Introdução
Consideramos pertinentes as ideias daqueles que lideraram o pensar de um estado moderno, desenvolvido. Certamente no texto escrito de suas falas, e de ações desenvolvidas concomitantes, conformaram desejos de que o estado acompanhasse o restante do país ou os estados tradicionais na senda da industrialização no Brasil na segunda metade do século XX. Nada mais oportuno do que trazer compromissos públicos assumidos em espaço também público destinado para esse fim. Analisamos os discursos das Mensagens de Governador, disponíveis no site do Arquivo Público do Paraná, cinco proferidas por Ney Braga (1961 a 1965) e três pronunciamentos de Paulo Pimentel (1967, 1968 e 1970), que visam responder a seguinte indagação: que discursos estão presentes em mensagens de governo sobre a educação pública primária no contexto do desenvolvimentismo paranaense entre 1961 e 1971? Antes, porém, convém tratar de alguns estudos que discutem o Paraná desenvolvido, moderno, e contribuem para situar o objeto de pesquisa.
Títulos, subtítulos, expressões e a produção historiográfica reiteram a transformação de um “Paraná Tradicional” em um “Paraná Moderno”, como designam Trindade e Andreazza (2001). Muitas vezes associado à palavra modernização, o projeto de Paraná em constituição nas décadas de 1960 e 1970 desencadeou mudanças na educação pública paranaense. O conceito de modernização também se atrela aos dois sujeitos históricos que estiveram à frente do governo - Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971), por isso abordamos o contexto de produção e os discursos das mensagens destes novos políticos. Neste espaço e tempo, em âmbito político-governamental, temos estes governadores na gestão do estado e, para a área da educação, os anos 1961 e 1971 são simbólicos porque, respectivamente, foram aprovadas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/EN) de 1961 e a lei nº 5.692/71.
A metodologia de trabalho se pauta em pesquisas bibliográficas e documental, assim como em amplo referencial historiográfico. Autores como Bielschowsky e Mussi (2005), Carvalho (2012), Castilho (2010) e Delgado (2001) ajudam a repensar o conceito de modernização; Cordeiro (2005) e Kunhavalik (2004) aproximam-nos da trajetória de Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971) e sua atuação política naquele momento; Bonin, Ferreira e Germer (1991), Ipardes (1989), Leão (1991), Magalhães (2001), Priori et al. (2012), Trindade e Andreazza (2001) inserem os atores históricos e os pronunciamentos governamentais em seu contexto. Além disso, tomamos como referência Foucault (2008, 2014) para a análise de discursos das mensagens de governo na perspectiva dos textos e seus enunciados, postos em palavras, frases, por exemplo. Fischer (2001), por discutir o referencial foucaultiano no âmbito da educação, também foi substancial neste escrito.
Foucault (2008, p. 132) compreende discurso como “um conjunto de enunciados na medida em que se apoiam na mesma formação discursiva”. Desse modo, tomaremos para a apreciação o discurso por meio de alguns enunciados das mensagens daqueles governadores concernentes à educação pública primária e suas relações.
Posto isso, a produção textual organiza-se em Novos políticos para a construção de um Paraná Moderno, que reflete acerca do conceito de modernização, aborda a trajetória de Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971) e a atuação política no contexto histórico. Em Educação - do desenvolvimento industrial ao desenvolvimento integrado, o tema é trazido por meio de unidades de discurso à luz de Foucault. Nas considerações finais retomamos a indagação de pesquisa e apontamos que os discursos sobre a educação são variados, destacando-se a relação entre educação e desenvolvimento.
Novos políticos para a construção de um Paraná moderno
Nos períodos anteriores, o ponto central era o povoamento e a colonização, já na segunda metade do século XX, com os governadores Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971), a proposta era moralizar a máquina administrativa, desenvolver políticas de educação, saúde e segurança pública, bem como substituir o tema vocação agrícola por industrialização. Por isso a necessidade de investir em rodovias e fornecimento de energia elétrica, explicam Trindade e Andreazza (2001).
Da vocação agrícola que impulsiona a transformação de um “Paraná Tradicional” para um “Paraná Moderno”, compreendemos a modernização como um projeto baseado na ideologia desenvolvimentista, na ideia de progresso e racionalidade. Bielschowsky e Mussi (2005, p. 3) entendem o “desenvolvimentismo” como uma ideologia de transformação da sociedade brasileira que, no primeiro ciclo ideológico, pode ser dividido em quatro subperíodos “[...] nascimento (1930-1945), amadurecimento (1945-1955), auge (1956-1960) e crise (1961-1964)”. Já no segundo ciclo ideológico do desenvolvimentismo, de 1964 a 1980, ocorreram reformas institucionais que fortaleceram o estado brasileiro, reafirmaram o projeto de industrialização, e o governo autoritário optou pela “modernidade”, valorizou o planejamento e a formação da tecnocracia estatal. Os autores confirmam que, até 1980, o desenvolvimentismo continha em seus principais postulados: a crença em que a industrialização superaria a pobreza e o subdesenvolvimento no Brasil; e para que houvesse industrialização eficiente não se poderia contar com o jogo espontâneo das forças do mercado. Era necessário o planejamento do estado, que também guiaria a expansão, a captação e a orientação dos recursos financeiros, inclusive a realização de investimentos diretos em setores onde a iniciativa privada se mostrasse insuficiente.
Trata-se do conceito de modernização associado à ideologia desenvolvimentista e também concebida como um “[...] conjunto de transformações que se processam nos meios de produção, mas também na estrutura econômica, política e cultural de um território” (CASTILHO, 2010, p. 127). Na prática, o estado subordinaria toda a ação estatal a esse propósito, estendendo-a para a área econômica, educacional, cultural etc., reiteram Bielschowsky e Mussi (2005).
No Paraná, um estado até então aclamado como de vocação agrícola, Priori et al. (2012) notam que desde os anos 1950 havia um processo de modernização da agricultura, dependente de produtos, máquinas e insumos agrícolas provenientes do exterior, com significativa transformação técnica advindas da mecanização, eletrificação, irrigação, conservação do solo, emprego de fertilizantes e agrotóxicos.
Como atenta Castilho (2010), é necessário debater por quem, para quem e como é produzida a modernização, analisando os processos e as ações dos atores que a produzem. Os governadores do estado, que estiveram à frente do projeto de um Paraná moderno e com outra vocação, são atores históricos fundamentais.
Nomeamos Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971) como novos políticos porque assumiram um discurso voltado para a modernização, construíram a “[...] imagem pública de homens comprometidos com o progresso”, configurando-se como “um outro modelo de político”, que, envolvidos com a “arte” de industrializar, incorporaram em seus discursos a temática e defenderam uma outra “vocação econômica” para o Paraná (IPARDES, 1989, p. 55-62). Ambos chegaram ao governo por intermédio de partidos pouco expressivos no cenário político nacional e se apresentavam como indivíduos conduzidos ao cargo pela competência. Nas regiões de maior peso demográfico, eleitoral e econômico (Curitiba e o norte cafeeiro), obtiveram número significativo de votos (IPARDES, 1989).
Ney Braga se apresentou como um “modernizador da economia paranaense” e teve como marca mais evidente a indústria (IPARDES, 1989). Foi prefeito de Curitiba, deputado federal, governador do estado do Paraná por duas gestões (1961-1965 e 1979-1982). Paranaense, de formação militar, assumiu a Chefia de Polícia do Estado em um momento de tensão social no campo. No ensejo, ampliou suas relações e construiu uma imagem positiva junto à opinião pública e, frente a sua popularidade, desde 1953, cogitava-se sua candidatura. Além do apoio de Bento Munhoz, por este ser um reconhecido político e intelectual católico, também recebeu apoio da Igreja Católica. Na região norte, um dos maiores cafeicultores do Paraná - a família Lunardelli - ajudou-o na eleição, momento em que conheceu Paulo Pimentel (KUNHAVALIK, 2004).
Paulo Pimentel, um paulista que chegou em 1956 em Porecatu (PR), cidade interiorana do norte do estado, emerge nos anos 1960 no cenário paranaense como secretário da Agricultura do governo de Ney Braga e, neste ínterim, assume o cargo de presidente da junta administrativa da Associação de Crédito e Assistência Rural do Paraná (ACARPA), do conselho de administração da Companhia Agropecuária de Fomento Econômico do Paraná (CAFÉ do Paraná) e foi eleito membro da junta administrativa do Instituto Brasileiro do Café (IBC) para representar o Paraná. Adquiriu visibilidade e se elegeu como primeiro político do norte do estado escolhido como governador. Desde a administração de Ney Braga (1961-1965), a integração do norte paranaense era uma questão e, com Pimentel, a região norte depositou muitas expectativas acerca do tema. “Pimentel preservava seu estilo de grande proximidade com a população e, ao mesmo tempo, mantinha um diálogo com o poder central, baseado na tecnocracia” (CORDEIRO, 2005, p. 93).
A análise da composição de seu secretariado - de nove secretários, quatro eram homens da equipe de Ney Braga - evidenciam o aspecto da continuidade administrativa. Outro tema em comum era o desafio concernente à questão energética do Paraná, considerada um ponto de estrangulamento da economia. Na gestão de Ney Braga elaboraram o I Programa Estadual de Eletrificação e, no governo de Paulo Pimentel, o II Programa Estadual de Eletrificação, que proporcionou a interiorização dos serviços de energia elétrica, assinala Cordeiro (2005).
Apresentados os atores históricos focalizados neste artigo, o alerta de Carvalho (2012) - que o termo modernização requer uma circunstancialização histórica, mobiliza-nos à reflexão contextual. Como se configurava o Paraná entre as décadas de 1960 e 1970?
Até os anos 1960, constituía-se como uma área de fluxos migratórios, situação que se modificou no final daquela década ao ponto de, nos anos 1970, reduzir a taxa de crescimento demográfico. Em razão da concentração fundiária e a mecanização da agricultura, ampliou-se a população urbana nas décadas de 1950, 1970 e 1980, respectivamente em 25%, 36% e 55%; o que alterou a relação de trabalho: em 1970, 20% do total dos trabalhadores rurais eram assalariados (MAGALHÃES, 2001).
A análise historiográfica recai em um período de ditadura militar, quando os poderes locais ficaram subordinados às prioridades da União, que equipou e reequipou o parque industrial com capital estrangeiro e sem reforma agrária. Magalhães (2001) menciona que, em 1970, o modelo empresarial fora adotado no gerenciamento da coisa pública, todavia anterior a este período já havia uma série de órgãos e empresas mistas instituídas na administração pública. “Na definição do perfil do administrador público prevalece, por sua vez, a ideia de um analista, planejador, realizador. É o campo da competência técnica, e não da política, que ele busca fundamentar sua legitimidade” (MAGALHÃES, 2001, p. 80).
É nesta conjuntura tecnocrática que houve a expansão da agroindústria, ou seja, de um conjunto de atividades que conglomera máquinas e insumos para a agricultura e a indústria processadora agrícola. Nos anos 1970, as atividades tradicionais perdem importância, como o beneficiamento do café e da madeira, assim se formou um complexo agroindustrial moderno, e a economia paranaense participou da modernização agrícola e industrial (LEÃO, 1991).
Delgado (2001, p. 164) afirma que entre 1965 e 1980 se constitui, “[...] com muita clareza, na idade de ouro de desenvolvimento de uma agricultura capitalista em integração com a economia industrial e urbana e com o setor externo, sob forte mediação financeira do setor público”. Configurou-se como um período de intensa transformação, nos anos 1970, quando a concentração fundiária reduziu proprietários e arrendatários; foram eliminados 100.385 estabelecimentos agropecuários. Também intensificou o êxodo rural e o desemprego no campo, gerando a migração para cidades polos regionais, outros estados e regiões de fronteira (PRIORI et al., 2012). Outro fenômeno que expropriou milhares de produtores e trabalhadores rurais foi a construção em série de hidrelétricas e, por conseguinte, a “desapropriação de terras produtivas e densamente ocupadas” (BONIN; FERREIRA; GERMER, 1991, p. 120).
Todavia, apontam Priori et al. (2012), a modernização trouxe vários benefícios, sobretudo econômicos. Nos anos 1970 a concentração espacial da indústria salta com o avanço da produção em Curitiba e em polos regionais (Londrina, Maringá, Ponta Grossa e Cascavel). Com a agroindústria como eixo principal, Leão (1991) explica as razões do dinamismo da indústria paranaense: tinha infraestrutura (energia elétrica, ferrovia, rodovia, porto marítimo); contava com a importante participação política no governo federal; definiram-se mecanismos institucionais de apoio à indústria, como o Banco de Desenvolvimento do Estado do Paraná (BADEP) e outros órgãos públicos de atração à indústria.
Vejamos o discurso das mensagens de governador destes novos políticos - cinco pronunciamentos de Ney Braga (1961 a 1965) e três de Paulo Pimentel (1967, 1968 e 1970), em especial o que trata da educação e da educação pública primária.
Educação - do desenvolvimento industrial ao desenvolvimento integrado
Sob a constituição de um Paraná Moderno e em plena conjuntura tecnocrática, Ney Braga (1961-1965) e Paulo Pimentel (1966-1971) apresentaram aproximações em suas gestões e relativa continuidade administrativa. No cenário desenvolvimentista, estes novos políticos vão da defesa do desenvolvimento industrial ao desenvolvimento integrado.
Esta seção, que se desdobra em mais dois subtítulos, procura contemplar o dito e não dito (FOUCAULT, 2008, 2014), subtraídos das oito mensagens dos governadores paranaenses supracitados. Os dois grupos de mensagens de governo à assembleia, em diferentes enunciados, contêm ditos, ou seja, as realizações e o que estava previsto realizar, e não ditos, vazios e ausências (FOUCAULT, 2008).
A análise enunciativa só pode se referir a coisas ditas, a frases que foram realmente pronunciadas ou escritas, a elementos significantes que foram traçados ou articulados -, e mais precisamente, e essa singularidade que as faz existirem, as oferece à observação, à leitura, a uma reativação eventual, a mil usos ou transformações possíveis, entre outras coisas, mas não como as outras coisas (FOUCAULT, 2008, p. 124).
O conjunto de mensagens trata, portanto, de discursos políticos em forma de textos que geram narrativas, e pronunciadas por sujeitos, neste caso, os dois governadores, tornam-se documentos de produção de sentido, elaborados no seio de duas governanças em tempos diferentes, todavia no mesmo espaço, o estado do Paraná.
Pela perspectiva de análise do discurso em Foucault (2008, 2014), entendemos que as mensagens contêm narrativas, compostas de múltiplos enunciados inter-relacionados num tipo de organização que pressupõe hierarquia e validade quantitativa postas por meio de distintas áreas (economia, energia elétrica, agricultura, pecuária, mineração, educação, saúde), que, de algum modo estabelecem relações, principalmente quando articuladas ao desenvolvimento.
Como referido anteriormente, nos deteremos, sobretudo, em analisar o como é dito e o que deixou de ser dito no campo educacional público a partir de alguns enunciados, quais sejam: saudação à assembleia legislativa, filosofia de governo, liberdade, homem, desenvolvimento, industrialização, desenvolvimento integrado, economia e educação pública.
Saudação à assembleia legislativa, liberdade, homem, desenvolvimento
O procedimento de pesquisa é feito de escolhas, de seleções que não são arbitrárias e que, por isso, devem seguir determinados critérios. Desse modo, a análise que procederemos, neste item e no posterior, toma como base enunciados de discursos (FOUCAULT, 2008) selecionados a partir do que consideramos nucleares nas mensagens de governo, por estarem nelas reiteradas vezes ou pelas ausências, os não ditos. Há distintos discursos nas mensagens provenientes de várias áreas de conhecimento, que remete a diversas correlações (FOUCAULT, 2014).
Em todas as oito, como qualquer mensagem de governo às assembleias legislativas, há uma introdução dedicada a saudá-las. É um enunciado no seu lugar próprio (FOUCAULT, 2008). De modo geral, de tom exortativo e que enaltece o conjunto político da casa.
Venho pela primeira vez, com apenas três meses de govêrno, cumprir perante a Assembléia Legislativa o mandamento constitucional da prestação de contas. [...] Não venho, a rigor, prestar contas, porque a rigor ainda não tenho contas a prestar. Venho, antes, relatar a situação do Estado e expor a política do govêrno. Quero dizer a Vossas Excelências, que estou disposto a comparecer a esta Casa do Povo tôdas as vêzes que o interêsse público o exigir, ampliando assim, dentro da independência dos poderes constituidos, o quadro da harmonia em que devemos e queremos conviver (PARANÁ, 1961, p. VII).
Assim, na primeira mensagem do governador Ney Braga, datada de 1º de maio de 1961, refere não estar ali para prestar contas, pois estava apenas a três meses no exercício do cargo, mas para falar sobre a situação do estado e as políticas de governo a serem empreendidas.
Nessa lógica cabe trazer um trecho da mensagem de Paulo Pimentel:
No cumprimento do que dispõe a Constituição Estadual, tenho a honra de submeter a Vossas Excelências a presente Mensagem, dando conta da situação do Estado, o que faço com a satisfação de mais uma vez comparecer perante o Poder Legislativo, na oportunidade da abertura da 2ª sessão ordinária da 6ª legislatura.
[...]
Isto se tornava necessário para que ficasse bem evidenciado que as promessas e propósitos da campanha eleitoral não representavam palavras vãs, que o vento leva e o tempo sepulta no esquecimento. Eram, na verdade, a afirmação consciente da vontade e das aspirações mais legítimas de todo um povo, que está inaugurando, neste Paraná generoso e de fronteiras abertas, uma nova sociedade e até mesmo uma Nova Fronteira, de presença marcante, dentro de um Brasil em rápidas transformações (PARANÁ, 1968, p. VII).
Em concordância com Foucault (2008), os discursos são práticas sociais, mergulhados em relações de poder. Em se tratando desse tipo de mensagem emanada do poder político, ele está representado no espaço da Assembleia Legislativa, pelo poder legislativo e executivo, espaço e situação próprios, peculiares. São construções históricas, com regularidades em forma, conteúdo e finalidade, considerando que são proferidos anualmente.
Da perspectiva da análise interna das mensagens, sobre o que dizem os discursos dos dois governadores, há princípios filosóficos que os orientam. O intuito não é comparar, mas explicitar os discursos visando estabelecer nexos com os propósitos do estado para com a educação pública no cenário de pretensões desenvolvimentistas. Além disso, são escritos que prestam contas à sociedade por meio de seus representantes na assembleia legislativa e, indubitavelmente, o discurso tem sentido prático (FOUCAULT, 2008). As mensagens de governador têm caráter de relatório e descrevem as realizações e as intenções em diferentes áreas, como economia, transporte, saúde, educação, energia elétrica, agricultura. De modo geral são textos de mais de 150 páginas, exceção feita à mensagem de 1961, de Ney Braga, que tem 50 páginas.
O governador Ney Braga não acredita em política de desenvolvimento centrada apenas na multiplicação dos meios de produção e descolada do combate às causas das injustiças sociais, pois perderia de vista a valorização do homem. Para ele, o desenvolvimento criaria condições para o homem se realizar integralmente (PARANÁ, 1961).
Nenhum sentido terá a abertura de estradas, a construção de usinas, a instalação de indústria e o amparo à agricultura, se esquecermos que êsse esfôrço só será válido em função do bem estar que poderá proporcionar ao homem. [...] nossa sociedade em muitos aspectos é injusta. Todos estão de acôrdo em que é urgente reformá-la. Não podemos entretanto permitir que em nome da justiça se sacrifique [...] a liberdade (PARANÁ, 1961, p. VIII-IX, grifos nossos).
Observa-se que são centrais nessa mensagem enunciados como homem, liberdade e indústria. Homem e liberdade, que o governador vincula à ideia de injustiça social, marca da sociedade brasileira. Ney Braga (1961) reitera que quem vive na miséria não é livre. A liberdade é prerrogativa dos privilegiados, de uma minoria abastada. Não tem liberdade quem não come, não tem onde morar, aquele que não pode ser educado para conquistar altos padrões de vida e usufruir deles, e almejar uma vida digna para si e sua família. Princípios estes situados como positivos têm caráter exortativo e visam impressionar o ouvinte. Eis uma produção de sentido, feita de signos (FOUCAULT, 2008) caros à humanidade, quais sejam, homem e liberdade.
Sob as bases de princípios liberais vê-se a miséria como algo que atinge grande parte da população, não criada por ela. Sua extinção permitiria, em outras palavras, o apogeu da liberdade (PARANÁ, 1961). O desenvolvimento se daria pela valorização e emancipação do homem, que se articularia com a industrialização.
Como filosofia de governo, para Ney Braga, a liberdade se dará pela capacidade produtiva e técnica do homem mediante o desenvolvimento industrial. Em Paulo Pimentel, a filosofia de governo é o desenvolvimento integrado, que consiste na realização de trabalho em diferentes setores da vida social, tais como saúde, educação, habitação decorrentes de reivindicações e necessidades sociais, em que a habitação encontrava lugar privilegiado (PARANÁ, 1967). Para Pimentel, o desenvolvimento que é produtivo deve ser feito para o homem, e, na medida do possível, pelo homem. Entendemos que a formação discursiva estabelece várias inter-relações, principalmente quando o governador refere que a política educacional move o desenvolvimento integrado1, questão a ser melhor abordada no item seguinte.
A proposta de modernização paranaense, pela via da industrialização, prioriza investimentos na infraestrutura (setor de transporte e eletrificação), aliado aos interesses do governo federal. O Projeto Paranaense de Desenvolvimento continuava como principal condutor das ações estatais e, para desencadear o desenvolvimento econômico, tinha a meta de industrializar o estado, empreendimento que previa a concessão de empréstimos e investimentos industriais privados. De Plano de Desenvolvimento do Paraná, para Plano de Desenvolvimento Econômico do Paraná e, depois, Projeto Paranaense de Desenvolvimento (este implementado desde a gestão de Ney Braga), o papel do estado seria fomentar a industrialização e viabilizar sua concretização no atendimento às demandas de energia elétrica e rodovias (CORDEIRO, 2005).
Educação pública primária
A educação, unidade de discurso inserida nas mensagens de governo, está situada na introdução de todas as mensagens, às vezes, na área econômica, mas, sobretudo, no item específico a ela destinado. A educação como função social do estado é descrita no diagnóstico da primeira e de posteriores mensagens de governo de Ney Braga, como a mais importante entre todas as funções2, apresentando alguma diferença em Paulo Pimentel.
Articulando-se à lógica de princípios filosóficos, limitar a educação a pequenos grupos privilegiados seria uma das características do subdesenvolvimento. Os princípios fundamentais da democracia requereram igualdade de oportunidades, o que seria mito enquanto grande parte da população estivesse fora da escola. A educação é um direito inalienável do homem, “[...] é instrumento indispensável ao próprio rompimento do círculo vicioso da pobreza, e ponto de partida para o verdadeiro desenvolvimento econômico e social” (PARANÁ, 1961, p. 33)3.
Embora a tônica da primeira mensagem de governo de Ney Braga tenha sido a liberdade humana e a industrialização como fatores de desenvolvimento, na segunda mensagem de governo (de 1º de maio de 1962), no bojo de justificativas, o governo reconhece a falta de resultados efetivos em razão a inúmeros projetos que precisaram ser elaborados em diversas áreas, entre as quais a educação não se encontrava4.
Constata-se no discurso investimento e realização de obras de energia elétrica e rodovias, em especial a construção da rodovia do café (Paranaguá/Paranavaí), cujo propósito era o escoamento da produção do estado e sua integração. Nenhum projeto se vincula à área educacional.
Nessa unidade de discurso trazemos dois dados com os quais relacionamos educação pública primária com o desenvolvimento no domínio do enunciado: construções e professores.
A construção de prédios escolares é como um trunfo nas mensagens dos dois governadores. Serve para qualificar os feitos dos governantes como para desqualificar o que, segundo elas, deixou de ser executado pelo governo anterior, estando de modo geral, num grande plano de emergência. Exemplos estão a seguir:
Com o prosseguimento das obras de urgência e em obediência ao plano de valorização do homem, principal meta do meu Govêrno, foi possível concluir, em 1961, ginásios, grupos escolares e casas escolares, totalizando 96 unidades, com 192 salas de aula, com capacidade para mais de 11.520 alunos, em dois turnos, estando programados, para 1962, ginásios, grupos escolares e casas escolares, totalizando 1.000 salas, com capacidade para 60.000 alunos em 2 turnos (PARANÁ, 1962a, p. XI, grifo nosso).
Chama atenção, nesse trecho, o número de unidades escolares construídas, que, divididas em 12 meses, chega-se a um total de oito unidades por mês. Considerando o mês de dezembro, que é dedicado às férias funcionais e balanços anuais, cabe conjecturar se de fato esses números foram efetivamente contemplados ou eles serviriam apenas para produção de sentido?
O mesmo ocorre na referência que Paulo Pimentel faz em sua mensagem datada de 1967, ao se reportar ao ano anterior:
Dentro dos primeiros quinze meses nessa atual administração deverão estar concluídas e em funcionamento, devidamente equipadas, mais 2.458 novas salas de aula, o que constituirá verdadeiro recorde, tendo em vista que nos 60 meses de Govêrno anterior, foram construidas 2.766 salas de aula.
O Plano de Emergência para a entrega de 458 salas de aula, no prazo de 50 dias, [...] correspondeu plenamente aos seus objetivos (PARANÁ, 1967, p. 94).
Outro dado está no Quadro 1, extraído da mensagem do ano de 1962 e explicitado segundo realizações de 1961, por Ney Braga:
Tipo | Unidades | Salas | Capacidade média alunos p/sala | Capacidade total de alunos |
---|---|---|---|---|
Ginásios | 03 | 40 | 70 | 2.800 |
Grupos Escolares (alvenaria) | 10 | 60 | 70 | 4.200 |
Grupos Escolares e Casas Escolares (madeira) | 83 | 133 | 50 | 6.650 |
Total | 96 | 233 | 190* | 13.650 |
Fonte: Paraná (1962a, p. 54).
*No original não consta a soma.
Todos os textos que demonstram as obras construídas num e noutro governo5 são genéricos, e o são justamente para impressionar, causar efeito de sentido e retórica. Não contêm especificações, por exemplo, sobre a localidade onde as escolas foram construídas. A propósito das construções escolares, na medida em que ocupam espaços nas narrativas textuais, não são referidas as obras realizadas nos governos anteriores6.
Para Foucault (2008), é preciso analisar o discurso no jogo de sua instância. Em se tratando de mensagens de governo é um jogo na instância política, que é preciso dar sentido, demonstrar poder, saber, portanto domínio e autoridade sobre o que se escreve e o que se fala.
Sobre os professores, Ney Braga pouco fala, apesar de ter a educação primária como fundamental ao desenvolvimento do estado. Estão postos nos discursos de modo genérico, como, por exemplo, quando se citam as escolas normais regionais7 (destinadas para formação de professores do ensino primário) e sua nova organização curricular, igualando-as ao currículo das escolas secundárias, com acréscimo do quinto ano a partir de 1963 (PARANÁ, 1963).
Vale dizer que no governo de Ney Braga, várias ações foram realizadas no campo educacional8, destacadamente no ano de 1963, tardias para quem entendia a educação como mola propulsora do desenvolvimento industrial, o que chega a ser ambivalente.
Ainda que o governador não tenha tido tempo para reorganizar o sistema de ensino estadual à luz da Lei de Diretrizes e Bases, promulgada em dezembro de 1961, os estados desde o Ato Adicional de 1834 têm autonomia para legislar e organizar a educação escolar. O desafio seria situá-la de fato como prioridade, haja vista que o governo se refere também à falta de investimento. Seria efetivamente esse um fator ou as prioridades foram outras como as vinculadas à rodovia, ao transporte, à eletricidade e à criação de empresas9.
O discurso é produzido a partir de múltiplos saberes que, no campo educacional, se inter-relacionam com outros, como os que versam sobre formação de professores, currículos, planos de ensino, acréscimo de tempo de escolarização (reiterado em outras mensagens a partir desta), neste caso associados ao campo produtivo de formação.
Fischer (2001, p. 200) considera que em Foucault
tudo está imerso em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as atualizam.
Nas mensagens de Paulo Pimentel, a formação de professores tanto para o ensino primário como médio tem lugar importante, teoricamente segundo o princípio de desenvolvimento integrado10. Aos professores primário, a atenção é dada à formação continuada como parte das exigências de desenvolvimento, por meio de vários treinamentos, tais como:
I Curso de Orientação de Técnicas de Alfabetização; I Curso de Orientação e Análise de Disciplinas do Curso de 4.a série, para professôres de Curitiba e Municípios limítrofes; I Curso de Teoria e Prática da Escola Primária para orientadores didáticos de Grupos Escolares do Interior do Estado; I Curso de Aperfeiçoamento de Professôres de Ciências Físicas e Naturais para professôres do interior do Estado e I Curso de Formação de Professôres de Artes Industriais e Economia doméstica [...] (PARANÁ, 1967, p. 93)11.
O discurso de Pimentel estabelece correlação com a ciência por meio de levantamentos estatísticos que mostram percentuais de matrícula geral e efetiva no ensino primário, distribuição de professores nas redes de ensino (estadual, municipal e particular), formação docente, concentração de professores normalistas na capital, em conformidade com trabalho realizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais (PARANÁ, 1968).
Outra pesquisa desse centro também foi citada no discurso de 1968, cujo objetivo era acompanhar as modificações de quatro para seis anos no ensino primário, em termos de matrícula, avaliação do rendimento escolar e causas da evasão. Vale dizer que a ampliação do ensino primário, alinhado ao ensino de Artes Industriais, foi um investimento de Ney Braga, seguido por Paulo Pimentel, pois os dois governadores entendiam ser indispensável para o preparo técnico profissional inicial do jovem, segundo requisitos do desenvolvimento industrial do estado.
A formação docente também se evidencia nos discursos de Pimentel, com a criação e funcionamento, em 1967, de 11 escolas normais ginasiais, a instalação de 17 escolas normais colegiais e do Instituto de Educação de Maringá. Criados em 1967 e, em funcionamento em 1968, mencionam-se 22 escolas normais colegiais e os Institutos de Educação de Paranaguá e Jacarezinho (PARANÁ, 1968). Os institutos de educação, com atribuição e papel na formação e aperfeiçoamento do magistério; a elaboração e aprovação do Estatuto do Magistério, aprovado pela lei nº 5.879 de 6/11/68 (PARANÁ, 1970), seguindo orientação da Unesco; a realização de concurso para professores do ensino primário, congregam um conjunto de feitos governamentais que produzem efeito de sentido (FOUCAULT, 2008) na pronunciação do discurso, representado pelos números exibidos.
De outro modo, há que destacar no discurso a ênfase na formação humana profissional, correspondente aos anseios desenvolvimentistas na medida que fala sobre pretensões de que a educação fosse organizada sob três elementos, que, tudo indica, orientaram os três últimos anos de governo: “a). Planejamento educacional, consubstanciado num Plano Estadual de Educação; b). Estrutura Administrativa eficiente, da Secretaria de Educação e Cultura e de outros órgãos governamentais; c). Recursos financeiros apreciáveis” (PARANÁ, 1962a, p. 53).
O discurso também traz outras pretensas proezas, como a lei estadual de diretrizes e bases da educação, a ser elaborada, e a fixação pela Secretaria de Educação e Cultura de períodos letivos e férias para atender as regiões do estado em suas diferentes atividades, particularidades e necessidades rurais. Além disso, o aumento do período de escolarização de quatro para seis anos propicia dois anos a mais de estudos complementares com formação em determinada profissão. Isso permitiria a conclusão do ensino primário com 14 anos, idade mínima prevista pela Constituição para o exercício de atividade profissional remunerada, correspondendo, desse modo, com compromissos internacionais assumidos em Punta del Este12, e atendendo às necessidades de escolarização mínima para as áreas urbanas industriais. A educação primária é, para ele, indispensável ao desenvolvimento e sobrevivência do país, ao lado do combate ao analfabetismo.
Considerações finais
Este trabalho versou sobre análise de discursos contidas nas mensagens de governo proferidas por Ney Braga e Paulo Pimentel, que administraram o estado do Paraná dos anos 1961 a 1971. Esteve orientado pelo desejo de saber que discursos estão presentes em mensagens de governo sobre a educação pública primária no contexto do desenvolvimentismo paranaense entre 1961 e 1971.
Sob a orientação teórica de Foucault (2008, 2014), sobretudo com base na primeira obra, selecionamos unidades de discurso consideradas importantes por nós e que atravessam todas as mensagens dos governadores. A palavra desenvolvimento, entendida como unidade central, está posta nos dois conjuntos de mensagens, sendo que no segundo, o de Paulo Pimentel (1966-1970), é adjetivado pelo termo integrado.
Foucault entende não ser tarefa fácil selecionar unidades de discurso. Neste trabalho não foi diferente. O termo desenvolvimento ganhou visibilidade por ser recorrente nos textos das mensagens pelo seu caráter de princípio maior, digamos assim. Não obstante, ele está contido em outras relações (as unidades de discurso são relacionais em Foucault). Está articulado principalmente com o desenvolvimento industrial, a energia elétrica, a agricultura, enfim, com a economia e com a educação também.
Os discursos pronunciados pelos dois governadores são vários e afeitos a distintas áreas, consideradas pela importância que ocupam economicamente, daí entendemos a distribuição e a ordem como uma hierarquia em que a educação e a saúde ocupam os dois últimos lugares nos textos das narrativas.
Desse modo, os discursos sobre a educação são variados e estão referidos a dificuldades, falta de recursos, matrículas, evasão escolar, professores e sua formação, ensino primário, secundário, entre outros. Na ausência de um termo melhor, elegemos no universo da educação primária o que agora denominamos de subunidades de discurso: construções e professores.
Por que as construções escolares? Pelos efeitos de sentido que elas geram nos discursos. Não estão de modo algum ausentes. Representam os grandes feitos, as grandes obras que podem saltar aos olhos. Por isso, aparecem em números de quantidades relevantes: tipos de escolas, salas de aula, que se apresentam sobremaneira de modo genérico sem o cuidado de maiores especificações.
Entendemos também ser importante indicar como os professores aparecem nos discursos por serem sujeitos imprescindíveis na escola primária, motor do desenvolvimento econômico para os governadores. Eles marcam maior presença nas falas de Paulo Pimentel, por meio de práticas de aperfeiçoamento, construções de escolas normais, concursos, entre outros. Neste universo o grande ausente é o professor leigo. Pouquíssimo foi dito sobre ele, apenas em uma mensagem de Paulo Pimentel.
Seguramente um grande dito é encontrado na articulação que Pimentel realiza com campo científico, trazendo possibilidades de decisões governamentais serem tomadas com base em levantamentos estatísticos, sobre desempenho escolar, por exemplo.
Por fim, o dito mais contundente, além da relação entre educação e desenvolvimento, está em tornar o ensino primário lugar de formação técnico industrial. Certamente aqui estaria a gênese da liberdade e homem que defendem os dois governantes: o homem economicus é o sujeito livre.