Introdução
No ano de 2020 o mundo foi assolado pela pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) que acarretou grandes e graves consequências sanitárias, sociais, políticas, educacionais e econômicas. Todos os países, dados seus contextos culturais e sociais, tiveram que se adaptar à nova realidade, tendo em vista garantir o direito à vida de seus habitantes. Trata-se de um fenômeno global que, devido às adaptações exigidas pelo necessário distanciamento social, agravou ainda mais problemas educacionais, políticos, culturais e socioeconômicos já existentes em diferentes países, em especial nos emergentes, como é o caso do Brasil. Na educação, por exemplo, foram necessárias mudanças na forma como passou a ser oferecida, implicando no ensino remoto, uma das temáticas abordadas neste trabalho.
Com a publicação, em março de 2020, do Decreto Legislativo nº 6/2020 (BRASIL, 2020a), o governo federal reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública no país. A partir de então, com o emprego de medidas de prevenção e contenção de riscos à saúde pública, a sociedade passou a se reorganizar em diferentes âmbitos, incluindo o educacional. No mesmo mês foi publicada a Portaria nº 343/2020 (BRASIL, 2020b) que dispunha sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais nas instituições federais de educação superior enquanto durasse a situação de pandemia. Assim, em atendimento à legislação, e tendo em vista preservar a segurança e a saúde dos estudantes, profissionais da educação, funcionários e da sociedade em geral, as redes municipais, estaduais e federais de ensino suspenderam as aulas presenciais e, paulatinamente, reorganizaram-se a partir de diferentes estratégias para um novo regime de trabalho: o ensino remoto emergencial (ERE).
Segundo Cunha, Silva e Silva (2020), o ensino remoto pode ser caracterizado no âmbito da pandemia como uma modalidade de ensino emergencial desenvolvida de forma não presencial devido ao distanciamento geográfico de professores e alunos, utilizando-se de atividades não presenciais mediadas ou não por Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs). Entre as estratégias adotadas pelas diferentes redes de ensino para o desenvolvimento dessa modalidade, destacam-se as videoaulas, os conteúdos organizados em plataformas virtuais de ensino-aprendizagem, as redes sociais e o correio eletrônico, meios sugeridos como alternativas pelo próprio Conselho Nacional de Educação em seu Parecer nº 5/2020.
Segundo esse mesmo Parecer, independentemente da estratégia adotada, as redes de ensino deveriam organizar o calendário escolar de modo a garantir o “alcance dos objetivos de aprendizagem propostos no currículo escolar para cada uma das séries/anos ofertados pelas instituições de ensino” (BRASIL, 2020c, p. 4). Da mesma forma, as atividades deveriam ser organizadas pelas redes de ensino tendo em vista assegurar e manter o padrão de qualidade previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e na Constituição Federal; cumprir a carga horária mínima de 800 horas anuais prevista na legislação; evitar retrocesso de aprendizagem e a perda do vínculo dos estudantes com a escola; e garantir uma avaliação adequada da aprendizagem de modo a permitir as mesmas oportunidades a todos os estudantes e evitar a reprovação e o abandono escolar (CUNHA; SILVA; SILVA, 2020).
Mais tarde, em agosto de 2020, foi sancionada a Lei nº 14.040/2020 que estabeleceu normas educacionais excepcionais que deveriam ser adotadas durante o estado de calamidade pública (BRASIL, 2020d) e, em dezembro do mesmo ano, foi aprovada a Resolução CNE/CP nº 2/2020 que regulamentou a referida Lei e instituiu as Diretrizes Nacionais orientadoras para a implementação das atividades não presenciais, estabelecendo que as escolas e instituições de ensino superior públicas e privadas do país poderiam oferecer ensino remoto enquanto durar a pandemia (BRASIL, 2020e).
Todas essas orientações legais, aliadas às pressões da situação emergencial e do trabalho remoto, têm impactado, também, no trabalho docente, em todos os níveis e modalidade de ensino. Muito rapidamente, milhões de professores foram obrigados a replanejar suas atividades e se adaptar a uma rotina de trabalho e estudos muito diferente daquela organizada no início do ano letivo. Todavia, a preparação dos professores para essa nova realidade não ocorreu na mesma velocidade das mudanças exigidas.
Considerando esses aspectos, e tendo em vista a importância de estudos que procurem identificar e analisar os impactos do ERE na formação e no trabalho dos professores do ensino superior, buscou-se com este estudo traçar as principais características e tendências dos artigos que abordam essa temática, tendo em vista oferecer àqueles que por ela se interessam um breve mapeamento dos trabalhos produzidos até o momento.
Desde o início da pandemia diferentes estudos e pesquisas têm sido publicados com o intuito de analisar e socializar discussões a respeito dos impactos do ERE na educação escolar brasileira. Em um levantamento realizado entre os meses de maio e julho de 2021 nos principais repositórios e indexadores acadêmicos e científicos (Scielo, Portal de Periódicos da Capes, Scopus e Google Acadêmico), encontrou-se um número expressivo de artigos publicados entre os anos de 2020 e 2021 (especialmente disponíveis no Google Acadêmico) que têm o ERE no ensino superior como tema de estudos. No âmbito desse número de estudos já desenvolvidos e da multiplicidade de temáticas e resultados que abordam, foram identificados 33 trabalhos que têm como foco a formação e/ou o trabalho docente no contexto do ERE do ensino superior.
Tendo em vista estabelecer critérios para a seleção do material que compõe o corpus do estado do conhecimento deste estudo, realizou-se a busca utilizando os seguintes descritores combinados entre si: (1) ensino remoto; (2) ensino remoto emergencial; (3) pandemia; (4) ensino superior; (5) educação superior; (6) professor; (7) docente. Em todas as plataformas de busca, seguiu-se a mesma estratégia para garantir o rigor metodológico. A seleção do material foi inicialmente estabelecida a partir dos campos “palavras-chave”, “assunto” e “resumo”.
Cabe ressaltar que os bancos de pesquisas utilizados oferecem distintas formas de busca. Dentre várias estratégias, observou-se que os campos mencionados ofereciam uma busca mais ampla, a partir dos quais se poderia fazer a triagem dos estudos a serem analisados. Quando os campos de busca ainda deixavam dúvidas sobre o assunto do artigo, partia-se para a leitura de seus resumos, a fim de selecionar todos os trabalhos que se enquadrassem no tema, problema e objetivo de estudo. Identificados junto aos bancos de pesquisa, passou-se para a coleta do material selecionado por meio do download dos textos completos dos artigos, a fim de que fosse possível iniciar a etapa de análise dos dados.
Assim, considerando a relevância de estudos que realizam mapeamentos para desvendar e examinar o conhecimento já elaborado apontando os enfoques e as lacunas existentes sobre determinado tema (ROMANOWSKI; ENS, 2006), apresenta-se neste trabalho uma análise sobre as principais áreas de conhecimento, regiões do país, temas, objetivos e abordagens metodológicas adotadas pelos trabalhos selecionados. Com este artigo, espera-se oferecer àqueles que se interessam uma percepção sobre a evolução dos estudos sobre o tema, configurando-se como base para o desenvolvimento de ações e pesquisas futuras sobre os impactos do ensino remoto na educação superior.
Características dos estudos
Apresenta-se nesta seção uma caracterização dos artigos analisados, tendo em vista os seguintes critérios: dados gerais (autoria, título, ano de publicação, periódico de divulgação, área de conhecimento), regiões do país contempladas, tipo de Instituições de Ensino Superior (IES), objetivos e encaminhamentos metodológicos adotados. A partir desses dados gerais, são discutidos alguns aspectos que merecem destaque.
Dando início à essa caracterização, identificam-se no Quadro 1 informações sobre a autoria, o título do trabalho, o ano de publicação, o periódico no qual foi socializado e a área de conhecimento que cada artigo analisado aborda:
Autor(es) | Título do artigo | Ano de publicação | Periódico | Área de conhecimento | |
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1 | Schmidt, Lopes e Pereira | Impacto da pandemia no trabalho docente no ensino superior | 2020 | Monumenta - Revista de Estudos Interdisciplinares | Terapia Ocupacional |
2 | Nóbrega et al. | Ensino remoto na enfermagem em meio a pandemia da Covid-19 | 2020 | Recien - Revista Científica de Enfermagem | Enfermagem |
3 | Ribeiro, Cavalcanti e Ferreira | “Abre a câmera, por favor!”: aulas remotas no ensino superior, uma abordagem fenomenológica | 2021 | EaD em foco | Multidisciplinar |
4 | Ferreira et al. | Desenvolvimento docente para o ensino remoto: experiência do programa de inovação e assessoria curricular (PROIAC) da Universidade Federal Fluminense | 2021 | EaD em foco | Multidisciplinar |
5 | Anjos | Ensino remoto no ensino superior em tempos de Covid-19: narrativas da experiência | 2020 | Cadernos de Pedagogia | Educação |
6 | Cordeiro et al. | Os novos desafios dos professores de IES no pós-pandemia: um estudo realizado com docentes das instituições de ensino superior de Juazeiro do Norte - Ceará | 2020 | Id online - Revista Multidisciplinar de Psicologia | Não identificado |
7 | Souza et al. | Precarização do trabalho docente: reflexões em tempos de pandemia e pós-pandemia | 2021 | Ensino em Perspectivas | Não se aplica |
8 | Lima | Ensino remoto: aproximações teóricas sobre formação e prática docente | 2020 | Revista Internacional de Apoyo a la Inclusión, Logopedia, Sociedad y Multiculturalidad | Não se aplica |
9 | Valente et al. | O ensino remoto frente às exigências do contexto de pandemia: reflexões sobre a prática docente | 2020 | Research, Society and Development | Não identificado |
10 | Araújo et al. | Covid-19, mudanças em práticas educacionais e a percepção de estresse por docentes do ensino superior no Brasil | 2020a | Revista Brasileira de Informática na Educação - RBIE | Multidisciplinar |
11 | Cerqueira | Educação no ensino superior em tempos de pandemia | 2020 | Olhares de professor | Multidisciplinar/Educação |
12 | Borges e Ribeiro | Do ensino presencial à adoção do ensino remoto emergencial em função da Covid-19: experiência docente nas atividades acadêmicas de modelagem de vestuário | 2021 | Moda Palavra | Moda/Vestuário |
13 | Magalhães, Silva e Paula | Formação docente e interdisciplinaridade em tempos de pandemia Covid-19 | 2021 | Dialogia | Educação |
14 | Silva et al. | Do ensino presencial ao remoto: experiências dos docentes do bacharelado em Turismo durante a pandemia da Covid-19 | 2021 | Revista de Turismo Contemporâneo | Turismo |
15 | Boell e Arruda | Narrativas docentes e discentes no ensino superior: ensino remoto emergencial em tempos de pandemia da Covid-19 e a relação com a cultura digital | 2021 | Brazilian Journal of Development | Educação |
16 | Fior e Martins | A docência universitária no contexto de pandemia e o ingresso no ensino superior | 2020 | Revista Docência do Ensino Superior | Multidisciplinar |
17 | Ferreira et al. | Considerações sobre a formação docente para atuar online nos tempos da pandemia de Covid-19 | 2020 | Revista Docência do Ensino Superior | Ciências Humanas |
18 | Araújo et al. | Estratégias do departamento de odontologia restauradora para capacitação de seu corpo docente diante da pandemia | 2020b | Revista Docência do Ensino Superior | Odontologia |
19 | Campani, Nascimento e Silva | Inovação pedagógica, docência universitária e o ensino remoto emergencial na universidade: o saber de experiência na docência | 2020 | RevistAleph | Engenharia Civil |
20 | Bittencourt | Ensino remoto e extenuação docente | 2021 | Revista Espaço Acadêmico | Não se aplica |
21 | Castro, Rodrigues e Ustra | Os reflexos do ensino remoto na docência em tempos de pandemia da Covid-19 | 2020 | Revista EDaPECI - Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais | Multidisciplinar |
22 | Silus, Fonseca e Jesus | Desafios do ensino superior brasileiro em tempos de pandemia da Covid-19: repensando a prática docente | 2020 | Liinc em Revista | Multidisciplinar |
23 | Guimarães e Maués | Ensino remoto na educação superior pública: posições do movimento sindical docente no contexto da pandemia de Covid-19 | 2021 | Revista Trabalho, Política e Sociedade | Não se aplica |
24 | Santos, Silva e Belmonte | Covid-19: ensino remoto emergencial e saúde mental de docentes universitários | 2021 | Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil | Não se aplica |
25 | Ribeiro, Godiva e Bolacio Filho | Ensino remoto emergencial e formação de professores de línguas adicionais | 2021 | Linguagem em Foco | Linguagens |
26 | Ries, Rocha e Silva | Ensino de epidemiologia durante pandemia de Covid-19 | 2020 | Research, Society and Development | Saúde |
27 | Silva e Suart | Concepções de professores dos cursos de química sobre as atividades experimentais e o ensino remoto emergencial | 2020 | Revista Docência do Ensino Superior | Química |
28 | Santos et al. | Transição do ensino presencial para o remoto em tempos de Covid-19: perspectiva docente | 2021 | Scientia Medica | Saúde |
29 | Gusso et al. | Ensino superior em tempos de pandemia: diretrizes à gestão universitária | 2020 | Educação e Sociedade | Não se aplica |
30 | Medeiros et al. | Análise do ensino em fisioterapia no Brasil durante a pandemia de Covid-19 | 2021 | Fisioterapia em Movimento | Fisioterapia |
31 | Campos et al. | Desafios da pandemia para o futuro da educação: o caso Coppead | 2021 | Revista de Administração Contemporânea | Administração |
32 | Farage, Costa e Silva | A educação superior em tempos de pandemia: a agudização do projeto do capital através do ensino remoto emergencial | 2021 | Germinal: Marxismo e Educação em Debate | Multidisciplinar |
33 | Salvagni, Wojcichoski e Guerin | Desafios à implementação do ensino remoto no ensino superior brasileiro em um contexto de pandemia | 2021 | Educação por escrito | Não se aplica |
Fonte: Os autores (2021).
Como se pode observar, a maioria dos artigos selecionados (nove trabalhos) discute a formação e/ou o trabalho de docentes do ensino superior no contexto do ERE que atuam em diferentes áreas do conhecimento, dando a esses trabalhos um enfoque multidisciplinar. Muitos deles, por abordarem o tema numa perspectiva mais geral sem tomar para a análise docentes de cursos ou áreas de conhecimento específicas - mas apenas os impactos do ERE na formação e no trabalho docente no contexto da pandemia -, foram indicados na categoria “não se aplica” (sete artigos). Com exceção dos trabalhos multicêntricos que analisaram o problema na perspectiva de docentes com formação nas diversas áreas do conhecimento e que atuam em diferentes cursos de graduação, foram identificados apenas dois trabalhos que discutem o tema a partir da percepção de professores que também atuam em cursos de licenciatura (além de cursos de bacharelado).
Entre aqueles artigos que contemplam uma área de conhecimento específica, tem-se a prevalência de trabalhos das Ciências da Saúde (Terapia Ocupacional, Enfermagem, Odontologia, Fisioterapia), o que demonstra a preocupação dos pesquisadores dessa área com os cursos, professores e estudantes diretamente afetados não apenas pelo ensino remoto, mas, principalmente, pelo estado de calamidade sanitária que viveu e vive o país e o mundo. Outras áreas e subáreas do conhecimento também se configuraram como pano de fundo para a análise desse tema nos últimos meses, como é o caso das Ciências Humanas (Educação, Administração, Turismo, Moda), da Linguística, Letras e Artes, das Ciências Exatas e da Terra e das Engenharias (essas três últimas com um artigo cada). As áreas de Ciências Biológicas, Ciências Agrárias e Ciências Sociais Aplicadas não foram contempladas nas análises realizadas pelos artigos em questão, o que evidencia a importância de se ampliar o debate sobre os impactos do ERE na formação e no trabalho dos professores do ensino superior em diferentes campos do saber, a fim de que seja possível compreender essa problemática numa perspectiva mais global considerando-se diferentes olhares, conhecimentos e perspectivas.
A leitura dos artigos permitiu também identificar as regiões do país e as IES de origem dos autores por categoria administrativa, conforme mostram os Gráficos 1 e 2:
A partir dos gráficos, pode-se observar a prevalência de estudos e análises realizadas por professores de IES públicas (85 autores), seguidos de trabalhos realizados por docentes de instituições privadas de educação superior (28 autores). No grupo denominado “outros” foram incluídos autores de três artigos: dois deles não indicaram a instituição de origem, um indicou vínculo com uma instituição estrangeira e outro apontou apenas fazer parte de um grupo de estudos, não tendo vínculo com uma IES específica. No que diz respeito às regiões do país, tem-se um número expressivo de autores (54) provenientes de IES localizadas na região Sudeste, seguidas das regiões Nordeste (30 autores), Sul (17 autores), Centro-Oeste (10 autores) e Norte (3 autores). Cabe ressaltar que, entre os artigos selecionados, apenas autores de 17 estados empreenderam análises sobre os impactos do ensino remoto na formação e no trabalho dos docentes do ensino superior, somado o Distrito Federal. Considerando o número expressivo de IES públicas e privadas distribuídas em todo o território nacional, entende-se como necessária a ampliação de estudos sobre essa temática, tendo em vista sua análise a partir de diferentes perspectivas, concepções e contextos formativos.
Além das IES de origem dos autores, considera-se também aqueles dados que apresentam o contexto de estudo, ou seja, as instituições das quais os dados foram extraídos e analisados pela participação de professores e demais sujeitos de pesquisa. Esses trabalhos (15 artigos), publicados em diversos periódicos, tomam como fontes de dados professores e estudantes de diferentes IES públicas e privadas das cinco regiões do país, com destaque novamente para a região sudeste com seis artigos, quatro deles do estado do Rio de Janeiro. Desses 15 artigos, quatro utilizam dados de participantes de IES públicas, quatro de IES privadas, dois trabalhos não declaram a categoria administrativa da instituição e cinco apresentam concomitantemente dados provenientes de instituições públicas e privadas, sendo três deles estudos multicêntricos.
O número expressivo de artigos publicados por professores de IES públicas ou que têm essas instituições como contexto de estudo pode se justificar pelo histórico desempenho dessas instituições, em especial das universidades, em atividades de pesquisa que, aliadas ao ensino e à extensão, constituem seu tripé de sustentação. Todavia, esses dados chamam a atenção, especialmente considerando a proporção de IES públicas e privadas no Brasil, bem como o número de vagas por elas oferecidas.
De acordo com o relatório do ano de 2019 emitido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2021), as IES privadas correspondem a 88,4% do total de instituições no Brasil (302 públicas e 2.306 privadas). Relatório anterior (INEP, 2020) indicava que, dos 384.474 docentes da educação superior em exercício no país, 210.606 atuam em instituições particulares de ensino (54,8%). Adicionalmente, dados de 2019 revelam que as vagas em cursos de graduação em IES da rede privada de educação superior correspondem a 94,9% do total de vagas oferecidas nas modalidades presencial e a distância no Brasil (INEP, 2021). Esse mesmo relatório mostra que essa categoria administrativa conta com mais de 6,5 milhões de alunos matriculados, o que lhe garante uma participação de 75,8% de matrículas no sistema de educação superior - ou seja, de cada quatro estudantes de graduação, três frequentam uma instituição particular. Considerando este cenário, faz-se necessário ampliar os estudos e pesquisas que busquem analisar os diferentes impactos do ensino remoto na formação e no trabalho dos docentes das IES privadas, bem como no trabalho e na formação dos demais sujeitos que compõem a comunidade acadêmica.
Os dados evidenciam ainda aqueles trabalhos que, por se configurarem como ensaios teóricos, revisões bibliográficas, relatos de experiência, pesquisa documental ou narrativa autobiográfica, não indicam ou não se aplicam a uma instituição em particular. Desses, 11 trabalhos foram elaborados por professores/pesquisadores de IES públicas, dois de IES privadas e três resultantes da parceria entre professores/pesquisadores de IES das redes pública e privada. Esses dados reforçam a necessidade de ampliação dos estudos e pesquisas que analisem, com a mesma intensidade, os impactos do ERE tanto em instituições públicas quanto em unidades privadas de educação superior no Brasil.
Dando continuidade à caracterização dos trabalhos, no Quadro 2 é identificada uma síntese dos objetivos traçados pelos artigos analisados, os quais se articulam ao tema e ao problema de pesquisa delineados pelo(s) autor(es):
Síntese dos objetivos por semelhança | Referências |
---|---|
Conhecer as percepções / vivências / características e/ou verificar as ações / mudanças / experiências / adaptações / desafios das práticas docentes frente ao ERE | Schmidt, Lopes e Pereira (2020); Nóbrega et al. (2020); Ribeiro, Cavalcanti e Ferreira (2021); Valente et al. (2020); Cordeiro et al. (2020); Silva et al. (2021); Boell e Arruda (2021); Fior e Martins (2020); Campani, Nascimento e Silva (2020); Castro, Rodrigues e Ustra (2020); Silus, Fonseca e Jesus (2020); Ribeiro, Godiva e Bolacio Filho (2021); Silva e Suart (2020); Santos et al. (2021); Medeiros et al. (2021); Lima (2020) |
Relatar, refletir e/ou analisar cursos de formação continuada oferecidos aos docentes | Ferreira et al. (2021); Ferreira et al. (2020); Araújo et al. (2020b) |
Apresentar relato pessoal / autobiográfico da experiência como docente no ensino superior no contexto do ERE / sobre o processo de implementação do ERE na IES | Anjos (2020); Cerqueira (2020); Borges e Ribeiro, (2021); Magalhães, Silva e Paula (2021); Ries, Rocha e Silva (2020); Campos et al. (2021) |
Refletir sobre a precarização / extenuação / mercantilização do trabalho dos docentes das IES no contexto da pandemia da Covid-19 / analisar as posições de movimentos sindicais / discutir sobre diretrizes e condições de trabalho para o enfrentamento das dificuldades e limitações impostas pelo ERE | Souza et al. (2021); Bittencourt (2021); Guimarães e Maués (2021). Gusso et al. (2020); Farage, Costa e Silva (2021); Salvagni, Wojcichoski e Guerin (2021) |
Compreender / refletir sobre a saúde mental / os fatores de estresse relacionados às mudanças nas práticas de ensino na educação superior com o ERE | Araújo et al. (2020a); Santos, Silva e Belmonte (2021) |
Fonte: Os autores (2021).
A partir do Quadro 2, pode-se observar cinco grupos de objetivos gerais: (1) aqueles que visam à compreensão das concepções dos professores a respeito do ERE, bem como de suas experiências e práticas com este modelo no contexto da pandemia (15 trabalhos); (2) aqueles que, por meio de relatos ou narrativas, buscam socializar as experiências docentes e o processo de implementação do ERE (sete artigos); (3) os trabalhos que visam discutir, numa perspectiva mais ampla e teórica, a precarização e as condições de trabalho docente no âmbito desse modelo de ensino imposto pelo estado de pandemia (seis trabalhos); (4) os artigos que objetivam relatar e discutir os resultados de cursos de formação continuada ofertados aos docentes para o desenvolvimento do ERE (três trabalhos); e (5) aqueles estudos que buscam analisar os impactos do ensino e do trabalho remoto na saúde mental dos docentes da educação superior (dois trabalhos). Em sua maioria, trata-se de objetivos cujos problemas têm origem na prática profissional dos professores e que, em maior ou menor grau, discutem essa prática no âmbito das possibilidades, dos limites e dos desafios do ERE para a formação e o trabalho docente.
Como se pode observar, há uma prevalência de estudos que tomam como base para a análise do tema as percepções e experiências dos professores do ensino superior a respeito de suas práticas no âmbito do ERE, seja por investigações realizadas com docentes de diferentes IES, seja por relatos dos próprios autores dos artigos. Autores como Shulman (2005) e Zeichner (2008), ao criticarem as pesquisas do tipo processo-produto cujos objetivos recaem na análise da relação causa-efeito entre comportamento docente e desempenho discente, defendem a importância de pesquisas que, ao voltarem-se ao pensamento dos professores, seus conhecimentos e percepções oportunizam sua expressão sobre suas práticas, contribuindo para que eles mesmos possam compreender as racionalidades subjacentes às escolhas que fazem, bem como auxiliando-os a tomar decisões que vão ao encontro de suas necessidades e das demandas dos estudantes. Ademais, a maioria dos trabalhos analisados neste estudo toma como base a percepção dos professores das IES sobre os impactos do ERE na formação e no trabalho docente, o que contribui, em certa medida, para a compreensão do pensamento, da análise e das ações desses professores nesse contexto de ensino sob sua própria ótica.
Entre os trabalhos selecionados, poucos são aqueles que discutem o tema numa perspectiva mais global, incluindo a análise das políticas e estratégias públicas educacionais desenvolvidas (ou omitidas) para esse período de ERE. Em que pese o imediatismo do problema, emergente e carente de análises e proposições a curto, médio e longo prazo, faz-se correspondência com André (2007) quando argumenta sobre a cautela que os pesquisadores precisam ter quando realizam uma investigação científica. Segundo a autora, muitas vezes, quando o foco fica apenas em problemas imediatos, as perguntas mais de fundo e de espectro mais amplo ou de origem podem ser deixadas de lado, bem como fazer com que as diferentes variáveis que compõem o problema em sua totalidade sejam tomadas como independentes sem o serem. Certamente, a necessidade de rápida socialização das reflexões e resultados até o momento alcançados sobre o ERE pode justificar a superficialidade de algumas análises sobre o tema. Todavia, é importante compreender que o tempo de investigação científica exige engajamento para que questões mais amplas, direta ou indiretamente relacionadas ao tema, possam ser articuladas, analisadas, sintetizadas e mais bem compreendidas.
No que diz respeito aos encaminhamentos metodológicos, apresentam-se no Quadro 3 as abordagens, os métodos, os instrumentos de pesquisa e os participantes apresentados pelos artigos analisados:
Fonte: Os autores (2021)
Em relação aos encaminhamentos metodológicos, os dados permitem observar uma predominância de estudos de abordagem qualitativa que englobam um grupo heterogêneo de métodos1 que vão desde os estudos exploratórios e descritivos (sete artigos), os ensaios teóricos (três artigos) e as revisões ou pesquisas bibliográficas (três artigos), a análise documental (um artigo cada) até os relatos de experiência (10 artigos) e narrativas (quatro artigos)2. Trata-se de trabalhos que analisam o objeto de estudo a partir de um viés crítico-interpretativo, tomando como base a literatura sobre o tema ou mesmo dados empíricos provenientes dos próprios sujeitos que vivenciam a situação investigada. É o caso, por exemplo, dos estudos que tomam como base as experiências, percepções, opiniões, crenças e saberes dos participantes da pesquisa para a análise, compreensão e interpretação do objeto de estudos (pesquisas exploratórias e/ou descritivas, de opinião e estudos que utilizam as narrativas dos participantes como fontes de dados - 15 artigos).
Essa tendência observada nos artigos vai ao encontro dos dados obtidos por André (2009) que, ao analisar as mudanças ocorridas nos temas, enfoques, métodos e critérios das pesquisas em educação entre os anos 1960 e 2000, indica o surgimento e crescimento, a partir dos anos 1980-1990, de pesquisas que tomam como foco as situações reais do cotidiano das salas de aula, deslocando o olhar do pesquisador, que analisava o objeto de pesquisa “de fora”, para “dentro” da situação investigada, fazendo surgir muitos trabalhos que trazem, inclusive, a análise da experiência do próprio pesquisador.
Essa preocupação vai ao encontro, também, dos estudos que defendem o conceito de desenvolvimento profissional da docência (ANDRÉ, 2010; MARCELO GARCIA, 2009; VAILLANT, 2016; NÓVOA, 2017), a partir do qual os conhecimentos, crenças, opiniões e representações dos professores a respeito de uma problemática que envolve sua formação e/ou trabalho são relevantes e impactam diretamente em sua aprendizagem e, como consequência, nas mudanças que podem ou não ocorrer na prática profissional ao longo do tempo. Neste estudo, identificam-se 26 artigos (78,8%) que tiveram como foco a percepção dos professores a respeito dos impactos que o ERE tem ocasionado em sua formação e/ou trabalho docente (entre relatos de experiências, narrativas, estudos exploratórios e descritivos e pesquisas de opinião, além do estudo desenvolvido a partir da abordagem fenomenológica).
Apesar da relevância de estudos que tomam como base a representação que os professores fazem da realidade, é preciso ter certa cautela. Como aponta André (2010), não basta apenas constatar o que pensam, sentem, dizem ou fazem os professores: é preciso ir além, procurando compreender o contexto e circunstância de produção de seus depoimentos e práticas e seus impactos na aprendizagem profissional. Sem a compreensão desse contexto, as investigações correm o risco de apresentar resultados frágeis e pouco representativos do problema investigado.
Dado o momento de trabalho remoto, a maioria das pesquisas com participantes utilizou como principal instrumento de coleta de dados o questionário ou a entrevista on-line (15 artigos). Destaca-se, também, um número significativo de trabalhos que utilizaram o relato de experiência e as narrativas como métodos para a expressão e discussão sobre o momento vivenciado por professores de diferentes IES em seu trabalho no âmbito do ensino remoto (14 artigos). De acordo com André (2010), os estudos que coletam depoimentos e os (auto)biográficos têm se constituído tendências do campo de pesquisa sobre formação e trabalho docente, contribuindo para identificar melhor o campo de estudo. O relato de experiência, todavia, também foi citado em alguns dos artigos analisados que utilizam dados de participantes, sendo entendido como resultante de questões abertas de entrevistas e questionários semiestruturados.
Como participantes dos estudos, grande parte deles toma como sujeitos os docentes do ensino superior (18 artigos), havendo também pesquisas que analisam a percepção sobre o trabalho docente na perspectiva dos discentes (cinco artigos) ou dos próprios autores dos artigos (seis artigos), especialmente daqueles que se utilizam de narrativas ou relatos de experiência. Apenas um artigo (RIBEIRO; GODIVA; BOLACIO FILHO, 2021) analisa o trabalho docente no âmbito do ensino remoto na perspectiva de professores-tutores, estudantes do ensino superior que, neste caso em particular, atuaram como docentes de um curso de extensão promovido pela IES. Outrossim, foram identificados artigos que analisam a temática a partir de documentos, pesquisa ou revisão bibliográfica (quatro artigos).
Outro aspecto que merece ser considerado refere-se à quantidade de participantes nos artigos cujos estudos tiveram como base as respostas de professores e/ou estudantes a questionários ou entrevistas para a análise e discussão do tema. Desses trabalhos, oito tomaram um número reduzido de sujeitos (até 10 participantes) em análises situadas.
Estudos realizados por André (2009; 2010) alertam sobre a fragilidade metodológica de algumas pesquisas quantitativas e qualitativas na área de educação que tomam um número limitado de sujeitos (em média de três a 15) para a análise de um tema específico, geralmente contemplando situações muito particulares numa visão relativamente restrita da realidade. Segundo a autora, a justificativa para recortes tão estreitos tem sido o pouco tempo disponível aos pesquisadores para a realização de seus estudos, o que, neste caso em particular, pode se justificar pela necessidade de rápida socialização das pesquisas que têm sido realizadas pelos professores/pesquisadores sobre os impactos do ensino remoto na formação e/ou no trabalho dos docentes ainda durante a vigência do estado de calamidade pública devido à pandemia da Covid-19.
Certamente, estudos com um número reduzido de participantes podem contribuir para uma análise mais aprofundada, sistemática e processual sobre um dado problema, especialmente quando adotadas diferentes fontes para a construção e interpretação dos dados. Todavia, concorda-se com a autora (ANDRÉ, 2010) quando defende a necessidade de ampliação das análises e interpretações, de modo que seja possível gerar um conhecimento mais abrangente sobre o problema em questão considerando, também, um maior número de sujeitos para a pesquisa. Cabe ressaltar, todavia, que a produção de um conhecimento mais abrangente e consistente sobre um tema não necessariamente se dá a partir do desenvolvimento de estudos em larga escala ou multicêntricos, podendo ser possibilitado, também, pela ampliação das pesquisas que, embora tomando poucos participantes e analisando contextos situados, considerem as diferentes variáveis que envolvem o fenômeno investigado e que possam, juntas, contribuir para a construção de um campo de conhecimento.
Cabe evidenciar, ainda, aqueles artigos que, num contexto multicêntrico, socializaram estudos que contaram com a participação de mais de 200 participantes de diferentes IES. Todos eles utilizaram como instrumento de coleta de dados o questionário on-line semiestruturado ou semiaberto com questões fechadas (de múltipla escolha e/ou checkbox) e abertas (respostas longas), com exceção de dois estudos, que utilizaram apenas o questionário on-line estruturado ou fechado numa abordagem quanti-qualitativa de pesquisa. Ainda que o questionário se apresente como um dos instrumentos de pesquisa mais adotados para a construção de dados, permitindo ao pesquisador a análise de grande número de elementos fornecidos por um grupo representativo da população investigada, ele, por si só, não é suficiente para a compreensão do problema investigado em sua totalidade. Assim, a depender dos objetivos e do tempo disponível à pesquisa, é importante que se pondere a utilização de diferentes instrumentos e fontes de dados que, em conjunto, possam contribuir para a compreensão do problema a partir das diferentes variáveis que o compõe.
Considerações finais
A análise das principais características dos 33 artigos selecionados que tratam sobre os impactos do ensino remoto na formação e no trabalho dos docentes do ensino superior permitiu distinguir algumas tendências e lacunas. Entre elas, pode-se identificar a ausência de trabalhos das áreas de Ciências Biológicas, Ciências Agrárias e Ciências Sociais Aplicadas, poucos artigos de autores provenientes de IES da região Norte do país, bem como poucos trabalhos de professores vinculados a instituições privadas de educação superior ou que tomem como base esse contexto. Foi observada, também, uma escassez de estudos que discutem os impactos do ERE na percepção de professores que atuam em cursos de licenciatura.
Outrossim, foi possível observar que os estudos sobre as percepções e concepções dos professores, marcados sobretudo por depoimentos e relatos da experiência profissional, configuram-se, em geral, como o principal tipo de pesquisa realizada. Considerando a complexidade do problema e seus possíveis reflexos a curto, médio e longo prazo na educação superior, julga-se necessário o desenvolvimento de novas pesquisas que aliem diferentes fontes de informação, contemplando, além de entrevistas e questionários com os diferentes atores (e não apenas professores) que vivenciam esse contexto, documentos, observações e grupos focais que permitam a triangulação dos dados a partir de diferentes sujeitos, métodos e perspectivas, bem como a ampliação do debate para o desenvolvimento de estudos e ações futuras.
Ademais, apesar desse tema de pesquisa estar ganhando cada vez mais destaque na produção acadêmica recente, o ERE ainda se apresenta como uma temática recente e emergente que merece ser mais bem explorada e investigada a partir de um contexto social, cultural e sociopolítico mais amplo e complexo que o limita, condiciona e interfere em seus desdobramentos. Entende-se que os estudos de médio e longo prazo como aqueles realizados em programas de mestrado e doutorado, realizados a partir de diferentes perspectivas e áreas do conhecimento, têm o potencial de dar continuidade nas pesquisas sobre os reais impactos do ERE na formação e no trabalho dos docentes da educação superior, bem como de outros níveis de ensino.
Tendo em vista dar continuidade e ampliar este mapeamento, cabe igualmente analisar e empreender discussões a respeito dos principais resultados desses estudos, tendo em vista, a partir de uma síntese descritivo-analítica, examinar o conhecimento já elaborado e oferecer bases e subsídios para novos e futuros estudos e pesquisas sobre essa importante temática, haja vista seus reflexos e desdobramentos para os próximos anos.