Introdução
Esta pesquisa está fundamentada na investigação das contribuições dos autores centenários Paulo Freire e Edgar Morin, como propositores expressivos de subsídios epistemológicos e metodológicos teóricos pertinentes à mudança paradigmática da prática pedagógica dos professores de diferentes níveis de ensino. Paulo Freire se distinguiu no mundo por propor uma educação crítica e dialógica que desafia os professores a atuar na educação com uma visão mais reflexiva e questionadora. Já Edgar Morin propõe uma transformação de pensamento baseada na visão da complexidade, que recomenda a reforma do pensamento e a religação dos saberes.
A relevância da teia de relações entre complexidade e educação crítica foi discutida numa rede de pesquisa, registrada no Diretório de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que conta com pesquisadores de universidades brasileiras e portuguesas. A rede de pesquisa envolve as universidades brasileiras: Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual do Paraná (Unespar) e Universidade Estadual de Londrina (UEL), além das internacionais: Universidade do Porto (UPorto), Universidade de Lisboa (ULisboa), Universidade do Minho (UMinho) e Universidade Aberta (UAB). A rede, no ano de 2023, contou com 29 pesquisadores, sendo 22 brasileiros e sete pesquisadores portugueses.
A pesquisa conjunta na rede discutida pelo grupo acolheu, num primeiro momento, um processo de aprofundamento teórico sobre a proposição epistemológica e metodológica dos construtos e saberes propostos por Freire e Morin. Num segundo momento, gerou um processo de cocriação do grupo de pesquisa para elaborar e oferecer remotamente um protótipo de formação continuada sobre a temática para docentes da rede pública de ensino dos dois países.
Buscou-se investigar o problema: como realizar um processo de cocriação de pesquisadores em rede, brasileiros e portugueses, via digital e presencial, que possibilite aprofundamento e levantamento da relevância da proposição epistemológica e metodológica dos saberes e construtos da teoria da complexidade e da educação crítica para subsidiar a formação on-line de professores da educação básica na busca de novos caminhos paradigmáticos na docência?
A partir disso, estabeleceu-se como objetivo geral: analisar o processo de cocriação de professores brasileiros e portugueses em rede, no sentido de acolher os construtos epistemológicos e metodológicos moriniano e freirianos, como subsídios para a formação on-line de professores da educação básica. Como objetivo específico, definiu-se: identificar, junto aos professores da educação básica luso-brasileiros envolvidos na pesquisa, se a formação continuada pedagógica on-line, oferecida pelos profissionais da rede de pesquisa PEFOP, gerou possibilidades de criar caminhos pedagógicos para uma docência que acolha uma transformação na maneira de pensar e fazer educação.
As investigações buscaram as possíveis conexões das ideias-base, ou seja, saberes das teorias da complexidade de Edgar Morin (2000, 2001, 2010, 2011, 2013, 2021) e da educação crítica de Paulo Freire (1987, 1992, 1996) e Freire e Freire (2001a, 2001b), além de outros autores, como Moraes (2006, 2008a, 2008b, 2009, 2019, 2021), como uma teia de subsídios para alterar os fundamentos teóricos e metodológicos que influenciam a atuação de professores.
A escolha da abordagem qualitativa, do tipo pesquisa-ação, permitiu realizar uma intervenção direta do grupo de pesquisadores junto aos participantes envolvidos, por meio de reuniões presenciais e remotas (Teams), com a utilização de recursos digitais. Adotaram-se recursos tecnológicos para subsidiar a coleta de dados via netnografia e a partir da formação docente on-line, na plataforma Classroom.
Fundamentação epistemológica e metodológica para mudança paradigmática
A necessária e urgente mudança paradigmática da ação docente levou a investigar as contribuições da fundamentação epistemológica e metodológica dos autores relevantes no movimento da educação, dos quais se destacam os centenários Paulo Freire e Edgar Morin, como educadores que oferecem subsídios teóricos pertinentes para fundamentar a reforma do pensamento que leve a renovação da visão da educação e a reconstrução da prática pedagógica dos professores.
São educadores que registraram contribuições expressivas para a formação de professores e profissionais em geral, em nível mundial, desde o início do século XX, as quais ainda não foram acolhidas por um número significativo de docentes como elementos para uma transformação na prática pedagógica. Portanto, torna-se desafiador e relevante oferecer fundamentos para a formação aos professores, no sentido de que possam encontrar novos caminhos no modo de pensar e agir na sua atuação docente.
O eminente educador brasileiro Paulo Freire se distinguiu no mundo por propor uma educação social e crítica relevante que impactou a comunidade educativa nos cinco continentes. Suas obras escritas, tanto no Brasil quanto no período do exílio, impactaram a comunidade europeia, americana e asiática, com ênfase nos educadores brasileiros. Em 1997, seu corpo morreu, o que gerou uma grande perda na educação brasileira, mas suas ideias estão vivas e desafiam até hoje os professores para atuar na docência com uma visão mais crítica, reflexiva e questionadora. A proposta freiriana se mantém pertinente e esclarecedora para uma nova referência gnosiológica na educação.
A coordenadora da rede de pesquisa, durante seu doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi aluna de Paulo Freire; assim, testemunha que o educador se caracterizou como pessoa e profissional, humano e solidário, que sempre se comportou de maneira acolhedora, com amorosidade e posicionamento inclusivo, e, nos encontros em sala de aula e em seminários, respeitou todas as participações dos doutorandos. Diante disso, pode-se afirmar que viveu o que propôs em seus estudos. O que o levou à distinção foi sua coerência, a luta por uma educação que faça a diferença, inclusiva e que respeite as diferenças, pois, mesmo sendo conhecido mundialmente, se manteve com humildade numa convivência fraterna, junto dos que se aproximavam desse pernambucano amoroso.
As ideias de Edgar Morin, que completa, em 2023, 102 anos, foram registradas pela autoria incansável de muitos livros publicados ao longo de sua vida, representando uma grande contribuição epistemológica que pode auxiliar na urgência da renovação paradigmática na mudança de concepção da visão de homem, de sociedade e de mundo. Destacam-se a impressionante produção bibliográfica, entrevistas, contribuições na rede social e artigos que colaboram de maneira expressiva com construtos e fundamentos no movimento de transformação baseada na visão da complexidade.
O autor denuncia a visão simplificadora na educação advinda do paradigma newtoniano-cartesiano, baseada na razão, que desconsidera o emocional e o sensível. Assim, alerta para a urgência de uma mudança no posicionamento reducionista e mecânico frente aos fenômenos do universo, recomendando com ênfase a teoria da da complexidade, que demanda a religação dos saberes e a reforma do pensamento, que leve a superar uma visão simplificadora e fragmentada na educação.
Para a construção da teia de relações entre complexidade e educação crítica, em especial, os saberes envolvidos em cada proposição teórica discutida com os pesquisadores brasileiros e portugueses da rede consolidada de pesquisa, esta trabalhou num processo conjunto de cocriação, para buscar fundamentação teórico-prática que subsidiou a elaboração e oferta de uma proposta de formação continuada on-line para professores da educação básica dos dois países.
A docência, nos diferentes níveis de ensino, tem aparecido com críticas frequentes nos meios acadêmicos e sociais, mas os estudos e pesquisas realizados parecem não impactar junto aos docentes que atuam na educação básica e na educação superior. Esse enfrentamento desafia os pesquisadores em educação que compõem a rede, no sentido de buscar processos que possam amparar os docentes na transformação da prática pedagógica que venha a atender às exigências do mundo contemporâneo, daí a necessidade de recorrer a autores com expertise, como Morin (2000, 2001, 2010, 2011, 2013, 2021), Freire (1987, 1992, 1996), Freire e Freire (2000a, 2001b), entre outros, com o intuito de gerar um processo para alicerçar fundamentos e saberes que levem à transformação da ação docente focalizada nos postulados do pensamento da complexidade e da educação crítica.
Assim, a investigação realizada pela rede de pesquisa fundamentou-se em obras que pudessem oferecer uma visão de concepções inovadoras na docência, optando-se por elaborar uma formação on-line de professores, em especial, que envolvesse os princípios, saberes e práticas pertinentes para a formação pedagógica que respondessem às inovações frente aos desafios epistemológicos e culturais da contemporaneidade, ou seja, acolhendo a aliança entre a visão da complexidade (MORIN, 2000) e a educação crítica (FREIRE, 1996), como pilares epistemológicos e metodológicos que sustentam a transformação da ação docente.
Caminhada paradigmática na ciência e na educação
O paradigma da ciência tem defendido, desde o século XVII, a visão newtoniano-cartesiana, que, segundo Capra (1997, 2002), foi proposta a partir de um entendimento positivista, reducionista e fragmentado do universo, baseado na razão e na constituição de dualidades, pelas quais a razão supera a emoção, a ciência supera a fé, o objeto torna-se mais importante que o sujeito, entre outras. Essa visão imperou por 400 anos na ciência e, por consequência, na educação, mas, desde o início do século XX, começaram a aparecer movimentos, como a física quântica, defendendo a superação da visão newtoniano-cartesiana (AUTOR X; AUTOR Y, 2020a).
Para que os professores e outros profissionais abandonem a visão sectária, racional, na ação docente, há necessidade de transpor as gaiolas epistemológicas (D’AMBRÓSIO, 2012), advindas da abordagem conservadora ou, na denominação de Morin (2010), simplificadora e, na visão de Freire (1996), da educação bancária. Nesse contexto, cabe a consideração de Moraes (2008a p. 77): “Por outro lado, a abertura de nossas gaiolas epistemológicas requer, por sua vez, estratégias metodológicas abertas ao imprevisto, ao inesperado, às emergências, às superações das dicotomias e polaridades existentes”, acrescentando que isso “exige estratégias flexíveis e multidimensionais para compreensão dos movimentos empreendidos, para o estabelecimento de estratégias inovadoras e criativas, capazes de descrever e abarcar o comportamento de unidades complexas”. É também oportuna a reflexão complementar de Moraes (2021, p. 77): “O importante é considerar que é ilusória achar que pode aprisionar qualquer objeto com uma única explicação da realidade, pois o mundo jamais poderá ser enclausurado em um único discurso ou nível de realidade”.
Desde meados do século XX, com ênfase no século XXI, segundo Santos (1987, 2021), tem se evidenciado a necessidade emergente da mudança da maneira de pensar, agir e construir conhecimentos. Nesse sentido, Antunes de Sá e Autor X (2019, 2021) defendem a proposição do entrelaçamento da teoria da complexidade e da visão crítica, como possível caminho, pelo qual se busca a superação: (i) da visão racional e objetiva; (ii) das verdades absolutas e inquestionáveis; (iii) das certezas. No lugar, Morin (2000) propõe saberes que envolvem: (i) enfrentar as incertezas; (ii) ensinar a condição humana; (iii) superar as cegueiras do conhecimento; (iv) enfrentar os erros e as ilusões; (v) valorizar a identidade terrena; (vi) considerar a compreensão humana; (vii) valorizar a ética do gênero humano, os quais podem gerar uma visão complexa, dialógica, crítica, transformadora, ecológica, entre outras.
A visão da complexidade vem se apresentando como um caminho significativo na missão de preparar a humanidade para a formação de cidadãos que se preocupam com os destinos das pessoas, da natureza e do planeta, com a educação acolhendo a aprendizagem para a vida, a inclusão, a aceitação dos diferentes, a educação solidária, a visão ecológica com foco na sustentabilidade, entre outros enfrentamentos emergentes.
O entendimento de complexidade, para Morin (2000, p. 38), contempla o “complexus que significa o que foi tecido junto: de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constituídos do todo”, havendo “[...] um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si”. Nesse movimento, cabe entender que complexidade provém de complectere, cuja raiz “plectere” significa trançar e enlaçar.
Nessa concepção, a educação assume a função de propiciar ao aluno um encontro consigo mesmo, com o grupo e com a comunidade, pois estimula movimentos da humanidade em busca da responsabilidade social com seus pares, a natureza e o planeta. Para tanto, a formação docente precisa considerar a visão humana e solidária, que valoriza os sentimentos, a emoção, a sensação, a intuição, a paixão, entre outros aspectos emocionais.
Complexidade e a transdisciplinaridade
No pensamento complexo, encontra-se o acolhimento da visão transdisciplinar, proposta por Nicolescu (1999). Segundo Moraes (2008a, p. 82), a transdisciplinaridade
não é uma ciência, não é uma religião e nem uma filosofia, embora para se ter um pensamento transdisciplinar é necessário ter uma profunda capacidade de reflexão e de autorreflexão, estar disposto a abertura ao desconhecido e ao inesperado e o necessário rigor científico
Acrescenta que ela “[...] implica uma atitude do espírito humano ao vivenciar um processo que envolve uma lógica diferente, uma maneira complexa de pensar a realidade, uma percepção mais apurada dos fenômenos” (MORAES, 2008a, p. 82). Trata-se de uma postura diferenciada que envolve uma atitude de abertura para a vida em todos os seus processos, permitindo vivenciar a curiosidade, a reciprocidade e perceber as possíveis relações entre fenômenos, eventos e coisas.
A transdisciplinaridade exige um nível de integração, interconexão e inter-relacionamento que atravesse as disciplinas, na busca de religação de saberes, numa visão mais complexa (MORIN, 2000). Trata-se de uma interação de disciplinas que vai além da interdisciplinaridade, pois propõe uma integração e interconexão de vários sistemas interdisciplinares num contexto mais amplo e geral.
Ao indagar por que trabalhar com transdisciplinaridade, Moraes e Navas (2015, p. 30) respondem:
Daí a importância da transdisciplinaridade nutrida por uma visão complexa da realidade como atitude epistemológica, como princípio e metodologia aberta de construção do conhecimento, como ferramenta capaz de assegurar o espaço de intercrítica e intercultural nutrida por uma pluralidade de olhares, linguagens, compreensões e percepções da realidade que destroem todo e qualquer dogmatismo, fundamentalismo e pensamento unívoco.
A formação de professores abrange a construção de espaços de diálogo e discussão reflexiva sobre uma prática pedagógica que busque caminhos para a construção e a produção do conhecimento, nutrida pela complexidade e transdisciplinaridade, que gere posturas crítica, criativa e crítica. Assim, precisa ser acompanhada de aprofundamento epistemológico, como recomendam Navas e Moraes (2015) ao afirmar que a contextualização educativa deve envolver o diálogo, a concepção epistemológica e uma teoria que sustente a proposição da visão da complexidade, além de demandar uma proposição metodológica com planejamento, elaboração e avaliação de subsídios que possam auxiliar os professores formadores e os docentes em geral.
Por sua vez, as contribuições de Freire (1992, 1996) se tornam muito pertinentes na busca da interconexão de uma visão relevante nessa mudança de concepção educacional que norteia a prática pedagógica proposta, pois trazem subsídios e saberes que coadunam com os fundamentos epistemológicos e metodológicos para desenvolver uma formação mais humana e solidária. Freire (1996) apresenta a abordagem progressista, que, por meio da visão crítica, acolhe o sujeito como partícipe da construção da sua história e da sua comunidade e indica a educação como caminho para a transformação da sociedade.
Segundo Autor X e Autor Y (2020b), a vivência na rede, durante o processo investigativo, com pesquisadores experientes, brasileiros e portugueses, permitiu defender como relevante a construção de uma aliança entre a visão da complexidade complexa ou sistêmica (MORIN, 2000) e a abordagem progressista com visão crítica e dialógica (FREIRE, 1996). Isso porque a caminhada para gerar a concepção de um novo paradigma na educação e, por consequência, na prática pedagógica dos professores demanda reflexão e aprofundamento, de modo que os professores encontrem espaços que oportunizem o repensar reflexivo sobre a sua docência. Trata-se do grande desafio de atender a um aperfeiçoamento teórico-metodológico na ação docente, que supere a visão conservadora em busca de uma visão inovadora, complexa e crítica.
Caminho metodológico
A metodologia da pesquisa caracterizou-se por uma abordagem qualitativa, do tipo pesquisa-ação, com procedimentos via netnografia. A abordagem qualitativa “se fundamenta numa perspectiva que concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados” (ANDRÉ, 2013, p. 97). Essa concepção possibilita a interação com o objeto e/ou os indivíduos envolvidos no processo investigativo, movimentos que viabilizam a dinâmica autoeco-organizadora (MORIN, 2008), a retroalimentação da pesquisa (TRIVIñOS, 1987) e a coconstrução, coprodução e cocriação do conhecimento científico (MORAES, 2021).
A abordagem qualitativa, na perspectiva da complexidade, apreende a realidade hipercomplexa, pois “[...] ela comporta pluralidade, e mesmo heterogeneidade, reificação, imaginário, incertezas, desconhecido e, por fim, mistério” (MORIN, 2021, p. 31). Pesquisar sob a visão da epistemologia da complexidade é entender que a realidade é constituída de processos complexos que permitem reconhecer as aproximações, as reciprocidades para algumas questões antagônicas e a ocorrência de diferentes fluxos e variados níveis de percepção na elaboração do conhecimento, que “ao mesmo tempo é tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão do mundo e de seus princípios de conhecimento” (MORIN, 2000, p. 20).
A dimensão epistemológica complexa valoriza a “a subjetividade, a abordagem qualitativa e a complexidade do ser humano e da realidade” (SUANNO; SILVA, 2016, p. 492), possibilitando utilizar diferentes estratégias e instrumentos de pesquisa para a construção dos dados “em etapas complementares na tentativa de apreender as diversas dimensões do fenômeno e estabelecer a relação entre as partes e o todo, relações multidimensionais, multirreferenciais e autorreferenciais” (SUANNO; SILVA, 2016, p. 497).
A partir dessa percepção, optou-se como estratégia metodológica pela pesquisa-ação para investigar, junto aos professores participantes do curso on-line, se os estudos realizados possibilitaram criar caminhos pedagógicos para uma docência que acolha uma mudança espistemo-metodoloógica. Baseou-se, cientificamente, em Tripp (2005, p. 445), que afirma que “a pesquisa-ação é uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para melhorar a prática” e que, concomitantemente, pode alterar o que está sendo pesquisado e sofrer restrições pelo contexto e pela ética da prática. A pesquisa-ação, compreendida como um método de orientação de pesquisa aplicada e intervencionista, possibilitou a esta pesquisa levantar questionamentos, pelos quais os pesquisadores pudessem aplicar e construir conhecimentos de maneira colaborativa.
O processo da pesquisa-ação foi estruturado em quatro etapas, quais sejam: fase exploratória, fase principal (planejamento), fase de ação e fase de avaliação (THIOLLENT, 1997), apresentadas no Erro! Fonte de referência não encontrada..
Fase da pesquisa | Métodos, procedimentos e técnicas | Envolvidos |
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Fase exploratória: reconhecimento e diagnóstico da formação docente continuada | Reuniões Discussões Estudos Definição do universo e amostragem da pesquisa |
Rede |
Fase de planejamento: proposição do curso de formação docente on-line | Reuniões Planejamento Processo de cocriação utilizando a netnografia |
Rede |
Fase de ação: aplicação do curso | Abertura e execução do curso Tutoria |
Rede Professores participantes do curso (amostragem) |
Fase de avaliação: observação e ajustes do curso | Durante o curso: observações; interações; ajustes utilizando a netnografia Finalização do curso |
Rede Professores participantes do curso (amostragem) |
Fonte: Os autores (2023).
Para a construção dos dados da pesquisa-ação, utilizou-se a netnografia ou etnografia virtual, que é uma metodologia científica que viabiliza ao pesquisador observar e participar de comunidades inseridas na internet, possibilitando investigar o grupo a ser estudado (HINE, 2005). Para a coleta de dados, os pesquisadores puderam se envolver, intervir e observar o processo, por meio de diferentes ferramentas ou plataformas que permitem a interação on-line de pessoas. A abordagem qualitativa da pesquisa-ação, com uso da netnografia, oportunizou o levantamento de dados por meio das interações ocorridas durante o processo investigativo, registradas no ambiente digital e com acesso ao grupo investigativo como um todo.
O processo de cocriação do curso de formação docente on-line
A rede, de forma contínua, atua de modo cooperar com a formação de docentes da educação básica e da educação superior, em geral, profissionais interessados no acolhimento de uma prática pedagógica inovadora, neste momento, se defendendo uma concepção que contempla uma visão complexa, crítica e transformadora, por meio de metodologias ativas e da utilização crítica de recursos digitais para ensinar e aprender.
Para o desenvolvimento do curso de formação docente on-line, os professores/pesquisadores brasileiros e portugueses da rede utilizaram alguns princípios do processo de cocriação e os procedimentos da netnografia.
O processo de cocriação é uma teoria de colaboração que possibilita a um grupo de pessoas tomar decisões estratégicas e gerar inovações. Segundo Fucks et al. (2013), a colaboração envolve a comunicação, a argumentação, uma coordenação de pessoas, atividades e recursos e a cooperação. Essas dimensões, entre outras, viabilizam o trabalho concomitante entre pessoas com o mesmo objetivo, em geral, na busca da resolução de problemas de forma conjunta e interativa.
Sanders e Stappers (2008) afirmam que a cocriação é a criatividade coletiva, enquanto Ramaswamy e Gouillart (2010, p. 4) indicam ser o desenvolvimento de “sistemas, produtos ou serviços por meio da colaboração”. Por sua vez, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE, 2014) declara que o processo de cocriação é uma maneira de inovar coletivamente, agregando conhecimento, valor, conteúdo e experiências. Nessa direção, a rede considerou ser um caminho para a criação de um curso de formação continua on-line, identificando que esse processo de cocriação está começando a ser explorado no campo da educação.
O processo de cocriação possibilitou momentos de trocas e discussões entre os participantes da rede, referentes à base epistemológica, metodológica e tecnológica que deveria estar presente no curso desenvolvido. Os encontros virtuais semanais, via plataforma de comunicação e colaboração, possibilitaram o trabalho híbrido, tendo sido todo o material consultado e criado disponibilizado em um aplicativo de armazenamento na nuvem, permitindo a todos os integrantes visualizar, interagir e colaborar com o conteúdo, formato e organização do curso.
O processo de cocriação oportunizou a criação do curso denominado “Caminhos para uma educação transformadora”, ofertado na modalidade on-line a profissionais atuantes na educação básica e Educação de Jovens e Adultos (EJA), brasileiros e portugueses. Com duração de dois meses e carga horária total de 120 horas, dividida em cinco etapas, o curso foi ofertado gratuitamente, sendo disponibilizado no site do grupo de pesquisa, utilizando-se, para tanto, a plataforma Google Classroom.
Etapa | Tema | Atividades | Materiais de estudo |
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Abertura | Superação do paradigma newtoniano-cartesiano | Pensar sobre a necessidade da superação da visão tradicional na educação. | Recursos disponíveis na rede: vídeos, artigos, sites etc. Material desenvolvido pela rede, como artigos, podcast, livro ilustrado, vídeos, artigos, teses, infográficos, PPT |
Módulo 1 | Saberes para a prática docente na educação transformadora de Paulo Freire | Painel Freiriano - Google Docs Atividade: Depois de conhecer os principais fundamentos do pensamento de Paulo Freire, os saberes para a prática docente e os princípios que norteiam a proposta de educação transformadora, compartilhar com os pares o seu entendimento e as suas inquietações a esse respeito. |
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Módulo 2 | Saberes do pensamento complexo e transdisciplinar de Edgar Morin | Relato de experiências, com registros no Padlet Atividade: Na sua prática pedagógica, você consegue identificar a aplicação das ideias dos sete saberes propostos por Edgar Morin? Construa um pequeno relato sobre sua experiência relacionada aos sete saberes de Morin e compartilhe. |
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Módulo 3 | Convergências morinianas e freirianas na ação docente | Momento de reflexão - espaço de comentários na sala on-line Atividade 1: Eu me identifico com Freire e Morin? Entendo e concordo com os saberes e pensamentos de Paulo Freire e de Edgar Morin? Se sim, em que aspectos? Deixe um comentário nos contando o que você concluiu em sua reflexão! Atividade 2: Destaque e comente um dos pontos de convergência apresentados; para tanto, escolha aquele que você considera importante. |
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Módulo 4 | Prática pedagógica à luz da complexidade e da educação transformadora | Momento de reflexão - espaço de comentários na sala on-line Atividade: Elabore um texto sobre como se caracteriza a prática pedagógica à luz da visão da complexidade e da educação transformadora. |
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Encerramento | Avaliação | Questionários on-line Questionário 1: avaliação do curso. Questionário 2: autoavaliação. |
Fonte: Os autores (2023).
O estudo, a reflexão e a construção do conhecimento pelos participantes do curso, intermediados pelo pensamento complexo e educação dialógica, foram desenvolvidos no sentido de estimular a curiosidade, dialogar com pensamentos que acolham a diversidade, pensar a partir de outra lógica, conhecer outro nível de realidade, entender que o processo do conhecimento está orientado para a racionalidade aberta, dialógica, intuitiva e humanizadora.
Questionar, analisar, argumentar, criar, inovar e colaborar são algumas habilidades que o professor precisa desenvolver para auxiliar na reforma paradigmática do pensamento (MORIN, 2000). Com essa visão, buscaram-se estratégias metodológicas de ensino-aprendizagem que oportunizassem aos participantes do curso trabalhar ativamente, interagir de forma colaborativa e construir o conhecimento. Os princípios da educação ativa e os recursos de algumas tecnologias digitais serviram de base metodológica para a construção de cada módulo, que contou com identidade própria, mantendo a unidade da concepção epistemológica moriniana e freiriana.
Participantes da pesquisa
O curso de formação docente “Caminhos para uma educação transformadora” iniciou-se com 97 profissionais atuantes na educação básica, dos quais 53 realizaram o curso completo, sendo 41 brasileiros e 12 portugueses. Sendo o curso totalmente on-line, acolheu uma boa diversidade de profissionais. Dos professores brasileiros, seis eram do Amazonas, um, do Pará, um, do Tocantins, três, da Bahia, cinco, de São Paulo, 22, do Paraná e três, de Santa Catarina; dos portugueses, três eram de Braga, seis, do Porto, dois, de Lisboa e um, de Faro.
O mapeamento do perfil dos participantes, coletado a partir do questionário, possibilitou identificar que 50 tinham formação inicial em Pedagogia, Letras e outras licenciaturas; apenas três eram formados em cursos não relacionados com a educação (Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo), porém atuavam como professores. Outra característica se refere à especialização, havendo no grupo 11 graduados, 23 especialistas, 14 mestres e cinco doutores. Uma particularidade encontrada diz respeito à profissão, revelando que 99% eram professores que atuavam em diferentes níveis, abrangendo o Ensino Fundamental, Ensino Médio, EJA, educação de indígenas, ensino técnico, classe especial, ensino lato sensu e stricto sensu. Destes, apenas 13% atuavam na rede privada.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética, que recomendou o cuidado ético de codificar os participantes como P1 a P53, para salvaguardar o anonimato. Os participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, aceitando que as informações produzidas durante o curso on-line fossem utilizadas para fins desta pesquisa.
Análise e discussão dos dados
Este artigo apresenta um recorte da pesquisa maior realizada pela rede. Objetivamente, buscou-se identificar, junto aos professores participantes do curso on-line, se os estudos realizados possibilitaram criar caminhos pedagógicos para uma docência que acolha uma mudança dos fundamentos teóricos-metodológicos pautados na visão racionalista da educação. Os dados produzidos para responder a esse objetivo foram retirados da etapa 5, de encerramento do curso (QUADRO 2), utilizando o questionário de autoavaliação, respondido pelos participantes concluintes.
O questionário (QUADRO 3) foi estruturado com uma questão de escala Likert, de forma a viabilizar aos respondentes optar por alternativas de maneira mais objetiva, além de duas questões abertas (dissertativas), propiciando ao respondente apresentar seu pensamento, fazer esclarecimentos, dar explicações, exemplificar. Quanto ao formato das respostas, buscou-se trabalhar com ciclos de objetividade, subjetividade e intersubjetividade1, possibilitando aos participantes movimentos cognoscentes de convergências, complementaridades e oportunidades de apresentar múltiplas perspectivas de suas ideias e conhecimentos.
Tipo de pergunta | Pergunta | |||||||||||
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Questão de escala de Likert | 1- As respostas dos demais cursistas colaboraram com seu aprendizado? Assinale o número que corresponde a sua percepção. |
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Ajudou pouco | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Ajudou muito | |
Questão aberta dissertativa | 2- Se você desejar comentar a colaboração dos demais participantes no seu aprendizado, utilize este espaço. | |||||||||||
3- Entre as diversas aprendizagens oportunizadas pelo curso, quais você considera que mais o mobilizaram e que passarão a integrar sua prática pedagógica? |
Fonte: as autoras, 2022.
O curso “Caminhos para uma educação transformadora” foi concebido a partir de dois grandes pilares: (i) epistemológico, fundamentado no pensamento complexo de Edgar Morin e na educação crítica de Paulo Freire; (ii) metodológico, planejado por meio dos princípios do ensino ativo, da colaboração e das tecnologias digitais educacionais. Esses eixos estruturantes permitiram que a formação fosse além das questões técnicas e didático-pedagógicas, incitando o pensar bem (MORIN, 2021) e pensar certo (FREIRE, 1996), que incluem o desenvolvimento da curiosidade epistemológica, associada à reforma do pensamento e à incorporação da vertente emocional na educação, com a finalidade de resgatar a sensação de inteireza, religando sentimentos, pensamentos e ações (MORAES, 2021).
Colaboração no aprendizado
Todas as etapas do curso foram organizadas de modo que a rede de pesquisadores, os participantes entre si e os tutores (participantes do grupo de pesquisa) interagissem permanentemente; assim, as postagens, os comentários e os relatos podiam ser lidos e comentados por todos. Com isso, buscou-se superar a passividade e a individualidade, substituindo-as por novos hábitos de participação, colaboração e cooperação, ações que incitam a ação, reflexão, observação, criticidade e autonomia. Procurou-se desenvolver no participante sua autonomia e responsabilidade para que pudesse estar apto a gerar pensamentos articulados e autoeco-organizados, ampliando a capacidade de reflexão, de trocas, de interações e conexões.
Utilizou-se a escala Likert na pergunta para identificar se a colaboração dos participantes ajudou nos estudos realizados dentro do curso; para tanto, eles deveriam dar uma nota entre 1 (relacionada a ajudar pouco) e 10 (relacionada a ajudar muito). As respostas apontaram que 91,6% escolheram notas acima de 8 e apenas 3,8% selecionaram notas abaixo de 5.
Para complementar a questão, foi disponibilizado um espaço para quem desejasse comentar sobre a colaboração no aprendizado. Era uma questão aberta e não obrigatória. Dos 53 participantes, 22 apresentaram algum tipo de comentário. As contribuições registradas permitiram perceber que a colaboração incitou a coparticipação, comprometimento consciente, interação e inclusão, possibilitando a construção compartilhada de conhecimentos, sendo necessária, para isso, a existência de confiança, respeito, (auto)consciência, reflexão e (auto)crítica.
O trabalho colaborativo no curso visou a propiciar a troca de experiências e informações, incentivar os participantes a entender o posicionamento do colega, identificar as divergências, as complementaridades e as convergências no conhecimento, fazer diferentes conexões mais significativas do conteúdo e estimular a motivação para aprender.
A ação de refletir teve uma incidência bem significativa entre as respostas. A respeito, Freire (1996, p. 41) explica que “[...] os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção”; na educação, isso pode incidir na prática pedagógica, como citado por quatro participantes:
As reflexões foram pertinentes (P44, grifo nosso).
Muito bom conhecer as ideias dos participantes do grupo, promoveu muita reflexão. Dá mesma forma as práticas pedagógicas ajudam a repensar as metodologias (P49, grifo nosso).
Era uma inspiração constante ler os comentários dos restantes participantes, tanto para olhar para os assuntos com outras perspectivas, como para indagar a minha própria prática (P51, grifo nosso).
Qualquer experiência, seja ela mais ou menos positiva, serve para repensar novas metodologias, e adaptá-las às novas realidades com as quais nos vamos deparando ao longo da nossa carreira (P13, grifo nosso).
Quando se fala em reflexão, vem a ideia de que está relacionada à filosofia, mas Morin (2008, p. 32) traz que reflexão “é a aptidão mais rica do pensamento, o momento em que este é capaz de autoconsiderar-se, de metasistematizar-se”, ou seja, é a oportunidade de transformar as condições do pensamento, de superar a visão reducionista, de dar espaço para novas possibilidades/alternativas, de não suprimir a contradição.
Em outros depoimentos, além da reflexão, adicionou-se o aprender, que leva a retomar os ensinamentos de Freire (1996), que relaciona construir, reconstruir, recriar, pensar criticamente e ter curiosidade epistemológica, para que o indivíduo possa transformar a realidade e nela intervir. Nesse sentido, destacaram-se algumas contribuições:
Sou muito grata por haver um espaço de diálogo assíncrono tão rico e ativo. Aprendi, refleti e pesquisei mais à conta desta colaboração e comunicação horizontal (P12, grifo nosso).
Os comentários dos participantes ajudaram no meu aprendizado na medida em que proporcionaram possibilidades variadas de se pensar e fazer o diálogo entre Freire e Morin (P23, grifo nosso).
Foram momentos de reflexão, interação gratificante e de aprendizado (P35, grifo nosso).
Foi muito importante esse formato das atividades, onde podíamos ver a colaboração dos outros participantes, pois além de aprender com o conteúdo que vocês do grupo nos forneceram, aprendi também com a vivência e experiência dos outros professores (P7, grifo nosso).
Para aprender a conhecer, é necessário “separar e unir, analisar e sintetizar, ao mesmo tempo. Daí em diante, seria possível aprender a considerar as coisas e as causas” (MORIN, 2008, p. 56); para tanto, devem ser criados espaços para superar a causalidade linear e a visão simplificante que leva ao pensamento mutilante.
O conhecimento, para Morin (2000), é ao mesmo tempo tradução e reconstrução, por meio da interpretação que o indivíduo faz; isso pode ou não levar ao erro da compreensão do conhecimento, por isso a necessidade de profundidade e não superficialidade (FREIRE, 1996). Para ilustrar esse pensamento, tem-se a seguinte contribuição: “Foi muito importante ver a leitura que os colegas realizaram das atividades: alguns pontos interessantes que passaram batido no meu próprio estudo puderam ser resgatados com a interpretação dos outros participantes” (P27, grifo nosso).
A percepção foi citada por P17 ao afirmar: “Realizei a leitura das postagens dos colegas e ampliou muito minha percepção” (grifo nosso), podendo esta ser relacionada à visão de Morin (2008) de que toda percepção é uma tradução reconstrutora, para que se possa ampliar o horizonte do perceber, superando a própria miopia, que dificulta a percepção mais clara das coisas (FREIRE, 1987).
Para finalizar a análise da visão da colaboração para os participantes, identificou-se esta como possibilidade de recompor conhecimentos, como sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado (FREIRE, 1996), copartícipes do processo, como explicitado na afirmação de P23: “Penso que a colaboração de todos os cursistas foi de extrema importância, pois todos contribuíram para reconstruirmos um novo conhecimento no que concerne ao processo de ensino e aprendizagem” (grifo nosso).
Aprendizagens e a prática pedagógica
Para identificar as aprendizagens adquiridas por meio do curso e que serão incorporadas à prática pedagógica dos participantes, estruturou-se uma questão aberta (dissertativa). Na análise das respostas, distinguiram-se três categorias relacionadas com a base epistemológica do curso, fundamentado no pensamento complexo de Morin e na educação transformadora de Freire, e uma categoria relativa à base metodológica do curso, estruturado a partir do ensino ativo, da colaboração e das tecnologias digitais educacionais, sendo elas representadas no Quadro 3.
Base epistemológica: pensamento complexo e educação transformadora | Base metodológica: ensino ativo, colaboração e tecnologias digitais educacionais | ||
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Categoria | |||
Relacionada a Freire | Relacionada a Morin | Relacionada aos dois teóricos | Metodologia e prática pedagógica |
Leitura de mundo | Condição humana | Visão mais crítica e inovadora | Prática reflexiva, mediadora e humana |
Parte e todo e a indissociabilidade | Éticos nos princípios teóricos e práticos acerca da educação | Diversas práticas pedagógicas | |
Cidadão crítico | Sete saberes | Autonomia do estudante, guiada pela ação do professor | |
Visão da educação planetária | Ser cidadão do mundo e considerar a importância de si mesmo, do semelhante, da sociedade e do planeta | Discussão e problematização dos conhecimentos de forma transversal | |
Rever crenças e atitudes | Religação dos conhecimentos | Afetividade | Aluno coparticipativo do processo |
Modo de ver a sociedade | Aulas mais participativas e significativas | ||
Transdisciplinaridade | Formação humana | Metodologias ativas | |
Considerar o conhecimento prévio do aluno | |||
Educação transformadora | Ensinar para a complexidade | Dimensão da prática com a perspectiva da diversidade | Aprender junto a aprender |
Professor mediador | |||
Metodologia e inclusão | |||
Trabalho colaborativo | |||
Relação dialógica | Educação contextualizadora | Multiplicidade, diversidade que cada aluno carrega | Revisão da prática pedagógica |
Revisão da metodologia | |||
Questionar o porquê das coisas | Transformação das aulas | ||
Superação para transformar práticas didáticas |
Fonte: Os autores (2023).
Nas categorias relacionadas a cada um dos autores, os participantes apontaram assuntos bem específicos de cada teórico, incluindo pontos significativos, ideias relevantes, concepções expressivas e pensamentos pertinentes que podem ser inclusos na prática pedagógica.
Na categoria relativa a Freire, foram apontadas as temáticas: cidadão crítico, revisão de crenças e atitudes, educação transformadora, relação dialógica e leitura de mundo. Esta precisa ser um ato de superação da visão de apenas escutar o aluno, concordar com ele, ser simpático, indo na direção de entender que o discente traz consigo a sua cultura de classe, enquanto “o educador que respeita a leitura de mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria da posição verdadeiramente científica” (FREIRE, 1996, p. 46). A leitura de mundo revela a individualidade do educando, sua singularidade no processo de assimilação da inteligência do mundo. Essas ideias foram bem discutidas no curso e chamaram a atenção de P3, P18, P31 e P38.
Na categoria relacionada à proposta paradigmática de Morin, nove pontos foram identificados, sendo três ligados à teoria da complexidade: parte e todo e a indissociabilidade, religação dos conhecimentos e transdisciplinaridade, alguns dos conceitos-chave da complexidade que auxiliam pensar bem. Essas ideias possibilitam o pensamento que religa, capaz de contextualizar e problematizar, em oposição ao pensamento que separa, fragmenta, simplifica e reduz a realidade e o conhecimento.
Os outros seis itens foram associados aos sete saberes necessários à educação do futuro, presentes em uma obra escrita por Morin (2000) a pedido da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) há mais de 23 anos e que traz muitos ensinamentos. Esse livro apresenta princípios fundamentais, instigadores e instauradores de ideias, pensamentos e compreensões acerca da vida, da natureza e do mundo, que podem auxiliar na reorganização da educação do presente e do futuro.
A categoria referente à proposta dos dois autores possibilitou identificar que os participantes fizeram suas interpretações dos pontos estudados relativos às teorias de Morin e Freire, apresentando alguns temas relacionados com a ética, a formação humana, a diversidade, a afetividade e a visão crítica e inovadora. Nas contribuições, foi possível perceber que os participantes conseguiram estabelecer convergência entre as propostas dos autores, indicando ser ética um princípio de natureza humana (FREIRE, 1996) que auxilia no desenvolvimento da autonomia individual, da vivência em comunidade, para ter consciência de que o indivíduo faz parte da espécie humana (MORIN, 2000). Essa consciência permite trabalhar para a humanização da humanidade, desenvolver a ética da solidariedade, da compreensão e do gênero humano (MORIN, 2000). A visão da complexidade proposta por Morin (2000) defende a ética como algo vital para o convívio humano.
Dessa maneira, ambos os autores afirmam que a ética é inerente à prática educativa, pois esta, sendo humana, é também formadora (FREIRE, 1996), não devendo ser trabalhada na escola como disciplina nem por meio de lições de moral, mas “deve-se formar nas mentes com base na consciência de que o humano é ao mesmo tempo indivíduo, parte da sociedade e parte da espécie” (MORIN, 2000, p. 54). Essa realidade possibilita compreender a diversidade cultural e social, a pluralidade individual e a unidade humana, pois “qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever” (FREIRE, 1996, p. 25).
Outra ideia-chave de Freire e Morin diz respeito à afetividade ou afeição, pela qual o ser humano pode expressar ou ser afetado por sensações, sentimentos e emoções, não podendo ser excluída da cognoscibilidade (FREIRE, 1996) e do processo de construção do conhecimento. O indivíduo é racional e irracional, navega pela objetividade, subjetividade e intersubjetividade, “nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e de quimeras” (MORIN, 2000, p. 58).
Essas concepções permitem inferir a necessidade de uma prática educativa alimentada não apenas pela técnica, pela didática, pelo formalismo excessivo, mas permeada por ambientes tecidos pela afetividade, pela escuta sensível (MORAES, 2021), pela amorosidade ética, que possibilita ao docente o exercício de sua autoridade como professor sem autoritarismo e rompendo com a licenciosidade (FREIRE, 1996), pois, como afirma Morin (2000), as emoções são fundamentais para a formação de comportamentos racionais.
Outro ponto que foi identificado nos relatos dos participantes refere-se à visão crítica, explorada por Morin (2000, p. 88), no sentido do “exercício complexo do pensamento que nos permite ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente”, falando diretamente sobre a relação do ser humano e entre os humanos. Freire (1996) complementa indicando que a curiosidade crítica se torna curiosidade epistemológica, que possibilita a inquietação indagadora, a procura de esclarecimentos, a rigorosidade curiosa, a humildade e a persistência, pois a educação não se faz por transferência, mas “nas condições da verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (FREIRE, 1996, p. 13).
Os fundamentos freirianos e morinianos aqui explorados trazem um recorte teórico que possibilita entender o posicionamento de alguns participantes que apontaram que, entre as diversas aprendizagens oportunizadas pelo curso, o ensino ativo, a colaboração e as tecnologias digitais educacionais foram conhecimentos adquiridos e que poderão integrar sua prática pedagógica.
Considerações finais
A experiência vivenciada durante a pesquisa permite afirmar que, de acordo com os participantes, a prática pedagógica fundamentada epistemologicamente no pensamento complexo e na visão transformadora pode provocar uma mudança de postura diante da maneira de produzir conhecimento, de aprender e de ensinar.
Os dados construídos durante o curso on-line e analisados posteriormente possibilitaram inferir que os ensinamentos de Freire e Morin podem auxiliar o professor a pensar, sentir e agir de forma a buscar um pensamento mais elaborado, dialogar com novas ideias e diferentes tipos de conhecimento, identificar caminhos diversificados e conhecer outro nível de realidade do processo de conhecimento por meio de uma racionalidade aberta, dialógica e intuitiva, que incita o pluralismo e a heterogeneidade de ideias, valorizando as opiniões e pontos de vista.
Observou-se, a partir dos dados coletados, que os professores luso-brasileiros que realizaram o curso apontaram em seus relatos a possibilidade de criar caminhos pedagógicos para uma docência que acolha uma mudança na forma de pensar e agir na educação. Revelou-se que o ambiente educacional precisa ser projetado para ser concomitantemente acolhedor, intelectual e afetivamente, ou seja, ambientes dinâmicos, flexíveis e abertos, estruturados para desenvolver a responsabilidade e autonomia intelectual do aluno, para que este possa estar apto a fazer diferentes conexões e gerar pensamentos articulados para produzir seus conhecimentos.
A pesquisa também revelou que os docentes que se propõe a acolher epistemológica e metodologicamente os construtos do paradigma da complexidade e da educação crítica podem estar preparados para estruturar momentos que levem os discentes a pensar, refletir e criar. Para tanto, metodologias ativas e criativas que acolham a visão da complexidade e crítica podem possibilitar a interação, a troca, o questionamento, a dúvida, o debate, o diálogo, a resolução de problemas, a comparação, a análise, a síntese, a generalização e a inferência. Assim, defende-se que uma prática docente que busca superar a visão mecanicista da educação, pode criar relações permeadas pela generosidade, companheirismo e respeito à diversidade e às diferenças. Ainda, essa concepção inovadora pode abrir espaços para a reforma do pensamento e a religação dos saberes, que permitem sincronicamente trabalhar com a razão, emoção, imaginação, precisão, intuição, certeza e incerteza, recepcionando um posicionamento ético e sensível na formação dos cidadãos planetários, que desejam uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.