Sobre o contexto privatizante
Nas duas últimas décadas, a política educacional brasileira tem sido caracterizada, dentre outros, pelo favorecimento e crescente participação do setor privado em diferentes aspectos e dimensões, seja na concepção e elaboração de Programas e ações, no planejamento e implementação, ou mesmo na gestão, acompanhamento e avaliação da educação escolar pública, especialmente na educação básica. Não se trata de uma ação unilateral, espontânea e de ingerência da esfera privada na pública, mas de uma articulação política deliberada e coerente com a racionalidade neoliberal hegemônica nesse contexto.
Como já tem sido demonstrado por diferentes estudos e pesquisas (BEHRING, 2008; 2005; ABRUCIO, 2007), a reforma do Estado brasileiro, levada a cabo pela burguesia nacional desde os anos 1990, implicou, dentre outros, a adoção do gerencialismo como perspectiva norteadora de uma Nova Gestão Pública a ser introjetada na máquina estatal e respectivas esferas governamentais. Com ela, se reestruturou o Estado, seu modus operandi e suas prioridades na execução das políticas públicas. Nesse sentido, e, por conseguinte, atribuiu-se centralidade e foco sobre o mercado, imprimindo-lhe proeminência nas ações governamentais, na deliberação e execução das políticas públicas, na gestão da res pública.
Sob a justificativa ideológica de que essa estratégia contribuiria para a superação das crises que atingiam [e atingem] o capitalismo, a participação do setor privado como suposto parceiro do Estado na realização das políticas, programas e ações, que até então eram de responsabilidade estatais – portanto, função e iniciativa governamentais –, colaboraria para ampliar e potencializar as oportunidades de negócios, de contratos e de novos mercados. Dessa forma, além de se flexibilizar a máquina pública e o respectivo aparato jurídico-normativo, a Nova Gestão Pública – agora marcada pela intersecção do público com o privado, por meio de “parcerias”3 – traria mais eficiência à gestão pública e mais oportunidades de fortalecimento do mercado capitalista.
Como parte das medidas de enraizamento neoliberal no Estado brasileiro, diferentes governos de turno, com participação decisiva das esferas parlamentar e judiciária, forjaram um aparato jurídico normativo para dar legalidade ao novo modus operandi no trato da coisa pública e em sua execução política. Esse novo ‘ambiente legal’ não só atraiu, mas potencializou o surgimento de novos atores privados interessados em atuar junto ao setor público como verdadeiros agentes de um mercado faminto, ávido por abocanhar o erário público. Ao mesmo tempo, esta seria uma oportunidade para que o mercado conquistasse e/ou ampliasse sua legitimidade social, consolidando-se como referência maior da nova ordem societária, haja vista a alegada competência e eficiência de seus agentes na gestão dos negócios, na consolidação empresarial, leia-se, na obtenção do lucro.
Nesse cenário, a aprovação da Emenda Constitucional n.º 19, de 04 de junho de 1998, que teve como objetivo conformar a Constituição Federal (CF) de 1988 às diretrizes do Plano Diretor da Reforma do Estado (1995), definiu importantes alterações nas relações entre os setores público e privado e na própria atuação do setor público, como a introdução do “princípio da eficiência” na gestão pública; alterações na criação de entidades paraestatais e a introdução do contrato de gestão, que permitiram: a flexibilização das relações entre a iniciativa privada e o poder público, com a inserção de práticas gerenciais oriundas de modelos privatistas; mudanças na criação de entidades paraestatais, com a demarcação dos contornos das organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), constitutivas do terceiro setor; e a ampliação dos acordos entre as esferas pública e privada com o estabelecimento de “parcerias”, que passaram a ser estabelecidas por meio de “contrato de gestão”(ADRIÃO; BEZERRA, 2013).
Essa EC regularizou e estimulou o financiamento público da oferta privada de serviços públicos por intermédio da realização de contratos, convênios e da parceria público-privada, “exigindo novo marco regulatório para adequar a gestão pública às orientações de cunho gerencial” (DOMICIANO; ADRIÃO, 2020, p. 1-2). A regulamentação que a sucedeu consolidou e expandiu as
estratégias de inserção de instituições do terceiro setor na administração pública, contribuindo para o aumento da privatização de setores não exclusivos do Estado, principalmente aqueles voltados para a oferta de políticas de cunho social. (ADRIÃO; BEZERRA, 2013, p. 265)
Na área educacional, particularmente, a privatização da educação básica remonta ao primeiro governo Lula e tem se manifestado de diferentes formas, sobretudo em três dimensões da educação escolar pública: a oferta, o currículo e a gestão (ADRIÃO, 2022). Todavia, não se trata da venda das instituições escolares estatais – perspectiva privatizante privilegiada durante os governos FHC, no sentido de venda das empresas estatais – mas de uma forma nova, mais elaborada e sutil de se fortalecer o mercado e tornar o Estado menor e supostamente ‘mais eficiente’ em sua gestão, portanto, congruente com a NGP. Nessas situações, Peroni (2021) observa que a propriedade permanece pública, mas que a instituição privada assume a direção dos processos pedagógicos e de gestão e, ainda, a execução, a formação dos profissionais, a avaliação própria e o monitoramento.
O processo de privatização vigente nesse novo cenário é distinto, em alguns aspectos, do modelo adotado no início da reforma do Estado brasileiro. Sem que outras possibilidades já consolidadas tenham deixado de existir, observa-se um conjunto de iniciativas que diversificam a privatização, imprimindo-lhes não só uma nova aparência, mas, fundamentalmente, o alargamento da atuação privada por dentro da máquina estatal, de modo que quanto mais se reduz a capacidade de atuação direta do Estado na execução de seu papel social e na realização dos serviços e garantia dos direitos, ou tanto mais se encolhe e se enfraquece a máquina pública estatal, tanto mais aumenta a presença e atuação do setor privado por dentro do próprio Estado.
É, pois, diante desse cenário que nos propusemos a analisar e melhor entender algumas facetas do processo de privatização da Educação Básica pública brasileira, considerando a atuação de organizações (atores) privadas em algumas das principais dimensões escolares. Para tanto, foi fundamental a utilização de dados suscitados pelas pesquisas realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa em Política Educacional (GREPPE): Faculdade de Educação/Unicamp, Unesp/Rio Claro e USP-Ribeirão Preto4, conforme indicados a seguir. E a título de exemplificação da atuação dessas organizações privadas na educação escolar pública do país, definimos como recorte de análise para este artigo a atuação do Instituto Natura, cuja incidência é considerada dentre as que mais se destacam no período delimitado pela pesquisa (2005-2015).
Sobre a incidência privada na Educação Básica pública: o Instituto Natura
Na Educação Básica pública, a presença efetiva de organizações privadas tem se dado nas diferentes esferas administrativas e em todas as regiões geográficas. É o que nos mostram os dados levantados pela pesquisa “Mapeamento das estratégias de privatização da Educação Básica no Brasil (2005-2015)”, realizada pelo Grupo de Pesquisa em Política Educacional (GREPPE). Por eles, é possível identificar, nos diferentes estados da federação, as “parcerias” realizadas entre os governos e instituições privadas com vistas a implementação de programas específicos, cujos objetivos, conteúdos, abrangência, duração, vigência, etapas e público-alvo, dentre outros, atestam que a construção da hegemonia mercadológica atual passa, necessariamente, pela estratégia de privatização educacional no país.
Quanto ao perfil, são organizações as mais variadas, algumas ligadas às áreas de tecnologia, comunicação e informações, como a Fundação Roberto Marinho, Google of Education; ao capital financeiro, por exemplo a Fundação Itaú Social, Fundação Bradesco, Fundação Banco do Brasil, Instituto Unibanco; ao capital industrial, como a Fundação Alpargatas, Fundação Lemann, Instituto Natura; outras sem uma origem claramente ligada ao setor produtivo nem especulativo, mas inequivocamente atuando na defesa dos mesmos interesses, como a Fundação Ayrton Senna, com programas amplamente presentes em redes e sistemas públicos de ensino de todo o país.
Numa perspectiva gramsciana, todas essas organizações integram a sociedade civil, são corporativas em sua identificação, privadas em sua natureza jurídica, em seus fins e em sua essência. Atuando com um aparente desinteresse pelo lucro, com uma suposta preocupação em oferecer apenas e tão somente suas expertises, seu know how e referenciais mercadológicos para que o Estado e todas as suas estruturas se tornem mais eficientes. Tais agentes privados forjam, com a anuência e por dentro do próprio Estado, o discurso ideológico enaltecedor da ‘eficiência’ do privado como alternativa ao público, não somente na execução dos serviços e políticas públicas, mas, para além disso, na concepção, elaboração, implementação e avaliação dessas políticas e da própria gestão pública estatal.
É nesse contexto político que se insere e deve ser analisada a atuação do Instituto Natura (IN) na área educacional pública. Assim como ocorre com vários outros agentes privados, supra indicados, o IN tem um histórico recente no cenário social brasileiro, mas com um acúmulo significativo de poder de incidência na política educacional do país, já alçando, nos últimos anos, voos para a atuação em outros países da América Latina, Argentina, no Chile, no México e, em breve, na Colômbia e no Peru (INSTITUTO NATURA, [2022]).
Criado em 2010 pelo grupo empresarial Natura,5 o IN surge com o propósito anunciado de ampliar os investimentos em Educação já feitos pela Natura desde 1995, por meio da venda dos produtos da linha Natura Crer Para Ver, comercializados pelas consultoras de beleza Natura, sem a obtenção de lucro (INSTITUTO NATURA, [2022]).
Consiste em uma organização da sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos e econômicos, que apresenta possuir como objeto social a
transformação da sociedade, focando a promoção da qualidade de vida, em suas diferentes dimensões, com ênfase na educação, na ampliação das liberdades, na democratização do acesso à informação, no aprofundamento da justiça social e na sustentabilidade. (INSTITUTO NATURA, s. d., art. 3.º)
Informa atuar, por meio de sua área de Produção de Conhecimento, Advocacy e Avaliação,6 no desenvolvimento de estudos e pesquisas, na promoção de debates e no apoio a políticas públicas em iniciativas consideradas prioritárias, como a escola em tempo integral, o regime de colaboração e a disseminação dos princípios de comunidade de aprendizagem (INSTITUTO NATURA, 2016).
No mesmo ano de sua fundação, o IN já assina manifesto político intitulado “A Transformação da Qualidade da Educação Básica Pública no Brasil”, divulgado em dezembro de 2010, com 15 organizações sociais signatárias, que já atuavam na área educacional pública em diferentes esferas de governo, dentre eles: a Casa do Saber, a Fundação Aprendiz, a Fundação Bradesco, a Fundação Educar, o Instituto Ecofuturo, o Instituto Natura, o Instituto Unibanco e a Associação Parceiros da Educação (APE) (CÁSSIO; AVELAR; TRAVITZKI; NOVAES, 2020). Como se percebe, são atores ligados a diferentes setores do capital, todos integrantes do Movimento Todos pela Educação, iniciativa criada em 2006 pelo empresariado brasileiro para intervir na definição da agenda e das políticas educacionais públicas no país (MARTINS, 2009; SOUZA, 2021).
Como integrante do Todos pela Educação, na condição de mantenedor, o IN é um dos apoiadores importantes de outra iniciativa do setor empresarial: o Educação Já!, 7 cujo objetivo é atuar de forma mais efetiva na definição das agendas governamentais, tanto federal quanto estaduais e municipais, com proposições específicas para a educação pública em cada esfera. Trata-se de uma estratégia política agressiva por parte do empresariado, no sentido de pautar o debate educacional, não apenas entre candidatos aos cargos majoritários, mas buscando estabelecer mediações e compromissos dos futuros governantes com os seus interesses na área educacional. Como afirma o texto de sua apresentação,
Educação Já! é o principal objeto de articulação política do Todos Pela Educação para levar às candidaturas uma proposta de Educação que não deixe ninguém para trás!” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, [2022], s. p.).
Como se percebe, é nítido o objetivo do IN em incidir na agenda pública e nas políticas educacionais, colaborando significativamente para realização dos interesses privados [mercadológicos] a partir das ações governamentais. Para alcançar de forma mais eficaz seus objetivos, buscou cercar-se de colaboradores com formação e experiência acumulada nos meios acadêmicos, político-partidários e governamentais, alguns com atuação em postos de relevância nacional.8 Desse modo, supõe-se, que os documentos e materiais produzidos pelo próprio IN poderão ter maior acolhida pública ou maior respaldo de legitimidade tendo como referência os colaboradores signatários.
Conforme informa o próprio IN, suas iniciativas na área educacional pública do país estão focadas em quatro compromissos fundamentais: a) Alfabetização na idade certa via Regime de Colaboração; b) Ensino Médio em Tempo Integral; c) Articulação com Agendas Prioritárias da Educação; d) Educação e Mobilização para as Líderes e Consultoras de Beleza Natura (INSTITUTO NATURA, [2022]). A partir desses eixos/compromissos, o IN elabora suas propostas de ação, cujo conteúdo é oferecido aos governos de turno como alternativas para a superação das dificuldades e desafios identificados.
Considerando-se a análise feita por Garcia e Adrião (2018), das três dimensões – oferta, currículo e gestão – em que mais se identificou a incidência de atores privados no país, podemos afirmar que o currículo tem sido a mais focada ou privilegiada pelo IN. É o que mostram os dados da pesquisa do GREPPE,9 que compreendeu o período 2005 a 2015, indicando que em todos os 11 estados da federação onde o IN atua há pelo menos um programa sendo desenvolvido na dimensão ‘currículo’.
Para fins deste artigo, elaboramos um quadro síntese com um conjunto de informações que mostram a incidência do IN a partir da abrangência regional, das etapas escolares e da dimensão pedagógica. E de forma complementar, mas não menos importante, se sua atuação é conjunta ou em articulação com outro ator privado.
Conforme se observa no Quadro 1, no período compreendido pela pesquisa, o IN se fazia presente em todas as regiões geográficas do país, atuando em 11 estados federados, efetuando 13 programas voltados para a dimensão currículo. Na dimensão gestão, atuava em quatro estados, desses, em três, também, em programas dimensão oferta. É uma atuação abrangente e diversificada, com potencial de influência nos processos de formação escolar que não pode ser desconsiderada nas análises sobre a Educação Básica no país.
Estado | Região | Dimensão | Etapa*** | Com outros atores/parceiros |
---|---|---|---|---|
1. Espírito Santo | SE | Currículo | EF / EM | Sim |
2. São Paulo * | SE | Currículo**/Gestão/Oferta | EF / EM | Sim |
3. Alagoas | NE | Currículo | EF / EM | Sim |
4. Paraíba | NE | Currículo | EM | Sim |
5. Pernambuco | NE | Currículo/Gestão/Oferta | EI / EF | Sim |
6. Sergipe | NE | Currículo/Gestão | EF / EM | Sim |
7. Goiás | CO | Currículo | s. i. | Sim |
8. Mato Grosso | CO | Currículo | EF / EM | Sim |
9. Pará * | N | Currículo**/Gestão/Oferta | s. i. / EF | Sim |
10. Santa Catarina * | S | Currículo** | EM | Sim |
11. Rio Grande do Sul | S | Currículo | s. i. | Sim |
Total = 11 | 5 | Currículo = 13 Gestão = 4 Oferta = 3 | EI = 1 EF = 7 EM = 7 s. i. = 3 | Sim = 10 |
Educação; Washington Bonfim – cientista político, ex-secretário de Educação e de Planejamento de Teresina/PI no governo Firmino Filho (PSDB) (INSTITUTO NATURA, [2022]).
Fonte: Dados organizados pelos autores tendo como fonte a pesquisa “Mapeamento das estratégias de privatização da educação básica no Brasil (2005-2015)”, desenvolvida pela GREPPE.
*Estados onde há dois Programas implementados pelo IN.
**Dimensão em que há mais de um programa implementado.
***EI: Educação Infantil; EF: Ensino Fundamental; EM: Ensino Médio; s. i.: sem informação.
Em decorrência dessa inserção, foi se consolidando a participação direta do setor privado em diferentes dimensões dos processos educacionais escolares, marca inconteste da política educacional vigente há, pelo menos, duas décadas no país. Essa realidade precisa continuar sendo investigada e analisada sob diferentes prismas, particularmente sobre os seus desdobramentos para a efetivação do direito à educação e do princípio constitucional da gestão democrática.
No sentido contrário da necessidade da ampliação das pesquisas sobre as investidas do setor empresarial em relação à educação pública, levantamento bibliográfico realizado, no presente estudo, revelou um número bastante reduzido de estudos sobre o Instituto Natura e sua atuação. Essa busca,10 realizada na base Scielo e no Banco de Teses e Dissertações da Capes, teve o duplo intento de melhor conhecer análises já realizadas sobre o IN e sua atuação social, assim como identificar outros estudos e pesquisas desenvolvidos no país acerca dos programas implementados pelo mesmo IN, referenciada nos quatro eixos/compromissos defendidos por ele, supracitados. A partir desse levantamento, organizamos uma síntese das informações encontradas no Quadro 2, a seguir.
Autor | Título | Periódico | Conteúdo/palavras-chave |
---|---|---|---|
Alexandre Alves; Viviane Klaus Carine; Bueira Loureiro | Do sonho à realização: pedagogia empreendedora, empresariamento da educação e racionalidade neoliberal | Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 47, e226115, 2021. | Relacionado ao desenvolvimento da Pedagogia empreendedora no Brasil; aponta o IN como um dos atores privados do empreendedorismo pedagógico. |
Fernando Cássio; Marina Avelar; Rodrigo Travitzki; Thais Andrea Furigo Novaes | Heterarquização do Estado e a expansão das fronteiras da privatização da educação em São Paulo | Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241711 2020. | Analisa a parceria público-privada entre a SEE-SP e a Associação Parceiros da Educação (APE) em torno do Programa Educação – Compromisso de São Paulo, no período 2015–2018; o IN consta como um dos parceiros (APE) |
Gilda C. de Araujo; Rosenery P. Nascimento | “Educação Já!” e a governança federativa: a nova investida do movimento Todos Pela Educação na definição do Sistema Nacional de Educação | Educar em Revista, Curitiba, v. 36 e77534, 2020 | Analisa a atuação do Todos pela Educação, a partir do Programa “Educação Já”, como parte de um projeto de privatização da educação por meio da articulação entre base, ensino, avaliação e responsabilização. O IN é citado por compor o Mov. Todos pela Educação. |
Sofia Lerche Vieira; David Nathan PlankI; Eloisa Maia Vidal | Política educacional no Ceará: processos estratégicos | Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 4, e87353, 2019. | Discute processos estratégicos à formulação e implementação da política educacional no Ceará no período 1995-2015; analisa aspectos relativos ao equilíbrio fiscal do estado, práticas meritocráticas de recrutamento e mecanismos de monitoramento associados à gestão por resultados. Cita o IN indiretamente como um dos atores privados parceiros dos governos estadual e municipais. |
Carlos Emmanuel; Joppert RagazzoI; Guilherme da F. C. F. de Almeida | Uma Estratégia Regulatória Local para a Educação Básica no Rio de Janeiro | Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 3, e93964, 2020. | Analisa desempenho das escolas municipais de EF do Rio de Janeiro a partir de instrumentos regulatórios top down, apontando os instrumentos de tipo bottom-up como mais eficientes para a realidade estudada. A referência ao I.N. é apenas indireta. Regulação bottom-up e gestão. |
Elizabeth Macedo | As demandas conservadoras do movimento Escola Sem Partido e a Base Nacional Curricular Comum | Educação & Sociedade, Campinas, v. 38, n. 139, p. 507-524, abr.-jun., 2017 | Analisa o Escola sem Partido (ESP) e suas demandas conservadoras na elaboração da BNCC. A referência ao IN é indireta como um dos atores privados que influenciam a elaboração das políticas curriculares. |
Fernando B. Oliveira | Entre liberais e tecnicistas: a didática nas reformas do ensino | Educação em Revista, Belo Horizonte, v.36 e220281, 2020 | Referência indireta ao I.N. como agente mediador das reformas curriculares a partir da BNCC, numa perspectiva neotecnicista, junto ao MEC e ao CNE. |
Vera M. Vidal Peroni | Relação público-privado no contexto de neoconservadorismo no Brasil | Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241697, 2020 | Trata do neoconservadorismo e redefinição das fronteiras entre o público e o privado, nas políticas de educação básica no Brasil. Referência a alguns atores, dentre eles o IN. |
Márcia Ângela da Silva Aguiar | Reformas conservadoras e a “nova educação”: orientações hegemônicas no MEC e no CNE | Educação & Sociedade, Campinas, v. 40, e0225329, 2019 | Analisa a influência neoconservadora de atores privados no MEC/CNE e nas políticas curriculares/ BNCC durante governo Temer (2016-2018). A referência indireta ao IN como um desses atores. |
Miqueli Michetti | Entre a legitimação e a crítica: as disputas acerca da Base Nacional Comum Curricular | Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 102, 2020, e3510221 | Faz análise sociológica sobre espaço social no qual a BNCC foi construída e a atuação de atores privados nesse processo, destacando suas estratégias de legitimação, consensualização e concertação discursiva; cita o IN como desses atores. |
Susana S. Scherer; Flávia M. Nascimento; Maria de F. Cóssio | Parcerias Público-Privadas: atuação do Instituto Ayrton Senna na educação pública do estado do RS | Educação & Sociedade, Campinas, v. 41, e241715, 2020 | Referência indireta ao IN, partindo da análise da atuação do Instituto Ayrton Senna no RS, caracterizando-a como exemplo de mecanismo de privatização, governança e NGP. |
Vera M. Vidal Peroni; Maria R. CaetanoI | Atuação em Rede e o Projeto Jovem de Futuro: a privatização do público | Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 2, 2016 | Faz análise do Projeto Jovem de Futuro do Instituto Unibanco e como se dá a influência dos sujeitos que participam do conselho de governança do Instituto e suas redes de relações, da qual faz parte o IN. O foco é a gestão por resultados em escolas de EM no RS. |
Maria de Fátima Cóssio; Susana Schneid Scherer | Governança em rede e parcerias público-privadas em educação no estado do RS | Contrapontos v. 19, n. 2 p. 71-92, 2019 | Analisa efeitos das parcerias público-privadas nos sistemas públicos de educação do RS; cinco instituições: IAS, IN, SICREDI, Assoc. dos Fumicultores do Brasil (AFUBRA) e FENABB; |
Emília Peixoto Vieira; Andréia F. da Silva | Parcerias entre o setor público e o setor privado: um estudo das mudanças na organização do trabalho pedagógico e no trabalho docente na educação infantil na rede municipal de ensino de Ilhéus | Educere et educare v. 15 (37) 2021 | Analisa as principais mudanças ocorridas na organização do trabalho pedagógico e na jornada de trabalho docente na Educação Infantil no município de Ilhéus/BA, resultantes das parcerias do poder público com o Instituto Natura e o Instituto Arapyaú.11 |
Total | 14 | 7 |
Fonte: Dados organizados pelos autores, tendo como referência a base de periódicos do Scielo.
Conforme podemos observar no Quadro 2, as análises produzidas e divulgadas nos artigos citados não tratam diretamente da ação do IN a partir dos programas concebidos e ou implementados por ele nas respectivas redes públicas de ensino. Os títulos, resumos e palavras-chave dos artigos indicam que o foco das análises está na discussão sobre a relação público-privado na gestão (governança) do Estado, o caráter neoconservador das disputas imbricadas, principalmente a partir dos debates suscitados pelas mudanças curriculares propostas a partir da BNCC, cuja elaboração teve importante participação dos atores privados, como o IN e outros que integram o Todos pela Educação. A propósito dessa ação conjunta, o Quadro 2 mostra que, exceto o estado do Pará, onde o IN atua sozinho no desenvolvimento de seus programas, nos outros dez estados sua ação ocorre em conjunto com outros atores privados, o que demonstra o interesse e a determinação política desse setor em contribuir para a consolidação e construção hegemônica neoliberal privatista como estratégia de poder e dominação de classe.
Embora em número ainda pequeno, o perfil dos artigos indica estar em curso a formação de uma consciência crítica acerca dessa perspectiva privatizante e neoconservadora vigente no país, sobretudo na política educacional, na qual o IN tem exercido importante incidência. Os estudos revelam, grosso modo, que há uma ação clara e organizada, planejada e focada estrategicamente na Educação Básica, por parte dessas organizações privadas, cujos interesses subjacentes apontam para a formação de uma cultura gerencial no setor público.
Quanto aos programas desenvolvidos e/ou implantados pelo IN em “parceria” com os governos estaduais (Quadro 1), eles são vários e em distintas áreas, alcançando professores, alunos, equipes técnico-pedagógicas e diretores escolares. Como frisado, seu foco prioritário de ação é a área do currículo (empreendedorismo, correção de fluxo escolar, distorção idade-série, educação integral, avaliação da aprendizagem, formação de professores, dentre outros); da gestão (medidas de controle do trabalho, de custos, de planejamento, de avaliação institucional, cumprimento de metas etc.); e da oferta (pacotes para formação continuada de professores, sistemas apostilados, de formação/capacitação técnico-profissional, formação de lideranças, dentre outros).
Importa destacar que, independente da forma e do conteúdo dos “contratos” estabelecidos com agentes privados como o IN, e a despeito do tipo de Programa, da etapa de atuação na Educação Básica e dos sujeitos diretamente alcançados, é inevitável considerarmos que esse processo pavimenta caminhos para que os interesses e conteúdos privados, geralmente de natureza mercadológica, sejam introjetados nos espaços escolares públicos e nas respectivas práticas educativas, que Lima (2018), numa perspectiva crítica, denomina como “impregnação empresarial”. Nesse processo, a “antinomia público/privado” vem sendo substituída por um “contínuo de articulações e de parcerias comandadas segundo o chamado espírito empreendedor” (LIMA, 2018, p. 130), apontado com capaz de “resolver” todas as “mazelas” da esfera pública.
Nas iniciativas que adotam essa orientação empresarial elimina-se ou dificulta-se a participação coletiva e autônoma da comunidade escolar na produção e escolha dos conteúdos formativos e das metodologias a serem adotados, principalmente por parte de quem tem institucionalmente legitimidade para tal: os profissionais docentes, cuja formação acadêmica e contratação por meio de concurso público [pelo menos formalmente] lhes reveste de autoridade e domínio didático, epistemológico, metodológico, cultural e político necessário ou pressuposto nos processos de planejamento educacional.
À guisa de conclusão: sobre o comprometimento democrático e do direito à educação
Ao analisar e melhor compreendermos o modus operandi e as estratégias com base nas quais essa política privatizante tem sido implementada, percebe-se que ela afeta diretamente a gestão democrática da educação, haja vista a forma verticalizada como passa a se dar a implementação de políticas e programas na área educacional pública, com concepções unilaterais, portanto, limitadas em relação às particularidades sociais, pedagógicas, metodológicas, epistemológicas e culturais de cada realidade educativa. Um agente privado, isoladamente, por mais que congregue especialistas e colaboradores renomados, não tem o poder de conceber e implementar, como em uma prescrição médica para determinada patologia, programas, conteúdos e métodos como solução para as necessidades ou demandas de uma comunidade escolar. Essa é uma postura antidemocrática, vertical, típica do mundo empresarial, que discrimina os momentos da concepção e execução, hierarquiza funções e delega tarefas, prescindindo da participação coletiva na concepção e construção dos processos institucionais. Portanto, é uma prática incompatível com uma pedagogia escolar que se queira dialógica e emancipatória, tendo como referência o princípio da gestão democrática do ensino público estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Ora, como a qualidade social da educação está diretamente imbricada com a dimensão democrática – princípio no qual se deve pautar o desenvolvimento educacional público no país – ela também é atingida pela privatização. Isto porque o critério fundamental de qualidade adotado pelo gerencialismo para a gestão pública é o alcance e cumprimento de metas, de índices quantitativos em detrimento dos aspectos qualitativos imbricados na formação escolar (SILVA, 2009). A importância e centralidade com que se tem divulgado, utilizado e perseguido, na política educacional, os resultados e as metas de Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB) e do Sistema de Avaliação da Educação (SAEB), por exemplo, confirmam a predominância do quantitativo sobre o qualitativo na racionalidade gerencial vigente.
Em oposição às políticas em curso, a proposta de uma educação e de uma escola com qualidade socialmente referenciada, segundo Silva (2009), compreende
um conjunto de elementos e dimensões socioeconômicas e culturais que circundam o modo de viver e as expectativas das famílias e de estudantes em relação à educação; que busca compreender as políticas governamentais, os projetos sociais e ambientais em seu sentido político, voltados para o bem comum; que luta por financiamento adequado, pelo reconhecimento social e valorização dos trabalhadores em educação; que transforma todos os espaços físicos em lugar de aprendizagens significativas e de vivências efetivamente democráticas (SILVA, 2009, p. 225).
O comprometimento dessas duas dimensões – a participação democrática e a qualidade social da educação – implica, pois, a negação de parte do direito à educação escolar, ao menos na forma como concebido na CF/1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996, assim como defendido por educadores, entidades sindicais, organizações acadêmico-científicas e de classe, setores e movimentos sociais comprometidos com o ideal de uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada, não definida pelos referenciais mercadológicos. Ou seja, o direito humano à educação pressupõe, além das condições de acesso e de permanência, a qualidade dos processos, práticas e estruturas formativas, que viabilizem o “pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996, art. 2º), contemplando uma efetiva participação democrática da comunidade, não só nos processos de planejamento, mas nas instâncias deliberativas escolares e de concepção das políticas institucionais.
A democracia social começa com sua aprendizagem prática desde a primeira etapa da vida escolar das crianças e se estende e se consolida com sua maioridade civil, fase da vida em que o(a) jovem ingressa na Educação Superior e inicia sua formação profissional. Como, então, se ensinar e aprender o exercício democrático no ambiente escolar se ele estiver marcado por processos que se limitam a implementação ou execução de pacotes fechados, com conteúdo e método concebidos por outros, externamente? Como instigar uma práxis pedagógica escolar12 em um ambiente que tem se assemelhado cada dia mais a laboratórios de experimentos gerenciais e de produção de resultados?
Portanto, se a atuação dos agentes privados na definição da agenda e dos programas educacionais, como a do IN, é condizente com a racionalidade gerencial privatizante e conservadora da ordem, ela é profundamente incompatível com os processos formativos que devem se pautar pelos princípios democráticos e de emancipação humana, sentido que embasa a educação pública brasileira. Neste caso, além de conservadora, a política neoliberal é contraditória e conflituosa em sua essência, em relação a qual devem se rebelar os que almejam uma sociedade democrática, mais justa e igualitária.