Introdução
Este artigo objetiva analisar os principais movimentos e discursos anti-gênero a partir do avanço das ondas (neo)conservadoras na América Latina e as repercussões no campo da educação no Brasil. Em que pese a complexa multifatoriedade da ascensão do (neo)conservadorismo, a reflexão proposta apresenta um panorama dos principais movimentos latino-americanos que buscam a manutenção de um padrão heteronormativo com o sufocamento dos debates de gênero.
O neoconservadorismo tomou corpo nas últimas décadas, se fortaleceu politicamente e ampliou suas agendas na América Latina (BIROLI, MACHADO e VAGGIONE, 2020) de modo que as disputas acirraram em todos os campos da educação.
Os movimentos feministas e LGBTQIAP+ passaram a ser vistos como doutrinação ideológica, o que subverteu os debates de equidade. Essas interferências podem ser vislumbradas nos documentos educacionais, a exemplo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que teve todos os termos “gênero” retirados após grande pressão dos grupos (neo)conservadores. Além da ingerência no poder legislativo e executivo, esses grupos também acionaram, e ainda acionam, o poder judiciário para fazer valer seus preceitos religiosos e morais, não apenas no âmbito privado, mas em toda a sociedade.
Observar essas investidas (neo)conservadoras por meio dos entes estatais nos alerta para uma tentativa de retrocesso nos avanços dos direitos dos grupos minoritários em prol da conservação da moral adotada por um grupo hegemônico. Nos alerta também para as constantes tentativas de interferência no campo educacional, sob o pretexto de evitar uma doutrinação ideológica — que traria, na verdade, pressupostos da diversidade —, que acaba sendo encoberta pela ideologia hegemônica que prega a manutenção da família nuclear a dos papéis de gênero mormente atreladas às concepções biológicas e religiosas.
Nessa perspectiva, é importante destacar que o presente artigo é um desdobramento de uma pesquisa de mestrado vinculada ao Programa de Pós Graduação em Educação da Univille, submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa conforme parecer número: 5.147.644. Por meio de um formulário enviado via Secretaria de Educação da cidade de Joinville/SC às professoras da rede pública (Google Forms), obtivemos resposta de 8 professoras. Após contato via e-mail disponibilizado pelas professoras no formulário, que anuíram com a participação na pesquisa, buscamos agendar o primeiro encontro, sugerindo uma data e requerendo a disponibilidade e confirmação da data.
Das 8 professoras respondentes e inscritas, obtivemos apenas um retorno via email, cujo teor intitula o presente artigo: “Não tenho interesse no tema e discordo de tal concepção ideológica”. Cumpre salientar que tanto o consentimento livre e esclarecido quanto às perguntas se relacionavam genericamente ao tema gênero, especialmente com o objetivo de angariar possíveis interesses das educadoras em relação à temática de gênero. Isso porque nos propomos a realizar uma pesquisa com abordagem participante, ou seja, que atendesse aos interesses e necessidades das professoras a partir das suas respostas que elencariam temas geradores.
A partir da resposta da educadora, negando a possibilidade de participação na pesquisa, refletimos sobre os impactos do avanço (neo)conservador no campo da educação, que inibe os debates acerca das questões de gênero em um dos campos democráticos que é a escola, e coloca a educação à mercê de preceitos morais estabelecidos previamente, sem a devida reflexão.
(Neo)conservadorismo em terra brasilis
Pensar no avanço (neo)conservador no campo da educação é urgente na medida em que seus impactos se mostram nefastos para a sociedade e para a democracia. Muitos autores se debruçam sobre o tema a partir de suas realidades, a exemplo de Apple (2000), que trata das alianças conservadoras tendo como referência os movimentos ocorridos nos Estados Unidos da América (EUA). Não obstante sua grande contribuição teórica, é fato que os processos sociais dos EUA e do Brasil são deveras diferentes, especialmente quando se situa a condição de capitalismo periférico e subserviente da América Latina em relação aos países do norte.
Para Apple, a aliança conservadora é composta por quatro grupos: os neoliberais, comprometidos com o mercado e com a liberdade no sentido de escolha individual; os neoconservadores, que visam o resgate da disciplina e do conhecimento tradicional; os populistas autoritários que englobam os fundamentalistas religiosos e evangélicos conservadores; e a nova classe média, que tem como característica o mapeamento gerencial e profissional.
Buscando situar a realidade brasileira nos debates acerca das ideias conservadoras, Miguel (2016 apudLIMA; HYPOLITO, 2019, p. 9) identificou três correntes: o libertarianismo, que defende o menor Estado possível e a autorregulação do mercado, a exemplo do posicionamento de fundações privadas, como o Instituto Millenium; o fundamentalismo religioso, que tem tomado corpo no Brasil desde os anos 1990, e não inclui apenas grupos evangélicos, mas todos aqueles que pressupõem uma verdade a ser revelada e, por conseguinte, anulam a possibilidade de debate; e o anticomunismo, que ganhou uma nova roupagem na América Latina e no Brasil, sendo que a ameaça passou a ser o bolivarianismo – doutrina do falecido presidente venezuelano Hugo Chávez – e o Foro de São Paulo, conferência de partidos latinoamericanos e caribenhos de centro-esquerda e de esquerda. (LIMA; HYPOLITO, 2019).
Na mesma toada de Apple, Lacerda (2019) trata o neoconservadorismo como não libertário ou liberal, pois, apesar de defender o Estado mínimo, pretende a imposição de valores morais pela esfera pública. Advoga a liberdade de mercado, assim como os neoliberais, mas defende a necessidade de inclusão de valores morais e religiosos na esfera pública.
O neoconservadorismo, explana a autora, pode ser definido como
um movimento político que forjou um ideário privatista (defende o predomínio do poder privado da família e das corporações), antilibertário (a favor da interferência pública em aspectos da vida pessoal), neoliberal (contra a intervenção do Estado para a redução das desigualdades), conservador (articula-se em reação ao Estado de bemestar, ao movimento feminista e LGBT) e de direita (se opõe a movimentos reinvidicatórios que buscam maior igualdade de direitos. (LACERDA, 2019, p. 58).
O termo neoconservadorismo, apesar de possuir diversas limitações, permite, sobretudo, evidenciar “o fenômeno em sua emergência no momento político atual, ressaltando as coalizões diversas que o sustentam em um contexto específico.” (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 25, grifos nossos).
Essas coalizões têm como principal convergência uma narrativa de crise da família. No Brasil, é possível verificar nos discursos políticos, em especial a partir do golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, o apelo à retomada da família tradicional, vislumbrada como moralmente superior, seguidora dos preceitos cristãos e heteronormativa.
As disputas no campo da moral e dos valores (neo)conservadores, cujo projeto hegemônico caminha, encontram também novos obstáculos. Não obstante, não cessa de impor, para além do âmbito privado, padrões que consideram universais, inclusive por meio do Estado, utilizando-se de todo seu aparato instrumental para interromper os avanços nas políticas de inclusão.
O novo imperialismo estadunidense e a influência religiosa para o avanço das pautas de gênero
A investida norte-americana na América Latina pode ser observada ainda na década de 1960, a partir da criação do Grupo Empresarial para a América Latina, formado por representantes de diversas empresas americanas, a exemplo da Ford, Rockefeller, US Steel, dentre outros. O grupo foi criado a priori para influenciar a política de Washington de modo a financiar políticos da América Latina cujas ideologias coadunavam com a do grupo. Com a insuficiência do lobby, que não mais conseguia manter a economia dentro de seus padrões, individualmente ou em grupo, os representantes passaram a trabalhar diretamente com a CIA, fomentando golpes democráticos na América Latina, a exemplo do Brasil em 1964. (GRANDIN, 2006).
Com o subterfúgio de fomentar o desenvolvimento no “Terceiro Mundo” a partir dos planos globais após a 2ª Guerra Mundial, os EUA adquiriram a liderança econômica e cultural, rogando para si o papel colonizador até então capitaneada pela Inglaterra e França. Em seguida, realizaram a substituição da missão de civilização para sua própria versão de modernização e desenvolvimento.
A partir da década de 1970, é possível verificar a ascensão de movimentos ligados à religião e à manutenção de valores tradicionais, em contraponto a alguns avanços nas pautas feministas e LGBTQIAP + e ao estado de bem-estar social que visava a garantia de alguns direitos às minorias. Uma das molas propulsoras desse crescimento ideológico se deu pela aprovação da ERA nos Estados Unidos da América (EUA) em 1972, com apoio do presidente Richard Nixon, garantindo igualdade de direito às mulheres. (LACERDA, 2019).
A oposição à ERA proporcionou a coalizão de grupos religiosos, especialmente evangélicos, que entendiam a Emenda como um incentivo ao divórcio, estímulo ao trabalho da mulher fora de casa e desestabilização dos tradicionais papéis de mulheres e homens na sociedade. Na América Latina, a partir da década de 1970, as organizações evangélicas passaram a desempenhar um papel mais ativo na política internacional. A direita cristã, junto a Reagan, atuou no enfrentamento de ideologias mais à esquerda, a exemplo da Teologia da Libertação, surgida no interior da Igreja Católica na década de 1960. (LACERDA, 2019).
A transmissão ideológica não se dava apenas nos cultos, havendo grande capilaridade pelos programas de televisão, com discursos que englobavam o patriotismo, o capitalismo e o anticomunismo. No Brasil, Jimmy Swaggart, cujos programas eram transmitidos em três mil estações em mais de 140 países, tinha seu programa transmitido pela Rede Bandeirantes. A National Religious Broadcasters (NBR) era uma rede de radiodifusão evangélica, com várias filiais na América Latina, sendo que uma das maiores ficava no Brasil. Ainda na década de 1980, a NBR construiu estações de rádio cristãs com maior alcance, inclusive continentais. (LACERDA, 2019).
Essa disseminação do discurso religioso na América Latina, a partir do amplo investimento financeiro e ideológico, implicou diretamente na defesa do discurso conservador. Ainda que não haja um único gerador do (neo)conservadorismo, a religião é um dos fatores que sustentam o fenômeno.
A cruzada moral anti-gênero na América Latina: movimentos fundamentalistas pela manutenção da família tradicional
Os aportes morais pela defesa do patriarcalismo na América Latina perpassam o (neo)conservadorismo na medida em que buscam manter o padrão heteronormativo, à míngua dos poucos direitos conquistados pelas mulheres e pela comunidade LGBTQIAP+. A concepção de ordem natural, baseada em preceitos biologizantes, embasa a defesa patriarcalista, na busca pela conservação do poder dos homens heterossexuais e brancos.
Como uma das molas propulsoras da cruzada moral anti-gênero na América Latina, pode-se citar a propositura do projeto para alteração constitucional no México, com o reconhecimento da união homoafetiva, feita pelo então presidente Enrique Peña Nieto. O evento gerou uma grande mobilização contrária, cuja defesa se pautou na expressão ideologia de gênero e culminou na convocação de união dos países latinoamericanos para o fortalecimento da Frente Latinoamericana por el Derecho a la vida y a la Família. (MELO, 2020).
Mensagens como “Papá + Mamá = Família Feliz”, “Sin familia no hay patria”, “Dios creó al hombre y a la mujer. No a la ideología de género” estiveram presentes na marcha ocorrida em 10 de setembro de 2016 no México. As mensagens não distam muito daquelas encontradas na mobilização ocorrida na Colômbia, aproximadamente um mês antes, em protesto ao Ministério da Educação e suas cartilhas de educação sexual. As duas mobilizações tinham como eixo central a defesa da família tradicional. (SEMANA, 2016).
Os movimentos encamparam a ofensiva contra a Organização das Nações Unidas (ONU), a partir da declaração feita por Benjamín Rivera Leos, doutor em teologia e líder do movimento “Iniciativa ciudadana por la vida y la familia” do México ao jornal Semana (2016, tradução nossa):
A ONU tem sido responsável por promover a ideologia de gênero no mundo. Ela afirma que você não é homem ou mulher porque está biologicamente determinado, mas que você se torna homem ou mulher de acordo com o que determina a cultura vigente.
A retórica da defesa da família tradicional tem como pilar a constituição do conceito de ideologia de gênero como algo a ser combatido, resguardando a integridade familiar e a inocência das crianças. O pânico moral gerado fomentou a inclusão da defesa da família tradicional como agenda política, e impulsionou o debate acerca da retirada dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Araújo (2020) alerta para a eficácia da expressão “ideologia de gênero” como ferramenta de comunicação, que simplifica o debate e promove as diversas reações aos projetos de educação sexual integral nas escolas. Segundo a autora:
Seja simplificando excessivamente os temas que aborda ou criando um cenário de caos moral, o combate à chamada “ideologia de gênero” lança mão de referências binárias fáceis de entender. Dos tradicionais cartazes com dois blocos de cores azul e rosa e uma mensagem curta e precisa escrita em letras brancas usados pelo movimento Con Mis Hijos No Te Metas – nascido no Peru e hoje presente em vários países – aos vídeos postados nas redes sociais explicando os supostos interesses subversivos que estariam por trás de programas educativos e demais políticas públicas, a conclusão a que se chega é que um menino é um menino e uma menina é uma menina, e que a categoria “gênero” não teria qualquer embasamento científico, causando apenas confusões e distorções. (ARAÚJO, 2020, p. 90).
Esses movimentos, advindos especialmente de correntes religiosas fundamentalistas, buscam cristalizar os papéis do homem e da mulher na sociedade, pois na medida em que as diferenças passam a ser percebidas como não naturalizadas, mas construídas socialmente, os papéis tradicionais também podem ser modificados. Isso significa também abrir a possibilidade de se pensar o lugar correspondente de marido e mulher, pai e mãe. (ARAÚJO, 2020).
A reflexão desses papéis naturalizantes e instituídos pelos grupos conservadores ameaça o campo dogmático e gera as ofensivas contemporaneamente visualizadas. Nesse cenário, o feminismo é visto como culpado pelas disfunções encontradas na sociedade: ao rejeitar a autoridade do patriarca (marido ou pai) e tentar mudar a ordem natural da divisão sexual do trabalho. Com isso, o movimento propaga a ideia que a mulher poderia cumprir o papel tradicionalmente desempenhado pelo homem. Essa subversão seria a razão da delinquência juvenil, da gravidez na adolescência, da pobreza, dentre outros desvios resultantes da ausência de uma família estável. (LACERDA, 2019).
A tentativa de manutenção dos padrões de gênero perpassa a criação do pânico diante da destruição da família e culmina, para aqueles que adotam suas premissas, no freio à autonomia e empoderamento feminino. Ao mesmo tempo em que a mulher precisa do trabalho remunerado para atender ao modelo neoliberal e ao sistema de acúmulo capitalista, também deve manter-se no trabalho doméstico gratuito.
O fato de o homem não mais deter o poder econômico exclusivo na família o coloca na posição de divisão de tarefas domésticas, razão pela qual os debates das diferenças de gênero na paternidade, por exemplo, perpassam pela reação à perda dos privilégios masculinos. Por isso a persistência na família nuclear e heterocêntrica.
Ecos (neo)conservadores no campo educacional
A América Latina possui histórias heterogêneas. Ainda que consideradas suas características de capitalismo periférico e democracia tardia, os países se constituem politicamente de forma diversa. O Brasil não passa incólume ao avanço (neo)conservador global e é atingido, especialmente na última década, por uma disciplina das subjetividades, atravessada pela moral religiosa.
No campo político, pode-se destacar alguns eventos que eclodiram a ofensiva anti-gênero no Brasil, com especial inferência no campo educacional. A edição da primeira Nota Técnica de “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”, publicada em 1999, que garantia o direito, dentre outros, ao aborto nos casos de violência sexual, gerou o enfurecimento dos grupos antiaborto, especialmente pela eliminação do requisito do exame de corpo de delito. Esse debate culminou no Projeto de Lei n.º 5069/2013, proposto pelo então deputado Eduardo
Cunha, visando restringir o acesso ao aborto, sob a alegação de que a ampliação da sua defesa está ligada a uma estratégia de controle populacional das organizações Rockfeller e que:
“Neste sentido, as grandes fundações enganaram também as feministas, que se prestaram a esse jogo sujo pensando que aquelas entidades estavam realmente preocupadas com a condição da mulher.” (BRASIL, 2013, p. 4).
A proposta, ainda em trâmite legislativo, gerou diversos debates no país, especialmente nos grupos feministas, diante da grave violação aos direitos das mulheres que a proposta apresenta. Destarte, houve manifestações contrárias à aprovação do projeto, por diversos segmentos da sociedade.
O debate sobre o direito reprodutivo das mulheres sempre esteve atravessado pela moral religiosa, manifestado incontáveis vezes nos discursos proferidos por políticos, ainda que o país seja laico. A religiosidade atrelada à política ficou evidente, por exemplo, nos discursos no decorrer da votação pela admissibilidade do processo de destituição da presidenta Dilma Rousseff, em que os conteúdos dos votos revelavam a defesa pela família tradicional, em nome da religião e de deus.
Segundo Prandi e Carneiro (2018), um ponto a não se perder de vista quando se trata do processo de admissibilidade do impeachment está no fato de que as justificativas:
oferecidas pelos deputados ao votar a favor ou contra a continuidade do processo de afastamento da presidente, em grande medida, deixaram para trás as razões alegadas para a instauração do processo, que eram de ordem administrativa, e remeteram a ideais e valores de ordem moral, sobretudo a defesa da moral tradicional, que estaria em perigo com a continuidade do governo de Dilma Rousseff. (PRANDI; CARNEIRO, 2018, n.p.)
As declarações e os conteúdos morais carregados nas justificativas, ainda que não inovadores, começaram a aflorar e podem ser vistos como precursores do sectarismo e autoritarismo presentes na cena política atual.
A trajetória das pautas anti-gênero no Brasil é demonstrada no estudo realizado pelo grupo G&PAL, iniciado em 2017, que visava mapear e analisar as ofensivas antigênero na América Latina. O desdobramento da pesquisa se deu pela divisão do mapeamento e análise de cada país da América Latina, ficando as autoras Sonia Corrêa e Isabela Kalil (2020), responsáveis pela investigação d(n)o Brasil.
O primeiro registro identificado no país quanto ao termo “ideologia de gênero” se remonta a 1 de fevereiro de 2011, em discurso proferido pelo então deputado Jair Bolsonaro, posicionando-se contra a distribuição do “Kit gay”, tema que ganharia protagonismo nos anos seguintes, especialmente durante as eleições presidenciais. (CORRÊA, KALIL, 2020).
Por certo, o termo ideologia de gênero foi utilizado muito antes do registro apontado pelas autoras, advindos especialmente da igreja católica e seus núcleos conservadores; no entanto, acredita-se que, no Brasil, esse foi o primeiro registro conhecido por sua ampla divulgação midiática. No entanto, destaca-se que, segundo Rogério Diniz:
Os estudiosos sobre o tema são geralmente concordes em afirmar que "teoria/ideologia de gênero", com suas flexões, é uma invenção católica cuja configuração e emergência se deram entre meados dos anos 1990 e início da década seguinte, ao longo de articulações que envolveram episcopados, o associacionismo pró-vida e pró-família, e organizações terapêuticas de reorientação sexual, sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e com o apoio de vários dicastérios da Santa Sé, como a Congregação para a Doutrina da Fé. (JUNQUEIRA, 2018, n.p.)
Ainda em 2004, o governo federal lançou o programa Brasil sem Homofobia, para combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania de homossexuais. Como desdobramento, a partir da articulação entre organizações civis e políticas e, com o fito de promover a recomendação prevista no componente V do plano de implementação, desenvolveu-se o Escola Sem Homofobia. O projeto visava fomentar a formação inicial e continuada dos educadores na área de sexualidade, além da
[...] formação de equipes multidisciplinares para avaliar os livros didáticos, de modo a eliminar aspectos discriminatórios por orientação sexual e a superação da homofobia; estímulo à produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre orientação sexual e superação da homofobia; apoio e divulgação da produção de materiais específicos para a formação de professores; divulgação de informações científicas sobre sexualidade humana. (BRASIL, 2004, p. 6)
Além do caderno desenvolvido, o material didático do kit educativo era composto por seis boletins (Boleshs), três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz e uma carta de apresentação. Em 2011, após forte pressão da bancada evangélica, a presidenta em exercício, Dilma Rousseff, suspendeu a distribuição do material didático. (CORRÊA; KALIL, 2020).
Esse foi um advento importante para o ativismo conservador, na medida em que suas maiores resistências estão no campo da educação sexual, “por considerá-la uma forma de imposição da ‘ideologia de gênero’ a crianças e adolescentes”. (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 73). Esse ativismo tem como lógica a concepção de que educação sexual deve ser definida pela família e não pelo Estado, bem como que o paradigma dos direitos sexuais visa destruir a família nuclear.
Outra frente de ataques às políticas de equidade se dá por meio do ordenamento jurídico, na tentativa de coibir os debates, com a supressão de diversos termos ligados a gênero, a exemplo de enfoque de gênero, equidade de gênero, violência de gênero, entre outros. As alterações textuais legislativas no trâmite de debates e aprovação da BNCC são exemplos claros da investida e consolidação da base (neo)conservadora no país.
Na primeira versão apresentada, já nas páginas iniciais, era possível identificar o termo gênero como um dos vértices da promoção do respeito. A segunda versão manteve o comando, enquanto a terceira e última versão deixou de constar o termo gênero, sendo substituído por termos como “valorização da diversidade” e “sem preconceitos de qualquer natureza”. (BRASIL, 2018, p. 10).
Em relação à educação infantil, a primeira versão da BNCC colocava como foco do trabalho pedagógico a inclusão da “formação pela criança de uma visão plural de mundo e de um olhar que respeite as diversidades culturais, étnico-raciais, de gênero". (BRASIL, 2015, p. 19). Na última versão, é possível verificar nova supressão do termo gênero, com a substituição pelo “o respeito em relação à cultura e às diferenças entre as pessoas.” (BRASIL, 2018, p. 38).
Para além do acima destacado, a primeira versão apresentava por diversas vezes a temática ligada às questões de gênero e sexualidade, com menção expressa, enquanto à última versão traz em seu bojo expressões mais genéricas, ligadas à "diversidade" ou “diferenças”. A motivação para alteração e supressão das temáticas ligadas a gênero podem ser facilmente verificadas nos discursos proferidos nos debates legislativos, fortalecidos por setores religiosos da sociedade que encamparam campanhas contra o documento na sua forma originária.
No campo legal, as ofensivas anti-gênero se manifestaram por meio de projetos de lei que visavam a proibição de conceitos associados à “ideologia de gênero” e a supressão (ou até a criminalização) da perspectiva de gênero enquanto corrente ideológica. (BIROLI, MACHADO, VAGGIONE, 2020).
No Brasil, como parte dos ataques às políticas de gênero, foi proposto o Projeto de Lei n.º 1859/2015, da lavra do Deputado Alan Rick (PRB-AC) e outros para fins de inclusão de parágrafo único, no artigo 3º da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação)., com o seguinte teor:
Art. 3º [...]
Parágrafo único: A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’.
A justificativa da proposta apresenta a concepção de violação da liberdade da família, a defesa da Constituição Federal e denota às obras de Judith Butler a influência na adoção da terminologia “gênero”. Não obstante, extrai-se da justificativa que a ideologia de gênero já havia iniciado suas construções nos anos 1980, antes de Butler, quando o conceito foi adotado “pelo movimento marxista e feminista, que via nesta teoria uma justificação científica para as teses desenvolvidas inicialmente por Karl Marx e Friedrich Engels.” (BRASIL, 2015, PL 1859, p. 3).
No âmbito judicial também se buscou guarida para a exclusão dos debates de gênero na educação. Após diversas investidas de prefeituras na promulgação de leis que proibiram o debate de gênero nas escolas, o Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 457, julgada em 27 de abril de 2020, decidiu, por unanimidade, pela inconstitucionalidade da Lei 1.516/2015 do Município de Nova Gama, em razão da usurpação de competência legislativa da União.
A decisão também destacou a violação aos princípios atinentes à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como a proibição da censura em atividades culturais e liberdade de expressão. Também fundamentou o julgado o direito à igualdade e o dever estatal na promoção de políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação de minorias.
No Brasil, a tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Lei n.º 8.035/2010, denominado Plano Nacional de Educação (PNE), no período de 2011 e 2020, expandiu a ofensiva anti-gênero por parlamentares. Após, houve um verdadeiro embate pelos setores católicos e evangélicos com o poder Executivo em detrimento das pautas levantadas por feministas, coletivos LGBTQIAP+ e movimentos de direitos humanos. (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020). Ainda segundo as autoras:
Deve-se registrar que o PNE havia sido apresentado pelo Executivo no final de 2010 e, entre os inúmeros objetivos elencados em sua formulação original, encontrava-se, no artigo 2º, a superação das desigualdades educacionais e a “ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e orientação sexual”. A possibilidade de incorporação de conceitos e teses da perspectiva de gênero na política educacional brasileira motivou uma forte aliança de parlamentares católicos e evangélicos no Congresso Nacional, assim como a mobilização de bispos, sacerdotes, pastores e fiéis na sociedade civil brasileira. (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 94).
A pressão realizada pelos atores (neo)conservadores culminou na modificação da versão aprovada em 2012 pelos deputados, a partir das sugestões do pastor batista Magno Malta, sendo aprovada em 2014 sem as menções a gênero e orientação sexual. (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020).
Além disso, não se pode deixar de mencionar a fundação do movimento “Escola sem Partido” (ESP) pelo advogado católico Miguel Nagib, que encabeçou diversas campanhas no país contra a ideologia de gênero. Criado em 2004, tem como slogan “Diga não à doutrinação nas escolas e universidades. Junte-se ao Escola sem Partido”. O ESP é “[...] reconhecido nacionalmente como a mais importante e consistente iniciativa contra o uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária.” (ESP, [2004?]).
A presença dos atores religiosos na política sempre ocorreu no Brasil. No entanto, foi possível observar sua maior ocupação após a ascensão do então candidato à presidência Jair Bolsonaro. Após sua eleição, o Estado virou campo fértil para o alastramento da moral fundamentalista religiosa, especialmente nos debates que infringem o sistema de valores cristãos.
A influência no campo da educação pôde ser verificada já na primeira nomeação ao Ministério da Educação, por meio de indicação do católico Olavo de Carvalho ao teólogo Ricardo Vélez Rodríguez, católico de direita, conhecido por seu combate à Teologia da Libertação e, posteriormente, à perspectiva de gênero. (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020). Após escândalos e desgaste, o Ministro foi exonerado e substituído por Abraham Weintraub, graduado em ciências econômicas, que deixou o cargo posteriormente para assumir cargo no Banco Mundial, em meio a pressão por seu posicionamento contra o Supremo Tribunal Federal (STF), investigações por disseminação de notícias falsas e ofensas contra as instituições democráticas. Antes de deixar o cargo, revogou a política de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação nas Universidades Federais, instituído por Aloízio Mecadante, do governo Dilma Rousseff.
Em seguida, foi nomeado para assumir o cargo o advogado, teólogo e professor Milton Ribeiro. Também envolvido em escândalos, foi afastado após determinação de investigação pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por irregularidades no Ministério da Educação, com distribuição de recursos e acesso privilegiado de pastores aos orçamentos da pasta.
Todos esses movimentos anti-gênero inflamaram o campo educacional, tensionando os grupos que pensam criticamente as perspectivas de gênero e aqueles que visam impedir qualquer reflexão sobre os atuais papéis e condições das mulheres e dos grupos LGBTQIAP+. Nesse tensionamento, a escola como espaço democrático acaba, por vezes, sendo o lugar de defesa dos direitos fundamentais e de erosão dos próprios preceitos democráticos. Isso porque, pari passu às garantias constitucionais brasileiras, previstas na carta magna e nas legislações infraconstitucionais, qualquer abertura reflexiva para os pensamentos que se afastam dos padrões patriarcais e heteronormativos enseja uma pronta reação para a manutenção dos valores.
A prática democrática, para sua realização, requer a criação de espaços além dos limites comumente estabelecidos, ou seja, às margens do poder estabelecido, como a outra face da dominação totalitária, sempre aberta ao inesperado e sensível a uma estratégia futura, conforme alude Warat (1997, p. 111).
Afastando-se de uma concepção unívoca e hegemônica das práticas democráticas, Warat (1992) destaca a necessidade da democracia se afastar de sua bandeira igualitarista, substituindo-a por uma bandeira da diferença. Nesse sentido, elenca para a democracia o lema: autonomia, desigualdade e indeterminação. Com isso, refuta a ideia de consenso majoritário, que cristaliza as subjetividades e aliena os cidadãos a seguirem fórmulas estereotipadas, criadas a partir de um instrumental racional à margem das suas histórias, desejos e necessidades.
Desde sua perspectiva de uma democracia em movimento, o autor discorre sobre o indispensável espaço de resistência diante da pretensa dominação exercida pelas estruturas e instituições. A resistência à homogeneização, por fim, é o que constitui a democracia. (WARAT, 1997)
Não se pode olvidar que as campanhas contra o debate de gênero têm colaborado para a erosão das democracias, pois comprometem os valores e requisitos institucionais fundamentais, como a “[...] pluralidade, laicidade, proteção a minorias, direito à livre expressão e à oposição.” (BIROLI; MACHADO; VAGGIONE, 2020, p. 137). Por conseguinte, a valoração de concepções tradicionais tem expandido lideranças autoritárias, colocando em risco os fundamentos da agenda da equidade de gênero.
Os papéis biologicamente atribuídos às mulheres e aos homens e desempenhados na esfera pública e privada impactam não apenas o campo subjetivo, mas a própria dimensão de cidadania e diversidade nas democracias. Pensando no campo orgânico da educação, especialmente no que tange à prática docente, o silenciamento das mulheres quanto aos seus sofrimentos e os ataques às suas alteridades repercute em suas subjetividades. Estas, como componentes de suas práticas, refletem seu modo de estar na e de produzir a realidade. Por esta razão, a reflexão sobre esses papéis cristalizados é, antes de tudo, um primeiro passo para uma educação emancipadora.
Conclusão
A partir da primeira resposta advinda de uma professora da educação infantil na cidade de Joinville/SC quando da tentativa de promover uma pesquisa que tratasse de uma educação para a equidade de gênero, nos deparamos com uma narrativa preconcebida acerca do que a pesquisa se propunha e, por conseguinte, uma negativa de reflexão junto ao grupo que estava se formando. Essa negativa nos alertou para um atual movimento conservador atuante nos poderes legislativo, executivo e judiciário, que atravessa a educação e visa silenciar os necessários debates e possíveis avanços em pautas de equidade de gênero.
Inicialmente, verificamos que as ondas (neo)conservadoras possuem um contexto histórico advindo dos países do norte que se capilarizou na América Latina junto ao forte investimento religioso na difusão de seus valores morais. Ainda que o (neo)conservadorismo seja multifatorial, a expansão dos preceitos religiosos, especialmente católicos e evangélicos, e alguns avanços em pautas, a exemplo do aborto e direitos reprodutivos das mulheres, criaram um cenário de resistência.
A tentativa de manter a família nuclear como padrão social gerou diversos movimentos, a exemplo da Frente Latinoamericana por el Derecho a la vida y a la Família, do Con Mis Hijos No Te Metas no Perú e o Escola Sem Partido no Brasil. Esses movimentos, para além das manifestações públicas e democráticas, iniciaram uma verdadeira empreitada legal para inibir pensamentos contrários, que culminou na alteração de diversos documentos educacionais que visavam o respeito à diversidade.
A BNCC e o PNE sofreram forte pressão desses grupos durante seu trâmite de aprovação e, por fim, foram retiradas todas as instâncias da palavra “gênero”, sendo substituídas por termos genéricos. Diversos Projetos de Lei foram propostos com a finalidade de vedar os debates para equidade de gênero nas escolas e, por fim, o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF n.º 457, foi instado a se manifestar, julgando inconstitucionais diversos projetos aprovados nas prefeituras do Brasil.
As disputas no campo da educação decorrentes dessas tensões não cessaram, e ensejam uma constante observação e atuação de resistência por parte daqueles que compreendem a democracia como lócus da diversidade e, portanto, um campo de inclusão. A luta pela equidade de gênero tem campo fértil na educação e, como campo democrático, acreditamos ser resistência à cruzada moral para conservação de papéis religiosamente e moralmente preestabelecidos.