identificam, os agentes – neste caso, os professores – não se limitam a implementar acriticamente o definido pela tutela, mas implicam-se em processos de tradução dos textos e da sua reconfiguração em cada um dos contextos. Ainda assim, para o presente estudo, a análise dos documentos assume-se como especialmente pertinente, porque nos permite compreender as perspetivas do legislador, as prioridades políticas do poder central e as matrizes jurídicas através das quais as Instituições de Ensino Superior desenharam cada um dos cursos profissionalizantes.
Para finalizar esta nota metodológica, explicitamos os critérios de validade considerados. Apoiando-nos em Amado (2017), consideramos: a credibilidade descritiva, associada à descrição rigorosa da letra da lei, para garantir a fidelidade daquilo que se encontra, efetivamente, escrito nos documentos; a credibilidade teórica, através do diálogo sistemático entre os dados provenientes da análise e trabalhos de natureza científica que possibilitam uma interpretação conceptualmente mais fundamentada; a triangulação de investigadores, que visa o cruzamento das perspetivas dos autores do texto (cada autor fez uma leitura prévia individual dos dois documentos incluídos na pesquisa e, depois, os pontos identificados por ambos foram mobilizados na discussão).
Na secção que se segue, apresentamos a análise dos dados que a recolha concretizada nos permitiu, sem negligenciar os propósitos de investigação desde logo assumidos.
4. Análise e discussão dos dados
Em conformidade com os desideratos da investigação, esta secção encontra-se dividida em três pontos: discurso do legislador, conceção de docência subjacente aos documentos analisados e opções curriculares tomadas para os distintos percursos formativos associados à formação inicial de professores.
4.1. Discurso do legislador
Neste ponto, duas dimensões distintas, mas complementares, emergiram da leitura dos textos. Em primeiro, atentamos nas opções discursivas genéricas; depois, analisamos o discurso focado, especialmente, nos enquadramentos jurídicos que explicitam o contexto e/ou que justificam as escolhas normativas.
Relativamente ao primeiro eixo, alguns aspetos são comuns aos dois documentos em discussão. Neste âmbito, tanto em 2007 como em 2014, a legislação enfatiza elementos como os conhecimentos “relevantes para o desempenho de todos os docentes na sala de aula” (n.º 2, artigo 14.º, Decreto-Lei n.º 43/2007), as “exigências do desempenho profissional” (n.º 1, artigo 7.º, Decreto-Lei n.º 79/2014) ou “a avaliação do desempenho dos estudantes” (n.º 1, artigo 24.º, Decreto-Lei n.º 79/2014). Tal opção discursiva, associada à exigência e ao desempenho, concorre com as tendências internacionais focadas em lógicas performativas dos processos educativos, sendo a atuação ou o comportamento dos agentes (professores, educandos, outros profissionais, etc.) um dos pontos predominantes na regulação política (SALTMAN, 2018).
Contudo, há diferenças. Os dois documentos fazem referência ao desempenho, todavia no Decreto-Lei n.º 79/2014 sobressaem conceitos próximos que reforçam esta dimensão, como a ideia de “melhores práticas” ou de valorização de “um efeito mensurável” (preâmbulo) da educação. Estes exemplos, e recorrendo ao trabalho de Ball e colaboradores (2016), evidenciam uma maior aproximação discursiva deste último documento às correntes político-ideológicas que se têm estabelecido como predominantes nos vários contextos geográficos.
Um outro elemento comum remete para um discurso que enquadra a ação política como forma de “reforçar a qualidade” (Decreto-Lei n.º 43/2007, preâmbulo) ou de clarificar “recomendações para a promoção da qualidade do sistema de habilitação profissional para a docência” (artigo 28.º, Decreto-Lei n.º 79/2014). Como esclarecem Pagès e Prieto (2020), diferentes autoridades político-educativas assumem a melhoria da qualidade como uma das prioridades da sua ação legislativa, recorrendo, para tal, a mecanismos normativos. Todavia, como induzem os autores nesse trabalho, a qualidade educativa corresponde a uma ideia plural e, acrescentamos nós, potencialmente difusa. Por esse motivo, Verger e colaboradores (2019) relacionam o descrito com a ideia de retórica ‘garantia de qualidade’, que é mobilizada em documentos jurídicos, contudo “o modo como é esperado que estes instrumentos gerem ganhos de qualidade nem sempre é articulado ou explícito” (p. 8, tradução própria).
Importa, agora, melhor esclarecer a linguagem adotada no âmbito da justificação para o desenho legislativo, uma vez que apresenta diferenças assinaláveis.
Quando se atenta no Decreto-Lei n.º 43/2007, compreende-se que a escolha política centraliza a sua pertinência na qualificação, de acordo com duas lógicas distintas. Por um lado, esclarece que o normativo converge com a finalidade de “superar os défices de qualificação da população portuguesa” (preâmbulo); por outro, o legislador assinala a importância da “qualificação do corpo docente com vista a reforçar a qualidade da sua preparação e a valorização do respectivo estatuto sócio-profissional” (preâmbulo), como forma de melhor responder aos desafios decorrentes da baixa escolarização nacional. A par disso, no mesmo decreto identifica-se a opção por “uma maior abrangência de níveis e ciclos de ensino a fim de tornar possível a mobilidade dos docentes entre os mesmos” (preâmbulo), o que facilitaria a gestão dos recursos humanos nas organizações escolares e um acompanhamento mais continuado dos professores em relação ao mesmo grupo de alunos.
Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 79/2014 contempla distintos enquadramentos. Em primeiro, faz-se referência a “múltiplos estudos internacionais recentes”, não explicitados no geral, com exceção das menções à OCDE e à Eurydice. Esta opção, identificada por vários autores (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; PAGÈS; PRIETO, 2020; TORRES SANTOMÉ, 2017), converge com a opinião sobre os estudos e orientações internacionais, tradicionalmente marcados por perfis ideológicos próximos da corrente dominante, que servem para legitimar opções políticas nacionais e contribuem para uma certa uniformização das estratégias normativas. No mesmo texto privilegia-se um percurso formativo “ajustado aos grupos de recrutamento e que permite reforçar a formação na área da docência” (preâmbulo), o que se consubstanciará na valorização do saber disciplinar dos profissionais. Além disso, integra-se, de forma implícita, a necessidade de “racionalização da oferta formativa” (n.º 2, artigo 19.º, Decreto-Lei n.º 79/2014), visando o ajustamento dos cursos de formação inicial de professores às estruturas pré-existentes. Em certa medida, tal visão coincide com as críticas avançadas por Giroux (2021) ao perfil docente que facilmente integra (e conserva) as características estruturais do sistema educativo, em detrimento de um perfil que possibilite a inovação ou transformação.
4.2. Conceção de docência
Existem múltiplas formas de encarar a identidade profissional dos professores e a sua ação pedagógica. Também nos documentos em estudo identificamos modos distintos de interpretar a docência, o que, implicitamente, conduz a modos distintos de pensar a formação inicial.
Enquanto princípio geral, pelos dois decretos se clarifica que o nível de Mestrado é condição necessária para adquirir habilitação profissional para a docência em diferentes áreas curriculares. E, pese embora se enquadrem diferentes mestrados profissionalizantes, é possível constatar uma lógica de continuidade das políticas educativas. De facto, como opção transversal a ambos os documentos, formaliza-se a Licenciatura em Educação Básica como pré-requisito necessário para prosseguir estudos nos mestrados profissionalizantes associados ao 1.º Ciclo do Ensino Básico (CEB) e à História e Geografia de Portugal (HGP) no 2.º CEB.
Apesar dos pontos comuns, seria inadequado indicar que os dois textos jurídicos partilham conceções sinónimas em relação à docência. Efetivamente, são vários os elementos diferenciadores, dos quais destacamos quatro.
Em primeiro, os perfis formativos. Coincidente com a lógica de flexibilidade discutida em 4.1, o Decreto-Lei n.º 43/2007, no seu artigo 4.º, define quatro Mestrados que qualificariam para a docência de História/Estudo do Meio: i) Mestrado em Ensino do 1.º CEB; ii) Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB; iii) Mestrado em
Ensino do 1.º e 2.º CEB (neste último nível, História e Geografia de Portugal, Português, Matemática e Ciências Naturais); iv) Mestrado em Ensino de História e Geografia, que qualifica para o ensino de História no 3.º CEB e no Ensino Secundário. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 79/2014, no artigo 4.º, prevê, igualmente, quatro mestrados profissionalizantes, mas reconfigura dois perfis: i) Mestrado em Ensino do 1.º CEB; ii) Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB; iii) Mestrado em Ensino do 1.º CEB e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º CEB; iv) Mestrado em Ensino de História no 3.º CEB e no Ensino Secundário. Alterações que coincidem com a ideia já avançada de melhor relacionar os cursos de formação inicial com os grupos formais de recrutamento existentes.
Como segundo aspeto, salientamos a interpretação do conhecimento profissional docente. No Decreto-Lei n.º 43/2007, no seu artigo 14.º, estabelecem-se seis componentes de formação específicas:
i) educacional geral, associada aos saberes educativos “relevantes para o desempenho de todos os docentes […], na relação com a comunidade e na análise e participação no desenvolvimento de políticas de educação e de metodologias de ensino”;
ii) didáticas específicas, relacionadas com os saberes que facilitam o ensino das componentes curriculares específicas;
iii) (iniciação à) prática profissional, implicada nos “processos e desempenhos do quotidiano profissional” e desenvolvida através de práticas de ensino supervisionado, pelas quais os futuros professores concretizam ações como a planificação ou a avaliação;
iv) formação cultural, social e ética, correspondente aos conhecimentos que ultrapassam os saberes disciplinares e se implicam numa análise mais abrangente da realidade social e política contemporânea; facilita “a reflexão sobre as dimensões ética e cívica da actividade docente”;
v) metodologias de investigação educacional, ligadas à capacidade de interpretar, mobilizar e desenvolver investigação;
vi) área de docência, os conhecimentos disciplinares – a serem ensinados – de cada componente curricular.
Por sua vez, na formulação subjacente ao Decreto-Lei n.º 79/2014, no artigo 7.º, identificamos apenas cinco componentes de formação:
i) área da docência, com o propósito de “complementar, reforçar e aprofundar a formação académica, incidindo sobre os conhecimentos necessários à docência nas áreas de conteúdo e nas disciplinas abrangidas pelo grupo de recrutamento”;
ii) área educacional geral, que assenta, à semelhança do anterior, nos saberes necessários à ação docente em sala de aula, nas organizações educativas e com a comunidade. Retira-se a referência à participação nas políticas educativas e sublinha-se “em particular, as áreas da psicologia do desenvolvimento, dos processos cognitivos […], do currículo e da avaliação, da escola como organização educativa, das necessidades educativas especiais, e da organização e gestão da sala de aula”;
iii) didáticas específicas, similar ao anterior, sobre os saberes focados no ensino específico a cada área disciplinar;
iv) (iniciação à) prática profissional, próxima do explicitado previamente, com uma formulação que enfatiza os processos de planificação, ensino e avaliação através de experiências concebidas “numa perspetiva de formação para a articulação entre o conhecimento e a forma de o transmitir visando a aprendizagem”;
v) formação cultural, social e ética, que reconfigura o identificado no outro normativo, optando pela formulação “consciencialização sobre as dimensões ética e cívica da actividade docente” e integrando uma dimensão associada ao “contacto com os métodos de recolha de dados e de análise crítica de dados, hipóteses e teorias”.
Constata-se que, a propósito dos conhecimentos associados à profissão docente, o legislador assume, à semelhança de diferentes autores (DUARTE, 2021; DUARTE; MOREIRA, 2018; MAYER, 2021; NÓVOA, 2017), a existência de um corpus de conhecimento específico que é necessário aprender durante os processos de formação inicial.
Mais ainda, com a transição de 2007 para 2014, o enquadramento jurídico português passou a privilegiar áreas particulares da docência, em concreto o conhecimento disciplinar e o conhecimento didático. Essa valorização é, aliás, identificada no preâmbulo do último documento, quando se alerta “para a importância decisiva da formação inicial de professores e para a necessidade de essa formação ser muito exigente, em particular no conhecimento das matérias da área de docência e nas didáticas respetivas” (Decreto-Lei n.º 79/2014). Por sua vez, confere-se menor relevância a aspetos como as dimensões políticas e investigativas subjacentes à docência, numa tendência que converge com o identificado por Giroux (2021) e Flores (2021) a propósito das realidades internacionais no âmbito da profissão docente.
Essa dimensão investigativa corresponde ao terceiro aspeto que convém referir: a relação da docência com a investigação.
Com o Decreto-Lei n.º 43/2007, o legislador pareceu valorizar a investigação como uma dimensão intrínseca à ação docente, devendo os professores dialogar permanentemente com o conhecimento proveniente de diferentes estudos, e igualmente adotar uma “atitude investigativa no desempenho profissional em contexto específico, com base na compreensão e análise crítica de investigação educacional relevante” (n.º 6, artigo 14.º). Tal perspetiva vai ao encontro da visão de Duarte (2021) e Flores (2021), defensores de uma dimensão investigativa na docência como condição para uma ação mais consciente, problematizadora e promotora do desenvolvimento profissional e organizacional. O Decreto-Lei n.º 79/2014, de outra forma, parece privilegiar uma ideia do docente como mero consumidor de estudos já realizados, em particular quando não considera a investigação educacional como uma componente de formação específica e destaca um “conhecimento profissional resultante da experiência” (n.º 3, artigo 7.º) e não tanto da investigação sobre as práticas letivas.
O último tópico de reflexão é a profissionalidade docente que, segundo Sachs (2016), é relativamente recente e ainda contestada. Também pela leitura das leis selecionadas se identifica certa pluralidade de conceções associadas à profissionalidade docente.
Relativamente ao Decreto-Lei n.º 43/2007, no preâmbulo, salienta-se a importância de o desempenho docente “ser cada vez menos o de um mero funcionário ou técnico e cada vez mais o de um profissional capaz de se adaptar às características e desafios das situações singulares em função das especificidades dos alunos e dos contextos”, na sua dimensão social e educativa. A este propósito, centraliza-se a importância de um exercício profissional que se adapte “às mudanças decorrentes das transformações emergentes na sociedade, na escola e no papel do professor, da evolução científica e tecnológica e os contributos relevantes da investigação educacional”. Um enquadramento que valoriza a ideia de uma identidade profissional próxima do que Sachs (2016) denominou de profissionalismo colaborativo, associada a processos que promovam a renovação de práticas e que, através de dinâmicas de reflexão, facilitem o desenvolvimento profissional.
Ao retomarmos o Decreto-Lei n.º 79/2014, conseguimos mais facilmente identificar elementos que a mesma autora ligou ao desenvolvimento funcional, marcado por características de um profissionalismo controlado e/ou de um profissionalismo complacente. Destaca-se, quanto àquela última denominação, a ideia de transmissão de conhecimento como uma das particularidades da ação docente, o que concorre com a citação anteriormente mobilizada sobre a “articulação entre o conhecimento e a forma de o transmitir visando a aprendizagem” (n.º 1, artigo 11.º). Quanto ao profissionalismo controlado, dialogando com a perspetiva de Giroux (2021), a centralidade atribuída às dimensões didáticas e do conhecimento disciplinar enfatizam os aspetos técnicos da profissão, favorecendo a lógica do professor como técnico (SACHS, 2016).
Nessa linha, no preâmbulo do mesmo documento, afirma-se que “importa […] reforçar instrumentos que propiciem, a médio e longo prazo, ter nas nossas escolas os mais bem preparados, mais bem treinados, mais vocacionados e mais motivados para desenvolver a nobre e exigente tarefa de ensinar”. Com efeito, parece enfatizar-se a conceção técnica da profissão, em particular quando se elenca o treino como uma ação necessária para o desenvolvimento profissional.
Além disso, e como também reconhece Torres Santomé (2017), faz-se sobressair uma dimensão vocacional da profissão docente, emergindo a docência quase como chamamento pessoal e individual, pelo que “de nada servem as teorias ou o conhecimento construído com base na experiência partilhada e refletida dos professores” (p. 30).
4.3. Opções curriculares
O último ponto de análise remete para as opções curriculares, em sentido estrito, notórias nos decretos em discussão. Ao longo do texto fomos dando conta de algumas dessas escolhas, porém orientamo-nos, agora, para as indicações específicas sobre a estrutura curricular dos cursos de formação de professores.
Desde logo, salientamos abaixo, na Tabela 1, dados pertinentes provenientes do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 43/2007 e dos artigos 13.º, 14.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 79/2014:
Decreto-Lei 43/2007 | |||||
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Curso | Área Educacional Geral | Didáticas Específicas | Iniciação à Prática Profissional2 | Área de docência | Total |
Mestrado em Ensino do 1.º CEB1 | 20 a 30 créditos | 30 a 40 créditos | 45 a 55 créditos | 120 a 130 créditos3 | 240 créditos |
Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB1 | 20 a 30 créditos | 40 a 50 créditos | 45 a 75 créditos | 120 a 140 créditos3 | 270 créditos |
Mestrado em Ensino do 1.º e 2.º CEB1 (valores mínimos) | 19,5 a 26 créditos | 33 a 44 créditos | 55,5 a 74 créditos | 142,5 a 165 créditos | 270 a 300 créditos |
Mestrado em Ensino de História e Geografia no 3.º CEB e Secundário (valores mínimos) | 22,5 a 30 créditos | 22,5 a 30 créditos | 36 a 48 créditos | 4,5 a 6 créditos4 | 90 a 120 créditos |
Decreto-Lei 79/2014 | |||||
Mestrado em Ensino do 1.º CEB1 (valores mínimos) | 21 créditos | 36 créditos | 47 créditos | 143 créditos | 270 créditos |
Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB1 (valores mínimos) | 21 créditos | 51 créditos | 63 créditos | 143 créditos | 300 créditos |
Mestrado em Ensino do 1.º e Português e HGP no 2.º CEB1 (valores mínimos) | 21 créditos | 45 créditos | 63 créditos | 152 créditos | 300 créditos |
Mestrado em Ensino de História no 3.º CEB e Secundário (valores mínimos) | 18 créditos | 30 créditos | 42 créditos | 18 créditos | 120 créditos |
1 os créditos integram as indicações associadas à Licenciatura em Educação Básica, que é um pré-requisito de acesso 2 contempla as indicações associadas à Iniciação à Prática Profissional e/ou à Prática educativa/de ensino supervisionada 3 mínimo de 30 créditos em Estudo do Meio (que envolve Ciências da Natureza e História e Geografia de Portugal) 4 para ingressar no mestrado é necessária concluir uma Licenciatura que contenha pelo menos 50 créditos em História e 50 créditos em Geografia 5 para ingressar no mestrado é necessária concluir uma Licenciatura que contenha pelo menos 120 créditos em História |
Fonte: elaboração própria.
Há dois elementos que se destacam.
Com a transição do Decreto-Lei n.º 43/2007 para o Decreto-Lei n.º 79/2014, houve uma diminuição da autonomia curricular das instituições de Ensino Superior. Embora com o documento jurídico mais recente somente se estabeleçam créditos mínimos para cada uma das componentes de formação, na realidade, a margem geral de autonomia curricular4, em cada curso, no máximo é de 10% – Mestrado em Ensino do 1.º CEB e Mestrado em Ensino de História – e no mínimo é de 6,3%, no Mestrado em Ensino do 1.º CEB e Português e HGP no 2.º CEB. Com o normativo anterior, as instituições formadoras de professores tinham uma gestão mais flexível da totalidade dos mestrados e, apenas para aqueles que integram a formação para o 1.º CEB, dispunham de margens de autonomia mais significativas para cada uma das componentes. Uma alteração que vai ao encontro do analisado por Giroux (2021), quando este alerta que as instituições de Ensino Superior vão sendo condicionadas na sua autonomia pedagógica e curricular.
O outro elemento relaciona-se com a natureza das componentes de formação. Embora os dois documentos reconheçam uma componente associada à Formação na área cultural, social e ética – conforme explicado em 4.2 –, na distribuição curricular não são definidas componentes específicas para este domínio. De acordo com o n.º 4, do artigo 15.º, do Decreto-Lei n.º 43/2007, essa dimensão integra-se naquelas que dizem respeito à Formação Educacional Geral e à Iniciação à Prática Profissional. Já com o Decreto-Lei n.º 79/2014, no n.º 2 do seu artigo 7.º, estabelece-se que a formação de natureza cultural, social e ética “é assegurada no âmbito das restantes componentes de formação”. Face ao exposto, concordamos com a análise de Flores (2021), porquanto a autora afirma que a formação inicial de professores, em Portugal, “no contexto Pós-Bolonha, inclui uma dimensão ética, social e cultural, [que] contudo necessita de ser reforçada” (p. 151).
Depois, assumindo a premissa que a carga atribuída a cada uma das componentes representa, implicitamente, o valor e a importância relativa que o legislador lhe atribuiu (DUARTE, 2021), convém atentar no modo como as mesmas são normativamente consideradas. Recuperando a Tabela 1, constatamos que, com o Decreto-Lei n.º 79/2014, houve um reforço das componentes associadas à área da docência – no Mestrado em Ensino da História, por exemplo, tal é evidente quando se observa o número de créditos mínimos específicos em História como pré-requisito de acesso. A componente associada à formação educacional geral, no período de sete anos em estudo, consolidou-se como aquela com menor espaço curricular, com paulatina, por vezes significativa, diminuição da sua representação.
Para melhor se perceber essa transformação, leia-se a Tabela 2:
Componentes de formação (frequência relativa mínima) | Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB1 (Decreto-Lei 43/2007) | Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB1 (Decreto-Lei 79/2014) | Ensino da História e da Geografia no 3.º CEB e no Ensino Secundário (Decreto-Lei 43/2007) | Ensino da História no 3.º CEB e no Ensino Secundário (Decreto-Lei 79/2014) |
---|---|---|---|---|
Margem geral de autonomia curricular | 13% | 7,3% | 5% | 10% |
Área Educacional Geral | 7,4% | 7% | 25% | 15 % |
Didáticas Específicas | 14,8% | 17% | 25% | 25 % |
Iniciação à Prática Profissional | 20,4% | 21% | 40% | 35% |
Área de Docência Pré-requisitos |
44,4% | 47,7% | 5% | 15% |
- | - |
50 créditos de História 50 créditos de Geografia |
120 créditos de História | |
1 os créditos integram as indicações associadas à Licenciatura em Educação Básica, que é um pré-requisito de acesso |
Fonte: elaboração própria.
De forma genérica, os dados parecem convergir com o discutido em páginas iniciais, notando-se a progressiva valorização dos conhecimentos didáticos, não raras vezes entendidos como um saber-fazer técnico, e dos saberes específicos da área disciplinar (MAYER, 2021; SALTMAN, 2018). Consequentemente, percebe-se uma desvalorização das componentes de educação geral, que, como esclarece Giroux (2021), são aquelas que tradicionalmente têm maior implicação na análise crítica da realidade política e social.
5. Considerações finais
Dois diplomas principais enformam, no século XXI, a formação inicial docente – o Decreto-Lei n.º 43/2007 e o n.º 79/2014. E a partir dos mesmos procuramos identificar e compreender as políticas educativo-curriculares, após o Processo de Bolonha, que enquadram a formação inicial de professores responsáveis pelas componentes de História/Estudo do Meio, em Portugal.
Na sequência da análise concretizada, percebemos os desafios que se colocam, atualmente, àquele processo formativo, também conhecendo o cenário real que nos envolve no que concerne às políticas educativas definidas.
A realidade, hoje, está diagnosticada: corpo docente em decréscimo, aceitação de soluções de recurso com implicações na preparação dos professores, desarticulação entre as exigências contextuais e a organização da formação inicial ou as práticas de recrutamento no Ensino Superior, a (reduzida) atenção conferida aos mestrados em ensino. Constatamos, mais ainda, uma tendência, tanto no discurso político como nas opções curriculares, de valorização das dimensões mais técnicas da profissão, fazendo sobressair os conhecimentos didáticos e os conhecimentos disciplinares e atribuindo uma importância secundária aos domínios mais abrangentes da reflexão pedagógica, como a formação educacional geral, a componente investigativa e as áreas culturais, sociais e éticas.
O preâmbulo do quadro legal de 2007 esclarecia que a “prioridade política é a melhoria da qualidade do ensino, sendo agora possível reforçar a exigência nas condições de atribuição de habilitação profissional para a docência”. Se a população escolar diminui, se os professores devem ter uma preparação mais rigorosa e se as estatísticas apontavam para um corpo docente naturalmente mais envelhecido, algo entre 2007 e 2022 falhou em relação à capacidade prospetiva dos responsáveis pela educação. A este propósito, já em 2014 se reconhecia “o valor e o impacto da docência na qualidade da educação, [sublinhava–se] que a preparação de educadores e professores [devia] ser feita da forma mais rigorosa e que melhor [valorizasse] a função docente”. Apontar hoje (2022) para soluções que não salvaguardem este princípio essencial, será reconhecer que podemos assumir uma perda de qualidade na educação, aceitando que, face aos problemas diagnosticados, a formação inicial pode ser ‘menos rigorosa’, o que naturalmente implica uma desvalorização da função docente. Estaremos exatamente no caminho contrário àquele que projetamos em 2014.
Por isso, os desafios implicam dignificar a profissão docente, criar uma efetiva estabilidade para o seu exercício, não abdicar da qualidade da formação inicial (e contínua), investir numa holística curricular e programática (das diferentes componentes) que tenha presente as mudanças mais contemporâneas na forma de ser, estar e comunicar, dar coerência às propostas ‘disciplinares’ em função de um perfil de cidadão democrático, capaz de compreender a realidade presente e de agir conscientemente em relação à diversidade, imprevisibilidade e mudança.
De acordo com o relatório da UNESCO (2021), “a humanidade tem futuros comuns para forjar futuros pacíficos, justos e sustentáveis [e, para isso] é preciso transformar a própria educação” (p. 187). Como tal, necessitamos de desenvolver uma reflexão sistemática em torno das opções políticas que enquadram a formação dos educadores, para que estes possam implicar-se nessa (re)construção de novos futuros.