Introdução
Ao iniciar a vida escolar, a criança já vivenciou diferentes contatos que envolveram o contexto numérico, e para Araújo (2010, p.144), “[...] a Matemática assim como qualquer outra área do conhecimento, é parte do universo da criança [...] e para que a criança torne o seu conhecimento historicamente acumulado, é necessário que o mundo adulto intervenha”. Assim sendo, durante todo o ensino escolar, ao planejar atividades, a equipe pedagógica precisa considerar os conhecimentos previamente elaborados pelos alunos e proporcionar-lhes novas experiências que ampliem e sistematizem seu conhecimento, a fim de que possam formar os conceitos científicos referentes à Matemática e às demais áreas do currículo escolar.
Nesse sentido, este estudo tem objetivo analisar o processo de aquisição de conceitos matemáticos a fim de compreender como ocorre seu aprendizado em uma turma do 1º ano do ensino fundamental. Para tanto, nos respaldamos em autores da Teoria Histórico-Cultural com o intuito de analisar um episódio denominado “sequência numérica e traçado dos números”, observado durante o estudo, a fim de compreender como o conhecimento teórico e prático se articula na sala de aula.
Comumente, o professor que ensina Matemática e todos os outros conteúdos desde a educação infantil aos anos iniciais do ensino fundamental é o pedagogo. Sendo assim, faz-se necessário refletirmos também sobre como esse profissional tem usado do seu conhecimento para formar os conceitos matemáticos nos alunos, visto que com frequência se queixam da dificuldade que possuem para ensinar esse conteúdo (FERREIRA; FREITAS, 2014). Não pretendemos, aqui, atribuir ao professor a responsabilidade integral do desempenho apresentado pelos alunos em sala de aula, mas compreender como a sua formação influencia nesse processo, pois na extensa carga horária na licenciatura em Pedagogia pouco aprendem acerca da metodologia de ensino da Matemática. De acordo com Costa, Pinheiro e Costa (2016), além de o professor saber os conteúdos de Matemática, também precisa ter conhecimento de como tratá-los, a fim de que a aprendizagem dos alunos se efetive. Concordamos com esses autores que a falha no processo de formação dos professores se estende para a formação de seus alunos.
Com a finalidade de verificar como ocorre o ensino da Matemática no contexto de ensino ora descrito, tivemos como suporte a análise microgenética na perspectiva enunciativa descritiva. Esse tipo de análise requer do pesquisador atenção dos episódios interativos, levando em consideração os aspectos da mediação pedagógica e da atividade de ensino, utilizando os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural e as reflexões relativas à linguagem elaboradas por Bakhtin e Volóchinov; essas duas abordagens dão especial importância à cultura na constituição do sujeito. Dessa forma, o indivíduo inserido no contexto educativo escolar formal e sistematizado passa a internalizar a cultura do seu grupo ao mesmo tempo em que produz sua própria cultura e a transforma.
Nessa direção, possibilitar que os alunos desenvolvam práticas relacionadas à sua realidade proporciona a tentativa de novos caminhos para a resolução de problemas encontrados em sua vida. Sendo assim, a Matemática não se resume à aprendizagem de numerais aplicados às listas de exercícios de maneira mecânica; por meio dela é possível a apropriação de conceitos, pois conforme explica Azevedo (2007, p.43), é
[...] produto da atividade humana e se constitui no desenvolvimento da solução de problemas criados nas interações que produzem o modo humano de viver socialmente. Nesse sentido, os saberes matemáticos têm significados culturais, constituindo-se historicamente em instrumentos simbólicos.
Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, a Matemática é compreendida como produto da solução de problemas criados pelas relações humanas e é o desenvolvimento de conhecimento para a resolução dos problemas que se formam no processo de generalização (MOURA, 2006). Portanto, quando objetivamos desenvolver os conceitos matemáticos, devemos considerar o seu processo de produção, ou seja, em quais circunstâncias tal produto da atividade humana foi desenvolvido diante das necessidades enfrentadas pelos homens (RUIZ, 2018).
Para alcançarmos o objetivo do estudo, abordamos, em um primeiro momento, as contribuições de Luria, Bakhtin e Volóchinovsobre o processo de formação de conceitos. Em seguida, apresentamos os procedimentos metodológicos e os resultados da pesquisa. Por fim, nas considerações finais, tecemos reflexões sobre os dados encontrados, bem como as limitações da pesquisa, a fim de sistematizar as contribuições deste estudo.
As contribuições de Luria, Bakhtin e Volóchinov no processo de formação de conceitos
Neste momento nosso propósito é refletir sobre a formação de conceitos via palavras a partir da concepção de Luria, Bakhtin e Volóchinov, os quais se referenciam no marxismo. As principais obras utilizadas para responder ao nosso objetivo sãoPensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria(LURIA, 1986) eMarxismo, filosofia e linguagem(BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010), além de outros autores que nos auxiliaram na compreensão dessas.
Pontuamos que a palavra cumpre uma função relevante no processo entre o pensamento e a linguagem; trata-se de um instrumento do pensamento e da comunicação. Na concepção de Luria (1979), a palavra tem como um dos seus elementos a língua, na qual está sobreposta a representação material e o significado. Dessa forma, cada palavra pronunciada tem uma função muito específica, pois não só designa um objeto, como também o coloca em análise. As palavras não só separam traços característicos das coisas, como também generalizam e as categorizam, uma das suas funções mais importantes. O autor explica que ao designarmos um objeto com palavras, o estamos incluindo em uma determinada categoria. Isso pressupõe que a palavra é uma “célula do pensamento”, porque a generalização e a abstração são as funções mais importantes do pensamento. A palavra pode introduzir, ainda, um complexo sistema de relações, possibilitando a transmissão de experiências das gerações anteriores, acumuladas na história da sociedade (LURIA, 1986).
Quanto à generalização de um objeto por meio das palavras, é preciso que o sujeito falante e o ouvinte façam a correspondente experiência para transmitir o pensamento. As palavras “possuem um significado generalizado e é essa condição para que o sujeito, ao nomear um objeto, possa transmitir seu pensamento à outra pessoa, é a condição para a compreensão” (LURIA, 1986, p.37). Mesmo que quem esteja falando pense em um objeto que possua características específicas do que o ouvinte está a pensar, a capacidade de generalização permite que se tenha compreensão entre ambos. Dessa forma, ao abstrair traços característicos e generalizar os objetos, a palavra adquire o sentido de instrumento do pensamento e meio de comunicação.
Volóchinov (2013, p.171), ao se pronunciar sobre o significado da língua, explica que “[...] quase todas as palavras da nossa língua podem ter significados distintos, segundo o sentido geral de toda enunciação”. Isso dependerá tanto da situação da qual emergiu a enunciação quanto das causas e condições gerais ocasionadas pelo intercâmbio comunicativo.
De acordo Bakhtin e Volóchinov (2010), para o locutor o uso da língua tem importância a partir do momento em que o sujeito falante faz o uso dela para “interagir”, incorporando o outro no processo de comunicação. Os autores defendem que, ao levar em consideração a palavra na formação de conceitos
[...] é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade linguística, a uma comunidade claramente organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para pessoa sobre um terreno bem definido (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010, p. 72).
Dessa forma, o contexto e o meio social são indispensáveis para que se possa definir e formar uma comunidade linguística. Bakhtin e Volóchinov (2010, p.94) apontam que
[...] exprime-se uma relação perfeitamente objetiva quando se diz que a língua constitui, relativamente à consciência individual, um sistema de normas imutáveis, que este é o modo de existência da língua para todo o membro de uma comunidade linguística dada.
Sendo assim, podemos inferir que o sistema de normas sociais existe para aqueles que participam da coletividade regida por normas e o seu impacto dependerá de sua significação social.
A palavra tem duas faces, ela precede de alguém bem como é dirigida a alguém, “[...] ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010, p. 117). Esse meio de trocas expressa algo de um indivíduo para outro, tornando-se uma ponte. Dessa maneira, a palavra é mais do que um vocábulo, ela é o discurso.
A enunciação da palavra como signo é constituída pela relação social em que cada indivíduo se encontra. Conforme Bakhtin e Volóchinov (2010, p. 117), “[...] a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. Qualquer enunciação dirigida está ligada pelos participantes do ato da fala em situações precisas. Desse modo, a situação e os participantes determinam como a enunciação acontecerá. É preciso destacar que o locutor está submetido à pressão social, ou seja, dentro de uma determinada sociedade espera-se certo tipo de comportamento das pessoas, por isso a enunciação não se restringe ao indivíduo.
Ao explicar a descodificação (compreensão), Bakhtin e Volóchinov(2010) afirmam que essa é diferente de identificação. O que constitui a descodificação é a compreensão da palavra em seu sentido particular, o que confere uma evolução à palavra e não algo estático. Lima (2010) explica que a descodificação é um processo individual, no qual os sujeitos lançam mão das suas atividades interpretativas para compreender um contexto específico. Nessa perspectiva, a descodificação busca, sobretudo, entender o sentido em determinadas situações. Quanto ao processo de identificação, a autora assinala que por meio dele é possível identificar a forma utilizada e não há produção de sentido.
Dessa maneira, o signo pode ser compreendido, enquanto o sinal pode ser identificado. O sinal é imutável, não pode refletir ou substituir nada, apenas designa os objetos e acontecimentos e faz parte dos instrumentos de produção. Se para o receptor a forma linguística for apenas um sinal, ela não terá nenhum valor linguístico. Até mesmo nas primeiras fases de aquisição linguística a forma é orientada pelo contexto, constituindo o signo, a língua. Assim, salientamos que a língua está carregada de valores ideológicos, que podem ser caracterizados como a representação de uma sociedade construída a partir das referências estabelecidas nas interações e trocas simbólicas desenvolvidas em determinados grupos sociais organizados. A forma linguística sem ideologia é caracterizada apenas por sinais, e é esvaziada de signos da linguagem (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010).
Ao tratar da “sinalidade”,Bakhtin e Volóchinov (2010) observam que esta é deslocada e absorvida na qualidade de signo. No processo de assimilação de uma língua estrangeira, o sujeito, enquanto ainda não a domina, sente a “sinalidade” e o reconhecimento, nesse caso a língua ainda não se tornou parte do indivíduo, uma vez que “[...] a assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão” (BAKHTIN; VOLÓVCHINOV, 2010, p. 97-98). Para as pessoas que falam a língua materna, as palavras não são itens do dicionário, mas sim enunciações de sua prática linguística, um conjunto de contextos possíveis de uso e modos particulares. A língua não se transmite, mas perdura sob forma de um processo evolutivo e contínuo. Assim, os sujeitos não adquirem uma língua materna, reconhecer-se em uma língua significa passar por um processo de assimilação da língua materna por meio da integração progressiva da criança com a comunicação verbal.
As formas linguísticas sempre se dão em um contexto de enunciação específico, resultando em um contexto ideológico preciso. Assim, a palavra enquanto signo pode ser entendida como “variável e flexível”, pois pode variar com o meio social, compreendida de forma ampla, enquanto o sinal “[...] é uma entidade de conteúdo imutável, ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada, constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto [...]” (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010, p. 96).
Para Bakhtin e Volóchinov (2010, p.98), a palavra é um produto ideológico que funciona nas diferentes situações sociais. Dessa maneira, a palavra “[...] está sempre carregada de um contexto ou de um sentido ideológico vivencial”. A palavra está inserida em um espaço de trocas vivenciais repletas de conteúdo ideológico produzido a partir da enunciação dos sujeitos. Por meio da palavra a comunicação pode ser estabelecida, trata-se de um produto que permite ao locutor e ao ouvinte manterem relações interpessoais, pois é um elemento comum entre ambos. O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo tem o que Bakhtin e Volóchinov (2010) chamam de auditório social. De acordo com os autores, esse espaço é bem definido e construído nas atmosferas interiores, nas motivações, apreciações, etc., sendo a cultura do indivíduo o meio que influencia no espaço ocupado por ele socialmente.
A palavra quando estudada na perspectiva da vida social não pode ser interpretada como algo abstrato. Por conseguinte, Bakhtin e Volóchinov (2010, p. 116) assinalam que “[...] a enunciação é o produto de interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor”. Assim, classificam a palavra como discurso, que em nosso entendimento são indissociáveis, carregadas de histórias, lutas e ideologias.
A palavra pode servir para diferentes contextos e a forma linguística utilizada pelo locutor varia de acordo com a situação na qual é pronunciada, e por ser variável tem o valor de signo. Conforme Bakhtin e Volóchinov (2010), a forma linguística não é determinada pela identidade do sinal, mas pela “mobilidade específica”. Essa “mobilidade específica” significa a orientação dada a uma palavra, proveniente de uma situação e contexto bem definido. Sendo assim, “[...] o sentido da palavra é totalmente dominado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quanto contextos possíveis” (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2010, p. 109).
As relações sociais são as responsáveis por apresentarem ao sujeito os objetos e fazerem circular as práticas vigentes na sociedade em que vivem. Segundo Vygotsky (2007), a maneira como cada indivíduo internalizará o uso desses objetos também remonta à consciência apreendida em meio ao social pelo outro. O autor explica a internalização como o processo no qual o sujeito reconstrói internamente as ações compartilhadas externamente. Nesse sentido, ressaltamos algumas mudanças: o que antes era interpessoal (social) passa a ser intrapessoal (individual). A linguagem ocupa um papel de destaque nessa mudança, envolvendo tudo aquilo que o sujeito domina e soma-se àquilo que o outro dispõe para a construção do conhecimento. Assim, “[...] ao serem internalizados, os modos de ação, os papéis e funções sociais (na interação) passam para o controle do sujeito, possibilitando-lhe dirigir o próprio comportamento” (FONTANA, 2005, p. 12). Assumir essa conduta significa afirmar que os sujeitos são capazes de redimensionar e organizar sua atividade mental e a influência social é a principal responsável por isso.
A elaboração conceitual constitui um dos resultados das atividades das funções psicológicas superiores. Esse processo exige que o sujeito faça a análise (abstração) e a síntese (generalização) dos dados sensoriais que são mediados pela palavra e nela se materializam (FONTANA, 2005).
Luria (1986) enuncia que a palavra é o meio criado pelo homem ao longo do processo histórico de produção para organizar, classificar, ordenar e comunicar, possibilitando a transição da percepção sensorial para a racional. Dessa maneira, o sistema linguístico organizado pelo humanopossibilitou a generalização e a abstração. O uso das palavras permite remeter a um acontecimento, objeto, história, sem que esteja em sua presença, formando assim os conceitos. Desse modo,
[...] os conceitos não são analisados como categorias intrínsecas da mente, nem como reflexo da experiência individual, mas sim como produtos históricos e significantes da atividade mental mobilizada a serviço da comunicação do conhecimento e da resolução de problemas (FONTANA, 2005, p. 13).
Assim como os diferentes componentes de uma sociedade, os conceitos não estão livres das transformações; são marcados por contradições e pelo movimento histórico, que consistem no jogo de forças sociais e são expressos pela palavra.
O desenvolvimento dos conceitos acontece de maneira coletiva; os processos históricos e culturais são os principais elementos que corroboram para que o sujeito não permaneça na mesma posição durante toda sua vida. As diferentes vivências, nas mais variadas instituições humanas, têm participação importante na incorporação de valores pelos sujeitos.
A manifestação do conceito surge do processo sócio-histórico e abarca a linguagem, o aprendizado e o desenvolvimento. Na criança, a conceitualização ocorre pela via da incorporação da experiência transmitida pela prática social, ou seja, pela palavra na interação com os seus pares. Isso acontece porque desde o seu nascimento a criança é marcada pelo sistema de significações de um determinado contexto cultural. A mediação que acontece a todo momento pelo outro é envolta de gestos, atos e palavras integrados à vida da criança e passam a fazer parte da sua cultura, na qual linguagem e pensamento estão em constante articulação. Nesse contexto, a palavra tem função de designar, analisar e generalizar, sendo a mediadora no processo de elaboração da criança (LURIA, 1986).
Nesse processo o contato com o outro é primordial, pois desenvolve na criança as interações verbais. O código linguístico transmitido permite que adultos e crianças partilhem de palavras que aparentemente possuem o mesmo significado para ambos. Contudo a palavra não permanece a mesma desde que foi usada pela primeira vez para designar algo, ela se transforma junto à dinâmica social e no processo de desenvolvimento da criança. Em outros termos, quando a criança aprende uma determinada palavra esta pode ter um significado; conforme sua compreensão amplia, o significado da palavra pode também sofrer alteração.Fontana (2005, p. 19) argumenta que “[...] a função desempenhada pela palavra na atividade mental da criança e do adulto não coincidem. Crianças e adultos utilizam as palavras com graus de generalidade distintos”. Ao usar as palavras para se comunicar com a criança, os adultos apresentam diferentes graus de generalização e operações intelectuais que interferem na atividade mental infantil, mesmo que a criança não possa agir sobre seu modo de pensar, controlando sua mente. A palavra pelo outro age na mente da criança e ativa processos complexos, e são esses processos que desencadeiam a possibilidade do desenvolvimento de conceitos.
Ao chamar atenção para a importância da mediação, Fontana (2005, p.19) afirma que
[...] a mediação do outro desperta na mente da criança um sistema de processos complexos de compreensão ativa e responsiva, sujeitos às experiências e habilidades que ela já domina. Mesmo que ela não elabore ou não apreenda conceitualmente a palavra do adulto, é na margem dessas palavras que passa a organizar seu processo de elaboração mental, seja para assumi-las ou para recusá-las.
Dessa forma, ao internalizar as palavras, mesmo que de maneira não intencional, a criança passa a reproduzi-las e inicia-se a operação por conceitos.
O processo de elaboração de conceitos ocorre em todas as esferas em que a criança tem acesso. Vygotsky (2005) explica que a atividade mental que acontece na vida cotidiana e em atividades sistematizadas, como, por exemplo, no espaço escolar, possibilita diferentes condições de elaboração para a criança.
No contexto escolar as crianças estão expostas à tarefa de entender o conceito científico. Tal atividade requer uma lógica socialmente construída, a fim de que os escolares façam a transição de uma generalização para outra. Para chegar a um novo conceito, o professor usa outro conceito conhecido pelas crianças com a intenção de atingir o objetivo, e isso está organizado de maneira discursiva e lógica-verbal (FONTANA, 2005).
A possibilidade de abstração e generalização depende fundamentalmente do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. A formação dos conceitos está estritamente relacionada à formação e oportunidades de interação, o que possibilita a apropriação e a objetivação dos conteúdos.
As características da relação entre o professor e o aluno devem ser consideradas na compreensão da aquisição de conceitos pela criança. O professor tem uma função estabelecida dentro da escola, enquanto o aluno também tem um papel esperado: “[...] realizar as atividades propostas, seguindo as indicações e explicações dadas” (FONTANA, 2005, p. 22). Essas características são marcadas pelo lugar social que cada um desses representantes ocupa e estão hierarquicamente organizados. No processo de ensino e aprendizagem, a criança utiliza seus conceitos espontâneos e ao mesmo tempo tenta raciocinar junto ao professor, mesmo que não tenha compreendido o que lhe é requerido, possibilitando a elaboração e articulação daquilo que já sabe com aquilo que está sendo ensinado. Diante de um conceito sistematizado desconhecido, a criança busca fazer aproximações com outros signos elaborados e internalizados, aproximando-os da sua experiência constituída.
Os conceitos espontâneos e os sistematizados articulam-se no processo de desenvolvimento e aprendizagem. Mutuamente um auxilia ao outro, visto que os conceitos espontâneos proporcionam o confronto dos conceitos sistematizados. Sendo assim, situações concretas são evocadas, possibilitando o aperfeiçoamento dos aspectos mais elementares em estruturas mais complexas. Os conceitos sistematizados possibilitam a criação, que auxilia no desenvolvimento de conceitos espontâneos em relação à sistematização inaugurada na criança durante o início da vida escolar. Nessa idade a criança realiza operações, mas sem saber explicá-las.
É possível perceber que cada vez mais se torna relevante o estudo sobre a mediação em sala de aula, pois é o espaço de desenvolvimento de conceitos pelo discurso e interações entre professores e alunos. Vale destacar que cada sala de aula tem um contrato entre os que ali estão inseridos; esses sujeitos estão em um contexto ainda maior, a instituição escolar, que responde a uma demanda social.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa foi realizada em uma escola da rede privada situada no norte do estado do Paraná, a qual atende 1489 alunos matriculados na educação infantil, no ensino fundamental e médio.
A turma em que desenvolvemos a pesquisa era composta por 22 alunos do 1º ano do ensino fundamental, sendo 11 do sexo masculino e 11 do sexo feminino, com idade entre 5 e 6 anos.
A professora que acompanhamos na época da pesquisa tinha 35 anos de idade, cursou o magistério e posteriormente a graduação em Pedagogia. Atuava havia 13anos na área da Educação. No período deste estudo, lecionava apenas na instituição pesquisada, e sua carga horária semanal era de 20horas.
Na presente pesquisa, de caráter qualitativo, descritivo e interpretativo, utilizamos como instrumento de coleta de observação in loco, a videogravação das aulas e a anotação em diário de campo. A coleta de dados ocorreu em período de três meses.
No que se refere aos procedimentos para a análise dos dados, ancoramos este estudo na análise microgenética, a qual toma como foco os processos interativos ocorridos no contexto educativo. Conforme Góes (2000, p.9), esse tipo de abordagem é
[...] uma forma, de construção de dados que requer a atenção de detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento de sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos.
A abordagem microgenética pode ser associada a diferentes correntes teóricas. Nesta pesquisa, com o respaldo da perspectiva histórico-cultural, optamos por nos aproximar dos estudos denominados enunciativo-discursivos, os quais possibilitam a análise de um determinado contexto a partir das contribuições da Teoria da Enunciação proposta pelos russos Bakhtin e Volóchinov (2010).
Meira (1994) explica que a abordagem microgenética deve ser associada à análise do contexto social, histórico e cultural de desenvolvimento, com a finalidade de identificar os significados das ações e processos mentais humanos. É importante destacar que as ações possuem significados específicos no grupo em que são constituídas.
Góes (2000) pontua que a análise microgenética é orientada para conhecer as minúcias a partir de pistas, signos e aspectos relevantes. Os episódios típicos ou atípicos possibilitam a interpretação de fenômenos que se busca conhecer. Esse tipo de análise, com base no funcionamento discursivo-enunciativo, permite a interpretação de minúcias e indícios dos acontecimentos intersubjetivos.
Assim, concomitante à coleta de dados, fizemos as transcrições dos vídeos e elaboramos um quadro que nos possibilitou visualizar quais haviam sido os conteúdos, as atividades de ensino propostas e os materiais utilizados. Esse quadro nos auxiliou a observar a frequência de determinadas atividades e como auxiliavam na apreensão ou não dos conceitos matemáticos.
A partir dessas observações definimos critérios para selecionar os episódios, atentando-nos à interação dos envolvidos no processo por meio do diálogo ou ausência dele, no sentido de ensinar e aprender os conceitos matemáticos esperados para uma turma de 1º ano do ensino fundamental. Observamos esses conceitos com base nas atividades propostas; dessa forma, focalizamos as significações produzidas nessas interações.
Apesar de termos observado diversos episódios nos quais foi possível constatar um processo interlocutivo entre os participantes, selecionamos para este estudo apenas um episódio, o qual foi denominado “sequência numérica e traçado dos números”.
Convém ressaltar que essa pesquisa foi submetida ao Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Copep), da Universidade Estadual de Maringá (UEM), tendo sido aprovada por meio do parecer consubstanciado n.º 1.931.081.
Resultados e discussão
Durante o processo de pesquisa de campo identificamos que frequentemente era desenvolvida atividade de sequência numérica e também aquelas que objetivavam ensinar ao aluno o traçado do número; estes algumas vezes eram escritos de maneira espelhada ou não seguiam o caminho considerado certo pela professora no momento da grafia (Figura 1). Desde o início do ano letivo os alunos faziam os números como uma forma de treinar o seu traçado e memorizar a sua sequência, assim como relacionar o número à quantidade. Por ser uma atividade realizada com frequência, identificamos que tinha um significado importante para a equipe que a desenvolvia e a ensinava aos alunos.
No episódio aqui transcrito, denominado “sequência numérica e traçado dos números”, a atividade proposta era preencher uma tabela com os numerais que estavam faltando em uma sequência de 1a 20. Abaixo transcrevemos o episódio:
(1) Prof.ª: Pessoal volta para o lugar que agora nós vamos fazer uma atividade de Matemática. Volta para o lugar [alguns alunos andavam pela sala enquanto outros terminavam a atividade de sondagem].
(2) Prof.ª: Pronto? Então vamos ver aqui agora, uma coisa, a atividade [fala e apaga o quadro]. Nós vamos agora. Agora chega de conversa [os alunos conversavam entre si], vocês já tiveram um tempinho para conversar, psiu!
Em seguida, a professora pede para que os “ajudantes” entreguem o “caderno de Matemática”.
(2) Prof.ª: Olha só, vocês vão agora receber o caderno de Matemática, e nós vamos, nessa atividade, pensar um pouquinho na sequência dos...
(3) F: Números.
Ao separar os cadernos por disciplinas, conseguimos identificar que o trabalho desenvolvido com a Matemática, muitas vezes, isola-se das outras áreas do conhecimento, nos dando pistas de que esse modelo de ensino não considera o contexto social, histórico e cultural na formação dos conceitos matemáticos. Quando os conteúdos são trabalhados de modo interdisciplinar, possibilitam ao aluno o entendimento da realidade, despertando seu interesse e participação nas aulas.
Antes de os alunos iniciarem o que era proposto pela atividade, a professora retomou a explicação do que seria uma sequência numérica.
(4) Prof.ª: Números. Quando eu digo sequência, quer dizer assim [pega uma régua e se dirige ao mural de números], um número que vem após o outro. O que vem depois do um, o que vem depois do dois.
Ao definir o que é uma sequência numérica, a professora utilizou como recurso didático o mural de números que ficava exposto na sala de aula. Ifrah (2005) explica que o conhecimento acerca dos números é desenvolvido entre os humanos. Compreender a sequência dos números significa ter o conhecimento que a “[...] classificação em um sistema de unidades numéricas hierarquizadas que se encaixam consecutivamente uma nas outras” (IFRAH, 2005, p.45). Essa organização dos conceitos numéricos em uma ordem sucessiva e invariável é obtida pelo acréscimo suplementar de uma unidade a partir do número 1. Portanto nessa lógica reconhecer a sequência numérica requer que os alunos tenham se apropriado do conceito de número e sua inclusão hierárquica.
Vygotsky (2005, p. 104) enuncia que a formação de conceitos vai além da soma de conexões associativas formadas pela memória, “[...] é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário”.
Diante da necessidade da formação de conceitos científicos na idade escolar é preciso ter ciência de que estes se desenvolvem em diferentes contextos. Na escola, a criança aprende os conceitos de forma sistemática, enquanto fora desse ambiente a sua experiência fica entregue aos seus próprios recursos. No episódio em questão, observamos que não houve relação do porquê se deve aprender ou quais outras circunstâncias são passíveis de serem utilizadas na sequência, aqui reconhecida como numérica, mas que em outras situações da vida da criança pode ser reconhecida como a sequência de episódios de um desenho ou dos dias da semana.
Durante a explicação da professora, percebemos que as crianças relacionavam os números com seu cotidiano, como quando MS (turno 10) fez relação entre o número 20que aparecia no mural e a data na qual o episódio ocorreu. Transcrevemos o trecho ao qual nos referimos:
(5) MR: Posso ir ao banheiro?
(6) Prof.ª: Vai.
(7) Prof.ª: Então olha só, aqui nos números um pouquinho. AL [chama para que a criança observe o que está sendo pedido].
(8) Prof.ª: Se nós observarmos o nosso mural dos números, nós vamos observar que ele começa no 0 e que ele termina no 20. Do 0 até chegar no 20, passa-se por alguns números.
(9) MS: Igual o dia hoje, que vai ter o 20.
Nesse momento, o aluno reconheceu que os números estão presentes em diferentes situações, como no calendário, produto da construção humana. Aquilo que o aluno já sabe e o que é ensinado pela escola mostra que a função do professor é desafiadora, implica na revisão do seu conteúdo e metodologia (NÉBIAS, 1999). Considerar que os alunos chegam à escola com diferentes conhecimentos sobre o mundo e seu funcionamento, muitas vezes, entra em conflito com a maneira como a escola propõe o ensino ao aluno. Nesse sentido, o professor tem como uma de suas funções organizar o conteúdo e relacioná-lo com a cultura desenvolvida pela humanidade, de modo que o conhecimento elaborado tenha significado para os estudantes.
Essa passagem nos remete à afirmação de Ifrah (2005) sobre a invenção do sistema decimal de numeração, a qual não se deu ao acaso, foi uma das elaborações humanas que atinge as necessidades dos grupos sociais. O conjunto de conhecimento produzido ao longo da história permitiu aos seres humanos codificar e transmitir informações a fim de satisfazer suas necessidades, produzindo dessa forma símbolos e signos na linguagem matemática.
Assim, quando MS faz a relação do número do mural ao do calendário, percebemos a importância de estabelecer relação desse símbolo como instrumento que auxilia o homem, “[...] de forma a criar sentido para os escolares se apropriarem de conhecimentos que lhe permitam partilhar significados no meio social” (MORAES, 2015, p. 109), não apenas como uma quantidade representada por um símbolo, mas também como instrumento. Desse modo, o professor tem como uma de suas funções organizar o ensino com referência na cultura produzida no curso da humanidade e viabilizar o conhecimento para que os alunos se apropriem e reconheçam o significado daquilo que estão aprendendo.
Entre os turnos 12 e 15, os alunos desenvolveram uma ação conduzida pela professora, que é corriqueira nas salas de aula, como fazer a leitura do alfabeto, de silabários, conforme apresentou a pesquisa de Fulchini (2016); nesse caso, a leitura do mural de números.
(10) Prof.ª: Isso, hoje é dia vinte, isso mesmo. Igual o último número do mural, vinte. A sequência dos números [aponta com a régua para o número 0] é um após o outro, começa-se no 0 e depois do 0 vem o que?
(11) Vários alunos: um [professora ia apontando a régua para os números ditos]
(12) Prof.ª e alunos: Dois, três, quatro, cinco
(13) Prof.ª: Não tô ouvindo
(14) Vários alunos: [aumentaram o tom de voz] seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte.
(15) Prof.ª: Nosso mural dos números só vai até o vinte. Mas será que os números acabam?
(16) Vários alunos: Não.
(17) T: Não, eles são infinitos.
(18) Prof.ª: Será que tem assim, o último número?
(19) F: Sim, o mil.
(20) Prof.ª: Não, os números são...
(21) Vários alunos: Infinitos.
(22) Prof.ª: Isso, infinito.
(23) Prof.ª: No primeiro ano [do ensino fundamental].
(24) N: Posso ir beber água?
(25) Prof.ª: Vai N.
O modo como esse tipo de atividade é desenvolvido não demonstra a produção de sentidos para a criança. Vygotsky (2007) argumenta que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores não ocorre apenas pela via da atividade mental rememorativa. Diante disso, constatamos que tal ação não despertou interesse dos alunos, uma vez que apenas falar os números em sua sequência não promove outro sentido se não a memorização. Assim, sem ter a compreensão do porque os números estão organizados daquela maneira, não há o desenvolvimento psíquico dos alunos, uma vez que não faz sentido para eles.
Na sequência, a professora explicou aos alunos que no 1º ano do ensino fundamental(turno 27) veriam na apostila utilizada por eles até o numeral 30.
(27) Prof.ª: No primeiro ano nós vamos aprender os números até 30, nós temos o mural até 20, mas na nossa apostila do Positivo, ta F.? [chamou atenção do aluno que estava distraído]. Traz o número até 30. Bom, mas “ah professora, eu já sei contar até mil, até dois mil” [parecia imitar um aluno falando com ela]. Ótimo, mas nós temos que aprender, além de saber contar, nós precisamos aprender que os números, cada número tem uma quantidade. Não adianta eu saber fazer o número 2 e desenhar 3 objetos, adianta? Não. Se eu sei que esse é o número 2 [apontou com a régua para o número 2 do mural] eu sei que devo desenhar apenas dois objetos. Se eu tenho cinco balões eu tenho que fazer o número cinco e não o número seis. Então, além de saber contar eu preciso saber outras coisas sobre os números. Eu preciso saber que tem uma quantidade pra cada número.
Sua justificativa é que os alunos precisavam não apenas contar mecanicamente, mas também saber relacionar o número às quantidades correspondentes. A ideia que a professora apresentou aos alunos não está totalmente equivocada: relacionar a quantidade aos números e vice-versa são habilidades necessárias na formação dos conceitos matemáticos, mas não devem se limitar apenas a isso.
Quando se estabelecem limites do que o aluno pode aprender em determinada etapa de sua educação escolar, parte-se do pressuposto da maturação biológica, ou seja, a criança tem a possibilidade de aprender somente aquilo até aquele momento de sua vida. Vygotsky (2000) alerta que não devemos supor que o desenvolvimento psíquico ocorra em uma linha reta; nesse percurso há muitas rupturas, saltos e oscilações. Nesse sentido, limitar o conhecimento significa não reconhecer o potencial de desenvolvimento e aprendizagem dos sujeitos em idade escolar.
Durante a explicação da professora sobre o traçado dos números, F (turno 40) estabeleceu relação do traçado correto dos números com o traçado das letras, algo que a professora chamava atenção dos alunos com frequência. Conforme observado no episódio transcrito abaixo:
(26) Prof.ª: E além disso, eu preciso saber que o número tem traçado correto. O que que é traçado?
(27) HD: É escrever.
(28) Prof.ª: Isso é a forma como eu escrevo esse número, não éF.?[chama a atenção do aluno que estava distraído]
(29) Prof.ª: Se eu começar o número 2 assim ó [pegou o canetão e se dirigiu ao quadro e fez alguns riscos que não se parecia com o algarismodois]. Parece o dois?
(30) Vários alunos: [risos] Não.
(31) Prof.ª: E assim ó [fez outro número que não se parecia com o dois]
(32) Vários alunos: Não.
(33) Prof.ª: Eu tenho que entender que o número dois, assim como todos os números têm um traçado, tem um jeito de escrever. “ah professora, mas eu gosto de fazer o dois assim” [imitou um aluno falando] [fez o número dois espelhado no quadro]. Mas está errado [fez um x em cima do exemplo]. A forma correta de fazer o número dois: tenho a minha linha, tenho o meu quadradinho do caderno [desenhou um retângulo fazendo referência aos que eram encontrados no caderno quadriculado de matemática]. Eu sei que o meu número dois tem que começar de cima para...
(34) Vários alunos: [completaram] Baixo.
(35) Prof.ª: Baixo.
(36) F: Professora tá errado, porque aquele dois tá virado pra cá e o outro tá virado pra lá [referiu-se ao numeral dois que a professora fez corretamente e ao que ela escreveu como exemplo de traçado errado].
(37) Prof.ª: Isso mesmo, esse está do lado errado [apontou para o número dois que fez espelhado]. Por isso que às vezes a professora A. P. [falou o próprio nome] diz assim: “dá uma olhadinha nesse número que você fez, vê se ele está do lado correto”. Porque às vezes você acaba fazendo o número do lado errado [fez o numeral três correto no quadro e um espelhado], às vezes você vira o lado do número. Outro número que eu vejo bastante para o lado errado [escreveu o numeral cinco correto e um espelhado no quadro] é o número cinco, número três. Então, quando você for escrever os números, observa se você está fazendo o número do lado correto.
(38) JP: É igual o S, às vezes você escreve para esse lado [apontou para a direita] às vezes escreve para esse [apontou para a esquerda].
(41) Prof.ª: Nessa atividade do caderno, a professora vai observar quem está conseguindo escrever os números [MS e NT se levantaram para beber água].
(42) Prof.ª: Mas o que está acontecendo que tem tanta gente andando? Agora não, vai sentar [os alunos voltaram para seus lugares]. Quando a professora está explicando tem que levantar, ficar fora da cadeira? Senta! [apontou para F., que também havia se levantado para tomar água]. Quando eu estou explicando não é horário de levantar para vir tomar água, pode esperar um pouquinho, não é?
(43) Prof.ª: Então, vocês vão colocar a sequência dos números. Aqui no nosso caderno [pegou o caderno na mão e mostrou para os alunos], nós temos o número de 1 até 20. Do 1 ao 20. Vocês vão colocar apenas os números que estão faltando [enfatizou]. Tem alguns quadradinhos só que estão vazios. Com lápis grafite, você vai colocar a data de hoje e os números que estão faltando. Aqui embaixo [referiu-se à outra atividade contida na mesma folha] tem números de 1 até o número 6, lembra que quando a gente faz um número a gente treina? A gente faz [escreve no quadro enquanto fala] um tracinho, um tracinho, um, até o final da linha. Aqui nós vamos fazer a mesma coisa do 1, do 2, do 3, do 4, do 5 e do 6. “Ah, professora, mas eu não sei se meu número está do lado certo” [imitou um aluno falando]. Dá uma olhadinha se está igual está aqui [apontou para o exemplo da atividade do caderno]. Se estiver diferente é porque está errado. Esse número aqui ó [apontou para o exemplo da atividade do caderno] é o número correto, da forma correta de fazer o número. Certo? Então vamos fazer essa atividade dos números?
A forma como F (turno 40) conseguiu relacionar a escrita, considerada correta pela escola e sociedade, mostrou que a linguagem desempenhou função sintetizadora (FONTANA, 2005). O aluno generalizou a expressão “traçado correto” e expressou uma visão articulada dos elementos que conhece e precisam ser grafados corretamente para que expressem sua função social.
Na tentativa de manter a atenção dos alunos à sua explicação, a professora fez o uso de sua autoridade em sala de aula (turno 42). Smolka (1991) explica que essa forma de controle pode variar de situação para situação. O controle existe e implica a posição social que cada sujeito ocupa em um determinado contexto, nesse caso, a sala de aula. O modo como a professora se anuncia nessa situação evidencia que a posição que cada indivíduo ocupa dentro da escola é assimétrica.
A professora anunciou como deveria ser executada a primeira atividade (turno 43) - completar a sequência numérica com os números faltantes - e a seguinte - escrever os números como forma de aperfeiçoamento do traçado dos números. Em nosso entendimento a simples repetição mecânica do traçado do número não faz sentido para a criança, pois não permite que ela reconheça a necessidade disso em seu diaadia. Diante da fala da coordenadora ao justificar tais atividades como importantes para formar a lateralidade e coordenação motora fina da criança, compreendemos que essas não acontecem por acaso, mas com a finalidade de desenvolver tais aspectos. Convém lembrar que a atividade de ensino deve ser desencadeadora de aprendizagem, conforme destaca Davýdov (1982), ninguém obriga uma criança a compreender uma atividade se ela não percebe a sua importância, portanto é preciso que o professor desenvolva a necessidade no aluno em dela se apropriar.
Considerações finais
O episódio apresentado mostra uma constante interação entre a professora e os alunos, os quais são convidados a participar das explicações, ora completando as frases não terminadas, ora dando respostas às suas perguntas. Segundo Brait (2001, p. 194),
[...] a interação é um componente do processo de comunicação, de significação, de construção de sentido e que faz parte de todo ato de linguagem. É um fenômeno sociocultural, com características linguísticas e discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e interpretadas.
No espaço da sala de aula, a interação entre professor e alunos é imprescindível, não existe razão para que apenas uma pessoa pronuncie-se, pois qualquer ato de comunicação só é válido em um processo de interação.
Na atividade de traçado dos números, assim como na de completar a sequência numérica, observamos que os alunos não compreenderam sua necessidade, uma vez que não reconheciam alguma importância, a não ser cumprir com o que lhes era proposto pela professora, a autoridade da sala de aula.
Para Bakhtin e Volóchinov (2010), isso é reflexo do auditório social, definido pelos autores como o espaço imediato em que cada indivíduo, por meio das suas motivações e apreciações, influencia no lugar ocupado nas relações sociais; nesse caso, a professora ocupa o posto mais alto na hierarquia dentro da sala de aula. Assim, destacamos que suas ações são pautadas nas pressões externas a esse ambiente, como a dos pais dos alunos, coordenação e direção da escola.
Salientamos ainda que no processo de formação de conceitos a linguagem é fator preponderante e dessa forma, a professora buscava utilizá-la para que fosse acessível à compreensão dos alunos. Conforme Bakhtin e Volóchinov(2010), o grupo e a situação em que alunos e professora estão submetidos determinam como a enunciação acontece na prática social escolar.
Nessa perspectiva, a vida social é compreendida como um processo que qualifica o homem em ser humano, posto que nas relações estabelecidas com o seu meio se apropria daquilo que é ofertado. É na relação com o outro que os sujeitos se constituem enquanto humanos e transmitem em situações sistematizadas - como no caso da escola - ou não o conhecimento acumulado historicamente.
Na formação de conceitos, a palavra assume importante destaque, conforme verificamos nos estudos de Luria (1979, 1986), Bakhtin e Volóchinov (2010). A compreensão que a palavra vai além da fonética implica reconhecer que ao usá-la estamos orientando a atenção do aluno, criando possibilidades de estabelecer relação com o objeto de estudo, generalizações e, assim, novas elaborações, significando que os conceitos não serão completamente dominados pelo aluno caso não tenha a sistematização intencional dos conteúdos. Isso também pressupõe que formar conceitos não é simplesmente definir termos, como observamos nos episódios. Diante do exposto, salientamos que o desenvolvimento dos conceitos acontece de maneira compartilhada e deliberada; logo, perpassa os processos históricos e culturais para que o sujeito não permaneça na mesma posição durante toda sua vida.
Possibilitar a elaboração dos conceitos científicos matemáticos perpassa a necessidade de estimular o aluno a buscar as soluções para os problemas propostos. Dessa forma, as atividades apresentadas precisam desencadear um motivo e sentido para que os alunos sintam-se envolvidos a investigarem, via mediação do professor, as soluções adequadas a cada circunstância. Quando existe esse movimento, há também a interação, meio pelo qual as enunciações acontecem; e na relação com o outro o conhecimento é elaborado e sistematizado. Entretanto, na sala de aula observada, a maneira como os conteúdos eram apresentados pela professora não possibilitava o diálogo entre os alunos, para que eles pudessem discursar sobre suas experiências de forma que viessem a acrescentar o conhecimento científico elaborado na dinâmica da sala de aula. Convém relembrar que o diálogo é um importante elemento no processo de ensino, por favorecer a aprendizagem. Por meio dele é possível refletir sobre o conteúdo, desenvolver a linguagem dos alunos e observar se eles estão acompanhando a lógica proposta pelo professor na apresentação dos conteúdos.
Diante do exposto, concluímos, com a realização deste estudo, que o ensino de qualidade não depende exclusivamente da força de vontade do professor para ensinar aos alunos. A sua formação inicial e continuada também fortalece o ensino fecundo, bem como o preparo da equipe pedagógica para superar as dificuldades teóricas e metodológicas enfrentadas pelos professores.
No processo de apreensão de conceitos, confirmamos em nosso estudo que a função do professor ganha notório destaque, pois na relação com o aluno é quem detém o conhecimento produzido historicamente. Nesse sentido, quando o professor intenta apresentar um novo conceito matemático precisa munir-se de práticas expressivas que possibilitem o desenvolvimento e a aprendizagem, ou seja, não apenas dar respostas prontas, que estagnam a ação investigativa, mas oferecer o conhecimento que auxilie na apropriação de conceitos ainda não formados.
Destacamos que a formação inicial e continuada dos professores são valiosas nas práticas educativas de qualidade, a fim de que suas ações possam ser cada vez mais significativas para a aprendizagem do aluno. Contudo a licenciatura em Pedagogia não tem contemplado a formação do professor de forma efetiva, no sentido de que esse se aproprie dos conteúdos a serem ensinados, especialmente os da Matemática, conforme apontaram os estudos de Costa, Pinheiro e Costa (2016). Para os autores, a formação fragmentada dos professores em Matemática interfere diretamente nas relações que os alunos estabelecerão com o meio, nas situações cotidianas e, consequentemente, leva à precariedade da formação básica dos estudantes, pela falta de preparo do professor. Portanto defendemos que a formação inicial e continuada dos professores assegure a elaboração do conhecimento científico dentro da escola, o que significa dizer que é necessário articular a teoria à prática na sala de aula.
Ainda há muito que se conquistar na formação de professores para que o ensino possa vir a se tornar, verdadeiramente, de qualidade. Por isso esta pesquisa não se esgota aqui. A partir das discussões suscitadas, esperamos que outros estudos possam ser desenvolvidos, a fim de complementar aquilo que não foi possível investigar, como a proposições de atividades que tenham cunho desencadeador dos conceitos matemáticos.