Existe um problema capital, sempre ignorado, que é o da necessidade de promover o conhecimento capaz de apreender problemas globais e fundamentais para neles inserir os conhecimentos parciais e locais (MORIN, 2000, p. 13).
Introdução
Compreendemos a necessidade de retomar o conceito sobre o direito à educação no Brasil, reconhecido como um dos direitos individuais presentes na Constituição Federal de 1988, ao lado do direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento, de religião, de privacidade, de intimidade, de propriedade, de segurança, de saúde, de trabalho, de lazer, entre outros. Esses direitos individuais são condições impositivas da soberania do povo (o poder emana do povo) sobre aqueles que o governam. O corpo constitucional brasileiro, nos seus artigos 5º e 6º, assegura à pessoa a dignidade humana, o exercício da cidadania e, por conseguinte, a promoção de uma sociedade mais justa e democrática (BRASIL, 1988).
Assumimos uma postura epistemológica (pensamento complexo) na tentativa de provocar questionamento sobre como compreendemos o direito à educação no contexto escolar à luz dos pressupostos teóricos do pensamento complexo. Chamamos a atenção no sentido de não reduzir o direito à educação ao direito à educação escolar. Entendemos que a utilização do termo educação no corpo constitucional refere-se ao sentido lato, o que acusa o artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996).
Parece-nos necessária, nos cursos de formação inicial e continuada, a interpretação do direito à educação como direito da sociedade/comunidade e da educação para além da atividade escolar, ampliando a atividade docente para além do serviço ao indivíduo, para o serviço a sociedade. Trata-se de um direito individual e social, nesse caso, direito do indivíduo e direito da sociedade. Os posicionamentos referentes ao direito à educação indicam, ao nosso ver, um entendimento muito concentrado na educação como de interesse do indivíduo, em detrimento do interesse social. A educação é bem social e individual.
Importa destacarmos que o direito à educação é o motivador principal das DCNs (BRASIL, 2010) e da BNCC (BRASIL, 2018). Por se tratar de documentos nacionais norteadores da composição das políticas curriculares das redes de ensino e unidades escolares, consideramos pertinente uma análise sobre o direito à educação concebido nos referidos documentos, no sentido de capturar se existem posturas curriculares que indicam as interdependências entre indivíduo e sociedade/ comunidade e entre a educação e a educação escolar.
As DCNs (BRASIL, 2010) apresentam a formação inicial e continuada de professores como um dos elementos constitutivos de sua organização (BRASIL, 2010 p. 47); indicam que o trabalho do docente e sua formação são, ao lado do projeto político pedagógico e do regimento escolar, da avaliação, da gestão democrática e da organização da escola, constituidores e garantidores do direito à educação.
Analisamos a concepção de direito à educação nas diretrizes curriculares brasileiras, sob à perspectiva epistemológica do pensamento complexo, com o objetivo de contribuir com reflexões sobre o tema aos programas de formação inicial e continuada de professores. Objetivamente, parece-nos válida a reflexão sobre a educação como um direito individual e social no eixo de interdependência sociedade-direito-indivíduo (MORIN, 2000). Além disso, parece-nos também importante dar validade e espaço para essa discussão nos cursos de formação inicial e continuada de professores.
O referido documento indica ser essencial que os sistemas educacionais estabeleçam diretrizes que sejam obrigatoriamente incorporadas no projeto político-pedagógico, com previsões específicas para a formação de professores. Essas previsões incluem a consolidação da identidade dos profissionais da educação, considerando suas relações com a instituição escolar e com os estudantes, a importância de criar incentivos para resgatar a imagem social do professor, bem como promover sua autonomia tanto individual quanto coletivamente. Por fim, revela a necessidade de definir indicadores de qualidade social da educação escolar para que as instituições formadoras de professores possam rever seus cursos de formação inicial e continuada, a fim de atender às exigências de um projeto de nação.
As DCNs (BRASIL, 2010) ressaltam ainda que essas medidas têm como objetivo valorizar o papel dos professores, fortalecer sua identidade profissional, promover sua autonomia e garantir uma formação de qualidade, alinhada às necessidades da sociedade e que contribua para a construção de uma nação mais justa e inclusiva, o que, em nosso entendimento, envolve de forma latente o direito à educação como bem social e individual.
A garantia desse direito é essencial para o desenvolvimento pleno dos indivíduos e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária; portanto, parece-nos importante fortalecer reflexões e pesquisas que estabeleçam a relação entre a formação inicial e continuada de professores e uma compreensão mais ampla do direito à educação, a partir de conceitos mais complexos sobre o indivíduo, o direito e a educação (MORIN, 2000).
Para o desenvolvimento das análises teóricas documentais, adotamos como referência epistemológica os princípios e posicionamentos teóricos do pensamento complexo sobre educação, indivíduo, comunidade e sociedade, na busca de compreender o global e o contexto, o multidimensional e o complexo, a fim de construir um conhecimento pertinente sobre o direito à educação que possa gerar reflexões mais significativas, críticas e pertinentes à compreensão da vida individual e social nos cursos de formação inicial e continuada de professores, a partir de análises sobre como o direito à educação está presente na BNCC (BRASIL, 2018).
Contextualização do direito à educação à formação de professores
A educação escolar1, em especial, a construída nos cursos de formação inicial e continuada, colabora para o processo formativo da pessoa humana, no sentido do seu desenvolvimento biopsicossocial, em termos de conhecimentos, de valores, de habilidades e de competências que a leve a construir sua individualidade, sua identidade e a se integrar à sociedade à qual pertence. Reconhecemos de fato que essas demandas são também da atividade escolar, mas não se restringem a ela.
Destacamos o artigo 1º da Lei 9394/96 ao indicar: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL, 1996). É reconhecida a literatura a respeito da educação como direito e do direito à educação (MANTOAN; PRIETO; ARANTES, 2006; CURY, 2012, 2013; FREITAS, 2012).
Facilmente poderíamos também considerar que a postura constitucional, ao apresentar a educação como um dos direitos individuais, é consagrada por um forte viés liberal (ANTUNES, 2005; CHAUÍ, 2017). As críticas a esse respeito indicam que essa postura constitucional se volta ao indivíduo em detrimento do social.
O artigo 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao estabelecer a educação como direito de todos, como dever do estado e da família, como compromisso com o pleno desenvolvimento da pessoa, estabelece como objetivo-fim preparar a pessoa para o exercício da cidadania e para o trabalho, o que pode ser utilizado para reforçar os ditos “vieses individualistas”.
A contaminação dos “vieses individualistas” pode ser estendida a outras referências legais, a exemplo na Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (BRASIL, 1996), em que rapidamente encontramos expressões que indicam os objetivos da educação escolar nacional, tais como: colaborador direto do desenvolvimento da pessoa, envolvendo a defesa da formação para a reflexão crítica, em prol da cidadania. Os artigos 2º e 4º são exemplos desses posicionamentos.
Inclusive os textos legais, à primeira mão, podem levar à simplista relação entre o direito do indivíduo e o direito à educação, como uma postura individualista, confirmada pelo reconhecimento da educação com direito fundamental e individual.
Ocorre que o contrário também se faz presente: o direito à educação como um direito social, presente no artigo 6º e no artigo 205 do texto constitucional. Daí decorre, então, o entendimento da educação escolar como expressão da sociedade democrática, como conquista social e condição para o desenvolvimento da sociedade democrática e justa, o que nos remete ao também reducionismo, direito de todos - direito social.
A expressão direito de todos não é a soma entre o direito individual (parte) e o direito à educação, mas, sim, é direito coletivo (todo), ou seja, todos devem ter acesso à educação (direito individual) porque cada pessoa está intrinsicamente ligada ao direito coletivo de uma dada sociedade. Percebemos uma certa concepção fragmentada, o que pode levar a uma individualização excessiva da educação escolar.
É importante defendermos nos cursos de formação inicial e continuada o direito à educação como um direito individual que atenda às particularidades de cada pessoa e grupos que historicamente sofreram processos de exclusão, mas sem prejuízos ao social e ao bem coletivo. Por isso, evidenciamos o direito à educação como um interesse social que leve em conta as demandas da vida coletiva, incluindo a solidariedade e as interdependências sociais que nos constituem como indivíduos multidimensionais e complexos.
O fato é que não existem contradições entre essas posturas, do direito à educação como direito individual e/ou como direito social, mas, sim, completudes, porque ambas são bases do pensamento liberal presentes em nossas sociedades desde o séc. XVII, inclusive a democracia, sendo esta o modelo político do pensamento liberal. O direito à educação, à defesa da educação para todos, à educação democrática, à liberdade, à valorização da diversidade tem suas raízes no indivíduo e seus direitos, em prol do desenvolvimento social, econômico, político, cultural, ambiental entre outros.
E não nos parece ser avesso ao desenvolvimento social, já que a democracia é defesa incondicional de teóricos da educação, da política, do direito, da arte, entre outros, em que é farta a concepção de que “a democracia é inegociável”, ainda que sendo um dos princípios do pensamento liberal, logo regime político que mantém o sistema capitalista, que, sem disfarces do pensamento liberal, reconhece as individualidades e suas conquistas. Importante pontuar aqui o que Morin sinaliza sobre o individualismo: “[...] o individualismo possui uma face iluminada e clara: a das liberdades, autonomias e responsabilidades. Mas possui também uma face sombria, cuja sombra amplia-se entre nós: a atomização, a solidão, a angústia” (MORIN, 2003, p. 49).
As DCNs (BRASIL, 2010), aprovadas em 2010 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e homologadas pelo Ministério da Educação (MEC) nesse mesmo ano, foram construídas com o objetivo de estabelecer as orientações e os princípios norteadores para a elaboração dos currículos das escolas de educação básica, em todo o país e, por conseguinte, são marco regulatório que norteia a formação inicial e continuada de professores no Brasil, tendo como objetivo garantir a universalização do direito à educação (BRASIL, 2010). As DCNs, portanto, obedecem aos marcos legais garantidos pela Constituição Federal de 1988.
As DCNs destacam que a educação básica deve ser um processo formativo integral, que promova o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e cultural dos estudantes, preparando-os para o exercício da cidadania e para a inserção no mundo do trabalho. Por conseguinte, possuem forte relação com a formação de professores, estabelecendo as competências e habilidades que eles devem desenvolver ao longo de sua formação e orientando a prática pedagógica. Além disso, também destacam a importância da articulação entre a formação de professores e as demandas do currículo escolar, indicando serem essas articulações garantidoras da educação como direitos de todos, de qualidade, com equidade (BRASIL, 2010, p. 23-33). “A formação de professores deve ser articulada às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, garantindo a coerência entre as competências e habilidades dos professores e as demandas do currículo escolar” (BRASIL, 2010, p. 33).
A BNCC (BRASIL, 2018) tem como documento balizador principal as DCNs, e ambas são documentos normativos que regulamentam a organização e o funcionamento da educação básica no Brasil, sendo a BNCC o documento que define a organização curricular das etapas e modalidades do sistema educacional brasileiro e estabelece as competências e habilidades que todos os estudantes devem desenvolver ao longo da educação básica.
Ainda que menos conhecidas as DCNs em relação à BNCC, consideramos importante destacar que estão interligadas na medida em que a BNCC é um desdobramento prático das orientações estabelecidas pelas DCNs. Enquanto as DCNs estabelecem as bases conceituais e metodológicas da educação básica, a BNCC apresenta uma proposta de organização curricular que deve ser seguida pelas escolas de educação básica de todo o país e indicações contundentes à formação inicial e continuada de professores.
A BNCC, ainda que timidamente, reconhece no texto de apresentação a dependência da concretização seus objetivos, a formação inicial e continuada de professores. Destacamos:
A BNCC por si só não alterará o quadro de desigualdade ainda presente na Educação Básica do Brasil, mas é essencial para que a mudança tenha início porque, além dos currículos, influenciará a formação inicial e continuada dos educadores, a produção de materiais didáticos, as matrizes de avaliações e os exames nacionais que serão revistos à luz do texto homologado da Base (BRASIL, 2018, p. 5).
Inclusive, a BNCC sugere que as instituições formadoras de professores devem incorporar os princípios e fundamentos da DCNs em seus projetos pedagógicos e em sua prática docente, de forma a garantir a coerência entre a formação de professores e as demandas da educação básica.
As DCNs indicam o seguinte:
Sabe-se, no entanto, que a formação inicial e continuada do professor tem de ser assumida como compromisso integrante do projeto social, político e ético, local e nacional, que contribui para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e capaz de promover a emancipação dos indivíduos e grupos sociais (BRASIL, 2010).
Esse compromisso envolve não apenas aprimorar os indivíduos, mas também está intrinsecamente relacionado aos cursos de formação inicial e continuada, e ao direito à educação como um bem social e à garantia da constituição plena da pessoa humana e da sociedade.
DCNs e BNCC reconhecem a formação de professores como fundamental para a implementação da educação básica de qualidade e estabelecem diretrizes e orientações para a formação de professores que estejam em consonância com seus princípios e fundamentos.
Os processos de formação inicial e continuada de professores devem estar pautados nas concepções e nos princípios da BNCC, de forma a possibilitar o desenvolvimento das competências e habilidades necessárias para a implementação do currículo e para a promoção do desenvolvimento integral dos estudantes (BRASIL, 2010, p. 57).
Como decorrência, foram elaboradas pelo Conselho nacional de educação a Resolução nº 2/2015 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2015), que trata da formação inicial de professores indicando a BNCC como documento norteador, e a Resolução CNE/CP nº 01/2019 (BRASIL, 2019), que trata das novas diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores em nível superior e da formação continuada, também centralizando indicações da BNCC.
Reservamos nossas críticas sobre os impactos dos documentos nos cursos de formação de professores, para nos centrarmos nas concepções que DCNs e BNCC apresentam sobre o direito à educação. Consideramos pertinente essa centralidade sobre a BNCC, já que em processo de implantação nas unidades escolares de educação básica em todo o Brasil e, portanto, demanda formação de professores.
Fato é que, ao negarmos o disciplinamento ordenado sobre o que é direito à educação, podemos colaborar para não reduzir conceitualmente a educação à dimensão escolar e romper com a ilusão de que os processos educativos escolares estão isolados das demais dimensões do processo educativo na sociedade.
Esse conhecimento cego, ilusão (MORIN, 1998), é o que nos faz afirmar ser verdade uma segunda ilusão: “a necessidade de conectar o que ensinamos à vida, a partir de postura metodológica de contextualização” (BRASIL, 2018, p. 11). Nossa posição é que, mais do que postura metodológica, trata-se de um novo paradigma de conhecimento, de alterações sobre como compreendemos educação e vida, sociedade e indivíduo, inclusive nos cursos de formação inicial e continuada.
Aceitar que as mudanças são metodológicas é aderir a ilusões. Podemos estar cegos quanto ao que seja indivíduo, educação e direito, quando nos referimos às alterações metodológicas (parte) como saída para melhoria da qualidade da aprendizagem (direito à educação), e não reconhecemos que a transformação é paradigma de vida (todo), o que envolve inclusive (re)conceituar o que seja “direito à educação”, na educação básica e na educação superior, e no caso dos cursos de formação inicial de professores, a construção de um novo paradigma de conhecimento sobre o direito à educação como bem individual/social, relacionado à vida do estudante de licenciatura, nas dimensões conceituais da aprendizagem, atitudinais e procedimentais.
O pensamento complexo reconhece as interdependências entre a educação escolar e as demais dimensões da educação social que não estão desconectadas do direito à educação. Compreende o educando enquanto um holograma da sociedade e a sociedade como uma emergência do coletivo que se manifesta multidimensionalmente nos educandos. Isso é o que garante o direito do educando de ser reconhecido como pessoa enraizada no seu contexto social, histórico, cultural e político e à sociedade/comunidade o direito de uma educação escolar que potencialize suas formas de viver, seus processos humanizadores de manutenção da vida, o seu bem maior.
Sobre o direito à educação: as dimensões individual e social na Base Nacional Comum Curricular
Fizemos um exercício de análise dos dois documentos curriculares, cotejando os aspectos que dizem respeito à temática do texto. São eles: a) as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2010); b) a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018). A escolha desses dois documentos se deve ao fato de serem os principais documentos norteadores da construção dos currículos escolares na educação básica brasileira e garantidores do direito à educação.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996) e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNs) (BRASIL, 2018, p. 7).
Decorrente do cotejamento inicial, optamos por concentrar a análise na BNCC (BRASIL, 2018), visto que os conceitos e posicionamentos desse documento estão alinhados às DCNs (BRASIL, 2010).
Ao cotejar a BNCC (BRASIL, 2018), utilizamos como referência teórica o pensamento complexo proposto por Morin (2000, 2002) para perspectivar e analisar os documentos legais. Nossa compreensão é de que a educação e o direito à educação são interdependentes e estão imbricados ao indivíduo e ao social porque são manifestações multidimensionais que pertencem à constituição da própria sociedade moderna. Para a realização da análise, adotamos dois enfoques: o primeiro foi a análise das informações do global para o local, evitando fragmentações; e o segundo foi o “conhecer como se conhece”, ou seja, entender como o conhecimento é construído.
Sobre a Educação
Como primeiro enfoque adotamos o procedimento de buscar na BNCC (BRASIL, 2018) os conceitos sobre educação em que esteja presente direta ou indiretamente o direito à educação.
Destacamos para a análise: “A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 205, reconhece a educação como direito fundamental compartilhado entre Estado, família e sociedade [...]” (BRASIL, 2018, p. 10). O posicionamento indica duas ações fundamentais para o Estado e para a sociedade: a proteção da educação como um bem humanizador; a promoção do desenvolvimento individual. Portanto, em uma primeira análise, a finalidade do esforço social (Estado e sociedade) é o bem individual.
Destacamos essa citação para indicar que a interdependência entre o indivíduo e a sociedade, assim como na relação indivíduo-educação-sociedade, não está presente ao longo do texto curricular da BNCC (BRASIL, 2018). Ainda que o direito à educação seja motivo principal do referido documento, as indicações sobre educação expressam uma compreensão do processo educativo centrado na constituição das individualidades.
Destacamos da BNCC (BRASIL, 2018) três trechos, apresentados no quadro 1, representativos da referência atribuída a educação.
Tema | Citação |
---|---|
Universalidade e igualdade. | “O acesso à educação é direito de todos e deve ser garantido sem discriminação de qualquer natureza, seja ela étnico-racial, de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, idade, religião, origem social ou condição de saúde” (BRASIL, 2018, p. 20). |
Individualidade | “Os sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais. ” (BRASIL, 2018, p. 15). |
Caráter universal, diversidade e inclusão | “Para isso, os sistemas e redes de ensino e as instituições escolares devem se planejar com um claro foco na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes. ” (BRASIL, 2018, p. 15). |
Fonte: Autores (2023).
As citações apresentam posicionamentos sobre a educação escolar alinhados aos valores humanos necessários à vida, tais como a universalidade, a igualdade, a diversidade, a equidade, e a inclusão, diante do tempo contemporâneo necessário, mas não são suficientes para superações de problemas sociais, tais como individualismo, violência, consumismo, entre outros. Entendemos que cabe à educação também valores coletivos, como solidariedade, alteridade, compaixão.
Ao adotar a postura investigativa proposta, cabe-nos apontar que tais posturas, separadas do entendimento global do direito à educação, podem reforçar um entendimento de que a educação é constituidora de individualidades em detrimento das coletividades. A universalidade, a inclusão, a diversidade e o sucesso escolar são dirigidos à pessoa/indivíduo, o que sugere fragmentações que ressoam inclusive na forma como ensinamos e aprendemos nos contextos dos cursos de formação inicial e continuada. Entendemos que os princípios da educação também precisam ser compreendidos como bem de interesse social.
É fato que cabe aos processos educativos escolares, ou não, a construção das individualidades, como indica Morin (2000, p. 81): “O indivíduo tem a propriedade de ser ele mesmo, sua identidade única e singular, que o distingue de qualquer outro indivíduo”. No entanto, a dimensão coletiva e social da educação é essencial, inclusive para manutenção das individualidades, posicionamento confirmado também por Morin (2002, p. 30).
O indivíduo é, ao mesmo tempo, um ser social e singular, que se realiza e se define em relação aos outros. Ele é um centro de consciência, de decisão e de ação, capaz de pensar, de sentir e de querer, mas sua existência só é possível graças às relações que mantém com outros indivíduos, com as coletividades, com a história e a cultura (MORIN, 2002, p. 30).
A desatenção sobre a finalidade social/coletiva dos processos formativos de professores pode provocar entendimentos fragmentados sobre o sentido da educação escolar. A ausência do objetivo social/coletivo nas indicações sobre educação e inclusão, educação e diversidade, educação e direitos humanos, entre outras, pode nos ajudar a compreender as razões pelas quais as práticas escolares possuem fundações mais individuais do que coletivas e, por conseguinte, o distanciamento entre sociedade e escola e a ausência de compromisso e pertencimento social da escola pela sociedade. Entendemos também que uma concepção que religa o indivíduo ao social e o social ao indivíduo ainda não está inscrita na letra da norma, portanto não reverbera nas práticas docentes no âmbito da educação escolar. Acreditamos que precisamos avançar numa concepção e compreensão sobre a relação dialógica entre o indivíduo e o coletivo e vice-versa nos programas de formação de professores.
Entendemos o direito à educação como direito social, constatação consequente do sentido maior da educação escolar, a vida social e coletiva. Não se trata de uma dimensão de educação para a cidadania ou para o mundo do trabalho (preparar mão de obra) simplesmente. Tratamos de indicar a educação como bem essencial para a vida social, portanto de interesse social, no sentido de que educamos indivíduos interdependentes em relação à sociedade.
A interdependência social entre o indivíduo e a sociedade é o que torna o coletivo promotor, garantidor e maior beneficiário da educação escolar. Neste caso, as posturas de defesa do direito em relação à educação, alinhadas à diversidade, inclusão e outros fins, para além dos interesses individuais são bens humanos de interesse social, por conseguinte de defesa social.
O convite, aos docentes dos cursos de formação de professores, é retomarmos a termo as interdependências na relação indivíduos-processos educativos-sociedades. A respeito disso, Morin (2002), ao intitular uma de suas obras como A humanidade da humanidade, destaca a condição humana em sua complexidade e multidimensionalidade, considerando a dimensão histórica, social, cultural, biológica, política e espiritual da identidade humana.
Parece-nos importante compreender o direito à educação desdobrado nessas dimensões, a fim de nos distanciarmos de defesas com tons “individualistas” e “reducionistas” do direito à educação e evidenciarmos a educação escolar como processo social da humanidade, de uma construção coletiva e histórica que se realiza por meio da interação entre os indivíduos e os grupos sociais num processo dialógico, histórico e complexo. Possui uma dimensão universal e essencial num movimento que incorpora e transcende as diferenças e as particularidades culturais e históricas, até mesmo das comunidades locais, ainda que necessárias.
O enfoque do particular ao global sobre educação é demanda necessária aos currículos escolares da educação básica e superior.
A educação deve, ao mesmo tempo, responder às exigências de especialização, de eficiência e de racionalização do mundo moderno e desenvolver uma abordagem mais abrangente, que leve em consideração a diversidade cultural e a complexidade das realidades sociais e individuais. [...] A educação deve ser capaz de formar seres humanos conscientes de sua condição e responsáveis pelo seu destino, capazes de agir de forma criativa e solidária diante dos desafios da contemporaneidade. Nesse sentido, é fundamental que a educação possa contemplar tanto a dimensão particular quanto a dimensão global da experiência humana, promovendo uma visão integrada e crítica da realidade (MORIN, 2000, p. 214)
A Educação é fundamental ao indivíduo, à sociedade e à humanidade por ser condição para constituição da própria humanidade naquele que é humano. Nesse caso, as interdependências entre educação informal, escolar e não formal, bem como entre o indivíduo e o social, são essencialidades para constituição de processos humanizadores nas instituições escolares.
Destacamos que o uso da expressão processos humanizadores se dá em respeito à pluralidade em que se constituem os humanos em suas humanidades, tendo em vista que não entendemos existir uma humanidade homogeneizante, mas, sim, diversidade de humanidades, portanto diversidades de processos educativos. Cabe no direito à educação a complexidade e a diversidade das realidades particulares dos processos educativos, e também a amplitude e a globalidade da educação com suas interconexões entre as dimensões biológica, cultural, social, emocional, política e espiritual.
Evidenciar o direito à educação como primazia de interesse social é necessário aos currículos escolares, inclusive de formação de professores, uma vez que o direito à educação é garantidor dos objetivos sociais, de processos educativos que contemplem a complexidade das realidades locais e interesses individuais em interdependência com as realidades globais e interesses sociais.
A educação escolar possibilita aos estudantes e ao coletivo social o enfrentamento dos desafios da contemporaneidade como interesse coletivo mobilizador das individualidades e como interesse das individualidades que mobilizam demandas coletivas. A construção da vida é ato social, grupal e individual, sendo interdependentes.
Recoloquemos o entendimento constitucional sobre o pleno desenvolvimento da pessoa, como indica o artigo 205 da Constituição Federal de 1988, primeiro como pleno desenvolvimento da humanidade e da sociedade que nutre o indivíduo. Nesse sentido destacamos: “A sociedade é uma placenta que nutre o indivíduo e que só pode ser compreendida como uma totalidade em que os fenômenos estão interconectados” (MORIN, 2000, p. 81).
A defesa do direito à educação requer o necessário esclarecimento das interdependências entre indivíduo e sociedade, bem como do desenvolvimento humano. Evidenciamos, portanto, o pertencimento da escola pela sociedade e da sociedade para a escola, além do pertencimento indivíduo-escola.
Sobre o direito à educação como bem individual
A BNCC (BRASIL, 2018) apresenta o direito à educação como direito individual, fundamental e revela entrelaçamentos ao direito humano universal indicando a educação básica como uma das garantidoras do desenvolvimento da pessoa; sendo assim, algumas citações sobre o direito à educação como bem do indivíduo são destaques do texto da BNCC (BRASIL, 2018), envolvendo três referências, sendo elas: a) pressuposto para acesso e permanência dos indivíduos; b) garantidor do pleno desenvolvimento; e c) efetiva aprendizagem de conhecimentos, habilidades e valores.
Destacamos alguns trechos do documento no Quadro 2.
Tema | Citação |
---|---|
Direito humano fundamental | “A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 205, reconhece a educação como direito fundamental compartilhado entre Estado, família e sociedade” (BRASIL, 2018, p. 10). |
Garantidor do pleno desenvolvimento do educando | Independentemente da duração da jornada escolar, o conceito de educação integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea. Isso supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir.” (BRASIL, 2018, p. 14). |
Fonte: Autores (2023).
Os conceitos sobre direito à educação como direito individual apresentados acima envolvem a educação escolar como uma das atividades sociais garantidoras do desenvolvimento humano. Esse desenvolvimento humano nos processos escolares deve ser construído a partir da aprendizagem efetiva, entendida como domínio de conhecimentos, habilidades e valores, pressupostos para o desenvolvimento de valores necessários à formação humana. Esses posicionamentos implicam reflexões sobre o que entendemos por indivíduo nos referenciais curriculares.
Constatamos que, após escrutínio da BNCC (BRASIL, 2018), não existem definições diretas sobre o que significa pessoa/indivíduo. Optamos por extrair os conceitos a partir de indicações sobre estudante e formação integral.
[…] o conceito de educação integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea (BRASIL, 2018, p. 14).
O procedimento seguinte foi analisarmos as interconexões entre os conceitos de estudantes e formação integral, para compreender o que implica o direito à educação, tendo em vista que a dimensão da educação como bem individual é a mais destacada na BNCC (BRASIL, 2018), como já apresentado. Destacamos sobre o conceito de estudantes:
Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades. (BRASIL, 2018, p. 14).
A partir da identificação das interconexões entre os conceitos educação integral e estudantes, retomamos o documento e identificamos a definição das dimensões cognitivas, afetivas e sociais, que apresentamos no Quadro 3.
Dimensão cognitiva | “Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades” (BRASIL, 2018, p. 14). |
Dimensão afetiva | “assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades” (BRASIL, 2018, p. 14). |
Dimensão social | “a escola, como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades” (BRASIL, 2018, p. 14). |
Fonte: Autores (2023).
A primeira constatação é que a BNCC amplia o entendimento sobre educação escolar, em relação aos documentos curriculares anteriores, ao posicionar as dimensões afetivas e sociais nos processos educativos, além da dimensão cognitiva, portanto também implicadas nos processos de ensino e aprendizagem.
O entendimento global do indivíduo envolve as dimensões cognitivas, afetivas e sociais, e também a compreensão de que somos constituídos por identidades complexas. Morin (2000) destaca que o indivíduo é composto por quatro identidades fundamentais, sendo elas: a) a identidade individual, que se refere às características únicas de cada indivíduo, como sua história de vida, personalidade, talentos e capacidades; b) a identidade social, que se relaciona às formas de interação e de pertencimento dos indivíduos em relação aos grupos sociais, como família, amigos, comunidades e sociedade em geral. Segundo Morin,
[...] a identidade individual é uma construção que envolve a complexidade da singularidade de cada um, resultante da interação com o meio e com os outros, e que inclui tanto aspectos objetivos quanto subjetivos. [...] A identidade social é construída no encontro e no choque com as outras identidades sociais, em um processo que envolve a relação entre o eu e o outro, o reconhecimento e a alteridade (MORIN, 2011, p. 32-33).
O autor ainda indica: c) a identidade cultural, que se refere às tradições, crenças, valores, costumes e práticas que caracterizam cada grupo cultural e que influenciam a forma como os indivíduos se percebem e se relacionam com o mundo; e d) a identidade universal, que se relaciona à condição humana em sua complexidade, envolvendo questões existenciais, éticas e metafísicas que são comuns a todos os seres humanos, independentemente de sua cultura, história ou condição social.
[...] a identidade cultural é o resultado da pluralidade de pertencimentos, que envolve a complexidade de ser ao mesmo tempo herdeiro e criador de tradições e inovações culturais. [...] a identidade universal é aquela que nos remete ao fato de sermos, ao mesmo tempo, pertencentes à humanidade e ao planeta Terra, que nos liga à totalidade cósmica e ao mistério do existir (MORIN, 2011, p. 34-35).
Morin (2011) argumenta que uma abordagem transdisciplinar do conhecimento sobre as identidades humanas pode contribuir para a construção de individualidades mais tolerantes e solidárias, o que implica a essencialidade da educação. Ou seja, educar para a constituição da identidade social cultural e universal assegura a plenitude do desenvolvimento humano e da própria humanidade.
A educação é um processo complexo que implica a formação das personalidades individuais, a integração dessas personalidades no meio social, e ainda, na constituição do sujeito da ação e do conhecimento. Essa complexidade é incrementada pela dialética da subjetividade e da intersubjetividade (MORIN, 2002, p. 82).
Educamos sujeitos para a construção de suas individualidades e especificidades a fim de uma vida coletiva social, cultural e universal interdependente.
Os destaques do documento dizem respeito à necessidade de considerarmos as dimensões afetiva, cognitiva e social nos processos de aprendizagem, mas carecem no cuidado em evidenciar a complexidade humana. As conceituações são muito didáticas com pouco cuidado conceitual.
O direito à educação implica o compromisso social com o pleno desenvolvimento do estudante/indivíduo. Ocorre que o exercício epistemológico de compreensão do particular para o global nos obriga a indicar que a BNCC (BRASIL, 2018) não destaca a compreensão do indivíduo como parte do social/coletivo. O indivíduo é constituído por processo de interação e interdependência das dimensões cognitivas, afetivas e sociais para constituição das suas identidades (individual, cultural, social e universal).
Indicamos que a compreensão do indivíduo em interdependência com a sociedade, inclusive o destaque de sua identidade social, não é significativo na BNCC (BRASIL, 2018), o que confirma nossas considerações anteriores em relação a uma concepção “fragmentada” que carece de uma perspectiva de religação entre o fenômeno educativo e o direito à educação, religando o indivíduo ao social e vice-versa, carência que precisa ser demanda dos cursos de formação de professores.
Sobre o direito à educação como bem social
A indicação do direito à educação como bem social consta na introdução do documento, que é assim apresentado: “A educação deve ser pensada como um bem comum, que deve ser valorizado e protegido pela sociedade como um todo” (BRASIL, 2018, p. 14).
Em nosso entendimento, o texto da BNCC (BRASIL, 2018), ao indicar o direito à educação como direito social, volta-se novamente à ênfase ao desenvolvimento das individualidades. Destacamos algumas citações conforme apresentado no Quadro 4.
Tema | Citação |
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Dever do Estado | “No Brasil, um país caracterizado pela autonomia dos entes federados, acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, os sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais” (BRASIL, 2018, p. 15). |
Caráter de universalidade | “[...] para além da garantia de acesso e permanência na escola, é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, tarefa para a qual a BNCC é instrumento fundamental” (BRASIL, 2018, p. 13). |
Equidade | “[…] as decisões curriculares e didático-pedagógicas das Secretarias de Educação, o planejamento do trabalho anual das instituições escolares e as rotinas e os eventos do cotidiano escolar devem levar em consideração a necessidade de superação dessas desigualdades. Para isso, os sistemas e redes de ensino e as instituições escolares devem se planejar com um claro foco na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes” (BRASIL, 2018, p. 15). |
Fonte: Autores (2023).
A educação como um bem fundamental do indivíduo precisa ser compreendida sob a perspectiva da globalidade que a implica, bem social, inclusive pela interdependência entre o direito e a educação humana, do social para o indivíduo, e consequentemente do indivíduo para o social. Parece-nos clara a fragmentação conceitual entre o entendimento de parte do direito (indivíduo) para o entendimento global (o social).
As indicações referentes à educação como direito social, na BNCC (BRASIL, 2018), revelam fragmentações e confirmam o reducionismo sobre o conceito de indivíduo e sobre o direito à educação; inclusive as categorias destacadas no quadro 4, são semelhantes às categorias destacadas no quatro 2 (indivíduo). As considerações legais sobre a educação como direito social dizem respeito ao bem social e coletivo e são garantidores das condições dignas de vida à sociedade. Ainda que o benefício alcance o indivíduo, a vida social é também fortalecida e aprimoram-se os marcos humanizadores, tais como: respeito, empatia, tolerância, amor, verdade, honestidade, entre outros.
Os direitos sociais assim como os direitos humanos são conquistas históricas que ainda carecem de apresentações mais claras e aprimoradas no documento curricular analisado. A educação como bem e projeto social é um dos principais meios para garantir a dignidade humana e a justiça social. O direito à educação centrado no indivíduo e seus processos formativos perde esse sentido maior.
A educação como direito social é interesse social, garantidora do bem-estar do indivíduo porque objetiva a promoção do bem-estar coletivo, preserva o valor da dignidade humana por meio da educação dos indivíduos. O benefício do trabalho educativo escolar é social antes de ser individual (MORIN, 2000, p. 49).
A constatação das barreiras de compreensão da educação como bem e direito social, presentes na BNCC (BRASIL, 2018), pode nos indicar as razões para o distanciamento da sociedade em relação à valorização das atividades escolares, dos profissionais que atuam nessa área e da qualidade desse bem social. Para compreender necessitamos apreender “o texto e o contexto, o ser e seu meio, o local e global, juntos” (MORIN, 2015, p. 80), o que nos aponta para um pensamento que enlaça, que não fragmenta, que não isola ou separa, mas que religa. “Compreender; tomar em conjunto, envolver, enlaçar” (MORIN, 2005, p. 113).
É fundamental que o direito à educação seja compreendido como um direito fundamental nos processos formativos de professores e que estes sejam capazes de promover a formação humana integral e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Para isso, é necessário que haja, nesses programas, uma compreensão mais ampla do papel da educação escolar na sociedade, considerando sua interdependência com outras dimensões da vida e a importância de investimentos e políticas públicas para garantir o acesso universal e a qualidade do ensino.
A qualidade dos programas de formação inicial de continuada de professores não pode ser entendida como uma questão técnica e pedagógica, é também uma questão de formação humana e social. Isso significa que a qualidade da educação não deve ser avaliada apenas pelos resultados em testes padronizados ou pela eficiência na transmissão de conteúdos, mas também pela capacidade de retroalimentar a sociedade para solidariedade, por meio da educação dos indivíduos.
Baudrillard e Morin (2004) tratam os direitos sociais como um elemento central para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e solidária.
Os direitos sociais são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e humana. Eles devem ser entendidos em um sentido amplo, que leve em conta as múltiplas dimensões da vida humana e as relações complexas entre elas (MORIN, 2002, p. 46).
O autor ressalta a abordagem integrada e transdisciplinar para a promoção dos direitos sociais, que leve em conta as múltiplas dimensões da vida humana e as relações complexas entre elas.
Os direitos sociais não podem ser garantidos apenas pelo Estado, mas também pela participação ativa da sociedade civil. É preciso uma abordagem integrada que envolva as instituições governamentais, a sociedade civil e os indivíduos em suas ações cotidianas (MORIN, 2015, p. 65).
Ao analisarmos os destaques sobre o direito à educação como direito social na BNCC (BRASIL, 2018), não identificamos erros conceituais, mas sim ausências conceituais importantes. O posicionamento adotado na BNCC (BRASIL, 2018) fragmenta o conceito de educação e desconsidera a interdependência entre a educação escolar e a sociedade. É necessário compreendermos o pertencimento social entre essas duas esferas e, por conseguinte, o entendimento multidisciplinar que envolve o direito à educação como um meio para a promoção da vida humana e solidária, na educação básica e superior.
Além das ausências conceituais sobre as interdependências entre indivíduo, educação e sociedade, indicamos a necessária retomada do sentido de comunidade. Já a BNCC (BRASIL, 2018), ao referir-se ao direito social, apresenta indicações sobre a participação da comunidade na escola. Indicamos: “A comunidade é um espaço de pertencimento, de identidade e de reconhecimento mútuo, que possibilita aos seus membros uma sensação de segurança e de continuidade” (MORIN, 2000, p. 58).
As práticas docentes com certeza elaborarão uma compreensão mais pertinente, se (re)conceituarem educando (indivíduo) em relação à sua comunidade, o saber escolar em relação aos saberes da comunidade, já que a realidade educacional, social e comunitária, embora apresentem suas identidades e características, fazem parte de um sistema societário. O que existem são posturas, concepções que capturam a realidade sob um paradigma de conhecimento que descontextualiza, que desconsidera a interdependência entre o educando, a docência, a escola, a comunidade e a sociedade.
Considerações finais
Identificamos na BNCC (BRASIL, 2018) reducionismos e uma concepção fragmentada referentes à educação como direito e bem social. Acreditamos que a educação escolar não deva ser concebida apenas como uma prestação de serviço aos indivíduos ou às comunidades, mas como parte de um conjunto de construções sociais comprometidas com a promoção da vida solidária, a dignidade humana e a justiça social. Observamos a ausência de uma compreensão complexa do direito à educação na sociedade, que vai além do âmbito escolar e se estende a todos os aspectos da vida social. Acreditamos que uma compreensão pertinente deva levar em conta a importância da educação como bem social que promove o desenvolvimento integral do indivíduo acolhendo sua multidimensionalidade e, ao mesmo tempo, reconhecendo às demandas complexas do interesse social, em prol de uma sociedade mais solidária (MORIN, 2000, p. 112).
O direito social à educação precisa considerar as múltiplas dimensões da vida e suas complexas relações, reconhecendo a interconexão de todos os aspectos da vida para promovermos processos educativos que favoreçam à solidariedade, à cooperação e ao diálogo entre indivíduos e grupos sociais, bem como entre grupos sociais e a sociedade como um todo num processo de permanente construção e manutenção da Democracia. “A democracia é uma conquista da complexidade social” (MORIN, 2005, p. 149).
Nesse sentido, apontamos a necessidade de que os programas de formação inicial e continuada de professores atentem-se ao (re)significarem o direito à educação como engajamento à formação humana, mais social e menos individual, para uma comunidade/sociedade mais competente e hábil no sentido da solidariedade.
Os pressupostos teóricos do pensamento complexo podem colaborar para que a produção do conhecimento sobre o direito à educação possa considerar a necessidade de superarmos esses isolamentos, não se trata de uma atitude metodológica, mas, sim, de uma nova postura epistemológica sobre a concepção de vida e de educação que deve abarcar a prática docente, e estar presente nos programas de formação inicial e continuada.
Nesse contexto, é essencial resgatar os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988, os quais reconhecem a importância da atividade escolar e dos professores na consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e capaz de promover a emancipação dos indivíduos e grupos sociais.
Portanto, ao assumir o compromisso com a formação inicial e continuada dos professores, o projeto social, político e ético busca garantir a educação do indivíduo para as transformações sociais, promovendo a justiça, a igualdade e a inclusão. Essa formação deve abranger não apenas o aprimoramento individual, mas também a reflexão crítica sobre a educação e sua função social, portanto faz-se imprescindível uma nova postura epistemológica na busca por práticas educativas no contexto da formação de professores favorecedoras do entendimento do direito à educação como individual/coletivo, para que o respeito à diversidade e o desenvolvimento de uma consciência cidadã se consolide como projeto social.