Introdução
A política para a formação de professores está diretamente atrelada com as percepções sobre as circunstâncias, os seres humanos históricos, ou seja, a inevitável luta político-ideológica presente na história da humanidade.
A relação entre o que já foi construído historicamente em relação à formação de professor e o que de fato acontece nos cursos de graduação para a docência e na formação continuada é problematizado por Freitas (1992; 2018) quando o mesmo esclarece que boa parte dos problemas relativos à formação do educador no Brasil não dependem de grandes formulações teóricas, ainda que essas possam ajudar, e que tenham seu valor e seu lugar. Para ele, também se trata de questões práticas.
Neste sentido, pensar que “na teoria é uma coisa e na prática é outra”, sugere uma situação um tanto simplória dessa relação. Visto que, ao pensar que uma teoria vem de determinada prática, não há possibilidade de se ter uma teoria consistente, se na prática ela não for outra, se não ela mesma, já que essa começou da mesma prática para a qual retorna agora. É simplório, porque essa está permeada de interesses conflitantes de seus atores, que compõem projetos políticos que são muito divergentes, não havendo possibilidade de convergirem (FREITAS, 2018).
Dessa maneira, muitas ideias, na prática, não convêm a determinados ideais e, por isso, não são implementadas por conta das circunstâncias criadas para defender esses interesses. Nesta perspectiva, ao problematizar acerca da reforma empresarial, Freitas (2018) propõe políticas alternativas e um programa para a resistência aos atuais ataques (processo de privatização e/ou terceirização das Escolas Públicas deste país), fator que também inspira este artigo.
O que nos impede de realizar a mudança na conjuntura econômica, política, social, educacional, muitas vezes, é fruto de como fomos constituídos historicamente, ou seja, são as condições materiais concretas (MARX, 2003) O modo como nossa formação social brasileira e suas conexões internacionais incidem na questão educacional estão calcadas em constructos neoliberais. Fruto de uma “nova ordem mundial”, estamos imbuídos de competitividade; desregulamentação; estado mínimo; desemprego; recessão e tantos outros elementos, os quais fragmentam o processo de construção de uma formação que se espera.
Há, portanto, um novo modo de explorar; novas exigências são feitas para a organização do Estado e esse formula o que se espera do trabalhador; da escola e, consequentemente, da formação dos professores. Exemplo desse fator é a Base Nacional Comum da Formação Continuada de Professores da Educação Básica elaborado pelo CNE, Resolução CNE nº 2, de 20 de dezembro de 2019 que faz parte do pacote governamental (neoliberal) na tentativa de impor mais dificuldades para a formação inicial e continuada numa perspectiva de autonomia e emancipação. (CURADO SILVA, 2020).
Está em curso uma reforma empresarial da educação que vem engendrando uma série de ações no intuito de enfraquecer a educação pública de financiada por recursos advindos dos impostos a fim de possibilitar a entrada maciça da iniciativa privada e sua lógica por meio de políticas com financiamento público para iniciativas privadas, vouchers, homeschooling e outros (FREITAS, 2018). A educação pública não pode estar inserida na lógica do mercado, primeiro por que trata da essência humana e, portanto, um direito inviolável; segundo, porque, se assim o for, se converte em espaço de geração de lucro e passa a ser alvo de disputa entre os grupos financeiros atentos a esse nicho de mercado.
Diante disso, faz-se urgente ações de resistência tal como, a publicização de artigos que objetivem discorrer sobre princípios e elementos, para subsidiar propostas de formação continuada no nível stricto sensu para professores da educação básica na perspectiva histórico crítica.
Se pensarmos no potencial da educação, confirmamos quão temida é pelo sistema capitalista a possibilidade de conscientização que ela gera (FREITAS, 2018). Sendo assim, a “torneira da instrução” (FREITAS, 1992) foi sempre muito bem dosada e agora, com as contradições do capital, está sendo aberta um pouco mais para que as exigências do capitalismo sejam atendidas numa perspectiva neotecnicista, em que acontece a descentralização da gestão administrativa e a centralização dos aspectos pedagógicos (CARVALHO, 2020).
É preciso estar consciente desse processo de luta ideológica para se pensar a formação de professores. Por isso, é importante examinar criticamente e permanentemente as propostas para a área, tentando entender os projetos políticos que nela estão embutidos buscando construir projetos de resistência e autonomia. Nesse sentido, é necessário analisar sobre a formação continuada de professores, e aqui especificamente a relação entre a educação básica e a pós-graduação stricto sensu, apontando princípios para possíveis propostas que subsidiem a formação de intelectuais/pesquisadores para a educação básica.
Aspectos metodológicos
A escolha metodológica é pela revisão de literatura (ALVES-MAZZOTI, 1998) que foi realizada durante pesquisa de doutorado defendida em 2019, em que o texto do professor Luiz Carlos de Freitas, intitulado Em direção a uma política para a formação de professores, publicado em 1992, provocou um movimento de busca por compreensão acerca dos princípios que podem compor uma formação continuada no nível de mestrado/doutorado. Destacamos que, apesar do texto datar do final do século XX, ele ainda corresponde às discussões atuais em relação à formação e por isso constitui referência primordial no presente artigo, levando em conta a historicidade (mudanças de contexto). Além desse fator, Freitas dá pistas da temática em produções mais atuais.
A caminhada metodológica para composição do artigo foi a leitura do texto de Freitas (1992), que traz uma proposta de formação e instigou reflexões sobre quais seriam os princípios e os elementos norteadores para pensar a formação de professores baseada na perspectiva crítica emancipatória. A partir disso, por meio de referências, tais como Gramsci (2001), Vazques (2007), Freitas (1992, 2018), Curado Silva (2020), foram construídos princípios e elementos. Importante destacar que a problematização referente à formação continuada stricto sensu constitui-se, desde 2008, objeto de pesquisa das pessoas que escrevem este artigo.
Nos primórdios da luta por uma política de formação de professores, Freitas (1992) já defendia a reformulação dos cursos de formação dos profissionais da educação e alertava sobre a necessidade de uma ação sistemática em relação à formação de professores. Defendendo uma política global que articulasse formação de qualidade, salários dignos e formação continuada. Conforme levantamento realizado em 2021, esta mesma publicação (FREITAS, 1992) também serviu de base para outros 137 trabalhos que discutem a formação de professores, dos quais destacamos os de Ramos (2017); Koerner (2018); Barreiros (2019); Freitas (2019) que problematizam sobre a não superação do hiato entre a teoria e a prática das instituições formadoras, mesmo depois de três décadas.
Ao fazer um recorte na formação continuada, este artigo tem o objetivo de estabelecer princípios e elementos básicos para constituir uma proposta de formação continuada no nível stricto sensu para professores da educação básica. Não se trata de propor exatamente uma política, mas sim fomentar importantes reflexões que possam auxiliar a composição de uma ideia sobre como seria válida a constituição da formação continuada no nível de pós-graduação stricto sensu para professores que atuam na educação básica.
Para pensar uma proposta de política de formação continuada stricto sensu para professores da Educação Básica
Os elementos constitutivos básicos para a elaboração de uma política global para o profissional da educação são: formação intensiva de qualidade, salário digno ou, mais amplamente, condições de trabalho dignas e formação continuada (FREITAS, 2002; 2018). Esses elementos são altamente integrados, no entanto, para fins didáticos é importante tratar primeiramente da questão da formação. Um dos problemas fundamentais de qualquer proposta formativa está na organização etapista que se coloca: primeiro abre-se a caixinha da teoria para depois revelar os elementos da prática. Isto é, inicia-se uma separação de elementos indissociáveis (teoria e prática), como se fosse possível adquirir conhecimento primeiro, para depois ser praticado.
Sabendo desses limites e pensando na possibilidade de um debate, o presente trabalho traz uma continuidade ao que Freitas (1992) idealizou, por meio de alguns elementos importantes para pensar uma proposta de formação continuada stricto sensu na perspectiva histórico dialética.
A formação do professor acontece majoritariamente de dois modos, por meio da formação inicial e da continuada. A formação continuada tem algumas formas para acontecer, a saber: formação em serviço, autoformação, formação lato sensu, stricto sensu, cursos estruturados, congressos, seminários, dentre outros (GATTI; NUNES, 2008). Aqui destaca-se a formação continuada stricto sensu por seu potencial de propiciar a unidade teoria e prática.
Compreendendo que a formação continuada deve oportunizar a construção da práxis, a qual permite a compreensão do que envolve a atividade do professor, a formação que mais se aproxima dessa possibilidade é a que acontece na pós-graduação stricto sensu. A razão para tal afirmação se dá por entender que é pelo ato de pesquisar, com todos os requisitos necessários para cumpri-lo, que o conhecimento é construído e assim compreendido pelo sujeito que passa por essa formação. Por isso, a proposta aqui é considerar os dois formatos envolvidos na formação stricto sensu – acadêmico e profissional –, considerando sua relevância, não refreando nenhum dos formatos já existentes, mas levando em conta seu desenvolvimento e possíveis superações.
Entendemos a formação continuada como processo de valorização do profissional da educação que oportuniza a construção da práxis através da compreensão dos processos envolvidos na atividade educativa: intenção-ação-transformação. Possibilitando ampliar, repensar os sentidos e significados desta prática de forma a construir uma ação consciente a partir da problematização da realidade, ampliando a autonomia do profissional e promovendo a elevação moral e intelectual dos sujeitos envolvidos. A formação contínua visa a reelaboração a partir da análise crítica do real, os saberes, as técnicas, as atitudes, a ética (CURADO SILVA, 2016, n.p.) e o ato político necessário ao exercício da atividade docente.
Princípios e elementos da formação stricto sensu de professores da educação básica.
Para iniciar a discussão é importante conceituar princípios e elementos. Os primeiros são eixos estruturantes, articuladores, têm poder de organizar e esclarecer as ações em determinada área, por isso, trazem consigo vários elementos que os compõem, para torná-los concreto pensado, real. Por sua vez, os elementos são as bases que sustentam e fortalecem, em seu conjunto, o alcance do princípio.
Os elementos fazem uma alusão aos princípios como eixos estruturantes da proposta; os elementos que compõe a política perpassam pelos princípios, dando forma a uma estrutura, em espiral, que permite um movimento por meio do qual as transformações vão em uma mesma direção, mas em estágios e pontos diferentes. É como se os princípios estruturassem o desenvolvimento e funcionamento da formação stricto sensu, aqui entendida como formação continuada para o professor da educação básica.
Nesse sentido, os elementos seriam interligados, estruturando e consolidando tal formação. A figura 1 traz os princípios e os elementos que constituem a proposta:
Os princípios: a Práxis e a Pesquisa
Pensar uma proposta calcada na compreensão da unidade teoria e prática é defender que a teoria não existe sem a prática e que há a unidade teoria e prática quando se revela teoricamente a prática, a partir disso, entendido como práxis, torna-se possível transformar a realidade.
Para construir práxis é preciso considerar a teoria e prática como unidade, ou seja, a indissociabilidade desses dois componentes deve ser capaz de transformar a verdade prática em verdade teórica, tomando como pressuposto que a prática é atividade humana que produz o homem, mas, dialeticamente, o homem a faz a partir da intencionalidade. Diante disso, fica evidente que o fato de os programas de pós-graduação não tratarem dessa articulação em sua totalidade, precisa ser repensada (BARREIROS DE OLIVEIRA 2019, CURADO SILVA 2008), a fim de garantir que a busca por essa unidade seja um objetivo comum entre os profissionais que realizem esse tipo de formação continuada.
Assim, o maior desafio é fomentar ações que garantam a unidade entre stricto e educação básica, ou seja, mais que articular a teoria e a prática (ou esses dois níveis de ensino), é ter um pensamento e ações tão conjuntas, entrelaçadas, tão transdisciplinares que não exista mais a diferença em termos do objetivo que é a busca da qualidade. Ou seja, é incluir nas ações cotidianas, práticas em que formação stricto sensu e educação básica estejam indissociadas de modo tão singular que o distanciamento deixe de existir, para que haja, de fato, uma unidade teoria e prática e não a articulação delas.
Já a pesquisa, como princípio, tem um papel fundamental na formação de professores, pois é por ela que a produção do conhecimento ganha forma. Assim, o professor da educação básica precisa ser produtor do conhecimento e não apenas reprodutor, como afirmam os estudos de Curado Silva (2008); Barreiros (2013); Ludke (2001); Moraes (2004).
É preciso considerar, ao pensarmos nessa importância formativa, o local institucionalizado para se fazer pesquisa: a pós-graduação stricto sensu. É nesse nível que a pesquisa é feita no sentido estrito ciência, seguindo rigor científico e cumprindo todos os passos para a produção do conhecimento. Importante salientar que essa formação acontece em universidades, nas quais se têm acesso ao ensino, à pesquisa e à extensão nas diversas áreas, contempladas em um conjunto de faculdades, escolas superiores, institutos, departamentos, destinados à especialização profissional e científica.
O conhecimento e sua produção nascem das necessidades, carências e possibilidades concebidas nos momentos históricos, sendo resultados de questionamentos feitos pelos sujeitos (CURADO SILVA, 2008). As questões conduzem à busca por respostas, explicações, compreensões. A ação de buscar, investigar e conhecer é entendida como pesquisa.
A pesquisa deve ser um dos eixos estruturantes da formação continuada do professor e o mestrado e doutorado devem se constituir em um dos espaços por meio dos quais ela se institucionaliza3. Não há dúvidas de que a dimensão de pesquisa confere ao professor um poderoso veículo para o exercício de uma atividade criativa e crítica ao mesmo tempo, questionando e propondo soluções para os problemas vividos dentro e de fora da escola.
A pesquisa vista como instrumento de ensino é um conteúdo de aprendizagem na formação, tornando-se especialmente importante para a análise dos contextos em que se inserem as situações cotidianas da escola, visto que o horizonte se restringe ao domínio dos procedimentos da produção acadêmica ou científica do conhecimento. Segundo Ludke (2001), as propostas vigentes para formação docente tendem a reduzir os aspectos teórico-metodológicos da pesquisa a procedimentos e instrumentos de ensino. Essa redução acaba por dissociar a pesquisa e a produção de conhecimento. Além de ter um processo calcado na experiência cotidiana, naturalizado nas competências empobrecidas, anulando a fronteira entre produzir conhecimento e manipular a prática.
Ao tratar do Método da Economia Política, Marx (2003) expõe a lógica dialética para a construção do conhecimento, indicando o processo de construção do concreto pensado, isto é, o ponto de partida é o empírico, depois prossegue ao abstrato até chegar ao concreto. Esse caminho em que se parte do concreto real até chegar ao concreto pensado, sugere o aprendizado de que a pesquisa deva encontrar no cotidiano, na prática, o seu ponto de partida.
Com a pesquisa, há reflexão, análise, síntese, enfrentamento com o que está instituído em políticas, mas também criação de medidas e soluções para os problemas educacionais. Em seu cerne, a pesquisa na formação de professores é um trabalho humano; uma práxis para dar movimento ao que ainda não foi idealizado nem falado; proporciona uma visão de totalidade que leva à transformação da realidade e das condições objetivas do trabalho docente, possibilitando a superação e a mudança. Por isso, a importância de se construir o conhecimento e não apenas reproduzi-lo.
Os Elementos
Professor mestre/doutor da educação básica como intelectual orgânico
Neste elemento, para se pensar uma proposta de formação no nível de mestrado/doutorado, é preciso que o professor se forme e se considere um intelectual. Gramsci (2001, p. 53) caracteriza todos os homens como intelectuais, já que todo trabalho manual ou instrumental envolve uma técnica; uma atividade intelectual criadora, pois não “[...] existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens.”
Dessa maneira, o intelectual é visto com conotação política por tomar decisões ou cumpri-las nos rumos de determinada cultura ou grupo social. São agentes de controle de diferentes funções, pois sua apropriação de conhecimento lhe permite maior autonomia na tomada de decisões. Isto é, são figuras capazes de provocar adesões e articular consensos para determinado projeto. Nesse sentido, o mestrado/doutorado pode ser um dos espaços para que a formação desses intelectuais aconteça, já que terão a oportunidade de construir conhecimento a partir da pesquisa e possibilitar unidade teoria e prática.
Existem dois tipos de intelectuais: os tradicionais e os orgânicos. Os tradicionais se caracterizam por seu apoio incondicional à classe dirigente de uma determinada sociedade; consideram-se independentes, possuidores de características próprias enquanto grupo, porque como são livres para pensarem e tomarem decisões, se consideram totalmente autônomos e, por isso, sem vínculos com as determinadas classes sociais. Já os intelectuais orgânicos são os que surgem no meio de todo agrupamento próprio com consciência da própria função, não apenas no campo produtivo, mas também no social e no político (GRAMSCI, 2001).
E por que falar dessas diferenças? Para se esclarecer o tipo de função que estes intelectuais têm exercido em seus espaços, tomando esses conceitos, pode-se considerar os professores como intelectuais tanto tradicionais como orgânicos, dependendo de suas práticas. Na perspectiva da organicidade, há uma educação que visa a transformação, assim, a “[...] escola tem um papel estratégico, na medida em que pode ser o lugar onde as forças emergentes da atual sociedade, muitas vezes chamadas de classes populares, possam elaborar a sua cultura, adquirir a consciência necessária à sua organização [...]” (GADOTTI, 1995, p. 24-25). O intelectual orgânico representa o grupo social ou por adesão ou por ter vindo dele, vinculado de alguma forma.
Pensar o intelectual nesse processo de formação stricto sensu é considerar formar os professores em intelectuais orgânicos com formação sólida teórico-prática, vinculado à classe trabalhadora e, assim, a partir da formação no mestrado/doutorado, pensar uma nova sociedade.
Sólida formação teórica-metodológica
A função social do professor diante da tarefa básica de organizador do processo de construção do conhecimento do aluno, é saber construir seu próprio conhecimento. Para isso, é necessário que se tenha uma sólida formação teórica considerando a unidade teoria e prática.
A Base Comum Nacional, que dá ancoragem epistemológica e prática aos currículos de formação de professores, defendida pela ANFOPE, traz que a sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional que consiste em compreender os fundamentos históricos, políticos e sociais. Além do domínio dos conteúdos da educação básica, de modo a criar condições para o exercício da análise crítica da sociedade brasileira e da realidade educacional.
Destarte, é preciso ter uma formação construída em bases científica, pedagógicas, técnicas, política, estética e ética, no sentido de desenvolver e aprimorar as condições do ensino, da extensão e da pesquisa nos cursos de formação de professores. Dessa maneira, é necessário contemplar a formação teórica dos professores com sólida formação teórica-metodológica nos cursos de mestrado/doutorado por meio da pesquisa.
O conhecimento prático é essencial desde que entendido na unicidade, visto que teoria não pode ser pormenorizada, precisando ser entendida como fundamento científico; como estudo das condições objetivas, as quais, em uma ou outra escala histórica, determinam a necessidade e a possibilidade de práxis. Mas é importante destacar que “[...] a teoria tem seu fundamento inesgotável na prática [...]” (VAZQUEZ, 2007, p. 253), afinal, cada vez que a prática traz experiências novas que ultrapassam o limite teórico estabelecido tudo se modifica.
É preocupante a frequência que a discussão teórica tem sido gradativamente suprimida ou relegada a segundo plano nas pesquisas educacionais, com implicações que podem repercutir, a curto e médio prazos, na própria produção de conhecimento na área. O “fim da teoria” traz o movimento que prioriza a eficiência e a construção de um terreno consensual que toma por base a experiência imediata (MORAES, 2003, p. 153).
Dessa maneira, tendo em vista os diferentes formatos e possibilidades de formação stricto sensu para o professor da educação básica, é importante defender que os fundamentos da educação que subsidiam o trabalho desse professor sejam considerados como essenciais.
Articulação entre conhecimento universitário e conhecimento escolar
É preciso maior interação entre as vozes dos professores e as dos acadêmicos, um papel mais decisivo dos docentes na tomada de decisões, de um maior respeito com o conhecimento do professor e de um padrão ético mais acentuado pelos acadêmicos nas suas relações de pesquisa com estes e com as escolas.
Essa reflexão se apoia em Zeichner (1998), ao tratar da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador acadêmico, sugere como solução para ultrapassar a linha divisória entre os professores e os pesquisadores acadêmicos alguns apontamentos, entre eles: a) comprometimento com o corpo docente em realizar ampla discussão sobre o significado e a relevância da pesquisa conduzida; b) empenho nos processos de pesquisa, colaborando genuinamente com os professores e rompendo com os velhos padrões de dominação acadêmica; c) suporte às investigações feitas por professores aos projetos de pesquisa, acolhendo os resultados dos trabalhos como conhecimento produzido.
Sem mudanças estruturais nas universidades pode não haver construção de um caminho de transformação, pois os diferentes tipos de pesquisa e pesquisadores precisam ter suas vozes acolhidas com o devido rigor científico. Em muitos programas de pós-graduação, a sensação que se tem é que quão mais próxima uma pesquisa estiver dos professores da educação básica e das escolas, mais baixo é seu status e menor a chance de obter financiamento (OLIVEIRA, MOURA, SILVA, 2020). A ideia de tratar com seriedade o conhecimento produzido pelos professores como um conhecimento educacional a ser analisado e discutido é uma ideia que ainda pode ofender a muitos e que traz sérias consequências para quem assim procede na academia.
É preciso estabelecer uma aliança entre os conhecimentos universitários e os conhecimentos escolares, sem nivelá-los e hierarquizá-los, mas sim valorizando-os, entendendo-os como unidade necessária para a formação de professores. E se isso vier do espaço institucionalizado para se fazer pesquisa, terá muito mais legitimidade e significado para a formação continuada de professores.
Trabalho docente
Falar sobre trabalho docente como elemento é considerar, o que Marx (1985) aponta, a ideia de que o trabalho é a transformação da natureza e do próprio homem, por isso é o processo de humanização do sujeito. Ao pensar o trabalho do professor, nesse contexto, pode-se entender o sentido de que a educação faz parte da formação humana. Também é espaço de compreensão dos limites e das possibilidades da ação transformadora, orientada pelos compromissos com a classe que vive do trabalho (KUENZER; CALDAS, 2009). Nessa perspectiva, trata-se de uma categoria que abarca, tanto o sujeito que atua no processo educativo na instituição de educação como nas diversas caracterizações de atividades laborais realizadas.
O trabalho docente é todo ato de realização no processo educativo, compreendendo atividades e relações presentes nas instituições educativas; extrapolando a regência de classe (OLIVEIRA; DUARTE; VIEIRA, 2010). Na verdade, é o que se realiza com a intenção de educar, o seu labor, sua experiência no processo educativo no lugar de quem educa ou no lugar de quem contribui para educar. Para Oliveira, Duarte e Vieira (2010), a ampliação sofrida pelo rol de atividades dos professores na atualidade tem obrigado a serem redefinidas suas atribuições e o caráter da atuação dos professores no processo educativo.
Consequentemente, o trabalho educativo “[...] é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens [...]” (SAVIANI, 2011, p. 6). Pensar essa coletividade é compreender que, assim como aponta Marx (1983), a verdadeira alavanca do processo de trabalho global não é o trabalho individual, mas sim, cada vez mais, o coletivo, significando que ao cooperar com outros de um modo planejado, o trabalhador coletivo se desfaz de suas limitações individuais e desenvolve a capacidade de sua espécie.
Segundo Curado Silva (2018), no Brasil, o trabalho docente não é um trabalho de dedicação exclusiva na maior parte do país. O ato de ensinar é uma das poucas profissões que permite ao professor acumular, no setor público, dois cargos para completar sua jornada de trabalho e assim compor seus salários. Ao pensar em uma proposta, na qual o ensino fosse compreendido como um segmento profissional que exerce função de Estado, situações iguais a essas dificilmente aconteceriam, pois não haveria tantas disparidades salariais de diferentes entes do poder público ou da iniciativa privada.
É preciso, portanto, que o trabalho docente seja elemento basilar de uma política de formação stricto sensu de professores da educação básica, pois é esse trabalho, responsável por formar indivíduos, que realiza o processo de humanização e de luta contra a busca dos reformadores empresariais em desqualificar e aligeirar a formação docente (FREITAS, 2014; 2018) o que tornaria o professor um profissional de fácil substituição, por isso, pensar em princípios e elementos ancorados em uma perspectiva crítica dialética é fundamental.
A docência deveria ser o que une todos os envolvidos na formação de professores, isto é, à docência como a base da identidade de todos os profissionais da educação. Ao se pensar uma proposta de política de formação continuada no nível stricto sensu, é preciso reforçar que formar o professor é o ponto de partida.
Valorização docente
Sobre esse elemento recorremos ao Dicionário: trabalho, profissão e condição docente, no qual Leher (2010) aponta que se trata de uma expressão muito utilizada nos discursos (escolas, sindicatos, governos, imprensa, partidos) que abrange dimensões objetivas e subjetivas. A dimensão objetiva consiste em expressões diversas, entre elas, regime de trabalho; piso salarial profissional; carreira docente com possibilidade de progressão funcional; concurso público de provas e títulos; formação e qualificação profissional; tempo remunerado para estudos; planejamento e avaliação; assegurado no contrato de trabalho; condições de trabalho. Já a dimensão subjetiva abrange expressões que sugerem reconhecimento social; auto realização; dignidade profissional.
Levando em conta as especificidades da docência, para analisar a valorização do magistério é preciso considerar as “[...] exigências de formação mínima, as regras de acesso aos cargos e as principais frações de classe em que são recrutados os docentes dos diferentes níveis e modalidades de educação.” (LEHER, 2010, n.p.).
Pensar nessa formação mínima corresponde ao que Freitas (1992) já indicava quando pensou o Programa de formação de professores, ao defender que essa formação precisa acontecer na faculdade de educação e na universidade, bem como pensar como se constitui em outros lugares a carreira docente.
As entidades educacionais, em publicação com posicionamento contra o Conselho Nacional de Educação que Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada -2020), explicitam que este documento intenta “dissociar a formação continuada da valorização dos profissionais da educação e da construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico da instituição de educação básica, ao prever a “autonomia dos professores para serem responsáveis por seu próprio desenvolvimento profissional” (BRASIL, 2020, p.13). A valorização é constantemente atacada (CURADO SILVA, 2020). Exemplo de ações que consolidam a desvalorização da carreira docente é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 186/2019, chamada de PEC Emergencial que impôs o congelamento dos salários aos servidores públicos federais, estaduais e municipais, incluindo professores, ao impedir reajustes por 15 anos.
O fator do Estado ser responsável pela formação de professores já havia sido apontado por Curado Silva (2018, p. 104) ao afirmar que, para o contexto brasileiro, a formação integral de professores precisa ser assumida pelo Estado em suas universidades e/ou faculdades estaduais e municipais como “[...] forma de garantir um projeto de formação, a qualidade a as condições concretas para efetivação do profissional docente”. Além da importância de estar a cargo de instituições públicas, gratuitas e laicas, desinteressadas em investimentos mercadológicos.
Esse fator, nos leva a refletir no que Leher (2010) já apontava ao afirmar que a autonomia dos trabalhadores da educação segue sendo determinante para a melhoria da carreira, do salário e das condições de trabalho para assegurar que a docência possa ser um ato criativo, emancipado e uma profissão reconhecida como estratégica para a democracia. (OLIVEIRA, MOURA e LIMA, 2021)
A valorização do magistério envolve temas que seguem “[...] obstaculizando a plena realização do trabalho como ontologia do ser social.” (LEHER, 2010, n.p.). As lutas em prol da valorização do magistério da educação básica permitiram avanços, tais como a inclusão do tema também na LDB, particularmente no art. 67.
Consentaneamente, mesmo considerando tais conquistas e avanços, é preciso lutar pelo progresso dessa questão. Valorizar o magistério significa investir maciçamente na formação; proporcionar condições concretas de trabalho; valorização social; profissional e salarial dos professores, na desproletarização do seu trabalho e na atratividade da carreira docente.
Considerações
A sistematização dos princípios e dos elementos estruturantes para organizar uma proposta de formação continuada stricto sensu para o professor da educação básica é um desafio que se coloca para a prática do intelectual orgânico e deve ser pensada a partir da referência da epistemologia da práxis. Sob bases da relação dialética e a partir dos pressupostos apontados por Curado Silva (2018), baseada em uma construção de conhecimento sobre a formação e o trabalho docente, que subsidie a promoção da dimensão teórica e prática como unidade e, portanto, a partir do estudo criterioso e crítico da práxis.
De maneira geral, para edificar uma política de formação docente é preciso: a responsabilidade total do Estado pela formação de professores, seja inicial ou continuada, sendo pública, gratuita, presencial e de qualidade, o que significa ter a práxis e a pesquisa como eixos estruturantes para a formação, que são constituídos pelos elementos: professor como intelectual, articulação entre conhecimento universitário e escolar, sólida formação teórica-metodológica, trabalho docente, valorização docente.
A formação continuada no nível stricto sensu, baseada em princípios e elementos construídos a partir da perspectiva histórico-crítica, pode significar a garantia de processo formativo para intelectuais orgânicos. Pois, considera as múltiplas determinações e suas implicações na constituição dos sujeitos, além da possibilidade de vivências ancoradas numa perspectiva emancipatória, em que as relações universidade e escola sejam horizontalizadas e éticas.
É preciso compreender que a pós-graduação stricto sensu precisa se dedicar a compreensão de determinada realidade social, pois o caminho é o conhecimento e sua construção, disponibilizando esse conhecimento para que os posicionamentos sejam conscientes, pois é preciso pensar e problematizar a realidade para além da aparência, visando ações de resistência e transformação.
Por fim, agradecemos à Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.