Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.
-Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas
O presente texto é fruto de um conjunto de reflexões de diferentes ordens - teóricas, metodológicas e teleológicas - acerca da produção acadêmica brasileira dos últimos 30 anos sobre homens na educação infantil.1 Ao buscar inspiração nas palavras de Guimarães Rosa, pretende-se, nas linhas que se seguem, apresentar elementos que permitam compreender os percursos, os pontos de partida (mas também de chegada), bem como novos/outros direcionamentos para o conhecimento já produzido no Brasil sobre a presença masculina em creches e pré-escolas.
Para tanto, os estudos sobre professores do sexo masculino na educação infantil são revisitados focalizando a produção acadêmica do campo das ciências humanas, em especial, os estudos da área da educação da criança de zero a seis anos, evidenciando “convicções, apostas, desafios, que repousam sobre posturas epistemológicas” (Charlot, 2006, p. 15) reunidas nos trabalhos sobre homens na docência com bebês e crianças pequenas. Este exercício objetiva subsidiar a construção de uma memória bibliográfica do campo da educação (Charlot, 2006; Soares, 2020) que toma como objeto de estudo a presença de homens nas práticas de cuidado e educação destinadas aos bebês e crianças pequenas em creches e pré-escolas.
Cabe de partida problematizar: como organizar o conhecimento sobre o tema dos homens na educação infantil, a partir das particularidades da pesquisa em ciências humanas e sociais? Tal questão, conforme sugere Charlot (2006), pode ser enfrentada a partir do estabelecimento de uma memória bibliográfica da produção acadêmica. Para o autor, as ciências humanas e sociais, não avançam a partir de seus pontos de chegada, como fazem as ciências duras, mas progridem a partir de seus pontos de partida. Nas palavras de Charlot (2006, p. 17), “se concordamos com a análise sobre o modo como as ciências humanas e sociais são construídas e vivem, é igualmente necessário trabalhar a questão da memória”. Neste processo, Guimarães Rosa é inspirador, pois nos convida a compreender o real que surge ao longo da travessia. Assim, a construção da memória coletiva das investigações que tomam os professores homens que atuam nas creches e nas pré-escolas como sujeitos de pesquisa e que, portanto, se tornam objeto de análise na atualidade, contribui para a sistematização do conhecimento sobre docência masculina na educação infantil.
No entanto, com vistas a compreender melhor os percursos e percalços já trilhados nesta travessia, cabe, inicialmente, evidenciar aspectos quantitativos da memória coletiva, a fim de afastarmo-nos de estereótipos e sensos comuns para, então, adentrarmos na esfera do conhecimento científico (Charlot, 2006).
Aspectos quantitativos da produção acadêmica sobre homens na educação infantil
Se, como evidencia Charlot (2006), o conhecimento no âmbito das ciências humanas e sociais se estrutura a partir dos pontos de partida, uma questão que nos orienta na escrita deste texto é: no contexto brasileiro, qual a gênese dos estudos sobre homens na educação infantil? Desta questão derivam outras: de onde tais estudos “partem”, isto é, em que áreas disciplinares eles se originam? Em termos de resultados, para onde esses trabalhos estão se direcionando? A partir de quê orientações teórico-metodológicas? E mais: para onde essas investigações têm conduzido a produção do conhecimento da área? Com o desejo de discutir essas e outras questões relacionadas à produção recente sobre homens na docência com crianças pequenas, realizamos um levantamento das teses e dissertações produzidas na pós-graduação brasileira.
A seleção dos estudos ocorreu entre janeiro e março de 2023 e, nesse processo, foram utilizados os descritores “professores homens” - e termos correlatos, tais como: professores do sexo masculino, docência masculina, homens na docência - e “educação infantil” - e seus termos correlatos, quais sejam: creches, pré-escolas, escolas maternais, jardim de infância. Desse modo, em consulta ao Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), entre os anos de 1996 e 2022, foram identificados 46 trabalhos, conforme o Gráfico 1.
O Gráfico 1 permite verificar que, desde 1996, a temática dos homens na educação infantil apresenta avanços, embora sejam identificados alguns momentos de refluxos na produção acadêmica. Os anos de 1998 a 2004, 2009 e 2013, por exemplo, caracterizam-se como momentos em que não foram produzidas teses e dissertações sobre o tema. Verifica-se também que é a partir de 2014 que a produção se mantém ininterrupta, sendo que seu ápice ocorre no ano de 2020, com oito defesas.
Em relação ao curso de pós-graduação em que foram defendidos os trabalhos, esse quantitativo compreende cinco teses de doutorado e 41 dissertações de mestrado - o que sugere que a temática tem servido de porta de entrada para jovens pesquisadores(as) no âmbito da pós-graduação stricto sensu no Brasil, conforme o Gráfico 2.
No que concerne às áreas de concentração em que as teses e dissertações foram defendidas, encontra-se uma predominância dos estudos no campo da educação, seguido da psicologia social e apenas uma única dissertação de mestrado defendida na educação física (Gráfico 3).
Na construção dessa memória coletiva da produção acadêmica (Soares, 2020) sobre homens na educação infantil, optamos por estabelecer uma categorização temporal dos trabalhos. Notadamente, identificamos três períodos que evidenciam peculiaridades da produção recente sobre homens na primeira etapa da educação básica: a gênese dos estudos sobre homens na educação infantil, que se estabelece, sobretudo, ao final de década de 1990 e cujos trabalhos visam compreender os sentidos da presença (ou ausência) do masculino em creches e pré-escolas. Os anos 2000 marcam o segundo momento da produção acadêmica, no qual os professores do sexo masculino emergem como uma novidade de gênero, pois passam a figurar como um novo objeto de pesquisa nos estudos de gênero, em função da explosão de trabalhos na pós-graduação brasileira, especialmente, no campo da educação. O terceiro momento da produção acadêmica compreende os anos de 2010 a 2019, período considerado o ápice da pesquisa sobre docência masculina na educação infantil - momento de profusão não só temática, mas também de ampliação dos matizes teórico-metodológicos evidenciados pela produção recente do campo educacional. Assim, após analisarmos os três primeiros anos do decênio em curso, concluímos o texto evidenciando que a década de 2020 é um momento da sistematização do conhecimento. Discutimos a necessidade de investimentos em novas investigações que evidenciem se estamos diante do limiar de um emergente campo de estudos e pesquisas na área das ciências humanas e socais.
Os anos 1990 - primórdios da produção acadêmica sobre homens na educação infantil
A construção do arquivo coletivo da pesquisa que toma como objeto empírico de investigação os homens que atuam na educação infantil tem suas origens em trabalhos que datam da década de 1990. A partir de então, a produção acadêmica nacional vai se disseminar e se diversificar em várias frentes de pesquisa.
Indubitavelmente, esse é um período importante para a pesquisa educacional brasileira como um todo, já que se trata de um momento em que se registra uma franca expansão dos programas de pós-graduação no Brasil que, associada à revisão política e legislativa em relação à criança pequena, constitui o terreno fértil para a emergência da pesquisa sobre homens na educação infantil. No campo político, este período é também caracterizado pela construção de uma doutrina jurídica da infância, com sérios efeitos sobre a política de educação infantil, já que concebe a criança como sujeito de direitos e, dentre eles, o direito à educação pública, gratuita e de qualidade desde o nascimento.
Os estudos sobre professores do sexo masculino em creches e pré-escolas são tributários de um conjunto de trabalhos que versam inicialmente sobre as dimensões de gênero constitutivas da docência da educação infantil - empreendimento teórico inaugurado no campo da psicologia social, com especial destaque para os trabalhos de Elizabeth Franco Cruz (1998) e Eliana Saparolli (1997). Tais estudos são inspiradores da produção do campo educacional, pois só mais tardiamente - na década seguinte - as investigações sobre docência masculina surgirão no campo da educação.
E o que esses trabalhos revelam? Tais estudos, produzidos entre 1995 e 1999, buscam compreender os sentidos da presença (ou ausência) do masculino em creches e pré-escolas. Os principais temas de investigação verificados nas pesquisas desse período são: (a) a docência da educação infantil como atividade profissional de gênero feminino (Saparolli, 1997) e; (b) os sentidos acerca da presença (e ausência) masculina na educação infantil (Cruz, 1998).
Tais estudos sugerem que a escassez de profissionais do sexo masculino atuando em instituições de educação infantil pode ser explicada a partir de determinantes históricos que, dentre outros fatores, evidenciam as dimensões de gênero constitutivas da docência em creches e pré-escolas. Assim, de modo completamente distinto ao que ocorreu com o magistério exercido nos demais níveis de ensino da educação básica, que historicamente eram ocupações profissionais masculinas que, paulatinamente, passaram a ser realizadas por mulheres, com efeito, a docência em creches e pré-escolas é compreendida, desde o seu nascedouro, como ocupação profissional feminina. Do ponto de vista histórico, tratava-se de uma demanda social de mulheres trabalhadoras que foi, em um primeiro momento, acolhida por grupos de mulheres também oriundas das classes populares (Vieira, 1986).
Ou seja, a docência exercida em creches e pré-escola não se conforma como ocupação profissional feminina em decorrência dos elevados números de mulheres que nela ingressam e atuam, mas por se tratar de uma profissão cuja função social pressupõe a seleção de competências comumente associadas ao feminino e que vinculam-se às esferas da produção e da reprodução da vida: o cuidado e a educação de bebês e crianças pequenas (Saparolli, 1997). Por serem naturalizadas como essencialmente femininas, tais características não são consideradas masculinas, destarte, não se espera e por vezes não se aceita (ou se deseja) homens nas ações de educar e cuidar de bebês e crianças pequenas.
Outra característica desses estudos é que eles buscam desvelar os sentidos do masculino em creches e pré-escolas. Cruz (1998), ao analisar as representações que as educadoras e as famílias possuíam sobre o professor do sexo masculino que atuava em uma creche paulistana, afirma que existem duas representações ameaçadoras de masculino que transitam na instituição de educação infantil: o homossexual e o agressor. O homossexual simboliza a inadequação e, por isso, tende a ser negado ou até mesmo neutralizado, por apresentar características associadas ao feminino e, distanciando-se do masculino, tido como hegemônico em nossa sociedade. Já o agressor, apesar de inaceitável, é em certo sentido ritualizado, legitimado e referendado no cotidiano - principalmente, quando em relação de oposição a ele, emergem representações de professoras como cuidadoras afetuosas e ternas. A autora constatou em suas análises que a referência à homossexualidade é compreendida como algo a ser evitado na relação com as crianças. Para Cruz (1998, p. 246):
Interessante observar que a alusão a um homem com características ou comportamentos mais “femininos”, já remete à discussão sobre homossexualidade, indicando a bipolarização entre masculino e feminino, ou seja, se é um homem fazendo “coisas de mulher” só pode ser um homem “não muito homem”.
Assim, percebe-se que desde os primórdios da produção acadêmica sobre homens na educação infantil os estudos evidenciam que são ambíguas e, por vezes, contraditórias as visões do masculino que circulam em creches e pré-escolas, pois se não cabe ali um homem que expressa uma masculinidade diferente - que cuida e educa crianças - cria-se toda uma atmosfera de apreensão quanto a sua brutalidade, que se configura como um risco, inclusive, de abuso sexual para as crianças.
Na década de 1990, percebe-se escassez de trabalhos que identifiquem homens atuando na docência da educação infantil. Entretanto, os poucos estudos identificados nesse período, ao problematizarem a dimensão de gênero que constitui a docência em creches e pré-escolas, criam o terreno fecundo para a investigação sobre profissionais do sexo masculino atuando na primeira etapa da educação básica.
Os anos 2000 - professores homens na educação infantil e a novidade de gênero
Em termos de produção acadêmica, os estudos dos anos 2000 se beneficiam dos acontecimentos no campo político-educacional que se iniciam no período anterior, fazendo com que, gradativamente, a pesquisa sobre homens na educação infantil vigore. Apesar de não apresentar muitos estudos (Sayão, 2005; Araújo, 2006; Carvalho, 2007; Lima, 2008), o período que se estende de 2000 a 2009 traz novos ares para a pesquisa sobre “homens na docência da educação infantil”, fazendo com que a presença deles em creches e pré-escolas emerja como uma novidade de gênero - um objeto de estudo emergente nas pesquisa sobre gênero na educação infantil. Assim como no período precedente, esse processo está atrelado à consolidação da própria pesquisa em educação infantil no Brasil.
As grandes categorias de análise constantes nos estudos dos anos 2000 são: profissionalidade docente; valorização ou precarização da experiência profissional (sempre tendo o sistema sexo/gênero como determinante desses processos), a qualidade das experiências profissionais (em um primeiro momento de homens e, mais ao final do período, entre eles e as mulheres). Os estudos em educação, na esteira dos trabalhos do campo da psicologia, começam a problematizar a dimensão de gênero da docência com crianças pequenas. Trabalhos como os de Alessandra Arce (2001) e Ana Beatriz Cerisara (2002), demonstram que a educação infantil nasceu como ocupação profissional feminina e, durante muito tempo, foi tratada como apêndice no campo educacional.
Para Cerisara (2002), as instituições de educação infantil são espaços coletivos de grande potencial educativo, mas que, diferentemente da escola de ensino fundamental, encontram-se “numa instância social em que as esferas pública e doméstica se articulam, se chocam e se combinam de diferentes formas” (p. 102-103). A autora considera que as profissionais de creches e pré-escolas têm suas identidades forjadas a partir dos modos como tais ocupações têm historicamente se constituído. Em suas palavras:
São profissões que se constituem no feminino e que trazem consigo as marcas da socialização que, em nossa, sociedade, é orientada por modelos de papéis sexuais dicotomizados e diferenciados, em que a socialização feminina tem como eixos fundamentais o trabalho doméstico e a maternagem. (Cerisara, 2002, p. 102)
Arce (2001) acrescenta que, para além da transitoriedade entre público e privado, é a imprecisão entre os domínios domésticos e científicos, presentes até os dias de hoje nas representações sobre a docência da educação infantil, que no cotidiano, retroalimentam a utilização de termos como “professorinha” ou “tia”, sugerindo uma caracterização pouco definida da profissional, que oscila “entre o papel doméstico de mulher/mãe e o trabalho de educar” (Arce, 2001, p. 173).
Assim, o primeiro estudo proveniente do campo da educação a discorrer sobre homens na educação infantil é de autoria de Debora Tomé Sayão e data de 2005. Em sua tese de doutorado, Sayão (2005) analisou a trajetória profissional e o cotidiano de homens que atuavam em creches púbicas de Florianópolis, Santa Catarina. Considerando o gênero como elemento constitutivo das relações sociais entre homens e mulheres, a autora afirma que “pensar as ações no interior da creche implica pensar em relações engendradas não só do ponto de vista da identidade dos/as profissionais, mas também do ponto de vista das ações que os/as mesmos/as exercem sobre as crianças” (Sayão, 2005, p. 44-45). A autora investigou as relações dos docentes do sexo masculino com as crianças e suas famílias, com as profissionais de creche - auxiliares de sala, diretoras, coordenadoras.
A docência na educação infantil, conforme sugere Sayão (2005), é construída cotidianamente pelo trabalho de mulheres e homens em instituições educativas, não sendo determinada a priori por uma “estrutura de gênero”. Para a autora, tais construções cotidianas evidenciam diferentes representações de masculinidades e de feminilidades concebidas “como processos relacionados ao trabalho pedagógico, ao espaço institucional, às crianças e aos profissionais conduzindo a percepção de que há um mundo social onde as relações acontecem no qual subjetividades e identidades também se entrecruzam interferindo nas interações” (Sayão, 2005, p. 46).
Ao ingressarem em uma profissão considerada como “feminina” os professores se veem obrigados a criar estratégias para permanecerem atuando junto aos bebês e crianças pequenas - táticas que são produzidas por meio de um pacto que, de modo tácito, resulta em sua aceitação (ou não) como membros do contexto institucional. São estratégias comumente elaboradas com base no enfretamento (ora direto e explícito, ora sutil e silencioso) das diferenças, das representações de gênero e de função social da educação infantil, associados a elementos objetivos e subjetivos presentes no ambiente de creches e pré-escolas e que compreendem: emoções, afetos, marcadores identitários (raça/etnia, sexualidade e classe social), que se amalgamam e formam a identidade do(a) profissional de educação infantil.
Sayão (2005) concluiu que a inserção de docentes homens na educação infantil, promove o debate e o aprofundamento das questões de “gênero”, fator que, quando associado às transformações na formação docente, pode ressaltar várias dimensões do trabalho de cuidado e educação da criança pequena, “considerando que meninos e meninas já nascem em uma cultura que produz desigualdades a serem superadas. Dentre elas podemos referir alguns binarismos: público e privado, masculino e feminino, corpo e mente” (Sayão, 2005, p. 262).
Compreende-se que os anos 2000, conformam um período também marcado por uma dispersão temática, teórica e conceitual que, sobretudo, vai abrir caminhos para novos estudos e pesquisas que tematizam a presença/ausência de homens no magistério da educação infantil.
A década de 2010 - ápice da pesquisa sobre homens na educação infantil
Os anos de 2010 se configuram como um período de afirmação da pesquisa sobre homens na docência com crianças pequenas. Os trabalhos desse período vão ratificar, cada vez mais, a importância da presença desses profissionais em creches e pré-escolas. Os estudos (Souza, 2010; Ramos, 2011; Sousa, 2011; Alves, 2012; Pereira, 2012; Castro, 2014; Monteiro; 2014; Gomides, 2014; Santos, 2014; Rigato da Silva, 2014; Lopes, 2015; Hentges, 2015; Teodoro, 2015; Oliveira Carvalho, 2015; Sciotti, 2015. Silva, 2015; Mendonça, 2016; Aguiar Júnior, 2017; Ferreira, 2017; Sousa, 2017; Moreno, 2017; Souza, 2018; Faria, 2018; Lucatti Sousa, 2018; Silva, 2018; Angelino Ferreira, 2019; Oliveira, 2019; Monteiro, 2019; Terres, 2019; Bonifácio, 2019; Coutinho, 2019; Machado de Oliveira, 2019) indicam que, cada vez mais, a figura masculina passa a ser presença comprovada no contexto de creches e pré-escolas.
Esse é um período em que os trabalhos demonstram ampliação da oferta pública de educação infantil nos municípios e, esse é um fator que, indubitavelmente, favoreceu (e ainda favorece) a entrada de homens na docência com crianças pequenas. Por exemplo, no município de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais e cenário de diferentes pesquisas sobre o tema, o quantitativo de professores homens atuando em creches e pré-escolas ainda é pequeno (Ramos, 2011; Ferreira, 2017; Souza, 2018, Bahia, 2020). No ano de 2017, conforme identificou Souza (2018), a Rede Municipal de Belo Horizonte possuía 4.143 professores atuando com bebês e crianças pequenas, distribuídos em 131 Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI), 13 escolas municipais de educação infantil e 13 escolas de ensino fundamental com turmas de educação infantil. Deste quantitativo, 22 professores eram do sexo masculino e 4121 eram mulheres, o que evidencia que “os homens representavam aproximadamente de 0,5% do total de docentes da educação infantil” (Souza, 2018, p. 71).
Ainda que modesto, o conjunto dos textos evidenciam o aumento dos números de professores do sexo masculino atuando nos cuidados e na educação de bebês e crianças pequenas, na capital mineira (situação que corrobora e reflete a questão em âmbito nacional), resulta de conquistas no campo das políticas para a infância. A Constituição Federal de 1988, dentre outros fatores, compreende a educação infantil como direito da população de até cinco anos de idade e também assevera que é dever do Estado (mais especificamente do Poder Público Municipal) a regulamentação e oferta de vagas em instituições de educação infantil.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN n. 9394/1996), ao inserir a educação infantil no campo da educação, compreendendo-a como primeira etapa da educação básica, fez com que os sistemas municipais de ensino ampliassem o atendimento às crianças pequenas. É nesse contexto que “alguns municípios procederam à abertura de concursos públicos, instaurando processos de contratação de docentes com formação específica para atuar nessa etapa da Educação Básica” (Ramos, 2011, p. 126). A identificação do ingresso dos primeiros professores homens nas redes públicas municipais começa a ocorrer a partir do momento em que acontece a intensificação dos primeiros concursos públicos para o cargo de professores de educação infantil, bem como outras formas de contratação, que permitem a elaboração de estatísticas sobre docência e gênero. No caso do concurso público, torna-se inconstitucional discriminar os(as) candidatos(as) por sexo ou gênero e, segundo Ramos (2011) é isso que afiança aos professores do sexo masculino o ingresso no magistério da educação infantil.
As categorias de análises que esses trabalhos apresentam são: identidade docente, histórias de vida dos professores homens, estratégias de inserção e permanência no trabalho de cuidar e educar crianças, dentre outros temas. Os trabalhos vão evidenciar a visão da comunidade educativa de creches e pré-escolas sobre esses sujeitos; pais, familiares, professoras e gestores(as) são convidados(as) a dar seu testemunho nas pesquisas sobre a presença de homens nos cuidados e na educação de meninos e meninas. Entretanto, são poucos os estudos que vão mostrar a visão das crianças sobre a experiência de conviver com homem na docência em creches e pré-escolas (Souza, 2011).
Em relação às temáticas, os trabalhos produzidos nesse período, vão se preocupar em mostrar as continuidades e as rupturas das trajetórias de professores homens na docência da educação infantil. Muitos desses estudos estabelecem correspondência com o que ocorre no magistério dos primeiros anos do ensino fundamental: esses homens acabam atuando por um período muito curto como professores de educação infantil, migrando para outras áreas ou para o ensino superior. Também passam a atuar em cargos de gestão dentro da escola ou até dentro do município.
A pesquisa de Joaquim Ramos é elucidativa dos estudos deste período. Ramos (2011) analisou as estratégias de inserção e permanência de profissionais do sexo masculino na educação infantil belo-horizontina. Ele identificou que, até o ano de 2010, o município possuía aproximadamente 1800 profissionais de educação infantil e, deste quantitativo, apenas 14 eram do sexo masculino. O autor, então, fez contato com todos esses professores e escolheu três para realizar entrevistas em profundidade.
Ramos (2011) percebeu que existem pontos em comum na inserção dos professores homens, apesar de estes três docentes passarem por processos completamente distintos de investidura no cargo, o que também ocorreu em três contextos bem diferentes. Assim, para além do estágio probatório - intrínseco ao serviço público - os professores do sexo masculino passam também, por outra espécie de avaliação de desempenho: o período comprobatório - tempo de atuação no qual precisam “provar” que, além de possuírem habilidades para cuidar e educar as crianças, são sujeitos idôneos, de sexualidade ilibada e que, portanto, não oferecem riscos à integridade física e sexual de meninos e meninas.
Na pesquisa, Ramos (2011) constatou que a vigilância dos familiares das crianças e dos profissionais das instituições somente se atenua quando esses professores homens passam a ter o aval de todos(as) ou de grande parte dos segmentos da instituição para exercer, com inteireza, o cargo para o qual foram aprovados em concurso público. O período comprobatório, contudo, não ocorre de maneira simples e sem controvérsias: a aprovação desses homens, para atuarem como docentes junto às crianças pequenas por parte do coletivo pode ocorrer simultaneamente com todos os segmentos da instituição (família, professoras, direção), com alguns segmentos apenas e com outros não e, em alguns casos, pode até mesmo não ocorrer. Assim, percebe-se que para cada professor, dentro de suas especificidades e idiossincrasias, eram necessários tempos diferenciados para a adequação no espaço de atuação profissional: uns necessitaram de mais tempo de adaptação e aprovação da comunidade escolar, outros menos tempo e havia ainda aqueles que não se adaptaram. O fato é que todos, sem distinção, precisaram (e precisam) passar por esse estágio comprobatório antes de serem aceitos pela comunidade escolar.
Uma característica importante dos estudos que são defendidos entre 2010 e 2019 é que eles começam a se conectar, começam a dialogar entre si; começam, inclusive, fazer referência uns aos outros. Percebe-se, portanto que, ainda que de forma embrionária, os trabalhos reunidos na década de 2010 são resultado de um momento de caracterização do campo.
Importa destacar que os trabalhos da segunda metade da década de 2010 possuem uma especificidade: eles registram a importância da presença masculina na educação infantil. Esses estudos vão fazer uma espécie de militância engajada, isto é, apresentam uma defesa intransigente da presença de homens nas práticas e cuidado e educação em creches e pré-escolas. Tais investigações enfatizam, no debate político, o quão premente é a presença de homens na escola de educação infantil, embora não fique evidente o que motiva ou justifique essa defesa. De modo geral, tais estudos evidenciam o professor homem na educação infantil como um sujeito que promove a desconstrução de estereótipos; no entanto, o que se entende por desconstrução de estereotipias de gênero ainda é pouco sistematizado e aprofundado nas pesquisas.
O período que se estende de 2010 a 2019 compreende um momento muito peculiar da produção acadêmica sobre homens na docência da educação infantil. Trata-se de um intervalo em que se verifica uma ampliação significativa dos estudos que dá início a um processo de difusão temática e que traz a reboque, uma diversificação teórico-metodológica às pesquisas. Várias são as possibilidades de leitura e de interpretação das experiências dos professores homens, a partir de diferentes matizes teóricos, variadas escolas de pensamento, diferentes tradições de pesquisa. Nesse sentido, para além dos estudos de gênero, de vertente pós-estruturalistas, percebem-se também, discussões à luz da teoria histórico-cultural, das teorias das representações sociais, dentre outras, que se conformam como lentes interpretativas que, quando combinadas, permitem compreender melhor as nuances que orientam as análises da experiência desses professores em creches e pré-escolas.
Os anos de 2020 - profusão dos trabalhos sobre homens na educação infantil
A década de 2020 inicia com um boom de pesquisas sobre a presença masculina na educação infantil. Os trabalhos reunidos nesses dois primeiros anos da produção acadêmica (Barboza, 2020; Bahia, 2020; Fávaro, 2020; Ferreira, 2020; Maciel, 2020; Santos, 2020; Antônio da Silva, 2020; Trindade Ramos, 2020; Rigato da Silva, 2021), na esteira de seus predecessores, problematizam as tensões emergentes da presença de homens nas instituições de educação infantil, mas também evidenciam uma atmosfera de desconfiança e suspeita em relação à presença masculina, fator que pemite identificar “o estranhamento bastante comum nas instituições de educação infantil frente à figura masculina ali presente, seja entre os que lhes são favoráveis, seja entre os que se mostram contrários” (Bahia, 2020, p. 40).
A intensidade e o volume dos trabalhos nos dois primeiros anos da década que se inicia se configuram como resposta à onda conservadora que se instaurou no plano político brasileiro e que insiste em produzir desigualdades a partir das diferenças. A discussão de gênero e sexualidade, a partir de 2019, vem ocupando a agenda política após a ascensão de movimentos conservadores como o Escola sem Partido, Revoltados Online, Movimento Brasil Livre, entre outros que, dentre inúmeras questões, têm procurado reverter as políticas de equidade de gênero, conquistas históricas de mulheres e minorias LGBTQIAP+ no Brasil.2
Uma qualidade desses estudos é que eles começam a problematizar os referenciais de masculinidade que os professores homens apresentam às crianças, em especial, aos meninos. Tais figuras podem estar associadas à desconstrução de estereótipos de gênero, como igualmente podem articularem-se às noções de masculinidade hegemônica, masculinidade viril e/ou masculinidade tóxica (Bahia, 2020). Para Bahia (2020, p. 105). Tais referenciais vão se articular com a divisão sexual do trabalho na educação infantil, criando uma representação do “lugar” do masculino em creches e pré-escolas. Nos dizeres de Bahia (2020, p. 60):
Uma vez que o princípio da separação desvelou que existem trabalhos específicos para homens e para mulheres - e por consequência as características relacionadas ao feminino e ao masculino passam a integrar as atribuições destes trabalhos, com os relatos dos docentes, sujeitos dessa pesquisa, com relação à sua atuação na educação infantil - área considerada feminina - é possível evidenciar se o princípio da separação, portanto, reforça a violência simbólica e os preconceitos e estereótipos de gênero nesse seguimento profissional.
Os trabalhos evidenciam que “o debate em torno dos temas que versam sobre homens, masculinidades e docência no contexto da educação infantil, carecem de uma maior atenção no universo da pesquisa acadêmica, pois o machismo e sexismo continuam delimitando esse território dentro dos esquemas binários de gênero” (Antônio da Silva, 2020, p. 24). Importa considerar que, em todas as camadas sociais e em boa parte das ocupações profissionais, características comumente associadas ao masculino (poder, comando, determinação) são ideologicamente organizadas de modo a conduzir os homens a escalas hierarquicamente superiores às mulheres. De acordo com Bahia (2020, p. 68), na educação infantil, essa é uma realidade recorrente, pois “os homens estranhados ali e rejeitados para as funções de sala de aula, são incentivados a buscar posições hierárquicas superiores”.
O avanço do conhecimento no campo das ciências humanas, conforme Soares (2020, p. 2) se dá quando as pesquisas “propõem novas formas de começar, pois o ponto de apoio para novas indagações é a memória construída e consolidada no campo de pesquisa”. Desse modo, problematizamos: o que a memória bibliográfica da pesquisa sobre homens na educação infantil revela?
Sobre as urgências, emergências e insurgências de um estado da arte
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
-Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas
À guisa de considerações finais e amparados pela lucidez das palavras de Guimarães Rosa, gostaríamos de elencar questões que, nos tempos hodiernos, estão em aberto para as pesquisas sobre docência masculina na primeira etapa da educação básica.
A efervescência com a qual as pesquisas sobre homens na educação infantil emergem na pós-graduação brasileira nesta década que se inicia é indicativo de necessidade de um balanço mais preciso da produção acadêmica. Nesse ínterim, algumas evidências insurgem da memória bibliográfica da pesquisa em educação que ora apresentamos permitindo, outrossim, definir novas frentes de investigação.
Parece-nos que o grande entrave da questão dos homens na educação infantil gira em torno das ações de cuidado, em especial, com os bebês. Há uma grande suspeição, ora na capacidade dos professores realizarem as práticas de higiene corporal dos bebês, ora desconfianças quanto as suas intenções ao fazê-lo. Curiosamente, acreditamos ser esse o ponto de inflexão da pesquisa sobre homens na educação infantil. A ampliação de estudos observacionais pode evidenciar como, no cotidiano, homens (e mulheres) atribuem sentidos aos cuidados com as crianças, permitindo-nos compreender melhor a própria noção de cuidar.
Conforme as teses e dissertações analisadas, o cuidado com as dimensões físicas, com a alimentação e a higiene corporal dos bebês e crianças pequenas são elementos essenciais para a construção de uma ética do cuidado. No entanto, elas, por si só, não bastam para definir as dimensões de cuidado definidoras da docência na educação infantil. Em uma acepção feminista, cuidar vai muito além das ações de higiene corporal; compreende, pois, organizar situações que possibilitem o desenvolvimento pleno do outro (seja este outro criança ou adulto). Assim, a presença de homens na educação infantil permite aprofundar os sentidos da própria ação pedagógica em creches e pré-escolas, ao tensionar as concepções de cuidado vigentes em nosso imaginário.
Ademais, uma das grandes lacunas da produção acadêmica nacional, quiçá no mundo, hoje, aponta para a escassez de pesquisas que evidenciam como as crianças significam a presença masculina no contexto de creches e pré-escolas (Souza, 2011). Poucos são os estudos que se comprometem com os sentidos e significados que as crianças atribuem à presença de homens na educação infantil e quais os efeitos dessa presença nos processos de desenvolvimento de meninos e meninas.
Uma questão salutar para a constituição do campo de pesquisa sobre homens na educação consiste em ampliar os investimentos teóricos no âmbito dos estudos sobre masculinidades. A discussão sobre os modos como estes professores expressam suas masculinidades permitiria uma melhor compreensão sobre como a inserção de homens em instituições de atendimento educacional para a primeira infância pode contribuir para as assimetrias de gênero na formação das novas gerações. Afinal, a presença de homens nas ações de cuidado e educação de bebês e crianças pequenas é um elemento favorável (ou não) para transformações na política de gênero de nossa sociedade, tanto em um quadro sincrônico quanto diacrônico? Dito de outro modo: a presença da figura masculina em creches e pré-escolas pode contribuir para alterações na política de gênero de nossa sociedade? Se sim, como?
Assim, novas pesquisas necessitam ser realizadas de modo a enfrentar essas e outras questões que, quando reunidas, evidenciam não só os avanços da produção acadêmica, mas também novas frentes de investigação, conduzindo à consolidação do campo de estudos e pesquisas que tomam os professores homens como sujeitos que, ao lado das mulheres e das crianças, contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa do ponto de vista das relações de gêneros.