Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar a recente expansão da Educação a Distância (EaD) no âmbito da Educação Superior, como ela tende a afetar a formação docente e possíveis consequências às iniciativas de educação popular conhecidas como cursinhos populares pré-vestibular. Os Cursinhos Populares (CPs) se apresentam aos(às) jovens das classes populares como alternativas que propõem uma educação orientada à aprovação no vestibular, para segmentos tradicionalmente excluídos desse nível de ensino, ao mesmo tempo em que promovem uma educação crítica, socialmente orientada, voltada à reflexão e à emancipação. De acordo com Zago (2008) os cursinhos são constituídos principalmente pela mobilização coletiva de pessoas que atuam em prol da democratização da educação. Além disso, a autora ressalta que essas práticas não são isoladas ou ensimesmadas, pelo contrário, fundamentam-se em uma relação estreita com o contexto social, econômico e de trabalho dos(as) jovens por elas atendidos(as).
Há claramente uma contradição nos propósitos dessas iniciativas de educação popular. De um lado, o foco do ensino é instrumental, recai sobre o treino para a aprovação no vestibular, mas, de outro, os CPs estimulam a formação reflexiva e politicamente orientada. Os(as) professores(as) que atuam nos CPs têm um papel fundamental, pois é na sua ação cotidiana, a cada aula, que essa contradição fica mais evidente, além de que, “[...] a formação geral de qualidade dos alunos depende de formação de qualidade dos professores” (LIBÂNEO, 2014, p.83). Daí a importância de observarmos a tensão sobre o aspecto formativo desses(as) profissionais, pois:
A formação cultural transformou-se em pseudoformação (halbildung) socializada – a onipresença do espírito alienado. Dada a sua gênese e significado, a pseudoformação não precede a formação cultural, mas a sucede (ADORNO, 1993, p.1).
Adorno (1993) faz a crítica dos processos de formação cultural em diferentes momentos do capitalismo. No Liberalismo, sua crítica recai sobre o sentido tradicional da formação cultural, entendida como erudição e refinamento teórico em diversos campos do conhecimento, o que está atrelado a um caráter de classe. Isto ocorre eminentemente em virtude da divisão social do trabalho, que libera alguns poucos indivíduos da imposição do trabalho braçal – a burguesia -, permitindo assim tempo para se dedicarem aos estudos e à reflexão, enquanto a maior parte da população – o proletariado - necessita submeter-se ao trabalho braçal para sobreviver, ficando alijada dessa mesma formação cultural.
Por sua vez, ao longo do Estado de Bem-Estar Social, a crítica de Adorno volta-se aos mecanismos de produção, circulação e apropriação dos produtos da indústria cultural, uma maquinaria iniciada nas primeiras décadas do século XX que passa a incentivar fluxos enormes de informação, publicidade e entretenimento de massa como substitutos da cultura, degradando-a em seus próprios termos ao ser tratada como matéria industrialmente manipulável. Além disso, desde então, a indústria cultural tem promovido uma relação superficial e acrítica dos indivíduos com as manifestações culturais que, mal compreendidas, passam a não acrescentar nada à vida e à formação, prejudicando ao invés de estimular a emancipação dos indivíduos. Essa maneira contemporânea de relação com a cultura, que a converte em mercadoria, massificando-a, e ao mesmo tempo empobrece a formação, é identificada por Adorno (1993) como pseudocultura.
Em relação à educação, as constantes reformas nos sistemas educacionais, a partir da primeira metade do século XX, tendem, predominantemente, a induzir uma apropriação utilitária e instrumental dos conhecimentos, estimulando um falso processo de formação, chamado por Adorno (1993) de pseudoformação, o que define a forma dominante da consciência contemporânea. Uma das consequências da pseudoformação é o prejuízo à constituição psicológica dos indivíduos, padronizando as subjetividades e impossibilitando a formação pessoal (ADORNO, 1993). A cisão entre trabalho intelectual e manual afeta, portanto, a consciência dos indivíduos, mas também o papel das instituições na sociedade. A lógica da mercadoria atrela-se à educação, entranhando-se profundamente nas relações institucionais.
Os Frankfurtianos produziram também uma crítica potente à racionalidade que toma forma na sociedade industrial, chamada por Marcuse (1973) de racionalidade tecnológica. Se por um lado, o capitalismo industrial é capaz de “entregar os bens” mais amplamente, em virtude de sua alta capacidade técnica, por outro, proporciona uma integração dos indivíduos à sociedade que neutraliza o pensamento crítico e a oposição ao existente, constituindo-se como um sistema de dominação que determina as relações em todas as esferas sociais. Para o autor, “a administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há muito, em fator vital na reprodução do sistema” (MARCUSE, 1973 p. 14). E, ainda em seus termos: “[...] a racionalidade tecnológica protege, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária” (MARCUSE, 1973, p. 154).
Na sociedade totalmente administrada, a manutenção da produção é em si o que há de mais importante e não o bem-estar dos indivíduos, tornando a sociedade cindida sob uma racionalidade que é em si irracional. A dominação advinda da racionalidade tecnológica visa administrar a sociedade como um todo, orientando todos os aspectos da vida para a produção e o mundo do trabalho. A conformação a esse padrão afasta (se não, impede) os ideais de emancipação e formação (MARCUSE, 1973).
Na Educação Superior (ES) brasileira, essa racionalidade tem se expressado de diferentes formas. Recentemente, o país teve uma onda de expansão desse nível educacional, entre as décadas de 1990 e 2010, estimulada por políticas públicas, como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni)3. Nesse processo, algumas instituições identificadas como “universidades de pesquisa” passaram também por ampliação no número e oferta de vagas, mas não de modo suficiente a viabilizar o acesso a largas frações da população. Foram as Instituições de Ensino Superior (IES) privadas que no geral absorveram a elevada demanda, utilizando-se de um forte apelo comercial: a oferta de cursos que supostamente promovem melhor inserção no mercado de trabalho, cada vez mais exigente em termos de qualificação e em constante transformação - principalmente com a ampliação do setor de serviços, que cresceu comparativamente aos outros setores e vem incorporando a classe trabalhadora para além do escopo da fábrica.
Mais recentemente, é possível acompanhar uma forte tendência de transferência das matrículas de cursos presenciais para os cursos a distância nas IES privadas, conforme ilustra a Figura 1:
De acordo com Bielschowsky et. al. a partir de 2015, as matrículas presenciais
“[...] experimentaram queda sustentada, revertendo a tendência de crescimento das décadas anteriores. Ao mesmo tempo, a curva que representa as matrículas em EaD apresentou aceleração, provavelmente ainda mais acentuada por conta da pandemia de Covid-19”. (2022, p. 31).
Esse movimento mostra que consumidores de cursos de graduação foram estimulados a ingressar na ES por essa modalidade de ensino. Os autores mostram ainda que a modalidade EaD é utilizada como um instrumento de financeirização4 da educação superior no país, revelando que:
[...] 77% de todas as matrículas em EaD (IES públicas e privadas) e 81% de todos os novos ingressos em EaD no ano de 2020 foram realizadas pelos dez grandes grupos privados, sendo que boa parte desta oferta está sendo feita em cursos/IES de baixa qualidade e com altíssimas taxas de evasão (BIELSCHOWSKY et. al., 2022, p. 31).
Essa baixa qualidade é identificada pelos autores a partir dos resultados obtidos por concluintes de cursos EaD no Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade), em comparação com cursos presenciais das mesmas IES, revelando uma relação muito deficitária dos matriculados com os supostos serviços oferecidos e propagandeados por essas IES - tais como, o desenvolvimento de habilidades, competências e conhecimentos voltados às demandas do mercado de trabalho no intuito de maximizar a competitividade no mercado de trabalho. Além disso, “[...] apenas 43,5% dos estudantes das universidades privadas, que ingressaram ao longo do ano de 2018, ainda estavam ativos em 2019” (BIELSCHOWSKY et. al., 2022, p. 67), ou seja, nas IES privadas há um quadro extremamente grave de desistência entre os estudantes, nos dois primeiros anos de curso: uma taxa média de evasão de 56,5%, em que mais de metade dos ingressantes não permanece estudando após dois anos de curso.
Vale ressaltar que a elevação mais pronunciada da curva da EaD, na Figura 1, coincide com a sobreposição de dois cenários: as reformas educacionais realizadas pelo governo de Michel Temer5 e, em seguida, a pandemia da Covid-19, como mencionado anteriormente. Esses dados revelam que a política de expansão da ES tem consolidado um modelo de expansão altamente precarizado, que responde a interesses de grandes grupos privados com fins lucrativos, que oferecem ensino à distância de baixo custo e qualidade, à exceção das IES confessionais, 42,4% dos matriculados nas IES privadas frequentam cursos com nota Enade 1 ou 2 em uma escala que vai a 5 (BIELSCHOWSKY et. al., 2022), altas taxas de evasão e alta relação entre o número de estudantes por docente em média, são 105 matriculados (as) por docente (BIELSCHOWSKY et. al., 2022) . Isto é, uma racionalidade irracional, que contradiz os propósitos subjacentes à ampliação das oportunidades de formação aos jovens que conseguem alcançar os bancos universitários.
Segundo Silva (2013), outro aspecto importante dessa (ir)racionalidade é a utilização massiva de avaliações externas como instrumentos que supostamente auxiliam a formulação de políticas educacionais por meio da análise da eficiência das redes de ensino. Nessa chave, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), atualmente o principal instrumento de ingresso na ES, torna-se o parâmetro dos conteúdos a serem ensinados e insere a lógica de produção e do controle de qualidade das redes de ensino, a partir de um padrão externo ao trabalho pedagógico realizado nas escolas. Com isso, impõe a toda a Educação Básica a adaptação curricular a esse modelo de avaliação (SOUZA; MINHOTO, 2020).
Importante destacar que, desde o final da década de 2000, com a forte crise econômica mundial e em oposição às promessas de empregabilidade subjacentes a esses cursos de graduação, que tiveram expansão frenética e, mais recentemente, como efeito da pandemia de Covid-19, o mercado de trabalho brasileiro foi tomado por uma diminuição no número de postos, a ampliação de formas precárias de contratação de mãode-obra e o enxugamento dos direitos trabalhistas, estimulando, com isso, o crescimento da economia informal. Tal situação revela que o desenvolvimento científico e tecnológico característico do capitalismo tardio, ao contrário de suavizar o processo de trabalho, vem recrudescendo o desemprego, extinguindo profissões centenárias e ampliando a extração de mais-valia em larga escala.
No entanto, os problemas sociais e educacionais têm sido tratados pelas administrações públicas como questões de gestão, de aplicação de técnicas corretas para a solução de problemas e as privatizações vêm a reboque desse discurso, se impondo como solução, já que no imaginário geral o mercado privado é lócus da eficiência técnica (ADRIÃO, 2022).
A ampliação das condições favoráveis a uma pseudoformação generalizada, principalmente nas IES privadas, contribui para o impedimento da relação ensino-aprendizagem. Há, quando muito, um estímulo à adaptação alienada dos(as) estudantes e a mera reprodução de técnicas esvaziadas de seus conteúdos. As implicações desse fenômeno para a sociedade são que os indivíduos não refletem mais sobre os motivos estruturais que levam à reprodução do sofrimento, das desigualdades, da pobreza e da violência, não havendo espaço para o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a estrutura e as contradições inerentes ao funcionamento do capitalismo contemporâneo.
Desafios à formação docente na bibliografia recente
É nesse contexto que a pseudocultura se impõe, que a formação (bildung), entendida aqui como a capacidade de fazer experiências e a possibilidade de uma alteridade que permita a consciência, acaba transformando-se em pseudoformação (ADORNO, 1993). A constituição subjetiva dos indivíduos é severamente alijada, já que a pseudoformação nega a possibilidade de experimentar o mundo. Ademais, a ideologia acaba por encobrir as relações de dominação que se apresentam neste cenário. Por sua vez, a indústria cultural torna a dominação mais sutil e potente, ocupando o espaço que a formação e o autoconhecimento poderiam prosperar (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Desse modo, a maneira como os(as) docentes são formados(as) ganha relevância, já que tem implicações diretas sobre a dimensão política na qual os cursinhos populares estão historicamente inscritos e sobre a qual buscam se debruçar.
A ampliação do atual modelo de EaD na educação superior deve gerar obstáculos maiores ao desenvolvimento de uma consciência crítica junto aos(às) licenciandos(as), muito dos(as) quais atuam como docentes nos cursinhos populares. Segundo Nascimento e Cruz (2021), a pandemia apenas consolidou a presença da EaD no setor educacional, visto que já vinha apresentando um crescimento ascendente nos anos anteriores (a Figura 1, apresentada acima, corrobora esta constatação). Uma faceta dessa consolidação é o redirecionamento da formação docente pautada por um viés pragmático e utilitarista, oferecida a preços módicos e sem a preocupação com a autonomia e o senso crítico (NASCIMENTO; CRUZ, 2021).
Outra faceta da ampliação da EaD é o de que as empresas educacionais têm alterado a divisão do trabalho docente, fragmentando ainda mais as atribuições e especificando o seu raio de ação, o que acarreta mudanças tanto na remuneração de professores quanto em sua autonomia. Esta nova divisão do trabalho, cria professores, tutores presenciais e on-line, além de professores responsáveis especificamente por desenvolver conteúdos e ementas das disciplinas (NASCIMENTO; CRUZ, 2021).
Especificamente em relação aos cursinhos, a pandemia trouxe uma série de dificuldades. Muitos CPs optaram por cessar suas atividades, enquanto outros decidiram manter as aulas em formato EaD, a despeito da ciência das dificuldades para a grande maioria dos(as) estudantes no acesso à tecnologia adequada e de outras condições ainda mais essenciais, como a ausência de local para o estudo na moradia, a necessidade de trabalhar, a falta de recursos para a alimentação com o desemprego dos responsáveis etc. Nessa direção, muitos CPs buscaram ampliar o seu leque de ações, passando a distribuir cestas básicas, kits de higiene pessoal, suporte psicológico, entre outras (PEREIRA; CUNHA, 2020).
Importante também é refletir sobre o papel da formação de professores que atuam nos CPs e das próprias ações desses cursinhos em contexto de extrema dificuldade, mas que foi atravessado, por exemplo, pela decisão do Ministério da Educação (MEC), no ano de 2020, de dar continuidade ao ENEM, como se a pandemia não tivesse trazido qualquer mudança no cotidiano ou prejuízo maior à juventude brasileira. Neto e Silva (2020) apontam para a presença da lógica neoliberal que ignora veementemente o risco do contágio pela Covid-19, ao fazer circular o discurso do esforço individual e da competitividade agressiva como sendo os principais aspectos para o sucesso no vestibular e na vida. Nessa realidade fragmentada, a interação entre docentes e estudantes, tão importante nos CPs, foi profundamente afetada.
Bonaldi (2015) aponta que a rotatividade de professores (as) nos CPs é extremamente elevada. E reforçamos aqui que esta rotatividade se dava mesmo antes da pandemia. No entanto, durante e após a pandemia poucos(as) docentes permanecem de forma regular nos CPs por uma vasta gama de fatores. Além disso, Bonaldi (2015) indica a existência de uma cisão entre “professores militantes” e “professores voluntários”. Essa diferença reside na intensidade da dedicação às atividades propostas. Enquanto para os(as) militantes há uma consonância entre visão política de mundo e as atividades realizadas nos cursinhos, os(as) professores(as) voluntários(as) têm como foco somente a sala de aula, participando por menos tempo e abandonando outras atividades muitas vezes por discordâncias políticas e por outros projetos de realização individual (BONALDI, 2015).
Essa divisão reflete a questão suscitada por Adorno (1986) acerca da dicotomia entre técnica e humanismo. O autor postula que há um predomínio da prática, orientado à solução de problemas técnicos, os quais seriam mais fáceis do que lidar com conceitos filosóficos e outras abstrações conceituais (ADORNO, 1986). No entanto, pontua que questões relacionadas ao humanismo não deveriam estar restritas apenas a um campo do conhecimento, já que são responsabilidade do conjunto da sociedade. Esta divisão, que remete à intensa divisão do trabalho, é sintomática do distanciamento dos seres-humanos de si mesmos, afetando a possibilidade de fazer experiências.
Por outro lado, a massiva ampliação das matrículas em EaD, como se pode ver na Figura 2, a seguir, e da estrutura que aprofunda a divisão do trabalho docente, faz com que a dimensão utilitarista da formação ganhe ainda mais preponderância, reafirmando a abstrata divisão entre técnica e humanismo apontada por Adorno. O fato dos CPs também apresentarem esta divisão é significativo da fratura na cultura apontada por Adorno. Também é indicativa da presença da adaptação, reduzindo as capacidades de autorreflexão e crítica social, tão almejadas pelos cursinhos.
O ano de 2018 representou, na série histórica, o ponto de inflexão no total de matrículas das modalidades presencial (com 810.766 matrículas) e EaD (com 817.910 matrículas) nos cursos de Licenciatura do país. Em um ambiente pós-pandêmico, com intenso aumento da EaD, as possibilidades de aprofundamento da divisão entre técnica e humanismo deverão ser ainda maiores.
Nesse contexto, a questão que se coloca diz respeito à viabilidade de manter um ambiente mobilizado politicamente, entre as equipes de docentes e gestores dos CPs, com disposição para enfrentar os embates fomentados pelos ataques do capitalismo contemporâneo em relação à juventude, mantendo acesa a consciência da função política e de crítica da sociedade, ou se estamos caminhando em direção ao esvaziamento das atividades que vão além do treino para o vestibular, ou mesmo no sentido de uma despolitização mais profunda da comunidade, com vistas a manter meramente o funcionamento e a garantia das aulas nesses locais.
Esse desafio ganha maior importância mediante a ampliação das condições em que viceja a pseudoformação e que têm atingido os(as) licenciandos(as), gerando consequências também aos currículos dos cursinhos populares. É possível verificar, nos números da Tabela 1, que é a iniciativa privada com seus cursos a distância que vem dominando a oferta de vagas e as matrículas nos cursos de Licenciatura.
EaD | Presencial | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Ano | Pública | Privada | Total | Pública | Privada | Total | |
2013 | 96.662 | 352.920 | 449.582 | 503.056 | 421.536 | 924.592 | |
2014 | 99.109 | 439.843 | 538.952 | 505.514 | 422.169 | 927.683 | |
2015 | 86.802 | 476.749 | 563.551 | 492.195 | 416.184 | 908.379 | |
2016 | 81.881 | 559.699 | 641.580 | 497.233 | 381.681 | 878.914 | |
2017 | 110.145 | 635.466 | 745.611 | 491.694 | 352.135 | 843.829 | |
2018 | 113.767 | 704.143 | 817.910 | 498.660 | 312.106 | 810.766 | |
2019 | 105.790 | 797.498 | 903.288 | 502.463 | 281.616 | 784.079 | |
2020 | 104.524 | 889.750 | 994.274 | 453.991 | 215.416 | 669.407 |
Fonte: Elaborada pelos autores com base nas Sinopses da Educação Superior do INEP.
A Tabela 1 mostra que, desde 2014 nas IES privadas, o número de matrículas nos cursos de Licenciatura na modalidade EaD tem sido maior que o presencial e essa diferença entre as modalidades só vai aumentando. Em 2020, as matrículas EaD se multiplicaram em duas vezes e meia sobre 2013, já nas matrículas presenciais o número caiu pela metade. Nas IES públicas, a matrícula em ambas as modalidades permaneceu praticamente constante no mesmo período.
Nos CPs, muitas atividades não possuem material unificado ou próprio, tampouco contam, como nas escolas regulares ou cursinhos comerciais, com a figura da coordenação pedagógica para organizar as atividades a serem propostas. Com isso e em vista desse acesso e formação precarizados no âmbito da ES, ampliam-se as possibilidades de haver a presença de conteúdos e formas de relação que acabem indo na contramão do desejo de emancipação desses cursinhos - uma tendência cada vez mais significativa mediante o contexto até aqui apresentado.
De acordo com Lima (2019), que realizou levantamento e análise de documentos encontrados sobre o ensino de História em cursinhos populares:
O excesso de conteúdos distantes da realidade das/os estudantes e a priorização de uma História eurocêntrica, onde o continente americano surge apenas no período da conquista colonial, uma História marcada por heróis, guerras e impérios distantes, são elementos que caracterizam a cultura hegemônica. Estas escolhas expressam um “modelo ideal” de sociedade, de sujeitos e de civilização. Um currículo hegemônico exclui temas e vozes que são centrais para compreensão da nossa história (LIMA, 2019, p.47).
Em uma situação de ampliação da EaD, em que sequer há discussão, problematização ou ressignificação do teor dos conteúdos, vemos reforçados os modos autoritários e esvaziados de sentido em sala de aula. Lima (2019) constata de início que não há nada de emancipador nas escolhas dos conteúdos na disciplina de História. Desse modo, o caráter oculto, referente ao trabalho pedagógico e didático dos(as) professores(as) se mostra imperativo, abrindo possibilidades para ações não necessariamente emancipatórias.
Essa possibilidade se alinha às consequências trazidas pelo aprofundamento do neoliberalismo nas instituições de ensino. Como é necessário ampliar o gerencialismo educacional e a dissolução de possíveis resistências, encontra-se:
O que a formação dos futuros gestores parece prezar especialmente é que se leve o mais longe possível a separação e o afastamento do corpo professoral e, sobretudo, dos valores profissionais e intelectuais deste último. Esse trabalho de divórcio é necessário em particular no caso daqueles que, tendo sido docentes, ainda têm certa ligação com seu grupo de origem. [...] Aliás, a constituição – que está longe de acontecer – de um corpo unificado, homogêneo, pode ocasionar conflitos graves, caso os professores consigam manter sua identidade coletiva (LAVAL, 2019, p.270).
Constata-se como a necessidade de suplantar a unidade dos professores, por meio de uma formação específica dos diretores/gestores, se expande para a própria formação dos professores nas universidades. O que por sua vez facilita muito a implementação das medidas neoliberais nas escolas, visto que estes futuros docentes já internalizaram a cosmovisão neoliberal.
Nessa direção vale trazer a proposta marcuseana de longa marcha pelas instituições, conceito que apresenta a estratégia de, uma vez inserido numa determinada instituição, aprender o máximo possível a fim de desenvolver contra-instituições e contrapoderes não hegemônicos, orientados para a emancipação (MARCUSE, 2010). Levando em consideração o exposto, a pseudoformação presente na formação docente somada a tantos outros avanços do neoliberalismo na educação, tal qual Novo Ensino Médio, pode-se pensar sobre uma contra-marcha pelas instituições não hegemônicas, dificultando ainda mais os esforços emancipatórios, já que o aspecto totalizante da cosmovisão neoliberal se acentua cada vez mais por todos os níveis educacionais. O trecho abaixo ajuda a esclarecer este movimento:
Pensemos nas ofensivas contra liberdades acadêmicas e no desprezo à ciência e às artes. Sobre isso, o Brasil oferece uma gama completa de atentados governamentais às liberdades de pensamento, cultura e educação, desde a nomeação de reitores pelo governo até o desmantela- mento da Cinemateca, passando pelo discurso espantoso do secretário da Cultura Roberto Alvim, retomava palavra por palavra uma alocução de Joseph Goebbels, [...]sem falar na criação de “escolas cívico-militares”, que impõem disciplina de caserna e inculcam valores patrióticos nos alunos (DARDOT et al., 2021, p.214).
Este avanço do autoritarismo e do neoliberalismo também estimulam níveis de violência cada vez maiores entre os cidadãos, impelidos pela lógica da competitividade, anulando qualquer possibilidade de ação coletiva e de cooperação. Desse modo, segundo Dardot et al. (2021), a guerra interna, a guerra civil está sempre presente, pois o conflito se generaliza, estabelecendo uma oposição entre nós x eles (contra nós).
Resultado das entrevistas
Nesta seção apresentamos os resultados parciais das entrevistas realizadas para a dissertação de mestrado “Cursinhos Populares do Alto Tietê: um estudo sobre acesso ao ensino superior e construção da cidadania.”6. Para tal, foram realizadas virtualmente entrevistas semiestruturadas, com gravação de áudio e vídeo, via Google Meet. Aqui utilizaremos apenas as entrevistas realizadas com os professores de dois cursinhos localizados na região do Alto Tietê. Seus nomes permanecerão em sigilo. Utilizaremos pseudônimos para fazer referência aos mesmos. O professor e a professora foram contactados para que pudéssemos explicar os objetivos da pesquisa e convidá-lo(a) para as entrevistas.
As perguntas visavam cobrir os temas voltados à trajetória pessoal e à razão de integrarem os projetos dos cursinhos, questionar o que conheciam da história do cursinho popular em que atuavam, perguntar sobre suas práticas em sala de aula e em outras atividades realizadas pelo CP e por fim a relação com os(as) estudantes.
Em primeiro lugar, há um paralelo entre as trajetórias de “Marcela” e “Caio”. Em suas respostas, ambos afirmaram ter sido estudantes dos projetos aos quais integram atualmente, como é possível verificar nos trechos abaixo:
Tá, quando eu entrei na graduação eu não tinha a intenção de lecionar, eu tinha a intenção de trabalhar com editora, mas no meio do curso eu achei que seria uma boa, sei lá, pelo menos para tentar experimentar como que seria, e eu achei que seria legal e aí o cursinho acabou sendo a minha primeira experiencia em sala de aula, e eu acabei indo para lá, especificamente para o cursinho em que eu trabalho, posso falar o nome do cursinho que eu trabalho? Que é o Maio de 68 porque eu tinha sido aluna em 2017, então eu entrei na faculdade em 2018, e em 2019 quando eu estava no segundo ano da faculdade, eu voltei para o cursinho para dar aula, então foi mais também, não só para experimentar, mas também para meio que retribuir esse trabalho que foi me ajudado antes, então eu queria também retribuir de alguma forma, e acabei gostando, então estou lá (Marcela).
[...] falei não, vou fazer licenciatura mesmo e aí então em 2011 fiz o cursinho, passei no vestibular e em 2012 eu voltei para ser professor, porque a gente não tinha professor de física, na verdade, tinham dois professores de física, uma professora, ela ia bastante e o outro professor faltava bastante pela demanda da vida dele e aí eu falei bom, quero ser esse professor que vai substituir esse professor que está faltando porque é uma coisa que eu senti falta dele, então meio que eu fiz esse papel, aí em 2012 no meio do ano eu falei não, vou começar a dar aula lá. E estou até hoje, fez dez anos já (Caio).
Pelos depoimentos, é possível constatar como a dimensão da retribuição social está presente. Lima (2019) também aponta que uma das características encontradas em sua pesquisa é justamente o fato de que ex-estudantes manifestam o desejo de retribuir ao projeto, auxiliando outros(as) estudantes em suas trajetórias em direção ao acesso à educação superior pública de qualidade.
Os dois trechos também evidenciam que os cursinhos populares acabam sendo um local de formação e de ganho de experiência por parte dos egressos. Por serem instituições de ensino que buscam se distanciar da escola regular e dos cursinhos comerciais, além da preocupação política apresentada pelos CPs, há abertura para o retorno de ex-estudantes que buscam integrar o projeto, aperfeiçoando-o e fortalecendo-o ao mesmo tempo. Segundo Santos, Neto e Oliveira (2022) é perceptível como muitos(as) professores(as) dos cursinhos populares ainda estão em um processo de formação em seus cursos de graduação, o que aponta para a existência de lacunas tanto na prática pedagógica quanto de fundamentação teórica para as disciplinas a serem ministradas por eles(as).
Concordamos novamente com o argumento de Santos, Neto e Oliveira (2022) sobre o potencial positivo dos CPs em ter de abrir a possibilidade de formação em serviço simultaneamente à formação inicial, desde que as IES proporcionem suporte adequado em seus cursos:
[...] há uma contradição importante a ser destacada neste cenário. O fato do licenciando estar inserido nesse ambiente não necessariamente garante que ele irá desfrutar a potencialidade do espaço. É imprescindível que a universidade exerça o seu papel de formadora, já que a execução da prática em si, sem o suporte dado pelas disciplinas teóricas pedagógicas, nem como aquelas destinadas ao ensino de ciências, resultará em um sujeito professor que possuirá uma prática não consciente em sala de aula, isto, justamente por não possuir uma base sólida necessária para orientá-lo na prática (SANTOS; NETO; OLIVEIRA, 2022, p.14).
Desse modo, é de se questionar como o avanço da EaD, que afeta profundamente a formação dos(as) estudantes, pode trazer um impedimento para a realização das potencialidades ofertadas pelos cursinhos populares em relação à formação dos(as) professores(as). Com uma fundamentação teórica cada vez mais degradada e com menores opções de cursos ofertados, o que pensar das relações pedagógicas que surgirão de professores(as) oriundos(as) da EaD quando atuarem nos CPs? Talvez o apontamento abaixo, feito por Marcela, fique cada vez menos frequente diante do avanço e da massificação da EaD:
[...] acho que eles (estudantes) são também formados por professores que estão mais posicionados à esquerda, e isso acaba, acaba formando meio que uma visão crítica, assim, então eles acabam entendendo melhor qual que é o lugar deles ali na sociedade, quais são os obstáculos que eles têm por terem vindo de onde eles vieram, e que eles conseguem ultrapassar estes obstáculos, na grande parte das vezes. Então eu acho que esses são dois pontos positivos assim do cursinho, dos cursinhos populares em relação do que eles podem mudar na sociedade, tipo, primeiro colocar as pessoas que deveriam estar na universidade, principalmente a pública, nesses espaços, e segundo de contribuir para uma formação mais crítica (Marcela).
Para além do aspecto ideológico apontado por Marcela, a importância da crítica realizada pelos(as) professores(as) imbuídos(as) dessa preocupação acaba por ser um diferencial relevante para os(as) estudantes que participam dos cursinhos populares, abrindo caminhos dentro das instituições por meio de uma perspectiva crítica e de ação concreta sobre a realidade que os(as) cerca. Essa experiência abre aos(às) jovens a oportunidade concreta de compreender e participar politicamente da vida comunitária, evitando a reclusão das preocupações a questões meramente de ordem pessoal e o abandono de problemas sociais que demandam participação popular (ADORNO, 2010).
No entanto, é importante permanecer investigando os impactos da EaD sobre a formação docente. A tendência parece ser a de impedir um aprofundamento dos conteúdos, pois não é possível outras abordagens em que a relação entre professores(as) e estudantes seja privilegiada (SAVIANI; GALVÃO, 2021). Aqui, apontamos para uma ampliação da pseudoformação e um esvaziamento do aspecto crítico. Isto poderá sobrecarregar ainda mais os cursinhos populares, já que, de acordo com Lima (2019), essas iniciativas não têm necessariamente como objetivo ou responsabilidade a formação de docentes.
Considerações finais
Os cursinhos populares, iniciativas que ocupam o espaço de educação não formal, têm representado uma perspectiva política e de transformação social que ultrapassa o mero treino e aprovação nos vestibulares. Contribuem para a mudança no perfil dos(as) estudantes de graduação, abrindo possibilidades aos(às) tradicionalmente excluídos(as) desse espaço à formação de qualidade e favorecendo a mobilidade social, com acesso a postos de trabalho que exigem diploma de nível superior e melhores remunerações em relação aos(às) que não possuem essa titulação.
Contudo, os cursinhos populares, como espaços de ação política, estão cada vez mais sobrecarregados com tarefas diversas e problemas sociais relevantes, como a fome e a crescente onda do autoritarismo vista nos últimos anos. A pandemia da Covid-19 amplia a pseudoformação ao disseminar a EaD, modalidade de ensino que reformula a educação superior, aligeirando sobremaneira os conteúdos e tornando inócua suas potencialidades críticas. Impede também que se estabeleçam relações sociais e sentimentos de identificação e transformação social dentro das universidades, justamente por não haver contato humano concreto no dia a dia.
Assim, vemos solapar muitos aspectos fundamentais que contribuem para uma educação emancipatória, já que a visão individualista e utilitarista tem estabelecido nas IES privadas os parâmetros para a formação docente, o que é diametralmente oposto ao pretendido por essas iniciativas populares de educação não formal. Dessa maneira, e com cautela, apontamos para um possível acirramento nos conflitos entre docentes com concepções distintas de mundo e de ensino, colocando em risco o papel político e a atuação dessas iniciativas de educação popular. Por fim, podemos estar diante de uma sobrecarga nos esforços dos cursinhos populares como espaços de formação simultânea de professores(as), além de riscos mais evidentes de valorização e de reprodução do ideário neoliberal junto aos(às) estudantes.