Introdução
Este texto foi elaborado no âmbito de uma pesquisa de doutorado3 cujo foco foi a percepção do professor sobre uma avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), aplicada em 2019 para estudantes do 2º ano do ensino fundamental, e a devolutiva do resultado de Matemática, em termos de desafios e possibilidades para o uso na prática pedagógica. O estudo pautou-se na concepção de percepção do filósofo Maurice Merleau-Ponty expressada na obra Fenomenologia da Percepção de 1999. Para conciliar o objeto do estudo, a percepção, com a temática avaliação em larga escala, adotou-se a triangulação como meio para alcançar o objetivo da pesquisa.
A preocupação acerca dessa temática, avaliação em larga escala, tem estado presente nas agendas de discussões brasileiras desde a criação do Saeb em 1990. Observa-se na literatura a existência de controvérsias quanto às influências que essas avaliações vêm exercendo sobre os sistemas de ensinos, as redes públicas e privadas, as escolas, os professores, os estudantes, os currículos, as políticas educacionais, o que sugere indicativo que essa temática continua presente nas agendas de debates.
As escolas, os professores e os estudantes estão diretamente alcançados pelas políticas educacionais. As escolas são as mediadoras, e os professores, os viabilizadores dessas políticas junto aos estudantes.
A nova avaliação do Saeb aplicada para estudante do 2º ano do ensino fundamental, de agora em diante Saeb 2EF, abrange um público ainda em fase de alfabetização. As avaliações anteriores, aplicadas para estudantes dessa etapa escolar, a Provinha Brasil e a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), tinham características distintas. As particularidades do Saeb 2EF provocam inquietações, dentre elas, a respeito de como os professores alfabetizadores estão assimilando essa nova avaliação do Saeb aplicada para os estudantes do 2º ano do ensino fundamental.
O objetivo do estudo é analisar a opinião do professor acerca da avaliação do Saeb 2019, aplicada para estudante do 2º ano do ensino fundamental, em relação a possibilidade dessa avaliação ter influenciado de alguma forma a prática pedagógica, no período que antecedeu a sua aplicação em 2019. Este artigo pretende contribuir com o debate acerca da influência do resultado do Saeb, particularmente o aplicado para o 2º ano do ensino fundamental, na prática docente.
A revisão de literatura para este trabalho está restrita aos estudos brasileiros por se tratar de uma avaliação em larga escala com características metodológicas específicas inauguradas pelo Brasil, com aplicação de teste cognitivo para estudantes da etapa de educação que se encontra em processo de alfabetização.
Além dessa introdução, este artigo tem uma seção que apresenta um breve contexto de criação e mudanças ocorridas nas avaliações em larga escala do Saeb. Na seção seguinte, é apresentado o percurso metodológico em que se deu o estudo. A próxima seção, refletindo com os professores, expõe os resultados e as discussões. O texto finaliza com as considerações finais.
Breve histórico da criação do Saeb e das mudanças estruturais nas avaliações
No período de 1985-1986 o cenário brasileiro era de redemocratização. Com a nova Constituição Federal de 1988, abriu-se espaço para projetos contemplando ações voltadas à democratização (PESTANA, 1998). A década seguinte, 1990, foi um período de reformas do Estado, de parcerias entre governo federal e sociedade civil, com importantes ações do governo na educação ao longo da década.
Como pauta de discussão à época, estavam a inexistência de dados sobre o rendimento escolar dos alunos em nível de sistema de ensino e os fatores a ele associados (GATTI, 2009, 2014), bem como a ausência de uma política de valorização do magistério nos sistemas estaduais e municipais de ensino. Estes eram problemas que requeriam soluções. Era preciso obter informações sobre a educação ofertada nas escolas brasileiras.
Segundo Pestana (1998, 2016), o sistema de avaliação da educação foi criado a partir da ausência de informação sobre as diversas realidades educacionais brasileiras, da necessidade de articulação e construção de consenso para a tomada de decisão coletiva a respeito dos rumos da educação brasileira.
Desde a sua criação em 1990, o Saeb vem passando por mudanças. Sob a incumbência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Saeb tem produzido dados e informações sobre a educação básica brasileira. Os resultados das avaliações são entregues à sociedade com o intuito de subsidiar tomada de decisão de gestor do sistema educacional brasileiro em prol da educação, no entanto essas avaliações estão envoltas em controversas.
De um lado, pesquisadora como Pestana (1998, 2016) refere-se à entrega dos resultados das avaliações do Saeb a gestores e à sociedade o sentido de transparência, como prestação de contas em virtude dos investimentos públicos na educação, financiamentos de programas e projetos.
Do outro lado, estudiosos como Ribeiro, Bonamino e Martinic (2020) vinculam a avaliação em larga escala à política de prestação de contas com o sentido de regulação e a responsabilização das instituições e indivíduos pelos resultados.
Posicionamentos atinentes ao termo accountability, que, mesmo não tendo uma tradução específica em português, remete à noção de responsabilização, prestação de contas. Segundo Vianna (2014, p. 20), accountability com o sentido de “responsabilidade em educação” ocorreu pela primeira vez na década de 1960 por influência de Robert Kennedy, senador estadunidense, que cunhou o sentido de cobrar das escolas a responsabilidade pela qualidade do ensino em virtude dos investimentos feitos em políticas educacionais. Rothen (2018, p. 19) sugere que se trata de “cobrar das escolas a responsabilidade pelos resultados das políticas destinadas à comunidade negra”, políticas educacionais na área da educação compensatória, social e racial.
Para Fernandes e Gremaud (2020, p. 1107), “por accountability educacional, entende-se o processo de avaliar o desempenho de sistemas educacionais, escolas e professores individuais com base em medidas de desempenho dos alunos”, concepção que vem sendo muito difundida no âmbito das políticas educacionais brasileiras.
No entanto, o Saeb, sistema que utiliza um conjunto de instrumentos – matrizes de referências para os testes cognitivos e a matriz de referência para o questionário contextual –que permitem obter informações sobre a oferta da educação básica brasileira, possibilita agregar as informações, compor indicadores e subsidiar ações em prol de políticas educacionais.
Tomando os efeitos das divulgações dos resultados das avaliações em larga escala aplicadas no Brasil, Bonamino e Sousa (2012) as classificaram em três gerações. A primeira geração compreendeu o período de criação do Saeb, visto que “no Brasil, avaliações de primeira geração são aquelas cuja finalidade é acompanhar a evolução da qualidade da educação”, assim foi classificada como uma política de responsabilização branda ou low stakes, por enfatizar “o caráter diagnóstico da qualidade da educação ofertada, sem atribuição de consequências diretas para as escolas e para o currículo” (BONAMINO; SOUSA, 2012, p. 375).
Em 2005, o Saeb passa por reestruturação e adota dois processos, um amostral, com a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb), e outro censitário, com a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), nacionalmente conhecida como Prova Brasil.
As mudanças ocorridas no Saeb possibilitaram a divulgação dos resultados por escola, fato que marca a passagem da avaliação do Saeb de primeira geração, para avaliações de segunda geração. Porém mantidas na classificação de low stakes, pois, mesmo considerando que as “avaliações de segunda geração, por sua vez, contemplam, além da divulgação pública, a devolução dos resultados para as escolas, elas não lhes trazem ‘consequências materiais’” (BONAMINO; SOUSA, 2012, p. 375, grifo das autoras).
Considerando outro aspecto de análise, Fernandes e Gremaud (2020, p. 1107, grifo dos autores) classificam de “accountability fraca”, pois “se limitam a divulgar os resultados dos estudantes por escolas e sistema educacional”.
Porém as mudanças ocorridas no Saeb, em 2005, possibilitaram, em 2007, a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A vinculação do Ideb ao Saeb abriu porta para a entrada da terceira geração das avaliações, visto que a entrega de resultado por escola possibilitou seu uso em diferentes políticas de gestão.
Bonamino e Sousa (2012, p. 375) apontam que: “Avaliações de terceira geração são aquelas que referenciam políticas de responsabilização forte ou high stakes, contemplando sanções ou recompensas em decorrência dos resultados de alunos e escolas”, permitindo a inclusão de mecanismos de controle, com normas explícitas e metas para cumprimento, gerando consequências para escolas e professores. No mesmo sentido, segundo Fernandes e Gremaud (2020, p. 1107, grifo dos autores), o uso dos resultados das avaliações em larga escala atrelados às políticas de premiação, sanções e assistência permite a “accountability forte”.
No entanto, ainda que a expansão de uso dos resultados dessas avaliações abarque outras finalidades, a literatura vem mostrando que ainda não são utilizados pelas escolas para moldar sua ação educativa (ALAVARSE; MACHADO; ARCAS, 2017). No mesmo sentido, Almeida (2001, p. 122) afirma que, mesmo existindo dados sobre os sistemas educacionais e um número significativo de informações disponíveis, “uma das principais razões para o não-uso efetivo dessas informações” está relacionado com o fato das informações, dados e indicadores não serem considerados como centrais para a tomada de decisão na área da educação.
Em 2018, o Saeb passou novamente por mudanças estruturais para acolher uma avaliação componente do processo de monitoramento do Programa Mais Alfabetização4. A avaliação do Saeb para 2º ano do ensino fundamental foi instituída pela Portaria nº 366, de 29 de abril de 2019 (BRASIL, 2019a), com a finalidade de avaliar o processo de alfabetização alinhado ao monitoramento do programa.
Em consonância com o preconizado na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as matrizes de referências do Saeb 2EF foram elaboradas contemplando testes cognitivos para as áreas de Língua Portuguesa e de Matemática. A avaliação, Saeb 2EF, foi aplicada pela primeira vez em 2019, desenhada para ser amostral, contemplando estudantes de escolas das redes públicas e privadas localizadas em zonas urbanas e rurais das 27 unidades da Federação.
Como diferencial metodológico de aplicação de uma avaliação em larga escala, o Saeb 2EF da área de Matemática teve a matriz de referência alinhada à BNCC, o teste cognitivo contou com itens de múltipla escolha e de resposta construída, uma novidade no âmbito do Saeb, em testes de Matemática aplicado para estudantes em etapa de alfabetização.
Essa particularidade dos estudantes em etapa de alfabetização requer aplicação da avaliação com auxílio de mediador na leitura do teste. Isto é, o aplicador lê para os estudantes as instruções sobre o que deve ser feito em cada item e o aluno marca a resposta em seu próprio caderno de teste. Esse procedimento é necessário visto que, por vezes, os estudantes ainda não leem com autonomia, estão em processo de alfabetização, apropriando-se do sistema de escrita alfabética, em desenvolvimento de outras habilidades de leitura e escrita e envolvidos em práticas diversificadas de letramento (BRASIL, 2019b).
O Saeb 2EF, na perspectiva a qual foi desenhado, com aplicação amostral, não impacta no cálculo do Ideb (BRASIL, 2019b), não sugere política de premiação ou sanção. Contudo permanece a indagação quanto aos resultados serem utilizados pelas escolas para moldar sua ação educativa.
Contexto do estudo
Este estudo, de abordagem qualitativa (GATTI; ANDRÉ, 2011) e exploratória (FIORENTINI; LORENZATO, 2006), adotou no processo de investigação o questionário online com perguntas abertas e a entrevista por videoconferência.
O estudo foi autorizado pela Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF) para a realização da pesquisa nas escolas sob sua competência e teve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (CEP/CHS), da Universidade de Brasília. Cumprindo os aspectos éticos e cuidados referentes ao uso de instrumento para coleta de dados com humanos, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) entre pesquisador e participante do estudo.
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas: a primeira, com o preenchimento do questionário online por docentes que estavam lecionando ou já trabalharam com o 2º ano do ensino fundamental em escola pública da SEEDF; a segunda etapa, a entrevista por videoconferência, feita exclusivamente com os professores participantes da primeira etapa do estudo.
No questionário online, indagou-se sobre a opinião do professor acerca da avaliação do Saeb 2019, aplicada para os estudantes do 2º ano do ensino fundamental. Na entrevista por videoconferência, foi perguntado em relação à influência do Saeb 2EF na prática docente, em específico ao período que antecedeu a aplicação da avaliação em 2019.
Para verificar possíveis falhas, o instrumento questionário passou pela análise crítica de quatro professoras que já lecionaram para o 2º ano do ensino fundamental em algum momento de suas carreiras e de uma professora da área de matemática, todas integrantes do grupo de pesquisa X. Após a análise detida das contribuições recebidas, as correções sugeridas foram implementadas no questionário e, em seguida, validadas pelas cinco professoras.
De igual forma, o roteiro semiestruturado da entrevista foi submetido a uma leitura crítica para o refinamento das perguntas e a um pré-teste, as mesmas cinco professoras integrantes do grupo de pesquisa X avaliaram o questionário. O instrumento foi submetido a quatro pesquisadores do Inep, especialistas em avaliação em larga escala, para ser validado.
A coleta das informações ocorreu no período da pandemia5, de fevereiro a junho de 2021, o uso do ambiente virtual revelou ser uma opção para o momento, além de uma tendência para coleta de dados (MERLI; NOGUEIRA; POWELL, 2020; OLIZKO; SAIENKO, 2020; SCHMIDT; PALAZZI; PICCININI, 2020).
A estratégia adotada para alcançar os professores, considerando o momento da pandemia, foi por intermédio do endereço de correio eletrônico (e-mail) das 14 Coordenações Regionais de Ensino (CRE)6 para a divulgação do link da homepage do questionário enviado às escolas. Responderam ao questionário online 71 docentes, e destes, aceitaram participar da entrevista por videoconferência 26 professoras. Considerando as restrições impostas pela pandemia, neste estudo, não foram estabelecidos critérios para a seleção de participantes, acolheu-se a todos que aceitaram participar. Além do que, o interesse é a amplitude da compreensão, o quantitativo de participantes é menos importante que a qualidade das informações.
Os professores participantes do estudo estavam lotados em 49 escolas distribuídas entre as 14 CREs da SEEDF, sendo 41 escolas localizadas em área urbana e oito, em área rural. Três escolas são Centros de Atenção Integral à Criança (Caic), nove são Centros de Ensino Fundamental (CEF) e 37 são Escolas Classe (EC).
O fio condutor para a análise das informações tem sustentação na fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty (1999), nas três etapas subsequentes: descrição, redução e interpretação, processo que consiste na “identificação, no discurso do sujeito de pesquisa, de pontos relevantes que permitem a elaboração das unidades de significados” (p. 64), agregação por tematização “que lhe dão seu sentido” (p. 388), permitindo “explicar-se suas impressões" (p. 62). As respostas dos professores foram analisadas e agregadas por tematizações e significações representativas.
Refletindo com os professores
Os professores respondentes do questionário online (71 docentes) estão na faixa etária de 40 a 49 anos de idade; a maioria é do sexo feminino e dois são do sexo masculino; todos cursaram o nível superior; mais da metade (41 docentes) fizeram curso de especialização (lato sensu) e poucos cursaram (stricto sensu) mestrado (três) e doutorado (um). O tempo de exercício no magistério está na faixa de 21 a 25 anos, e o de experiência docente no 2º ano do ensino fundamental, de 1 a 5 anos.
A faixa etária dos professores participantes neste estudo revela conformidade com as diferentes pesquisas que apontam a idade dos professores como indício de envelhecimento dos profissionais da carreira docente (CARVALHO, 2018a; GATTI; BARRETO, 2009). Corrobora também em relação à predominância das mulheres nas salas de aula do ensino fundamental (CARVALHO, 2018a, 2018b; GATTI; BARRETO, 2009; GATTI et al., 2019). Em relação à formação e qualificação docente, está em conformidade ao estudo de Carvalho (2018a) para o qual a grande maioria dos professores brasileiros dos anos iniciais tem formação superior, muitos cursaram especialização lato sensu e poucos fizeram curso stricto sensu. De igual forma, neste estudo, os professores contam tempo de magistério compatíveis à faixa etária indicadora de experiência docente, segundo Carvalho (2018a), a idade do professor é indicativo do tempo de experiência, o que mostra ser um profissional com certa experiência lecionando na educação básica.
Esses resultados estão relacionados à amostra de participantes no estudo, ou seja, aos professores respondentes do questionário online. A inserção de outros docentes ou subtração daqueles considerados no estudo pode alterar significativamente os resultados encontrados.
Perguntados no questionário online sobre o que pensam acerca da avaliação do Saeb 2019 aplicada para os estudantes do 2º ano do ensino fundamental, os professores expuseram as suas opiniões conforme apresentadas na Quadro 1. As respostas estão agrupadas por significações representativas e organizadas por ordem decrescente de recorrência.
Fonte: Elaboração dos autores, 2022.
Essas opiniões corroboram o que a literatura da área tem registrado. Por exemplo, Pestana (2016), ao analisar a trajetória do Saeb, aponta que o sistema de avaliação no Brasil é importante fonte de diagnóstico e de informações que subsidiam o processo de formulação e implantação das políticas públicas educacionais; Ribeiro, Bonamino e Martinic (2020), ao discutir o modelo de duas iniciativas governamentais, a política de educação para os anos iniciais do ensino fundamental de Marília, São Paulo, e o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), do Ceará, afirmam que os docentes, ao mesmo tempo que reconhecem a importância dos resultados das avaliações para o ensino, consideram haver trabalho exaustivo com essas avaliações e que elas acabam por simplificar o que os estudantes têm a mostrar em termos de aprendizagem.
Essas opiniões podem estar evidenciando o pouco diálogo e as muitas contradições em torno do potencial dessas avaliações e seus possíveis desdobramentos, tanto no sentido de contribuir para a educação quanto de afetá-la negativamente, a depender da percepção e da visão que se tem sobre os limites, as possibilidades e os fins de uso dessas avaliações na gestão de políticas educacionais.
Importante destacar o fato de haver relatos de professores acerca da ciência da aplicação da avaliação Saeb 2EF em 2019 por meio deste estudo, indicativo que as opiniões desse grupo de professor estão pautadas em suas experiências com a Provinha Brasil e/ou a ANA, avaliações aplicadas para a etapa de alfabetização, mas com características e objetivos distintos do Saeb 2EF. Outra evidência a ser considerada é o fato da aplicação ter sido em caráter amostral, o que pode significar delimitação na abrangência de escolas e de participantes.
Dos 71 docentes que responderam ao questionário online, participaram da entrevista por videoconferência 26 professoras. Indagadas em relação ao Saeb 2EF influenciar, de alguma forma, a prática pedagógica no período que antecedeu a aplicação em 2019, as respostas das professoras se deram conforme particular percepção sobre as avaliações em larga escala que podem ser exemplificadas nas falas a seguir. Para preservar o anonimato das participantes da entrevista, os nomes foram substituídos por algarismos arábicos. Os relatos estão agregados por tematizações representativas e apresentados por ordem decrescente de recorrência.
Docentes (sete) relataram que orientaram os estudantes no sentido de familiarizálos com os termos do teste cognitivo: “A primeira vez que eles participaram, eles estavam muito despreparados, eles não sabiam nem marcar o gabarito. Então, assim, fez uma orientação com os alunos” (Professora 2).
É importante destacar no relato acima o claro objetivo de uma prática para familiarizar os estudantes com a estrutura do teste, que em nada se parece ou se compara com o treino de alunos como estratégia para obter melhores resultados na avaliação, a exemplo do descrito por Machado e Pereira (2020) no estudo de revisão de literatura sobre as implicações das avaliações em larga escala nas escolas de educação básica.
A iniciativa descrita pela Professora 2 trata-se de um auxílio às crianças com idade entre 7 e 9 anos, iniciando a etapa de escolarização (2º ano do ensino fundamental), que serão expostas pela primeira vez a uma avaliação dessa natureza, com aplicador externo, estrutura e condições estranhas ao seu cotidiano; nessas condições, o uso de “familiarizar o estudante com a avaliação” mostra-se ser apropriado.
Participantes (quatro) expuseram indícios de haver treino dos estudantes para participarem da avaliação, com vistas a melhorar o Ideb: “Elas acabam influenciando. Já entra assim [algum gestor da escola]: precisa subir o Ideb, vamos subir o Ideb da escola” (Professora 4).
As professoras indicaram haver pressão sobre o corpo docente para melhorar o Ideb da escola, fato que revela a presença do processo de accountability nessas instituições. Esse tipo de comportamento da gestão provoca constrangimento às docentes, não pode ocorrer. Trabalhar primando pelo Ideb revela procedimento e uso equivocado dos resultados das avaliações pela instituição, o que acarreta impactos negativos a toda a comunidade escolar, conforme já relatado pela literatura (BONAMINO; SOUSA, 2012; FERNANDES; GREMAUD, 2020).
É preciso elucidar o equívoco cometido pelas docentes, o Saeb 2EF não impacta no cálculo do Ideb (BRASIL, 2019b). Caso fosse classificado, em termos de Fernandes e Gremaud (2020), seria considerado accountability fraca e, segundo Bonamino e Sousa (2012), low stakes.
Algumas professoras (três) disseram usar os resultados das avaliações para reorganização do trabalho pedagógico: “A gente olha o resultado de anos anteriores também, para a gente poder conseguir nortear o nosso trabalho” (Professora 1).
Essa declaração permite supor que há, de alguma forma, reflexão sobre os resultados do desempenho da escola com vistas ao planejamento pedagógico. Segundo Gatti (2009, 2014), as avaliações externas passaram a fazer parte da rotina nas redes de ensino, ainda que a impressão de sua contribuição seja vaga, há a percepção de que trazem alguma contribuição.
Importante registrar que os relatos das professoras sobre usarem resultados de avaliações de anos anteriores para nortear o trabalho em sala de aula, auxiliar aluno a sanar dificuldades ou familiarizar os estudantes com a estrutura do teste mostram fortes indícios de que as docentes se referiam à Provinha Brasil, ANA ou Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), nacionalmente conhecida como Prova Brasil, visto que o Saeb 2EF teve sua primeira aplicação em 2019 e o presente estudo ocorreu em 2021.
Professoras (três) relataram terem trabalhado com os estudantes aplicando conteúdos específicos, dirigidos a compensar deficiências: “A gente fica alguns dias antes trabalhando mais com os alunos, às vezes até conteudista nesse período para ver se a gente, naquele período, ainda consegue alcançar mais alunos, tirar mais alunos da defasagem de aprendizagem” (Professora 3).
Pelo relato da Professora 3 percebe-se que se trata de um esforço planejado e intencional para auxiliar os estudantes que estão com defasagem de aprendizagem em habilidade que será aferida na avaliação do Saeb. No entanto, parece que o conteúdo já foi trabalhado, a proposta é retomá-lo para alcançar mais estudantes. Pelo menos a nível de discurso, parece não abranger o fenômeno do empobrecimento curricular amplamente relatado na literatura. Segundo estudiosos (BONAMINO; SOUSA, 2012), a avaliação pode gerar implicativo para o currículo escolar, assim como a possibilidade de a escola reduzir o ensino às disciplinas que serão avaliadas no teste, Matemática e Língua Portuguesa, em detrimento das demais, primando pelo Ideb com consequências indesejáveis à comunidade escolar.
Docentes (três) relataram ocorrer mudança na rotina escolar no dia da aplicação:
Assim, tanto o Saeb quanto qualquer prova aplicada dessa forma, a nossa escola avisa a gente: olha, hoje o ano x está fazendo prova, então, vai ter um sinal para começar e só vai ter intervalo a hora que bater o sinal novamente; não pode sair; não pode ir para o lanche; só pode sair uma criança de cada vez para beber água, ir ao banheiro; (...) hoje a gente não vai para o parque porque lá faz barulho; não vai ter quadra por causa do barulho; não pode sair e vamos procurar fazer mais silêncio para não atrapalhar os colegas. A nossa escola já tem essa rotina de outras provas. (Professora 5).
A interferência na rotina da escola, no dia da aplicação com as severas mudanças nos horários de intervalo e do lanche; saídas para o banheiro ou para beber água; limitação da circulação em espaços (como as quadras, parquinhos etc.), gera tensão na escola, isto porque as alterações são impostas a toda a comunidade escolar, mesmo aquelas turmas que não participam da avaliação têm sua rotina alterada.
Há relato positivo. Professoras (três) mencionaram ter melhorado a forma de ensinar por influência das avaliações do Saeb: “As escolas mudaram a maneira, as formas de ensinar, assim, adaptaram à altura da prova (Professora 6).
Duas docentes afirmaram que o resultado não influenciou sua prática pedagógica: “Não serve para a gente fazer uma intervenção, modificação no nosso comportamento didático-pedagógico” (Professora 7).
Para algumas, a avaliação inspira incorporar mudanças na forma de ensinar, para outras, o resultado não influencia na prática pedagógica. Há estudos que os pesquisadores aludem implicativos positivos de explorar o potencial dos resultados dessas avaliações no contexto escolar (ALAVARSE; MACHADO; ARCAS, 2017; VIANNA, 2014), outros remetem aos efeitos negativos à comunidade escolar pelo uso em política de regulação do trabalho pedagógico (MACHADO; PEREIRA, 2020; RIBEIRO; BONAMINO; MARTINIC, 2020).
O relato sobre a mudança na forma de ensinar para atender à avaliação quase sempre é descrita na literatura no sentido de destinar atividades pedagógicas para treinar os estudantes. Pouco evidenciada são as possíveis mudanças que as avaliações tenham promovido no âmbito das disciplinas, como, por exemplo, colocar em xeque os modelos tradicionais de ensino da Matemática, ou a inclusão de conteúdos que antes não eram contemplados no planejamento pedagógico, por indicativos da avaliação.
Uma participante relatou que não sabia da aplicação do Saeb 2EF: “Estou vendo que houve uma avaliação do 2º ano a partir dessa entrevista. Na minha escola não foi compartilhada essa novidade” (Professora 8).
Além dessa afirmativa, outros indicativos mostram que a maioria das professoras estava tendo acesso às informações e resultados do Saeb 2EF pela primeira vez, na ocasião das entrevistas, fato que reforça a evidência das reflexões das professoras se darem a partir de outras avaliações do Saeb.
Saber como as professoras tiveram acesso às informações e aos resultados do Saeb 2EF é importante, haja vista que o fato de o Inep enviar ou disponibilizar informações e dados não garantem que sejam acessados, lidos, compreendidos, refletidos e que gerem ações favoráveis à melhoria do ensino. Indicativo que o Inep precisa aperfeiçoar sua comunicação com as escolas, caso, de fato, queira contribuir para melhorar a qualidade da educação básica brasileira (BRASIL, 2019b), conforme se propõe nos documentos oficiais.
Considerações finais
Este estudo teve o objetivo de analisar a opinião dos professores acerca da avaliação do Saeb 2019, aplicada para estudantes do 2º ano do ensino fundamental, em relação à possibilidade dessa avaliação ter influenciado de alguma forma a prática pedagógica no período que antecedeu a sua aplicação em 2019. As análises das respostas dos professores ao questionário e à entrevista revelaram que o Saeb influencia a prática pedagógica e a rotina escolar no dia da aplicação.
De modo geral, a opinião do grupo de professores pesquisados exprime a dicotomia relatada na literatura entre os defensores e opositores às avaliações do Saeb. Para alguns professores, a avaliação do Saeb é considerada positiva, para outros, ela não traduz contribuição para auxiliar a ação educativa. A análise dos relatos permite inferir que as opiniões dos professores sobre o Saeb foram moldadas conforme as suas experiências em seus respectivos contextos escolares.
Não resta dúvida que as narrativas das professoras participantes das entrevistas sobre o Saeb 2EF tiveram como sustentação outras experiências avaliativas em larga escala vivenciadas por elas. Por exemplo, o relato de olhar o resultado de anos anteriores para nortear o trabalho pedagógico deixa evidente que se refere a outra avaliação, pois a primeira aplicação do Saeb 2EF ocorreu em 2019. Entretanto o relato confirma ocorrer influência do Saeb na prática pedagógica.
Quanto à questão deste estudo, a possibilidade do Saeb 2EF ter influenciado de alguma forma a prática pedagógica no período que antecedeu a sua aplicação em 2019, relatos das docentes acerca de orientarem os estudantes no sentido de familiarizá-los com os termos do teste cognitivo em vista de ser a participação pela primeira vez em avaliação dessa natureza, revelaram que o Saeb 2EF influenciou a prática pedagógica no período que antecedeu a aplicação em 2019, no entanto ainda é cedo para se fazer afirmações consistentes sobre a qualidade e a intensidade dessa influência na prática pedagógica.
As discussões aqui tecidas não são conclusivas, guardam a esperança de que possam instigar e fornecer indicativos para que novas investigações sejam realizadas, pois entende-se que, para a compreensão acerca de como o Saeb 2EF e a devolutiva de seu resultado influenciará (ou não) a prática docente, ainda está para ser desvelado.
Não obstante, estudos adicionais precisam ser desenvolvidos no sentido de investigar possíveis mudanças que o Saeb possa promover no âmbito das disciplinas nele avaliadas, como, por exemplo, inclusão de conteúdo que antes não era contemplado no planejamento pedagógico, que, por indicativo da avaliação, passou a compor o plano de ensino.
Para finalizar, a percepção sobre o Saeb 2EF, como positiva, que traduz contribuição para auxiliar ação educativa, ou negativa, que gera tensão para a comunidade escolar, dependerá da forma como essa avaliação e seus resultados serão refletidos e utilizados pela escola.