Introdução
As relações entre as concepções de ensino e os aspectos que ideologicamente estão presentes na ação do Estado são parâmetros para a compreensão dos pressupostos que norteiam as ações políticas, tanto atuais como históricas e seus direcionamentos para a formação dos sujeitos para essa sociedade determinada.
A compreensão das relações da totalidade, das contradições e das formas como se concretizam nos vários espaços em que está a educação garante um olhar mais apurado das interfaces entre conservação e transformação na formação das gerações. É nesse sentido que se inserem as pesquisas em história da educação e a sua presença em vários espaços como os periódicos pedagógicos.
O presente artigo tem por finalidade analisar a história da educação pela imprensa escrita da década de 1920. O objetivo é investigar, na revista “O Ensino”, a concepção de linguagem veiculada aos professores da rede pública do estado do Paraná, uma vez que a referida revista era publicada pela Inspetoria de Ensino do Estado. Para tanto foi utilizada especificamente a matéria O Ensino da Linguagem, tendo como embasamento autores que tratam das concepções da linguagem, realizando o cotejamento entre os excertos da matéria e os pressupostos dos autores, com o intuito de apresentar a concepção que permeava o ensino da língua portuguesa no estado do Paraná.
Para fins de exposição, primeiramente será feita a contextualização do periódico “O Ensino”. Na sequência, será apontada a concepção de linguagem defendida pela revista. Por fim, será apresentada a discussão sobre ensino numa perspectiva tradicional e seus reflexos na postura dos educandos na sociedade.
A revista “O Ensino”: breve contextualização
A imprensa como forma de disseminação de interesses, ideologias e opiniões foi amplamente utilizada nos espaços educacionais. Várias foram as iniciativas públicas e privadas em utilizar os impressos pedagógicos, principalmente no início do século XX, quando a educação foi considerada como panaceia para os problemas da sociedade que se almejava moderna. Tal fato demonstra que esse material é rico em possibilidades de pesquisa, uma vez que registra o imediato e o contemporâneo do contexto veiculado, cabendo ao pesquisador “[...] o desvelar das ideologias presentes e a forma de persuasão utilizada.” (ZANLORENZI, 2010, p. 65). Dentre esses materiais há aqueles que possibilitam um olhar sobre as concepções que permeiam a esfera pública, bem como as defesas dos governos e seus encadeamentos nas políticas públicas que reverberam em
[...] informações sobre o trabalho docente, a organização dos sistemas de ensino, as lutas da categoria profissional do magistério, bem como os debates e polêmicas que incidem sobre aspectos dos saberes ou das práticas pedagógicas, tornam as mesmas uma instância privilegiada para a investigação dos modos de funcionamento do campo educacional (CATANI, 1996, p. 116).
Utilizar a imprensa como fonte de pesquisa, especialmente os periódicos pedagógicos, é compreender que a educação é um fenômeno multideterminado e reflexo de disputas ideológicas. Como palco dessas diversas manifestações, proporciona o desvelar dos discursos veiculados no contexto e seus reflexos nos mais diferentes espaços do cotidiano.
Neste sentido, destacamos que a escolha da revista “O Ensino” como fonte se deve a ela, sendo uma iniciativa da Inspetoria de Ensino, proporcionar uma visão de como eram veiculadas as diversas concepções que permeavam a educação do estado, defendidas pelo governo e expressas nas folhas da revista. A revista era veiculada entre 1922 e 1924, sendo, conforme consta na sua primeira edição, “[...] necessária à difusão das idéas salutares que devem germinar no meio dos professores” (O ENSINO, 1922, p. 5).
Idealizado pelo senhor Cesar Pietro Martinez, ex-diretor da Escola Normal de Pirassununga e nomeado Inspetor Geral de Ensino em 16 de abril de 1920, esse periódico é uma rica possibilidade para compreender as concepções que eram vinculadas em suas matérias e que chegavam aos bancos escolares, consolidando-se como um material de formação docente e, consequentemente, de publicização de uma concepção de educação, verificado no apontamento do referido inspetor ao apresentar a revista como “[...] orgam da Inspectoria Geral, destinado a estimular e orientar o trabalho dos Srs. Professores” (MARTINEZ, 1924, p. 107).
Nomeado pelo então presidente do estado do Paraná, Caetano Munhoz da Rocha, o inspetor, com base nas discussões em âmbito nacional, propôs reformas, principalmente na área educacional, tendo como base as discussões e reformas realizadas nacionalmente. A revista então, dada as dificuldades de formações a todos os docentes do Estado, era uma forma de materializar as reformas e ecoar nos bancos escolares das escolas públicas.
Distribuída gratuitamente aos professores do estado do Paraná, também era enviada às repartições públicas de ensino de outros estados, como consta nas notícias gerais: “O Ensino será distribuído gratuitamente a todos os professores públicos e as reclamações contra falta de remessa deve ser feitas a Inspectoria Geral” (O ENSINO, 1922, p. 81).
Seguindo o Código de Ensino de 1917, que determinava, em seu artigo 165, a criação de uma revista pedagógica sob a responsabilidade do Conselho Superior do Ensino Primário, vislumbrava-se que esse material atingisse a todos os professores e assim executassem os programas do ensino, tivessem acesso ao conhecimento dos princípios e regras essenciais da ciência e da arte de ensinar, além de ser o espaço para a publicação dos pareceres e deliberações do Conselho Superior, bem como todos os atos oficiais (PARANÁ, 1917, p. 48-49). Vale destacar que o referido código determinava, em seu artigo 166, que “De accordo com o Conselho Superior o Secretario do Interior, convidará para dirigir a revista uma ou mais pessoas de sua immediata confiança.” (PARANÁ, 1917, p. 48-49).
O periódico pedagógico “O Ensino” era impresso em papel jornal, de paginação contínua, com uma média de 80 páginas cada edição. Após a capa, era apresentada a súmula em qual eram discorridos os assuntos abordados na edição. Quanto ao seu custeio, “Para diminuir a despesa com o seu custeio, obteve o concurso da Penitenciaria do Estado, onde a mão de obra é barata e o serviço escrupulosamente executado” (MARTINEZ, 1921, p. 15).
Os textos eram assinados por vários autores, todavia, o inspetor de Ensino que mais fez uso o espaço para deixar tanto suas concepções sobre a educação, como os feitos do governo estadual, temática esta que mais dedicou as matérias de sua autoria. Outrossim, os demais funcionários da inspetoria também tiveram espaços efetivos para seus textos serem veiculados, como Rubens de Carvalho, subinspetor de ensino até 1923, o subinspetor Henrique Ribeiro, Dr. Mário Gomes, sendo esse responsável pelos artigos alusivos à educação higienista. Ter no escopo de autores funcionários do Estado faz jus à finalidade da revista: “[...] palavra da ordem e do comando reflectindo o pensamento e a acção do governo do Estado” (O ENSINO, 1922, p. 5).
Dentre os assuntos abordados, verificamos a predominância de temas que envolvem como deve ser a prática docente, conforme mostra o quadro a seguir.
Título | Autor | Edição |
---|---|---|
Como devem ser feitos os dictados | Rubens de Carvalho | Ano I, n. 1, 1922. |
Educação Hygienica | Dr. Mario Gomes | Ano I, n. 1, 1922. |
O Ensino da Geographia | Suetonio Bittencourt Junior | Ano I, n. 1, 1922. |
Méthodo Expositivo | Nicolau Meira Angelis | Ano I, n. 1, 1922. |
Pedagogia prática | Antonio Carlos Raymundo | Ano I, n. 1, 1922. |
Notas sobre programa de Geographia | Rubens de Carvalho | Ano II, n. I, 1923 |
Méthodo práctico para organizar um grupo de escoteiros adequado ao ensino de ginástica moderna | Tenente Aristoteles Xavier | Ano II, n. I, 1923 |
Necessidade da constante leitura | Sem autoria | Ano II, n. I, 1923 |
Os jogos infantis | Modesta do Rego Barros ( 13 anos estudante da escola intermediária) | Ano II, n. I, 1923 |
O Ensino da Linguagem | Cezar Martinez | Ano III, n. 2, 1923 |
Methodologia da Mathematica ( Adição) | Ayde (Professoranda) | Ano III, n. 2, 1923 |
Methodologia da Mathematica (como se deve ensinar a multiplicação) | Iracy Abreu (Professoranda) | Ano III, n. 2, 1923 |
Pedagogia (Conclusões de Alfredo Binet- Livro Ideas Modernas) | Tradução de Iracema Espírito Santo | Ano III, n. 2, 1923 |
Methodologia da História- Descobrimento do Brasil - lição para alumnos do 3ºanno | Victoria Dell Gaudio Grassi (professoranda) | Ano III, n. 2, 1923 |
Independência do Brasil- para alunos do 2º e 3º annos | Adelaide Mallana Villa (professoranda) | Ano III, n. 2, 1923 |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2021).
Para a finalidade desse texto, optamos em analisar o texto “O Ensino da Linguagem” por duas razões: primeiramente, por ser escrito pelo inspetor de ensino, ou seja, uma forma de demarcar a visão do governo sobre a concepção de linguagem; e, segundo, que a concepção de linguagem direciona os saberes e fazeres do ensino da Língua Portuguesa.
Para análise do texto, primeiramente observamos palavras que mais constavam no texto e a relação com uma concepção de linguagem. Para essa análise, utilizamos como parâmetro o texto de Geraldi, “Concepções de linguagem e ensino em português”, de 1999, cotejando com os excertos que apontavam diretamente sobre a concepção de linguagem e que serão apresentados a seguir.
Reflexões sobre a concepção de linguagem e a defendida pela Inspetoria de Ensino do estado do Paraná
Geraldi (1999, p. 42) propõe indagações sobre o processo de ensino e de aprendizagem da língua que podem ser visualizadas em três modelos teóricos de compreensão/interpretação da linguagem: aquela vista como atividade mental (expressão do pensamento), como estrutura (instrumento de comunicação) e como atividade social (meio de interação).
Verificar a concepção de linguagem que permeia a prática pedagógica, os periódicos educacionais, enfim, todo material que veicula nos espaços educacionais e que de forma preponderante influenciam os saberes e fazeres é uma forma de desvendar os aspectos não apenas metodológicos mas também políticos, econômicos e sociais.
A língua como bem comum de uma população e a linguagem como sistema de sinais convencionais que nos permitem as relações e interações não podem ser entendidas apenas como atos de comunicação ou representação de algo. Partimos do pressuposto que um salto qualitativo na humanização do sujeito se concretiza com a organização histórica de um sistema simbólico, expresso pela linguagem, a partir da experiência entre os sujeitos, ou seja, é no intercâmbio entre os homens que a linguagem foi se organizando, pois a “[...] linguagem é a consciência real prática [...], nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio entre os homens.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).
Dado o exposto acima, partiremos para análise da fonte em tela para averiguar a problematização: qual é concepção de linguagem defendida na revista “O Ensino”, da Inspetoria de Paraná (1922- 1924)? Primeiramente, foi necessário, com base nos pressupostos teóricos apresentados, verificarmos palavras como unidades de pesquisa e, na sequência, os excertos em que estavam essas palavras para a inferência da concepção.
As palavras relacionadas à linguagem que apareceram com bastante ênfase foram: alma humana, virtudes e defeitos, expressões, patrimônio intelectual e moral, inteligência, formação do pensamento, produto do pensamento, veicular ideias. Essas acepções apontam a visão de que a revista veiculava uma concepção que está relacionada à concepção de linguagem enquanto representação do pensamento.
Nessa concepção, parte-se do pressuposto de que a língua é a representação do pensamento, e como os indivíduos pensam é a forma como se procede a língua. Essa compreensão pode ser verificada na revista quando ela aponta que se conhece “[...] a alma humana pela linguagem. Um observador criterioso que tenha agudeza perscrutar através da linguagem as virtudes e os defeitos de uma pessoa, conhecerá os homens como a palma de suas mãos” (MARTINEZ, 1924, p. 111).
Como o periódico era uma iniciativa da Inspetoria de Ensino e distribuída aos professores, salientamos que, ao veicular essa concepção em um material que pode ser considerado formação docente, disseminava-se ideologicamente uma postura em relação à linguagem e, consequentemente, a configuração de como esta deveria ser trabalhada, ou seja, toda a organização do trabalho docente estaria de acordo com essa concepção. Ao considerar que a linguagem é a expressão do pensamento, afirmamos que pessoas que não conseguem se expressar não pensam (GERALDI, 1999, p. 41). Sendo assim, o sujeito não sofre influência do meio no seu processo de aprendizagem, desse modo, diante dessa perspectiva, ele deve aprender as convenções da língua passivamente e, na sequência, construir um sentido e assim representá-lo, uma vez que “não sabendo pensar, não poderá saber escrever [...].” (MARTINEZ, 1924, p. 113).
Para Bakhtin (1988), essa concepção de linguagem advém do pensamento filosófico-linguístico do subjetivismo individualista que, segundo ele, deve ser completamente rejeitado. O eixo organizador de toda expressão, enunciação, não é interior, mas exterior, está no meio social que envolve o indivíduo. O subjetivismo individualista se apoia na enunciação monológica, uma expressão da consciência individual, da vida psíquica do sujeito falante, que utiliza um código para se expressar, conforme apontado na revista: “A linguagem classifica o indivíduo em relação ao patrimônio intelectual e moral sem esconder as menores particularidades” (MARTINEZ, 1924, p. 111).
Ao colocar o foco no sujeito, ou seja, ideologicamente, observamos o princípio liberal da individualidade, em que o indivíduo é considerado com valor em si, sem levar em conta as diferentes circunstâncias. Essa individualidade é considerada como algo natural e diferenças são atributos individuais. Da mesma forma, aquela que se expressa corretamente, seja de forma oral ou escrita, e assim pensa corretamente, é por mérito próprio.
[...] as pessoas não se expressam por bem porque não pensam. A expressão se constrói no interior da mente, sendo sua exteriorização apenas uma tradução. A enunciação é um ato monológico, individual, que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a enunciação acontece (TRAVAGLIA, 1996, p. 21).
Bakhtin (1995) nos lembra que os signos surgem em terrenos interindividuais, ou seja, são frutos da individualidade de cada homo sapiens e da interação social que estabelecem com o outro. Toda palavra é um fenômeno ideológico por excelência e, portanto, permeável à relação social. Para ele, não há outra forma de se estudar a língua que não seja em uso, em exercício. “As palavras sozinhas não têm expressão, elas só adquirem sentido num contexto, as palavras são carregadas pelos sentidos já produzidos por outro locutor, que [...] não é o primeiro a tomar a palavra num mundo mudo” (GUIMARÃES apud ZANDWAIS, 2005, p. 150). O homem como ser social e histórico é um participante do mundo e não apenas determinado por ele.
Pedagogicamente, a comunicação que se estabelece entre professor e alunos, nessa abordagem, é de transmissão de informações. Diante disso, “Ensinar, pois, a falar e a escrever, é o mesmo que guiar a formação do pensamento, ou então é habituar o alumno a bem observar para melhor pensar, pois a linguagem não se forma ao acaso: é um producto do pensamento (MARTINEZ, 1924, p. 112).
Corroboramos com Geraldi ( 1996, p. 40) ao postular que, “Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política [...]”, e que a instrumentalização da ação docente está relacionada com essa opção que envolve uma visão de sociedade, ou seja, a prática do professor, e nela a forma como considera o aluno, a metodologia de ensino, a avaliação e as relações sociais são reflexos dessa opção.
No caso da revista O Ensino, a visão veiculada é que “[...] a criança pôde elevar o nível de pensamento, uma vez que lhe proporcionaremos caminho para ensaiar e cultivar o pensamento. Não sabendo pensar, não poderá saber escrever [...]” (MARTINEZ, 1921, p. 113). Assim, valorizando-se a “norma culta” e o domínio individual do código, a partir de uma gramática normativa, na qual o aluno é um ser passivo e à mercê do depósito de informações, desconsiderando o fato de que “a língua é um fenômeno puramente histórico” (BAKTHIN, 1995, p. 108).
O ensino numa perspectiva tradicional e seus reflexos na postura dos educandos na sociedade
As concepções de linguagem que têm permeado a história do ensino da língua portuguesa no Brasil indicam a função social que a leitura e a escrita, principalmente para a classe trabalhadora, têm assumido ao longo das décadas. Em se tratando da concepção de linguagem tradicional, explicitada na revista “O Ensino” (1924), a leitura se resume ao ato mecânico de decodificação, à produção de textos, tradicionalmente conhecida como redação, e à ação de redigir, de escrever algo, fixando-se mais no exercício de repetição de palavras, frases e estruturas gramaticais memorizadas do que em reflexão e criatividade. Portanto,
[...] Pelos limites estreitos dessa gramática, o que se pode desenvolver nos alunos é apenas a capacidade de ‘reconhecer’ as unidades e nomeá-las corretamente. Vale a pena lembrar que, de tudo que diz respeito à língua, a nomenclatura é a parte menos móvel, menos flexível, mais estanque e mais distante das intervenções dos falantes. Talvez, por isso mesmo, seja a parte ‘mais fácil’ de virar objeto das aulas de língua (ANTUNES, 2003, p. 32).
Essa forma de ensino é fundamentada por uma base política que visa oferecer uma educação fragmentada e superficial, que ensina a ler e a escrever, mas não ensina a compreender, interpretar, extrapolar e reagir. É uma educação utilitária, funcional, incapaz de promover o necessário movimento de transformação do modo de pensar e agir do ser que a ela é submetido.
Trata-se de um modelo educacional que não se restringe à revista O Ensino, analisada neste artigo, nem à década dos anos de 1920, mas à educação brasileira como um todo, pois “[...] os sujeitos que vivem em um determinado momento histórico recebem do passado um conjunto de situações e condições que, em grande medida, influenciam suas escolhas e possibilidades de ação [...]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 40). No entanto, os autores vão além e salientam que “[...] aquilo que é historicamente herdado pode ser objeto de interação e, portanto, historicamente transformado” (MARX; ENGELS, 2007, p. 40), desde que haja vontade política e uma visão mais crítica do indivíduo sobre o papel do ser cidadão e da real contribuição da educação nesse processo formativo.
Todas as áreas do conhecimento são importantes e necessárias para a formação integral dos indivíduos, no entanto não há como ignorarmos que a língua, materializada em vários tipos de linguagem, é a base do conhecimento e o primeiro passo para a construção de uma visão mais crítica do mundo que nos cerca. Aqueles que vencem as barreiras da leitura “beira de piscina”, num sentido metafórico, e adentram o universo da aproximação com as intenções do autor por meio das pistas que os textos oferecem, sentirão os reflexos dessas apropriações em ações cotidianas, pois não serão meros reprodutores das ideias alheias, nem trabalhadores que atendem exclusivamente às exigências do capital, mas captadores pensantes de intenções. O ideal seria formar trabalhadores que possam unir ao trabalho o conhecimento tecnológico, que historicamente são dissociados no regime capitalista (CATINI, 2021), evidenciado na divisão entre o trabalho braçal e o trabalho intelectual.
A concepção tradicional de linguagem é limitante, pois desconsidera a natureza social da linguagem. Defende a subordinação do aprendiz, página em branco, ao educador, detentor do saber absoluto, imutável, inquestionável. Dessa forma, percebemos que o ensino, nessa perspectiva epistemológica, reproduz a sociedade capitalista, separando os que tudo sabem e podem dos que nada sabem e nada podem. Aos primeiros compete determinar as regras econômicas, sociais, políticas e educacionais, e aos segundos o cumprimento dessas regras com docilidade e gratidão. A naturalização da exploração capitalista faz com que o trabalhador trabalhe cada vez mais e queira ter acesso à educação mecânica, pois o fizeram acreditar que é esse o único caminho para uma ascensão social que se torna cada vez mais inacessível.
A palavra está presente
[...] literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN, 1999, p. 4).
Se a linguagem é a expressão do pensamento, então é necessário doutrinar os pensamentos com regras, com limitações, com o distanciamento da realidade vivida, criando uma realidade permitida pelos parâmetros capitalistas. As aulas de língua portuguesa, que deveriam promover o encontro entre o dito e o vivido, simulam situações estanques, ideologicamente criadas para o treino gramatical ou para a elaboração de redações que visam unicamente medir o adequado emprego da ortografia, pontuação e demais regras gramaticais. Escreve-se, muitas vezes, sobre coisas insignificantes com rigor acadêmico, ignorando “[...] que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados (BAKHTIN, 1999, p. 41).
A dicotomia entre educação e vida permanece até os dias de hoje. Muito embora, teoricamente, estejamos vivenciando uma outra concepção de linguagem, a prática de ensino nos mostra que ainda há muito da concepção tradicional de linguagem conduzindo o ensino de língua portuguesa, reproduzindo as arbitrariedades da sociedade capitalista. Saviani (2007) explica a permanência desse modelo educacional quando afirma que estão
[...] aí os fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho-educação. Fundamentos históricos porque referidos a um processo produzido e desenvolvido ao longo do tempo pela ação dos próprios homens. Fundamentos ontológicos porque o produto dessa ação, o resultado desse processo, é o próprio ser dos homens (SAVIANI, 2007, p. 155).
É nessa perspectiva que estamos analisando a revista “O Ensino”. Se a escola reproduz o modelo econômico da sociedade, como ficou evidenciado, a mudança deveria começar na seara educacional, visando à formação de indivíduos críticos, leitores das entrelinhas e escritores de ideias próprias, fundamentadas no conhecimento científico e experiencial.
Considerações finais
Pesquisar a história da educação, e nela os periódicos educacionais, é um processo que exige olhar o fenômeno em suas várias determinações, bem como os reflexos na contemporaneidade. Não se trata de uma simples descrição de fatos, momentos e matérias escritas, mas uma possibilidade de compreensão da totalidade. Especialmente os impressos que mesmo imediatos, dado a rapidez que se veicula a informação, é um material rico para se conhecer as influências políticas, culturais, econômicas nas instituições.
A revista O Ensino, uma iniciativa governamental, aponta não apenas a base política do Estado, mas suas nuances com os processos que constituíam a sociedade paranaense, de forma mais local, e as relações com o país, especificamente com o modo de produção vigente.
A revista, uma estratégia de formação docente, não só apresentava questões do fazer docente, mas concepções ideológicas, próprias das condições materiais vividas e que são reflexos de uma totalidade. Neste sentido, que se destaca a concepção da linguagem expressa na revista O Ensino, a qual não se resume somente a um posicionamento didático, mas também político, que pressupõe uma visão de sociedade, de educação e de formação humana. Portanto, analisar para além das letras das matérias possibilita problematizar como o Estado concebia o ensino da língua portuguesa e as benesses que esse ensino proporcionaria na organização da sociedade e na preparação da mão de obra para o mercado de trabalho.