Introdução
A produção deste artigo ocorreu no âmbito de uma pesquisa de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (PPGE/UFAM) que investigou o processo de extinção de vagas no ensino fundamental noturno e de turmas da Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de ensino de Manaus.
Contribuíram, para a formulação da problematização deste texto, a publicação da Resolução da Câmara de Educação Básica, no âmbito do Conselho Nacional de Educação (CNE) do Ministério da Educação (MEC/CNE/CEB) nº 1, de 28 de maio de 2021, que institui Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos, bem como a publicação do Documento referencial para implementação das diretrizes operacionais de EJA nos Estados, Municípios e Distrito Federal, nos aspectos relativos ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e Educação de Jovens e Adultos a Distância.
Também contribuíram as reflexões críticas acerca da Educação de Jovens e Adultos e das realidades histórica, política e social dos sujeitos inseridos em contextos da área protetiva e de privação da liberdade no Grupo de Estudos Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Políticas, Educação, Violências e Instituições (GEPPEvi) e das discussões a respeito das formas de dominação burguesa por meio dos Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais com incidência na educação pública no Grupo de Pesquisa Educação, Estado Ampliado e Hegemonias (GPEH).
A partir disso, definiu-se como objetivo discutir as novas Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), assentadas na Resolução MEC/CNE/CEB nº 1, de 28 de maio de 2021, dentro do processo de subsunção atual da educação brasileira às determinações do capital no âmbito do seu projeto orgânico burguês de deterioração da educação pública estatal.
Assim, esta análise se vincula a uma pesquisa documental, referenciada no materialismo histórico-dialético, apoiada particularmente no constructo teórico marxiano de valor e no de Estado Ampliado de Gramsci, assim como das contribuições de autores mais recentes como Fontes (2021), Motta & Andrade (2020), a partir das quais se busca demonstrar, no primeiro tópico, como a educação pública gratuita e estatal sofre resistência histórica das classes dominantes que, dentro de uma visão econômica, a concebem como mercadoria ou de forma utilitarista. No segundo tópico, examinamos como a exploração do valor de uso da educação e de retirá-la da esfera estatal tem se dado cada vez menos por coerção e muito mais por consenso, principalmente em países de capitalismo dependente como o Brasil. Por último, analisa-se os dispositivos da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021 no contexto da contrarreforma sistêmica operada no Brasil nos últimos anos.
O valor de troca da educação
No atual momento histórico, percebe-se uma premência do capitalismo em extrair mais-valor de áreas representativas do nível ético-político da sociedade, numa insaciável predação por novos nichos de mercado e, assim, “A produção social que deveria atender às necessidades humano-sociais, subordinou-se integralmente aos imperativos da autorreprodução do capital” (ANTUNES, 2020, p. 15).
O papel do Estado se limitaria a arrecadar recursos para serem repassados às frações empresariais da burguesia que, sem qualquer regulação ou controle estatal, exploraria economicamente, como se bens de consumo fossem, atividades e assistências tidas até então como direitos sociais, entre elas o direito à educação, sendo dessa forma, conforme Antunes (2020), coisificado para ter valor de troca com vistas ao lucro.
Esse projeto hegemônico da classe dominante que disputa a direção, a organização e o financiamento da educação pública com o Estado, tem suas bases ideológicas liberais desde o nascedouro das primeiras escolas públicas no século XVIII, quando Adam Smith, em seu livro A riqueza das nações, já pugnava pelo custeio de despesas das instituições para educação “[...] por aqueles que recebem o benefício imediato de tal educação e instrução, ou pela contribuição voluntária daqueles que acham que terão uso para uma ou outra” (SMITH, 2017, p. 675). Essa pretensão de Smith de manter restrita a educação àqueles que pudessem pagar, contudo, impediria a sua universalização e, consequentemente, a promoção de uma ressocialização dos indivíduos e sua capacitação às novas formas do processo produtivo demandadas pela Revolução Industrial. Daí o porquê a maioria dos Estados, nessa época, dão início à organização de seus sistemas nacionais de ensino.
Um século depois, já na década de 1970, em face à necessidade da reconfiguração do modelo de educação para um novo estágio do capitalismo, Milton Friedman advogava a introdução da concorrência de mercado na educação, analisava a educação na perspectiva de economia de escala, como bem de consumo que demandava custos, insumos e padrões de qualidades, sem reconhecer qualquer diferença entre a educação e outras atividades. Em lugar de centralizar os serviços educacionais e, dessa forma, limitar o poder de escolha dos consumidores (pais e crianças), o Estado deveria distribuir de vouchers para o custeio do estudo em uma escola privada de escolha desses pais. “Esse valor menor gasto com um colégio privado sujeito à concorrência muito provavelmente proporcionará melhor qualidade de ensino do que a quantia maior gasta hoje com as escolas do governo”, afirmava Friedman (2015, p. 180). Tal modelo de educação, baseado em vouchers, era endossado por Friederich Hayek que, indo além, questionava a obrigatoriedade da educação a parcelas da população e a autoridade do governo de propor os conteúdos, assim como relegava ao Estado apenas a oferta da educação a comunidades isoladas, com número restrito de crianças que, em decorrência disso, justificassem a inexistência de escolas particulares. Quanto à grande maioria da população, a organização e administração da educação poderiam ser deixadas à iniciativa privada, “[...] incumbindo-se o governo apenas do financiamento básico e de fixar um padrão mínimo para todas as escolas onde os vales (vouchers) fossem utilizados” (HAYEK, 1983, p. 366).
Nessa concepção neoliberal de educação, fica patente o interesse da burguesia não restrito apenas à oposição da direção, organização e financiamento da educação pública pelo Estado, mas a subsunção dessa à iniciativa privada na forma de mercadoria sobre a qual ela deve exercer o monopólio. A educação, a partir de então, “[...] é considerada uma atividade com custo e retorno, cujo produto se assemelha a uma mercadoria” (LAVAL, 2019, p. 37)
À defesa da mercantilização da educação, somam-se teorias denominadas do Capital Humano em que a educação propedêutica e humanista é preterida por uma educação utilitarista com vistas a tornar o indivíduo mais produtivo, ou seja, extrair-lhe mais-valor. Gary Becker (1993), pautado nos efeitos e ganhos de uma formação geral (treinamento) no local de trabalho em vez de escolas, defendia que esse treinamento fosse custeado pelo trabalhador que, no seu decorrer, receberia abaixo do que poderia receber em outros lugares, dentro de uma concepção que considerava as pessoas como capital humano, indiferente do capital material. Theodore Schultz, por seu turno, pregava que os gastos com educação constituíam uma forma de capital na hipótese de prestação de serviços de um determinado valor, estando subjacente neste tratamento da educação a hipótese de que “[...] alguns aumentos importantes na renda nacional são uma consequência de adições a esta forma de capital” (SCHULTZ, 1973, p. 81).
Tais teses, laureadas mundialmente por setores dominantes do capital, concomitantemente, foram adotadas como diretrizes por Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) internacionais como o Banco Mundial que, em articulação com frações da burguesia dominante nos países periféricos, tem utilizados seus empréstimos como potencializadores na implementação de sua concepção (orientações) mercadológica de educação (PEREIRA, 2018). No contexto dessas orientações gerais, operaram-se reformas estruturais dos Estados nacionais, com reflexos nas políticas educacionais, no sentido de adequá-las ao movimento de esvaziamento das políticas de bem-estar social, à lógica econômica com cortes de gastos e eleição de prioridades, e à subsunção dos conteúdos e projetos educacionais à mesma lógica (TOMMASI, WARDE & HADDAD, 1996), promovendo, assim, junto a outros organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), a unificação simultânea das regras do comércio, da produção e das políticas educacionais, assim como a mentalidade dos decisores, em nome da globalização (LAVAL, 2019).
O processo de aceleração das contrarreformas educacionais no Brasil
Atualmente, no Brasil, apesar de Leher (2021) afirmar que o processo de conversão da educação em uma mercadoria tem ocorrido de forma gradual, mas acelerada, sem acordos institucionalizados ou balizamentos legais, de modo bruto, diretamente pelos agentes do capital em interconexão com o Estado, é preciso considerar a ofensiva desses agentes na modificação das estruturas jurídico-políticas de modo a favorecer a apropriação da educação pública pela burguesia empresarial.
Tal processo ficou ainda mais evidente a partir das mobilizações populares de 2013, nas quais se destacaram a atuação de organizações do aparato privado de hegemonia com interesses empresariais, ou seja, de Aparelhos Privados de Hegemonia Empresariais (APHEs) para direcioná-las e contê-las, ao mesmo tempo em que delegaram a direção política aos setores da extrema direita com os quais mantinham vínculos próximos (FONTES, 2021), o que culminou no golpe político, jurídico e midiático de 2016 que promoveu o impeachment da Presidenta Dilma Roussef5, assumindo assim o seu vice Michel Temer6.
Nesse contexto, observa-se a intensificação de ações coordenadas e sistêmicas dos empresários para a adesão da classe trabalhadora às formas de exploração do capital que, conforme explicita Farias (2021), na condição de intelectuais orgânicos no cumprimento de funções distintas, estendem-se dos organismos da sociedade civil aos postos de comando nos aparelhos do Estado, dirigem e comandam a generalização dos seus interesses.
No comando de uma dessas funções, Mendonça Filho, administrador de formação e consultor para assuntos educacionais da Fundação Lemann (2019-2022), enquanto Ministro da Educação alheio à participação da população, das entidades de classe, dos movimentos de base na construção das políticas educacionais, de forma avassaladora, promoveu, em curto espaço de tempo de dois anos, inúmeras contrarreformas que afetaram todos os níveis, etapas e modalidades de ensino. De pronto, revogou as indicações com nomes de representantes de órgãos estatais vinculados à educação pública, como Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), feitas pela então Presidenta Dilma, para substituí-los por representantes ligados às frações empresariais da burguesia, prepostos do empresariado, como Nilma Santos Fontanive, coordenadora do Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio, do setor de concursos, avaliações e vestibulares; Suely Melo de Castro Menezes, diretora-geral do Colégio e das Faculdades Integradas Ipiranga, com sede em Belém; Antônio Araújo Freitas Júnior, pró-reitor de ensino, pesquisa e pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro; e Antonio Carbonari Netto, vice-presidente de Desenvolvimento e Expansão da Ser Educacional, maior empresa de educação do Nordeste e Norte (TOKARNIA, 2016).
Logo depois, com o apoio do Congresso e dos meios de comunicação de massa na promoção de um consenso sobre a austeridade fiscal do governo, Temer articulou aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que limitou os investimentos públicos em áreas fundamentais para população, como saúde e educação, por vinte anos, fortalecendo o projeto neoliberal de sufocamento da educação pública estatal e conformando-a aos interesses mercadológicos e ideológicos do sistema capitalista.
Seguiu-se a isso a aprovação da Lei nº 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino médio, por meio da qual promoveu a redução da carga horária das disciplinas gerais do ensino médio; a instituição dos itinerários formativos; a obrigatoriedade do inglês como língua estrangeira; a admissão do notório saber para a prática docente, sem a necessidade de diploma em licenciatura; a ampliação da carga horária total do Ensino Médio de forma a permitir que parte do ensino fosse oferecido na modalidade a distância.
Com a mesma celeridade o MEC, ante o comando do advogado Rossieli Soares7 e sob as mesmas críticas quanto à restrição da participação popular na elaboração das políticas, promoveu a homologação, em 2018, da nova BNCC do ensino médio, centrada no desenvolvimento de competências e habilidades, sob uma lógica do individualismo, da competição e dos interesses do capital.
Com a ascensão do governo Bolsonaro8 em 2019, de inspirações extremistas de ultradireita e ímpeto fascista, acentuou-se o processo de efetivação da agenda conservadora e neoliberal, de aparelhamento das instituições e de desmonte sem precedentes das escassas políticas educacionais consolidadas, em uma aliança entre APHEs e o protofascismo que, conforme explicita Fontes (2021), embora não tivessem o mesmo projeto político também não demonstravam contradições substantivas, pois “[...] compartilhavam dos fundamentos ultraliberais no trato da coisa pública e da atuação comum em prol do rebaixamento da democracia e de suas conquistas (FONTES, 2021, p. 75).
Logo no primeiro ano de governo, por meio do Decreto nº 9.765, de 11 de abril de 2019, foi instituída a Política Nacional de Alfabetização (PNA), que concebe a leitura e a escrita como processos puramente mecânicos de decodificação de signos gráficos em sons e vice-versa, retirando dessas atividades qualquer exercício de reflexão e crítica sobre o conteúdo ou o contexto, envolvidos nisso.
No decorrer do mandato de Jair Bolsonaro, sucederam-se inúmeras indicações de prepostos do empresariado com o intuito de facilitar e operar as reformulações na política educacional favoráveis ao capital e que, deste modo, adequassem a educação à condição de mercadoria, nicho de mercado e bem de consumo. Ao mesmo tempo, os espaços de disputa foram tendo a participação da classe trabalhadora anulada por meio da dissolução ou apropriação de colegiados, utilização de espécies normativas como a Medida Provisória, que inibe a discussão na sua construção, consultas populares por meios virtuais, redução do tempo e dos espações de construção, substituição dos destinatários da política por APHEs e, dentro do ardil de passar a boiada, aproveitamento do período pandêmico para manobrar muitas dessas mudanças estruturais que, em comum, tiveram como características o cerceamento da participação popular nas discussões no processo de elaboração; a precarização dos níveis, etapas e modalidades de ensino; a intensa atuação de aparelhos privados de hegemonia; e o direcionamento da educação e seus processos aos interesses do mercado, confirmando as tendências ultraliberais, ultraconservadoras e gerenciais, em que o Estado desempenha papel primordial de reestruturar as políticas públicas de acordo com os interesses empresariais e de mercado. Em outras palavras, “Intensificam a destruição da educação laica, crítica, socialmente referenciada, ao apropriar-se dos recursos públicos para supostamente gerenciá-los melhor, enquanto adéquam a escola pública à precarização generalizada das relações de trabalho” (FONTES, 2021, 72).
Além do redirecionamento político-ideológico, a precarização da educação se dá sobretudo pelos sucessivos contingenciamentos e desvio de verbas para outras áreas e finalidades. Dados do portal Siga Brasil (2022) do Senado Federal dão conta de que, de 2019 a 2021, o governo Bolsonaro, ignorando a ampliação de gastos prevista no Plano Nacional de Educação (PNE) e, ao mesmo tempo, inviabilizando o alcance das demais metas, reduziu os valores autorizado para educação em 18 bilhões de reais.
As novas diretrizes operacionais da EJA no contexto das contrarreformas da educação
Diante desse cenário, modalidades como a Educação de Jovens e Adultos, já secundarizadas nas políticas públicas educacionais, são impactadas mais violentamente pela redução de investimentos e pelo desmonte de sua estrutura, como se observa no esquecimento do Programa Nacional do Livro Didático para EJA (PLNDEJA), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem) e o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), na extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e da Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), e sucessivas reduções em seu orçamento, o que já representa uma perda de 80% de 2012 a 2022 (CENPEC, 2022, p. 22).
Nesse contexto de desmonte, de retrocessos e de direção do país pela ultradireita conservadora e neoliberal, a Resolução MEC/CNE/CEB nº 01/2021, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a EJA, foi homologada, sob fartas críticas, por parte de pesquisadores, especialistas, professores e militantes dessa modalidade.
No processo de idealização, discussão e elaboração dessa normativa, ressalta-se a atuação orgânica do empresariado e do mercado em recrutar e alocar prepostos e aparelhos privados de hegemonia articulados para camuflar, distorcer e até suprimir as reivindicações populares de maneira a fazer prevalecer os interesses empresariais como se interesse público fossem.
Isso fica bem nítido ao retornarmos às indicações para o CNE que, como já mencionado, nos governos Temer e Bolsonaro, tiveram uma composição majoritariamente de prepostos de empresas ou aparelhos privados de hegemonia, categoria em que se enquadra a relatora da Resolução aqui em discussão, Suely Melo de Castro Menezes, diretora-geral do Colégio e das Faculdades Integradas Ipiranga, com sede em Belém, e Diretora da Confederação Nacional de Escolas Particulares de Ensino (CONFENEN), entidade esta saudada em agradecimento pela indicação ao CNE e pela presidência da Câmara de Educação Básica (CEB), ocasião em que destaca como necessária e fundamental a ocupação desses espaços, enfatizando ainda a força do momento, sua trajetória e seu alinhamento às entidades privadas de ensino:
[...] eu sou forjada em CONFENEN, trinta anos de CONFENEN, então eu estou sempre alinhada com vocês... Na verdade, eu tenho na minha formação duas linhas muito claras: ensino privado (via SINEPES e CONFENEN) e o Conselho Estadual de Educação que também deu todo um know how que hoje me ajuda muito nas rotinas do Conselho Nacional (FEMESP, 2020, grifos nossos).
Na fala da Conselheira-Relatora é perceptível o seu nível de lealdade para com as frações empresariais da burguesia bastante realçado pelo advérbio sempre, assim como a sua vivência no mercado educacional e na representação deste em colegiados responsáveis pelo acompanhamento e controle das políticas educacionais demonstram as determinações materiais que pautam a sua atuação dentro do CNE.
Esse alinhamento declarado ao empresariado pode explicar o caráter reacionário do processo de elaboração das diretrizes operacionais, submetidas a dois pareceres junto à CEB/CNE. O primeiro, Parecer CEB/CNE nº 6/2020, foi submetido à consulta pública virtual por um breve período (entre 23 de novembro e 1º de dezembro de 2020), sem qualquer registro acerca de quaisquer críticas e sugestões recebidas. O segundo, Parecer CEB/CNE nº 1/2021, que também silenciou quanto à consulta pública, incorporando apenas um Parecer de Notas Técnicas do MEC, não sendo, portanto, “[...] objeto de discussão ampla pela comunidade acadêmica, pelas secretarias estaduais e municipais de Educação ou pelas organizações da sociedade civil” (CENPEC, 2022, p. 35).
Afora a desconsideração da participação popular na produção de normativas que orientam uma política educacional, outra crítica à relatoria desses pareceres é a mais completa indiferença aos que outras normativas que o precederam como o Parecer nº 11/200021, tido por extenso e erudito, no qual foi reafirmado o direito público e subjetivo dos jovens e adultos à educação escolar nos termos a Constituição Federal, instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, e estabelecidas as bases doutrinárias de normas e de documentos posteriores (CENPEC, 2022, p. 36).
Ao se analisar o conteúdo da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021, já em sua ementa, o termo alinhamento deixa explícito o caráter sistêmico das reconfigurações estruturais por que vem passando a educação brasileira como um todo. A reformulação estabelecida para a EJA, assim como quaisquer outras políticas públicas, conforme enfatiza Lamarão (2021), não pode ser tomada isoladamente dos demais movimentos de correlação de força, havendo a necessidade de se buscar os nexos determinantes para desvendar a essência desses fenômenos.
Estas políticas educacionais não são mera carta de intenções, desprovidas de conteúdo de classes e, portanto, síntese da vontade coletiva. Nem se dão em uma sociedade abstrata, em uma escola abstrata, mas sim no Brasil, marcado por uma formação social específica que denominaremos de capitalismo dependente, seguindo os passos de Florestan Fernandes, onde a escola (ou a ausência de) cumpre papel determinante na reafirmação da autocracia burguesa e na nossa heteronomia cultural (LAMARÃO, 2021, p. 24).
Tal alinhamento é proposto em relação a sete aspectos elencados nos incisos do art. 1º da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1 (2021), tendo como primeiro o alinhamento da EJA à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Art. 1º, inc. I), no qual se propôs a estruturação da formação geral básica e dos itinerários formativos que compõem o currículo dos cursos da EJA a partir das competências e habilidades da BNCC, mesmo sendo a EJA apenas mencionada na introdução do documento, ao tratar de ações de adequação das proposições da BNCC à realidade local. Disso se pressupõe que, no processo de seleção e estabelecimento de tais competências e habilidades, as especificidades dos sujeitos da EJA não foram levadas em consideração. Mesmo assim, terão seus currículos subordinados a uma aprendizagem homogeneizada, utilitária e dissociada de desenvolvimento integral desses jovens e adultos.
O segundo aspecto a alinhar diz respeito à Política Nacional de Alfabetização (PNA) (BRASIL, 2021b, art. 1º, inc. II), política esta que se coaduna com as demais políticas educacionais no sentido de esvaziamento e homogeneização dos conteúdos e metodologias, pois propõe o mesmo método de alfabetização de criança também para jovens e adultos, com ênfase em uma aprendizagem fônica, sem estratégias que promovam o pensar crítico ou emancipação desses sujeitos.
Essa expropriação do conhecimento científico e tecnológico da escola pública patrocinada pelas alterações no novo ensino médio, BNCC, PNA e Diretrizes Operacionais da EJA inviabiliza a oferta de uma educação emancipadora e humanista, ao mesmo tempo em que prioriza a educação de caráter comportamental e adestrador em que “São valorizadas competências que vão além dos conhecimentos científicos e tecnológicos e incluem habilidades básicas, específicas e de gestão, atitudes relacionadas à iniciativa, criatividade, solução de problemas e autonomia” (CNI, 2005, p. 33).
Lamarão (2021), ao analisar que a escola pública se destina à classe superexplorada no processo de ampliação da taxa de extração de mais-valor, explicita o papel fundamental da escola nas sociedades de classe na concepção de Gramsci, que seria conformar subjetiva e objetivamente, em conjunto com outras instituições, o homem-massa, imprimindo-lhes, ora pelo consenso, ora pela coerção, valores sociais de uma sociabilidade à semelhança daqueles que conseguem construir a hegemonia, tendo o Estado (Estado-ético ou Estado-educador) o papel de educar as massas consoante a sociabilidade forjada pelos interesses das classes dominantes.
Nota-se esse interesse das classes dominantes pelo esvaziamento do conhecimento científico e tecnológico da EJA nos dispositivos que estabelecem como mecanismos de alinhamento a duração dos cursos e a idade mínima para o ingresso (art. 1º, inc. III), a forma de frequência dos cursos (art. 1º, inc. IV), a modalidade EJA/EaD (art. 1º, inc. V), e a flexibilização da oferta (art. 1º, inc. VII), pois, embora tais mecanismos pareçam esboçar preocupação com a elevação da escolaridade, o acesso e a adequação do ensino a realidade dos jovens e adultos, de fato estão reduzindo essa modalidade a uma simples certificação de ensino fundamental e médio, sem que isso signifique apropriação dos conhecimentos referentes a esses níveis de ensino. Logo remanejar compulsoriamente alunos que completam 15 anos, adolescentes e jovens levados para EJA como forma compensatória de escolarização; desobrigá-los da frequência das aulas, por meio de justificativas e atividades domiciliares compensatórias (arts. 25 e 26); permitir a oferta de até 80% da carga horária de cursos na modalidade EJA/EaD nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio (art. 4º e 5º), assim como ofertar de forma semipresencial: EJA combinada - 30% apenas da carga horária com professor para mediar o conhecimento (arts. 17 e 18) e EJA direcionada - atividades dirigidas em compensação à ausência em determinadas aulas (arts. 19 e 20); são formas de ofertar certificados, aumentar ilusoriamente a escolaridade da população, sem que isso represente de fato pessoas que se apropriaram de uma educação formal sólida (BRASIL, 2021b).
Não à toa, desde 2018, o governo federal tem direcionado ao Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) recursos consideravelmente superiores aos destinados à EJA escolar, havendo um crescimento exponencial no número de inscritos de 366 mil, em 2012, para 2,9 milhões em 2019, o que demonstra que “[...] o governo federal apostou muito mais na via da oferta dos exames como política pública para a EJA do que na indução da ampliação da oferta de cursos pelos estados e municípios” (CENPEC, 2022, p. 23).
O estarrecedor aumento no número de inscritos no exame de certificação demonstra que tem sido eficiente a estratégia de consenso de apresentá-lo como alternativa viável e prática de se obter o ensino fundamental ou médio mediante uma simples prova de final de semana, como uma ponte, um meio para se conquistar (INEP, 2022). O massivo chamamento, nos meios de comunicação e redes sociais, vendendo a falsa ideia de facilidade e de certificação que possibilita a pessoas conquista de novas oportunidades, contrasta com a quase total inexistência de chamada pública para os cursos presenciais de EJA, prevista no PNE, mas ignorada por gestores públicos. Nesse ponto, são importantes ações em espaços de mobilização como os Fóruns de EJA que demonstrem os prejuízos para classe que vive do trabalho de nível de escolaridade obtido dessa forma.
Dispositivos da Resolução MEC/CNE/CEB nº 01/2021, como esse que incentivam a certificação por meio de exames supletivos (art. 27 e 28), assim como a oferta da EJA/ EaD (Mec, 2021, arts. 4º e 5º), a flexibilização do tempo para cumprimento da carga horária (arts. 17, 18 e 19) e a dispensa de registro de frequência (arts. 25 e 26), demonstram o claro propósito de flexibilizar (precarizar), baratear e, por fim, desobrigar o Estado de ofertar uma educação que contemple as especificidades dos jovens e adultos por meio de uma educação integral, favorecendo assim um ensino de caráter aligeirado, superficial, precarizado e reduzido à mera certificação de um nível de ensino, o que nos remete ao raciocínio de Kuenzer (2005) que defende haver na atual restruturação produtiva um processo de exclusão includente (o trabalhador inserido no mercado de trabalho tem as condições e os seus direitos excluídos), e de inclusão excludente (os sujeitos são incluídos na educação escolar, mas seus padrões de qualidade que permitam a formação de identidades autônomas intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas do capitalismo são excluídos).
Nesse intento, o fortalecimento de modalidades semi e não presenciais já mencionadas, aliado à previsão de uma EJA multietapas (em casos de baixa demanda ou falta de estrutura física suficiente para atendimento de todas as turmas, em locais de difícil acesso, periferia, entre outros, nos termos dos arts. 21 e 22 da Resolução MEC/CNE/CEB nº 01/2021, embora camufladas pelo discurso de ampliação e possibilidade de acesso, permanência e continuidade dos estudos) cumprem papel fundamental no barateamento da oferta da Educação de Jovens e Adultos, pois eliminam gastos e possíveis investimentos dos estados e municípios com infraestrutura escolar.
Chama a atenção, no artigo 22 da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021, a possibilidade jurídica oferecida aos entes estatais de deixarem de investir na ampliação da estrutura de suas redes para atender a demanda de EJA, assim como a forma explícita com que são apresentados os destinatários dessa modalidade precarizada e de baixo custo para os entes estatais:
Os sistemas de ensino poderão organizar a EJA Multietapas para ampliação do atendimento da EJA presencial, em situações de baixa demanda que impossibilite a implementação de um turno para a modalidade; dificuldade de locomoção dos estudantes, como os sujeitos do campo; população de rua; comunidades específicas; refugiados e migrantes egressos de programas de alfabetização em locais de difícil acesso, periferias, entre outros (BRASIL, 2021b, art, 22, grifos nossos).
No dispositivo em tela, a lógica econômica do Estado mínimo para as políticas públicas se sobressai paralelamente à concepção dual de educação que reserva às classes subalternas uma educação deficitária e incompleta.
O intento de desvinculação da oferta EJA da esfera estatal perpassa ainda por dispositivos que transferem essa incumbência para a iniciativa privada. Nesse contexto, surge a EJA vinculada a ser ofertada por unidades acolhedoras (BRASIL, 2021b, art. 23), ou seja, unidades escolares próprias e autorizadas para tal. De acordo com o Documento Referencial para a Implantação das Diretrizes Operacionais da EJA: “Diferentes iniciativas de coletivos comunitários, trabalhistas, religiosos e demais formas de organizações sociais podem buscar parcerias com os sistemas de ensino para a oferta da EJA Vinculada” (BRASIL, 2021c, p. 47). Ainda segundo esse documento, essas seriam formas de facilitar o acesso a comunidades isoladas ou com difícil acesso. Tal iniciativa nada apresenta de novidades, mas apenas retoma a concepção de oferta dessa modalidade de ensino por meio de parcerias, em regra, via instituições ditas sem fins lucrativos que praticam o empreendedorismo social, ao mesmo tempo em que corresponde a uma omissão estatal frente à universalização de ensino, segregando as comunidades mais periféricas e carentes de políticas públicas.
O Estado mínimo de políticas públicas e Estado máximo para assegurar as condições de expropriação de mais valor da classe trabalhadora, com o neoliberalismo, não se limitam mais à superexploração da força de trabalho, mas avançam extraordinariamente sobre as condições de vida do trabalhador. Desta forma, as atuais condições gerais de produção veem no próprio pobre uma espécie de mercadoria da qual é possível extrair proveito econômico por meio de serviços antes tidos como políticas sociais.
Com a edição da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021, o Estado apresenta os meios jurídicos e políticos que reduzem os custos da EJA para que a iniciativa privada, até então sem grandes interesses demonstrados por essa modalidade em razão do baixo poder de consumo dos seus sujeitos, possa se tornar atrativa à exploração econômica, pois o Poder Público, conforme esclarece Farias (2022), enquanto importante cliente do empresariado, assegura, com a aprovação de políticas de contrarreforma como estas, as condições de escala para os seus produtos, os recursos e a demanda por serviços.
Esse processo de barateamento da EJA como se mostra flagrante em alguns dos dispositivos da Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021, como a autorização da oferta da EJA por meio da Educação a Distância (EaD) para os anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio (BRASIL, 2021b, arts. 4º e 5º).
A implementação dessa oferta demandará o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), plataformas garantidoras de acesso, mídias e/ou materiais impressos (BRASIL, 2021b, art. 4º, inc. II); infraestrutura tecnológica como polo de apoio pedagógico, garantia de acesso por meio de rádio, televisão e internet aberta (BRASIL, 2021b, art. 4º, inc. IV); a possibilidade de oferta de cursos de EJA a distância, fora da unidade da federação (BRASIL, 2021b, art. 5º, § 2º).
Só nesses dispositivos já se percebe a criação de inúmeras demandas a serem providas certamente pelo mercado educacional, sendo as maiores beneficiadas aquelas que integram os grandes conglomerados empresariais de ensino que já se encontram no mercado para/na/da educação, como a Kroton (agora Cogna) que já atende 34,2 milhões de alunos com seus sistemas de ensino, cuja intenção é avançar sobre o ensino básico, tendo em vista a existência de “[...] 30,6 mil escolas particulares e apenas 2,4 mil faculdades, além de o mercado de ensino básico movimentar, anualmente, R$ 101 bilhões - quase o dobro do Ensino Superior” (ARBEX, 2018, s/p.).
Logo, o ensino remoto, embora utilizado em larga escala mas como meio alternativo no período pandêmico de Covid-19, converteu-se em um vantajoso e oportuno segmento posto à disposição tanto desses conglomerados empresariais de comércio do ensino, como de gigantes da tecnologia como Microsoft, Weidong, Google, Facebook e Zoom, que já demonstravam articulação para redesenhar a educação quando, em 2020, em parceria com a Unesco, organizaram a Coalização global da Educação para garantir #AprendizagemNuncaPara (SILVA, et al., 2021). Com isso, “Entre o primeiro e o segundo trimestres de 2020, o uso de soluções de teletrabalho cresceu 324%, enquanto a educação a distância cresceu mais de 60% na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia e no México. Todos os provedores de plataformas colaborativas e de videoconferência sentiram o impulso” (PIMENTEL, 2020, s/p.)
Nessa lógica de mercantilização da Educação de Jovens e Adultos, são criados os mecanismos que forneçam um processo de treinamento e certificação rápido e flexível dessas habilidades e competências, pois “[...] ao capitalista interessa que a capacitação da força de trabalho confira as competências necessárias à produção de mais-valor no menor tempo possível, de forma a minimizar o valor de troca da força de trabalho e maximizar a realização do seu valor de uso” (MOTTA; ANDRADE, 2020, p. 74).
Logo, para além da aparência de democratização do ensino para jovens e adultos por meio de uma submodalidade de EJA/EaD, deve-se ter em mente, além do barateamento e do aligeiramento da modalidade com vistas apenas à certificação, duas graves consequências nos sentidos ocultos da educação à distância:
a) fracasso - o investimento de baixo custo e baixa qualidade na formação da pessoa que, via-de-regra, não sofrerá qualquer alteração positiva em termos de formação, e que deverá, ainda, suportar o próprio fracasso como consequência individual, e não política; b) ressentimento e fascismo - a produção, em larga escala, de toda uma sociedade mal formada, indiferente, insensível e ignorante (em sua ampla acepção) em cujo resultado, em última instância, implicaria na reprodução do ressentimento em sua base fundamental e, consequentemente, atuaria como vetor favorável na escalada ainda mais acelerada aos preceitos do livre mercado e do fascismo emergente (QUIROGA, 2022, p. 4).
Para todo processo de mercantilização, faz-se necessária uma padronização dos produtos que facilitem sua oferta em larga escala (PEREIRA; OLIVEIRA, 2021). Para operacionalizar essa padronização na EJA, a Resolução MEC/CNE/CEB nº 1/2021 adota como referência as Diretrizes Operacionais da EJA da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal e a impõe com toda sua carga horária, regime, número de etapas e formas de organização escolar e da matriz curricular aos demais 26 estados e mais de 5.500 municípios de todo o Brasil, desconsiderando, assim, as peculiaridades regionais e locais existentes; a responsabilidade dos municípios de definir diretrizes curriculares para etapas e modalidade da educação básica, prevista no art. 9º, inciso IV, da LDB; e o princípio da gestão democrática do ensino público, previsto no art. 206, inciso VI, da Constituição Federal (CENPEC, 2022, p. 40).
Além disso, o processo de mercantilização exige formas de aferição e controle dessa padronização, de forma que seja incentivada a concorrência de mercado. Para esse fim, apresenta-se a inserção da EJA no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (art. 30): o que integra essa modalidade à política gerencial das escolas baseada na gestão de resultados que, na iniciativa privada, tem se mostrado como elemento publicitário para atração de novos alunos/clientes.
Por fim cabe ressaltar a recorrência com que aparece a expressão Educação e Aprendizagem ao Longo da Vida, nessa normativa, sempre vinculada à educação especial, o que reduz seu conceito a uma “submodalidade” (CENPEC, 2022, p. 41), restringindo seu conceito ao atendimento, por meios de aprendizagem não formais e informais, de estudantes com deficiência, transtornos funcionais específicos e transtorno do espectro autista na modalidade da EJA, de acordo com suas singularidades.
Restringe também ao daqueles com dificuldades de locomoção, residentes em locais remotos e de difícil acesso, em periferias de alto risco social e em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, oportunizando acesso escolar às populações do campo, indígena, quilombola, ribeirinhos, itinerantes, refugiados, migrantes, e outros povos tradicionais (BRASIL, 2021b, art. 8º).
O Documento Referencial para implantação das Diretrizes Operacionais da EJA, na tentativa de explicar tal conceito e vinculá-lo à perspectiva da inclusão, vale-se dos discursos de inúmeros movimentos internacionais, como a Convenção de Jomtien (em 1998), a Declaração de Incheon (2015), Association on Intellectual e Developmental Disabilities (AAIDD); entidades nacionais como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae); e diretrizes nacionais como a Política Nacional de Educação Especial (PNEE) (BRASIL, 2021c). Nesses documentos, evidencia-se a defesa da presença de recursos, serviços e atendimento educacional especializado nos projetos pedagógicos construídos com base nas diferenças socioculturais desses grupos. Embora a palavra inclusão se repita em cada parágrafo, o que transparece é uma tentativa de retirar os sujeitos abrigados sob essa submodalidade de EJA das unidades regulares de ensino, direcionando-os para turmas ou entidades que teriam os recursos e a expertise para atendê-los, ou seja, espaços segregados de ensino-aprendizagem, já previstos no PNEE e com efeitos suspensos pelo Ministro-Relator Dias Toffoli, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) Nacional junto ao Supremo Tribunal Federal. Mesmo assim, o governo Bolsonaro persistiu no estabelecimento desses espaços e da oferta de uma educação especial como forma de retirar estudantes das turmas regulares, contrariando a lógica do ensino inclusivo e beneficiando, dessa forma, entidades como a Apae, que historicamente têm sido subvencionadas com repasses de recursos públicos, dentro de uma “prática mercantil-filantrópica” (FONTES, 2021, p. 68).
É importante ressaltar que toda essa degradação e desvirtuamento promovidos na EJA pelas Diretrizes Operacionais da EJA ocorre mediante estratégias discursivas, em que vocábulos como inclusão, oferta, acesso, permanência e continuidade dos estudos são utilizados reiteradamente, para justificar as mudanças pretendidas pelo governo e conseguir o consenso. Contudo, o que se verifica, ao final desta análise, é que todas as inovações, ao mesmo tempo que sinalizam uma maior segregação dessa modalidade e de seus sujeitos da escola pública formal estatal e de toda carga de conhecimento inerente a ela, indicam a substituição desta escola e deste conhecimento por espaços e aprendizagens alternativos precarizados.
Considerações finais
O presente artigo buscou discutir as novas Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), assentadas na Resolução MEC/CNE/CEB nº 1, de 28 de maio de 2021, dentro do atual processo de contrarreforma e subsunção da educação brasileira às determinações do capital no âmbito do seu projeto orgânico burguês de deterioração da educação pública estatal.
A partir disso, vislumbrou-se como as tendências de incorporar valor de troca à escola pública remontam as origens desta e como as reconfigurações produtivas por mercados e exploração de mais-valor avançam sobre todos os campos e aspectos da vida humana, transformando tudo em mercadoria, inclusive as políticas de proteção social, das quais o Estado tem se omitido cada dia mais e favorecido o aproveitamento comercial delas, com destaque especial para a educação.
A transformação da educação em mercadoria, bem como a sua utilização como instrumento de conformação da massa trabalhadora aos seus objetivos econômicos constituem um projeto estratégico e orgânico que conta com a atuação de prepostos e aparelhos privados de hegemonia junto aos governos e Estados nacionais a fim de implementá-los camuflados como se de interesse público fossem.
Fenômenos como esse, de usurpação da educação da esfera público-estatal pela iniciativa privada, mostram-se mais intensos e acelerados quando encontram as bases materiais favoráveis ao capitalismo, como no caso do Brasil, em especial no governo de Jair Bolsonaro, de contornos neofascistas, quando se constata um desmonte avassalador das políticas públicas estatais, desconstrução de espaços de participação popular e implementação de uma agenda ultraconservadora e liberal.
Tal modus operandi é perceptível nos demais movimentos que reconfiguraram o ensino médio, implementaram a BNCC e o PNA, configurando, assim, o caráter sistêmico, programático e orgânico dessas contrarreformas de retirarem os conhecimentos historicamente acumulados das escolas, reservando-lhe a função de apenas sociabilizar e adestrar os indivíduos para o capitalismo.
Dentro dessa ampla e articulada contrarreforma de todo o sistema de ensino brasileiro, foi aprovada a Resolução MEC/CNE/CEB nº 1, de 28 de maio de 2021, traçando as novas Diretrizes Operacionais para a EJA, nas quais se constata um movimento planejado e articulado de prepostos do setor privado atuando nas instâncias de decisão do Estado no sentido de, primeiro, consolidar no plano normativo de estratégias de supressão dos conhecimentos científicos e tecnológicos do processo de ensino-aprendizagem nessa modalidade, reduzindo-a à função de mera certificadora, já que os seus sujeitos são ludibriados de inúmeras formas a permanecerem afastados do ambiente escolar e da mediação presencial de um professor. Segundo, transformar a EJA em mercadoria que, em razão de seus sujeitos (clientela) serem de classes subalternizadas, passam por estratégias de barateá-la por meio de aligeiramento dos cursos, ampliação das possibilidades semipresenciais e EaD, além da ênfase à mera certificação por meio de provas.
Toda essa flexibilização e esvaziamento promovidos pelas Diretrizes Operacionais 2021 constituem prejuízos incalculáveis para os sujeitos da EJA, havendo necessidade de um maior aprofundamento crítico sobre essas novas Diretrizes Operacionais para que subsidie movimentos coletivos que promovam a sua reformulação ou a sua revogação.