Introdução
O Brasil enfrenta o desafio de estruturar e implantar um serviço de saúde universal, que alcance igualmente toda população em ações de proteção e promoção da saúde e prevenção de doenças. Além das dificuldades inerentes à ampliação de cobertura para um país de dimensões continentais, o Sistema Único de Saúde (SUS) também enfrenta o desafio de assegurar a melhoria do acesso aos cuidados de saúde e o fortalecimento da atenção primária à saúde (APS) (MACINKO; HARRIS, 2015; PAIM et al., 2011).
A rápida expansão da rede de APS com equipes multiprofissionais, por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), revelou dificuldades de provimento de profissionais de saúde para atuação no âmbito do SUS, especialmente médicos, para algumas regiões do país (CARVALHO; SOUSA, 2013; MACINKO; HARRIS, 2015). Variações do potencial resolutivo e da qualidade de trabalho das equipes da ESF, dos vínculos trabalhistas e da estrutura física das Unidades Básicas de Saúde são alguns fatores que contribuem para afastar os médicos do desejo de atuarem em tais equipes. Paralelamente, a formação de profissionais de saúde, em especial de médicos, tem enfrentado os desafios de aproximar os estudantes da APS e de estimular a formação de profissionais para atuarem no âmbito do SUS e para atender às necessidades sociais e sanitárias da população (BREHMER; RAMOS, 2015; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FRENK et al., 2010; DE SOUZA; ZEFERINO; ROS, 2008; DE VASCONCELOS; STEDEFELDT; FRUTUOSO, 2016; XAVIER; KOIFMAN, 2011).
Os Ministérios da Educação e da Saúde do Brasil se uniram em 2014 para desenvolver e implantar medidas de reformas no processo de formação médica brasileira, conforme expresso na Resolução CNE/CES nº 3, de 3 de 20 de junho de 2014. Nesse sentido, foi criada a lei que instituiu o Programa Mais Médicos e foram implantadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de Medicina. Ambos passaram a nortear os projetos pedagógicos das escolas médicas (BRASIL, 2013; BRASIL, 2014).
As DCN têm o propósito de orientar a organização do currículo nas Instituições de Ensino Superior (IES) em âmbito nacional. Na área da medicina, esses documentos determinam os elementos norteadores do processo ensino-aprendizagem-avaliação. Assim, elas assumem um papel importante para a formação profissional, de acordo com referenciais nacionais e internacionais (ALVES et al., 2013; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FRANCO; CUBAS; FRANCO, 2014; FRENK et al., 2010; LAMPERT et al., 2009; PEREIRA; LAGES, 2013). As primeiras DCN para os cursos de medicina foram homologadas em 2001, por meio da Resolução CNE/CES nº 4, de 07 de novembro de 2001, cerca de dez anos após a implantação do SUS, estabelecendo, além dos princípios e fundamentos, as condições e procedimentos necessários à formação médica (BRASIL, 2001). Essas DCN foram revogadas pelas Diretrizes de 2014, que se fundamentaram, também, nas necessidades sociossanitárias do país, reiterando aspectos do Programa Mais Médicos e visando à formação de recursos humanos na área médica para o SUS (BRASIL, 2014).
No presente estudo, o objetivo foi discutir as alterações mais recentes nas Diretrizes Curriculares Nacionais para formação em medicina.
Metodologia
Trata-se de pesquisa documental referente às Diretrizes Curriculares Nacionais para formação em medicina no Brasil de 2001 e 2014. Os documentos foram lidos na íntegra, para a compreensão do conteúdo e análise dos textos, ambos promulgados pelo Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior e Ministério da Educação do Brasil (BRASIL, 2001; BRASIL, 2014).
A leitura dos documentos oficiais propôs-se a sintetizar as informações neles contidas e identificar as questões relacionadas às mudanças ocorridas nas novas Diretrizes de 2014 pela comparação e confrontação dos dados. Após destacar as inovações e alterações, os resultados foram discutidos à luz de publicações cientificas pertinentes à temática.
Resultados e Discussão
Nas Diretrizes de 2014, os capítulos I e II foram estruturados em três eixos: Atenção à Saúde, Gestão em Saúde e Educação em Saúde. Nessa parte do documento, descreve-se o perfil profissiográfico do graduado em medicina, mantendo o anteriormente proposto quanto ao perfil generalista, humanista, respaldado na ética e capacitado para atuação em níveis diferentes de atenção, tais como promover saúde, prevenir doenças, recuperar e reabilitar pessoas. Entretanto as novas Diretrizes acrescentam ao perfil do egresso a necessidade de uma prática que considere os determinantes sociais do processo saúde-doença, descrevendo os conhecimentos, habilidades e atitudes que devem ser desenvolvidas no decorrer da graduação, no nível individual e coletivo, com responsabilidade social. Isso demonstra a relação importante entre educação superior e impacto social, pela formação de profissionais que utilizem seus conhecimentos para promover mudanças na sociedade, ou seja, para além do campo clínico-científico.
As DCN de 2014 representam um avanço na prática médica futura ao reconhecerem os determinantes sociais do processo saúde-doença. Essas diretrizes estão em consonância com as formulações teóricas atuais, como a teoria ecossocial proposta por Nancy Krieger. A abordagem ecológica de Krieger destaca a complexa interação entre fatores sociais, ambientais e biológicos na saúde e doença. Um exemplo dos padrões semelhantes mencionados é a relação entre o nível micro e o nível macro. No nível micro, podemos observar processos bioquímicos e genéticos que se repetem e se assemelham nas células e tecidos do organismo. Por outro lado, no nível macro, encontramos estruturas sociais e políticas que também apresentam padrões semelhantes, em que fenômenos sociais, como a desigualdade de acesso aos serviços de saúde, podem se repetir em diferentes comunidades e regiões (KRIEGER, 2001). Ao adotar essa abordagem histórica e integradora, as diretrizes proporcionam aos profissionais médicos uma compreensão mais ampla e eficaz dos contextos complexos de saúde e doença, capacitando-os a intervir de maneira abrangente e precisa (BARATA, 2005).
Em oposição, destacam-se as reformas educacionais elaboradas à luz da racionalidade neoliberal, que, apesar de representar inovação, qualidade educacional e gestão moderna nas escolas, por se aproximar da lógica empresarial, tem como consequência a adaptação das pessoas a esquemas ideológicos e ao formato mercantilizado no modo de viver. As reformas neoliberais, fomentadas por políticas no setor educacional, impactam na docência, nos processos de formação e na liberdade de construir o projeto pedagógico de cursos, que seja capaz de atender às demandas sociais e proteger o contingente populacional oprimido e excluído da sociedade (BETLINSKI; LOBO; GOMES, 2020).
Nesse sentido, entende-se que as estruturas educacionais, econômicas, políticas, os serviços de saúde e as condições de vida diária das pessoas constituem importantes determinantes sociais de saúde da população. Essa visão ampliada do processo saúdedoença é importante para atingir a integralidade do cuidado no exercício da medicina, em respeito ao princípio da integralidade da atenção do SUS (MIALON, 2020; SILBERBERG; MARTINEZ-BIANCHI; LYN, 2019; SPRUCE, 2019; XAVIER; KOIFMAN, 2001).
O ensino nas escolas médicas, de acordo com as novas diretrizes, é um processo complexo e deve basear-se em projetos pedagógicos que promovam metodologias ativas e que possibilitem aos futuros profissionais o desenvolvimento de habilidades e competências direcionadas ao atendimento do contexto social da saúde, individual e coletiva (BRASIL, 2013; MOURA et al., 2022; WAGNER; MARTINS FILHO, 2022). Portanto torna-se inevitável substituir as propostas educacionais que privilegiam o modelo biomédico hegemônico, um paradigma que vigora na prática médica há várias décadas.
Esse modelo, que tem suas raízes em abordagens anteriores, foi promovido pelas DCN de 2001, mas suas influências remontam a períodos ainda mais antigos. O modelo biomédico hegemônico é baseado em princípios que enfatizam uma abordagem reducionista da saúde e da doença, centrada principalmente nos aspectos biológicos. Ele pressupõe que as doenças são causadas por disfunções em processos bioquímicos e genéticos, e busca tratá-las por meio de intervenções médicas, como medicamentos e procedimentos cirúrgicos. Nesse modelo, o foco está na identificação e no tratamento das doenças em si, com pouca ênfase nos fatores sociais, ambientais e psicológicos que podem influenciar a saúde. Embora as DCN de 2001 tenham conservado alguns pontos desse modelo, também avançaram em outros aspectos, direcionando-se cada vez mais para uma abordagem integral da saúde, com maior ênfase nos determinantes sociais e na medicina baseada em evidências.
Assim, é necessário direcionar a prática clínica pela medicina baseada em evidências, de forma atualizada e contextualizada, a fim de embasar as decisões médicas em pesquisas científicas rigorosas, considerando as melhores evidências disponíveis, a expertise clínica do profissional e as preferências e valores individuais dos pacientes, visando proporcionar um atendimento médico de qualidade, que seja efetivo, seguro e centrado no paciente. (DE ALBUQUERQUE et al., 2013; ALVES et al., 2013; CRISP & CHEN, 2014; LAMPERT et al., 2009).
No entanto, é importante reconhecer os limites que têm sido apontados por alguns estudos em relação à tendência majoritária da prática clínica baseada em evidências. Desse modo, pode haver o desequilíbrio entre uma abordagem dominante, que enfatiza a correção e a hierarquia das evidências, e uma abordagem mais rara, que leva em consideração as preferências e os valores dos pacientes na tomada de decisão clínica (GREENHALGH; HOWICK; MASKREY, 2014). Assim, além de utilizar a medicina baseada em evidências, é essencial que os profissionais médicos também cultivem a abertura e a sensibilidade para as demandas dos pacientes, que vão além dos estritos limites de uma anamnese clássica. Dessa forma, direcionar a prática clínica pela medicina baseada em evidências, de forma atualizada e contextualizada, pode proporcionar qualidade ao atendimento médico, ao mesmo tempo que se reconhece a importância da interação individualizada e humanizada com os pacientes.
Entre as metodologias ativas utilizadas no ensino médico, destacam-se a problematização, instrução entre pares, aprendizagem baseada em equipes, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem baseada em problemas, sala de aula invertida e laboratórios de simulação (WAGNER; MARTINS FILHO, 2022). A aprendizagem baseada em problemas é considerada um método efetivo para o melhor desempenho de habilidades e raciocínio crítico (DE LEON; ONÓFRIO, 2015). Além disso, a metodologia de instrução entre pares favorece o desenvolvimento do processo de autorreflexão e autoconhecimento na área da saúde (AZEVEDO et al., 2022). Também, ressalta-se que existe maior proveito na aprendizagem de estudantes de medicina ao aplicar a metodologia de sala de aula invertida (PATRIOTA et al., 2022).
O processo de mudanças nas escolas médicas é coerente com a proposta do Consenso Global de Responsabilidade Social das Escolas Médicas (SOCIAL ACCOUNTABILITY HEALTH, 2010). O documento foi elaborado, em 2010, por 130 organizações e indivíduos de todo o mundo para discutir a responsabilidade na educação em saúde, a regulação profissional e a criação de políticas na área de formação médica. O Consenso abrange o sistema de saúde, da identificação das necessidades de saúde à verificação dos efeitos destas no ensino médico. Para isso, inicia-se pelo entendimento do contexto social, na identificação dos desafios e necessidades e na criação de relacionamentos para o agir de forma eficiente (SOCIAL ACCOUNTABILITY HEALTH, 2010).
Ainda no capítulo I das novas Diretrizes, foram consideradas três áreas de formação em medicina, não destacadas nas DCN de 2001: Atenção à saúde, Gestão em saúde e Educação em saúde. A seção I “Da Atenção à saúde” considera extremamente importante o trabalho em equipe, organização em serviço que vai ao encontro da atual proposta assistencial na APS: equipe multiprofissional, saúde da família e avaliação de riscos (BRASIL, 2014; MACINKO; HARRIS, 2015). Para que os estudantes tenham uma aproximação com a realidade de saúde do país, deve-se integrar escolas médicas e serviços públicos de saúde. Medida que tende a facilitar a percepção das necessidades de saúde da sociedade e criar condições para formar médicos promotores da saúde integral, em um processo de educação superior que melhore a vida das populações e dê sustentabilidade de proteção social conforme previsto no Sistema Único de Saúde, pela Constituição Brasileira (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; CRISP; CHEN, 2014; JORGE et al., 2014; LAMPERT et al., 2009; SIQUEIRA-BATISTA et al., 2013; SOCIAL ACCOUNTABILITY HEALTH, 2010).
Em concordância com o exposto, as DCN priorizam a atenção básica como cenário ideal para a formação em medicina e propõem a interação entre professores, estudantes, profissionais e usuários da rede de atenção à saúde, favorecendo a integração entre ensino, serviço e comunidade. Assim, a formação médica deve estar consoante com a proposta do SUS, que não requer profissionais qualificados apenas tecnicamente para o processo assistencial, mas também com outras habilidades, como comunicar-se, relacionarem-se com a equipe, ter iniciativa gerencial, desenvolver e acompanhar planos de cuidado, além de ser capaz de analisar o trabalho em saúde.
Na área de formação “Da Gestão em saúde”, residem as alterações mais significativas para formação médica, em relação às Diretrizes de 2001, ao explicitar a necessidade do graduando compreender os princípios, diretrizes e políticas do SUS, além de conduzir iniciativas em gerenciamento e administração para o bem da população (BRASIL, 2013). A formação do curso médico deve contribuir para os egressos manejarem, criticamente, as adversidades existentes na saúde, bem como desenvolver uma gestão responsável e com uso racional de recursos. Além do mais, o egresso deve conhecer as políticas públicas voltadas para o campo da saúde e da educação e efetuar um trabalho articulado, em rede, de acordo com as necessidades da sociedade brasileira (DE ALBUQUERQUE et al., 2013; FRANCO; CUBAS; FRANCO, 2014; SIQUEIRA-BATISTA et al., 2013).
A última área de formação destacada no capítulo I, “Da Educação em Saúde”, refere-se à necessidade de o egresso buscar a aprendizagem ao longo da vida profissional. Destaca-se, também, o incentivo aos projetos de mobilidade; o aprender a aprender; o aprender com autonomia; o aprender interprofissionalmente; o aprender em situações e ambientes protegidos e controlados; e a necessidade de comprometer-se com seu processo de formação (ensino, pesquisa e extensão). Existe, também, um registro que a educação em saúde alcance não somente os estudantes, mas também professores e demais profissionais de saúde, com ênfase no próprio cenário de prática do SUS (BRASIL, 2014). Nas DCN anteriores, a temática educação permanente aparece como competências e habilidades gerais para o profissional médico, em texto bastante reduzido quando comparado ao das Diretrizes de 2014.
O novo documento sinaliza, então, a necessidade de o profissional buscar sempre o conhecimento, no exercício da profissão. Isso corresponde ao mundo de trabalho atual, que exige atualizações constantes para acompanhar a produção de conhecimentos científicos, que culminam na revisão de teorias e práticas em saúde. Nessa perspectiva, destaca-se a importância de as instituições de ensino superior romperem com a metodologia tradicional no processo de ensino-aprendizagem em busca de metodologias ativas e que provoquem reflexão sobre a prática médica (ABBAS et al., 2011; CECCIM; FEUERWERKER, 2004a; CECCIM; FEUERWERKER, 2004b; LAMPERT et al., 2009; LEITE etal, 2010).
No capítulo II, “Das Áreas de Competências da Prática Médica”, também se listam as iniciativas e ações esperadas do egresso. O documento de 2014 conceitua competência como capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes para a resolução dos desafios que se apresentam à prática profissional.
A literatura define o termo habilidades como capacidades cognitivas adquiridas, relacionadas diretamente ao saber fazer e que aperfeiçoem as competências. Nessa perspectiva, desenvolver competências implica o desafio de formar indivíduos capazes de mobilizar conhecimentos adquiridos e conduzir práticas adequadas para lidar com situações reais, individuais e coletivas, da sociedade (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FRANCO et al., 2014; JORGE et al., 2014; LAMPERT et al., 2009; PETTA, 2013; SIQUEIRA-BATISTA et al., 2013). Diante de um país marcado pela desigualdade social, o ensino médico deve assumir o papel de formar profissionais promotores de saúde e de desenvolvimento humano socialmente sustentável como forma de superar as disparidades sociais.
Na seção I, “Da Área de Competência Atenção à Saúde”, destaca-se o desenvolvimento de competências profissionais distintas para assistência individual e coletiva, aspecto não abordado anteriormente. Esse detalhamento valoriza os aspectos da vigilância em saúde e demonstra preocupação com a formação na graduação para o provimento médico para o SUS.
A configuração “Da Área de Competência Gestão em Saúde” foi apresentada por meio de duas ações-chave: organização do trabalho em saúde e acompanhamento e avaliação do trabalho em saúde (BRASIL, 2013). Nas Diretrizes de 2001, a competência gestão foi mencionada de forma sintética, no item administração e gerenciamento, informando a necessidade de o profissional gerenciar e administrar recursos físicos e materiais e informações, devendo estar aptos ao empreendedorismo (BRASIL, 2001). Diferentemente, as DCN de 2014 incorporam a gestão em cada etapa do trabalho: processo, acompanhamento e avaliação para monitoramento dos planos de ação (BRASIL, 2014).
Em relação à gestão em saúde, o médico deve reunir diferentes competências, que envolvem uma visão ampliada de atenção em saúde. Ele deverá reconhecer determinantes sociais, econômicos e políticos no processo do adoecer, e ser capaz de participar do planejamento e da realização de ações multissetoriais, de acordo com as demandas populacionais. Os princípios do SUS destacam políticas públicas que convocam explicitamente as universidades para o cumprimento de sua responsabilidade social na formação dos futuros profissionais do país (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FRANCO et al., 2014; JORGE et al., 2014; LAMPERT et al., 2009; PETTA, 2013; DE SOUZA; ZEFERINO; ROS, 2008).
Ainda no capítulo II das DCN de 2014, encontra-se a seção que trata “Da Competência de Educação em Saúde”, constituída de três atribuições significativas: identificação de necessidades de aprendizagem individual e coletiva; promoção da construção e socialização do conhecimento, bem como a promoção do pensamento científico e crítico; e apoio à produção de novos conhecimentos (Brasil, 2014). Nas DCN de 2001, a competência educação permanente não foi detalhada para ações direcionadas às necessidades individuais e coletivas, assim como para produção de conhecimentos científicos (DE ALBUQUERQUE et al., 2013; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; FRANCO et al., 2014; LAMPERT et al., 2009; LEITE et al., 2010; PETTA, 2013; SIQUEIRA-BATISTA et al., 2013).
O quesito educação em saúde deve fazer parte da prática médica diária, especialmente diante da velocidade e intensidade com que se avolumam as informações na área. Ela proporciona reflexão crítica do conhecimento, ajustado às necessidades do profissional, da equipe e das demandas da população, em processo educacional dinâmico e complexo. O profissional deve desenvolver atitudes coerentes com o contexto desafiador da saúde, permeando a sua prática médica com uma educação continuada e permanente, conforme sinalizado nas novas Diretrizes (ABBAS et al., 2011; LAMPERT et al., 2009; LEITE et al., 2010; PETTA, 2013).
Nessa perspectiva, destaca-se a necessidade de valorizar estratégias de ensino capazes de construir o aprendizado diário, por meio de metodologias ativas e problematizadoras. Também é desejável inserir, precocemente e oportunamente, o estudante nos ambientes de atenção à saúde, promovendo uma maior aproximação com a sociedade e um maior senso de responsabilidade com a comunidade e com sua própria formação profissional (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).
No capítulo III, “Dos conteúdos Curriculares e do Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina”, as novas DCN atribuíram relevância para inovação e qualidade do projeto pedagógico. Acrescentam-se aos conteúdos fundamentais os temas transversais: direitos humanos, pessoas com deficiência, ecologia, ensino de libras, educação das relações étnico-raciais, história de cultura afro-brasileira e indígenas, e compreensão e domínio de novas tecnologias da comunicação (BRASIL, 2014). No documento de 2001, os conteúdos destacados como essenciais para a graduação em medicina não incorporavam os temas transversais supracitados.
A formação médica exige estratégias que favoreçam a substituição do modelo tradicional de ensino, por meio de práticas que estimulem a crítica e reflexão integradas à teoria e com diversidade dos cenários de aprendizagem. Esse modelo, criticado pelas DCN de 2001 e 2014, é caracterizado por uma abordagem hierárquica e conteudista, com a transmissão passiva de conhecimento em aulas expositivas (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; BRASIL, 2016; LAMPERT et al., 2009; LEITE et al., 2010; FRANCO et al., 2014; PETTA, 2013). Tanto as DCN de 2001 quanto as de 2014 enfatizam a necessidade de superar essas limitações, propondo práticas educacionais que estimulem a participação ativa dos estudantes, a reflexão crítica e a vivência em cenários reais de atendimento.
A integração entre teoria e prática é valorizada, visando preparar os futuros médicos para os desafios da prática clínica e promover um cuidado mais humanizado e efetivo aos pacientes. Além disso, as novas Diretrizes descrevem a estrutura dos estágios e das atividades complementares, a organização do curso de medicina, as medidas ativas e os critérios para acompanhar e avaliar o processo ensino- aprendizagem e o próprio curso, em consonância com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e com a dinâmica curricular definida pela Instituição de Ensino Superior à qual pertence.
Concordante com as DCN de 2001, as novas Diretrizes destacam que o estágio curricular no SUS é obrigatório e com mínimo de 35% do total da carga horária do curso. Contudo o documento de 2014 privilegia a inserção do estudante na rede SUS, desde os primeiros períodos da graduação, para o aprendizado de políticas de saúde e organização do trabalho em equipe multiprofissional; na busca de atender à necessidade de formação médica para atuação na saúde pública em respeito à Constituição brasileira que considerou o SUS o ordenador da formação em saúde. Ademais, a diretriz de atuação no nível coletivo, prevista nas novas DCN nos três eixos de formação médica, Atenção, Gestão e Educação em Saúde, reforça a importância da formação em saúde coletiva, como campo de conhecimento científico e técnico.
É consenso entre os estudos da área que o cenário da graduação em medicina que melhor interage teoria e prática, além de aproximar o profissional dos problemas de saúde do país, pode ser ilustrado no SUS, pautado nos princípios e diretrizes da universalidade (acesso igualitário aos serviços de saúde), equidade (atendimento justo e adequado às necessidades individuais), integralidade (abordagem abrangente da saúde), descentralização (gestão próxima das comunidades) e participação social (envolvimento da população nas decisões). Esses princípios garantem uma formação médica contextualizada, ética e comprometida com a saúde da população (ALVES et al., 2013; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; LAMPERT et al., 2009; PETTA, 2013).
As DCN de 2014, por meio da incorporação da Resolução nº 1 da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior de 17 de junho de 2010, reafirma a necessidade de instituir o Núcleo Docente Estruturante (NDE) e de ensejar um permanente programa de formação e desenvolvimento da docência em saúde, possibilitando participação de profissionais das redes de saúde. Tudo isso seria importante para valorizar o trabalho docente na graduação, envolver os professores com o projeto pedagógico e melhorar tanto o processo ensino-aprendizagem nos cenários de práticas do SUS como a qualidade da assistência à população (CECCIM; FEUERWERKER, 2004; BRASIL, 2010; DE VASCONCELOS; STEDEFELDT; FRUTUOSO, 2016).
As Diretrizes curriculares são norteadoras para elaboração dos currículos e dos projetos pedagógicos dos cursos de medicina, dentro dos propósitos atuais da saúde pública brasileira. Elas apontam diferentes cenários de ensino-aprendizagem e sinalizam a avaliação como um processo dinâmico e permanente. Além do mais, elas identificam a formação como interação entre habilidades, competências e a possibilidade de modificar a realidade social da população pela participação ativa de todos os setores envolvidos com a educação médica e a situação de saúde atual do Brasil.
A partir das DCN atuais, a cada dois anos, o estudante passaria por uma avaliação específica de conhecimentos, habilidades e atitudes, regulamentada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). A pontuação nessa avaliação seria considerada na classificação dos Programas de Residência Médica, credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) (BRASIL, 2013). Esses são novos desafios da educação médica: desenvolver instrumentos avaliativos sensíveis às mudanças emergentes, à formação de profissionais éticos, críticos, reflexivos e comprometidos com as demandas atuais da sociedade (ABBAS et al., 2011; CECCIM; FEUERWERKER, 2004; LAMPERT et al., 2019; LEITE et al., 2010; PETTA, 2013).
As DCN de 2014 não fornecem detalhes sobre o processo avaliativo periódico e as penalizações para instituições de ensino ou estudantes. No entanto, com o intuito de assegurar a qualidade na formação de profissionais do ensino superior, o SINAES realizou ajustes e revisões nos indicadores do instrumento avaliativo para os cursos de medicina, alinhando-os às novas diretrizes curriculares e ao Programa Mais Médicos (Lei nº 12.871/13). Nesse sentido, é relevante destacar que o Programa Mais Médicos teve um papel crucial ao estabelecer a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM) por meio da Portaria do MEC nº 168 de 1º de abril de 2016. A ANASEM foi criada com o objetivo de avaliar os cursos de medicina, empregando instrumentos e métodos para verificar os conhecimentos, habilidades e atitudes propostas pelas DCN de 2014. É importante ressaltar que, até o momento, a ANASEM teve apenas uma aplicação em 2016 (BRASIL, 2016).
Por outro lado, no âmbito do SINAES, a avaliação de curso e aluno de graduação é conduzida por meio do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE). O Enade é aplicado regularmente, conforme a periodicidade estabelecida pelo MEC, e avalia o desempenho dos estudantes em relação às competências e habilidades desenvolvidas ao longo do curso. Dessa forma, o ENADE desempenha um papel fundamental na avaliação da qualidade dos cursos de medicina e na formação dos profissionais, sendo o principal instrumento utilizado pelo SINAES para esse fim.
As novas Diretrizes apresentaram maior ênfase nas temáticas ética/bioética, educação em saúde, práticas alternativas, educação das relações étnico-raciais, educação ambiental, equidade na assistência à saúde e acesso aos serviços de saúde. Fato constatado pelo maior número de citações dos termos, por exemplo, (bio)ética foi citado seis vezes em 2001 e 13 no documento de 2014. O termo educação em saúde não foi encontrado no documento de 2001, contudo aparece nas DCN de 2014, com dois sentidos diferentes: formação médica e ações educativas de promoção em saúde para os indivíduos, sejam individuais ou coletivas.
Quanto ao contexto de concepção das DCN de 2001 e de 2014, ambas se embasaram em referenciais teóricos nacionais e internacionais, contudo as novas Diretrizes levaram em consideração, também, as necessidades sociais e sanitárias do Brasil, ou seja, o contexto político social e a baixa fixação de médicos na APS. Cabe destacar que, além dos argumentos legítimos apresentados na introdução do presente artigo, como apontamentos que afastam o médico do desejo de atuar na ESF, faz-se necessária uma análise mais aprofundada dos fatos. Pode-se acrescentar à falta de interesse em fixar-se no interior do país, a ausência de plano de carreira e a inexistência de residências e cursos de graduação.
Entretanto, em contraposição a esses argumentos, destaca-se que o profissional médico apresenta uma remuneração superior às outras categorias profissionais, mas que parece não ser suficiente para adesão ao trabalho no interior das ESF. Nesse contexto, as DCN de 2014 reafirmam o Programa Mais Médicos ao vislumbrar uma formação na graduação de profissionais médicos para atuação na saúde pública, ou seja, na rede do SUS.
Por fim, apesar das Diretrizes de 2014 apresentarem avanços relacionados ao tema morte quando comparadas às DCN de 2001, ao envolver fatores socioculturais, além de biológicos na abordagem no desfecho crítico do processo de adoecimento, em 2022, por meio da Resolução CNE/CES nº 3 de 3 de Novembro de 2022, foram acrescentados ao documento a necessidade do graduando adquirir conhecimentos, competências e habilidades da assistência ao paciente em cuidados paliativos, devendo saber identificar os critérios de indicação para cuidados paliativos precoces diante do diagnóstico de doença ameaçadora de vida e indicação e manejo de cuidados de fim de vida, incluindo além do controle de sintomas. (BRASIL, 2014; BRASIL, 2022).
Embora as DCN de 2014 prevejam a abordagem do tema da morte na formação médica, a falta de recursos e professores capacitados, assim como a priorização de outros conteúdos, têm sido desafios para a adequação das instituições de ensino. O estudo realizado por Silva (2013) destaca que a implementação das DCN na formação médica enfrenta obstáculos devido à escassez de recursos humanos e materiais, além da resistência de algumas instituições em promover mudanças curriculares. Nesse contexto, a formação médica continua centrada em modelos tradicionais, com menor ênfase nos aspectos humanísticos e abordagem de temas complexos, como a morte (BRASIL, 2014; FREITAS, 2017; SILVA, 2013).
A formação médica precisa se afastar de um modelo tecnicista e enfatizar o cuidado ativo e integral, com o objetivo de prevenir o sofrimento (SARTORI & BATTISTEL, 2017). No entanto, a abordagem do tema da morte na formação médica enfrenta desafios devido à falta de apoio das instituições de ensino. Estudos realizados por Sartori e Battistel (2017) e Castro, Taquette e Marques (2021) destacam que poucas disciplinas são dedicadas ao tema da morte e apenas 14% das escolas incluem os cuidados paliativos na grade curricular. Essa lacuna pode resultar em despreparo, frustrações e sofrimento para os estudantes diante de situações relacionadas à morte na prática médica (CASTRO, TAQUETTE; MARQUES, 2021; SARTORI; BATTISTEL, 2017).
Desse modo, essa nova resolução ressalta a necessidade de as estruturas de formação prepararem o estudante em consonância às exigências atuais, entre as quais destacam-se as competências em cuidados paliativos, que se tornam fundamentais para boas práticas em cuidados de saúde, sendo um propulsor do modelo de integralidade. É imprescindível que as instituições de ensino se adaptem às diretrizes, proporcionando uma formação médica abrangente e adequada em relação ao tema da morte, preparando os estudantes para lidar de forma sensível e compassiva com situações relacionadas a ele na prática médica.
Castro et al. (2022) destacam a necessidade de inclusão do ensino de cuidados paliativos na graduação em medicina, visando formar médicos mais humanizados e capazes de lidar com o sofrimento dos pacientes. Para alcançar esse objetivo, é essencial investir na capacitação dos professores e disponibilizar recursos adequados, permitindo que os estudantes adquiram os conhecimentos e habilidades necessárias para uma abordagem sensível e compassiva diante de situações que envolvam a morte (BRASIL, 2022; CASTRO et al., 2022; FREITAS, 2017; SILVA, 2013).
A mudança de paradigma da prática médica contemporânea requer ampliar e valorizar dimensões que não podem ser medidas por equipamentos tecnológicos. Significar o sofrimento e as queixas dos usuários dos serviços de saúde deve ser valorizado, para além de resultados dos exames clínicos complementares, dos testes terapêuticos e, também, dos trabalhos científicos de revisão sistemática da literatura. Destaca-se, também, como desafio da prática médica atual, a inclusão de um cuidado integral, biopsicossocial; o acompanhamento das doenças crônicas; a distribuição de cuidados preventivos de forma equitativa; e a promoção de atitudes salutares. A prática médica atual requer disponibilidade de tempo para se envolver com as pessoas sob sua responsabilidade e para participar de capacitações permanentes, para desenvolver competências e habilidades para o cuidado humanizado e gestão em saúde (FACCHINI, 2002).
Na perspectiva da possibilidade de promover saúde e desenvolvimento humano em uma sociedade subordinada à lógica do capital, deve-se superar a prática da promoção de saúde enfatizada em uma classificação das populações, relacionando seus problemas aos seus modos de vida. Para superar essa forma de promover saúde, deve-se refletir sobre a "ambientação pedagógica": promover discussão entre profissionais de diferentes formações acadêmicas sobre as metas programáticas, a qualidade da assistência na percepção dos usuários, e a adequação do trabalho organizado em consonância com as demandas reais da população. Neste sentido, é importante que a ambientação pedagógica constitua temática da política de saúde, como a humanização do SUS, e que prossiga a Reforma Sanitária (STOTZ; ARAÚJO, 2004).
Conclusões
Nas Diretrizes de 2014, observa-se uma preocupação em detalhar as competências e habilidades requeridas para o graduando do curso médico. Esse fato representa um chamamento às escolas para uma formação por competências, pela contextualização da ação do futuro profissional, na atenção, gestão e educação em saúde. A introdução de temas transversais e instituição de um Núcleo Docente Estruturante que possa acompanhar de perto o projeto pedagógico do curso, desde a sua concepção até o aprimoramento de mudanças requeridas, ao longo do tempo, ressaltam o caráter pedagógico das novas DCN para a gestão dos cursos médicos. A vivência no SUS, grandemente privilegiada desde o início do curso e como campo de prática obrigatório, reitera o compromisso com a formação direcionada às necessidades da população e do contexto político e social atual no Brasil.
Parece ser consensual que o novo documento representa um significativo avanço na definição dos eixos norteadores da formação médica no Brasil para os próximos anos. A interação entre ensino e serviço sugere ser um planejamento imprescindível para formar profissionais condizentes com a desafiadora realidade da saúde no Brasil, de provimento médico para atuar no âmbito do Sistema Único de Saúde.