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Revista Diálogo Educacional

Print version ISSN 1518-3483On-line version ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.79 Curitiba  2023  Epub Feb 22, 2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.079.ao14 

Artigos

A reforma do Ensino Médio e a crise estrutural do capitalismo

High school reform and the structural crisis of capitalism

La reforma de la escuela secundaria y la crisis estructural del capitalismo

Marco Antônio de Oliveira Gomes[a] 
http://orcid.org/0000-0002-2397-5615

Fabrícia de Cassia Grou de Paula[b] 
http://orcid.org/0000-0002-8348-0470

Ana Paula Aires Rodrigues[c] 
http://orcid.org/0000-0001-9359-6779

[a]Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil

[b]Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil

[c]Universidade Estadual do Paraná (Unespar - Campus de Campo Mourão)., Campo Mourão, PR, Brasil


Resumo

Objetivamos, com este artigo, analisar a partir dos postulados do materialismo histórico e dialético, a reforma do Ensino Médio (2017) e seus desdobramentos na formação dos filhos da classe trabalhadora em um contexto de profunda crise do capitalismo. Como premissa básica, partimos da compreensão de que a educação e as reformas em andamento não se explicam por si, mas expressam os conflitos existentes em uma sociedade profundamente dividida e desigual. Considerando a crescente precarização das condições de vida e trabalho, buscamos analisar a origem do processo de tais transformações no mundo do trabalho. Promovida, pelo Ministério da Educação do governo Temer, após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, a reforma do Ensino Médio, promulgada por meio da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, alterou a proposta presente na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) ao flexibilizar o currículo, enxugando-o de modo a esvaziar ainda mais o papel da escola na transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados. Nessa perspectiva são analisados os interesses econômicos e ideológicos nas disputas presentes na reforma, os objetivos proclamados, tanto quanto os implícitos nesse processo. É considerada também a proposta da BNCC (2018) e seus desdobramentos para a formação dos alunos e os vínculos orgânicos com os interesses do capital na reprodução da força de trabalho.

Palavras-chave: Reforma; Ensino Médio; Crise do capitalismo; BNCC.

Abstract

With this article, we aim to analyze, based on the postulates of historical and dialectical materialism, the reform of secondary education (2017) and its consequences in the education of working-class children in a context of deep crisis of capitalism. As a basic premise, we start from the understanding that education and the ongoing reforms cannot be explained by themselves, but express the existing conflicts in a deeply divided and unequal society. Considering the growing precariousness of living and working conditions, we seek to analyze the origin of the process of such transformations in the world of work. Promoted by the Ministry of Education of the Temer government, after the coup against President Dilma Rousseff, the reform of Secondary Education, enacted through Law 13,415 of 2.16.2017, changed the proposal present in the Law of Guidelines and Bases (LDB) by make the curriculum more flexible, streamlining it in such a way as to further deplete the school's role in transmitting historically accumulated knowledge. In this perspective, the economic and ideological interests in the disputes present in the reform, the proclaimed objectives, as well as those implicit in this process, are analyzed. The proposal of the BNCC (2018) and its consequences for the training of students and the organic links with the interests of capital in the reproduction of the workforce are also considered.

Keywords: Remodeling; High school; Crisis of capitalism; BNCC.

Resumen

Con este artículo pretendemos analizar, a partir de los postulados del materialismo histórico y dialéctico, la reforma de la educación secundaria (2017) y sus consecuencias en la educación de los niños de clase trabajadora en un contexto de profunda crisis del capitalismo. Como premisa básica, partimos del entendimiento de que la educación y las reformas en curso no pueden explicarse por sí solas, sino que expresan los conflictos existentes en una sociedad profundamente dividida y desigual. Considerando la creciente precariedad de las condiciones de vida y de trabajo, buscamos analizar el origen del proceso de tales transformaciones en el mundo del trabajo. Promovida por el Ministerio de Educación del gobierno de Temer, luego del golpe de estado contra la presidenta Dilma Rousseff, la reforma de la Educación Secundaria, promulgada a través de la Ley 13.415, del 16.2.2017, modificó la propuesta presente en la Ley de Directrices y Bases (LDB) por hacer flexibilización del currículo, agilizándolo de tal manera que se agote aún más el papel de la escuela en la transmisión de conocimientos acumulados históricamente. En esta perspectiva, se analizan los intereses económicos e ideológicos en las disputas presentes en la reforma, los objetivos proclamados, así como los implícitos en este proceso. También se considera la propuesta de la BNCC (2018) y sus consecuencias para la formación de los estudiantes y los vínculos orgánicos con los intereses del capital en la reproducción de la fuerza de trabajo.

Palabras clave: Remodelación; Escuela secundaria; Crisis del capitalismo; BNCC.

Introdução

A análise da reforma do Ensino Médio, Lei nº 13.415/2017, dentro do contexto da crise estrutural do capitalismo (Mészáros, 2002), é a proposta para este trabalho. Nesse ínterim, como premissa básica, partimos da compreensão de que a educação e as reformas em andamento não se explicam por si, mas expressam os conflitos existentes em uma sociedade profundamente dividida e desigual.

Nesse contexto, considerando a crise estrutural do modo de produção capitalista que se arrasta pelos últimos decênios e a agenda liberal propugnada pelo capital, a reforma do Ensino Médio materializa um projeto que não é novo, mas que se acentuou nos últimos anos: a omissão do Estado no provimento de recursos para a educação púbica concomitantemente ao esvaziamento dos conteúdos historicamente produzidos pela humanidade.

A partir da década de 1990, as reformas econômicas colocadas em prática - em consonância com os postulados do liberalismo - objetivaram a redução do papel do Estado como requisito para a modernização econômica. Dessa forma, buscava-se assegurar a preservação e a reprodução dos interesses do capital, em detrimento dos interesses da classe trabalhadora.

Por fim, para atingirmos os objetivos elencados e tomando como princípio epistemológico o materialismo histórico e dialético, concebemos que a educação e a produção do conhecimento científico não são empreendimentos que se manifestam acima dos interesses de classe. Considerando, portanto, a opção apresentada, buscamos respaldo nas referências de autores como Marx (2004; 2013), Fernandes (2020), Lombardi e Lima (2018), Saviani (1994, 2003), entre outros. Ademais, cotejamos a BNCC (2018), a Lei nº 13.415/2017, o manifesto produzido pelo então PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), “Uma ponte para o futuro” (2015) e o Referencial Curricular para o Ensino Médio do Paraná (2021), que expressam ideologicamente os interesses privatistas do capital.

O golpe de 2016 e a agenda liberal

Analisar a natureza do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff implica em compreender não somente o processo dos bastidores do poder e suas articulações entre a grande imprensa, o parlamento e o poder judiciário, mas, também, interesses políticos e geopolíticos do capital, situados dentro de um momento histórico marcado pela crise estrutural do capitalismo.

Nesse contexto, é preciso considerar que a burguesia brasileira se encontra em uma condição de subalternidade em relação aos interesses imperialistas, em que prevalecem intensas disputas internacionais pelo reordenamento da economia mundial.

Isto posto, faz-se necessário efetuar uma breve análise histórica do capitalismo dependente no Brasil, que se constituiu a partir da conciliação histórica entre a burguesia industrial e financeira com o latifúndio, sujeitando-se às demandas externas do imperialismo.

[…] Aqui estamos em face de uma burguesia dependente, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as duas coisas com a sobrevivência da “civilização ocidental cristã”. Em suas mãos, o individualismo egoístico, o particularismo agressivo e a violência “racional” só se voltam para o fim: a continuidade do tempo econômico da revolução burguesa, ou seja, em outras palavras, a intensificação da exploração capitalista e da opressão de classe, sem a qual ela é impossível. Esse, aliás, é o único ponto para o qual convergem os mais díspares contrastantes interesses e valores burgueses, constituindo-se, por isso, no polo histórico onde se unem as “forças vivas”, nacionais e estrangeiras, da revolução burguesa sob o capitalismo dependente. (Fernandes, 2020, p. 352).

O processo descrito por Florestan Fernandes não deve ser compreendido como um fenômeno exclusivo do Brasil, mas a partir do entendimento de que o capital busca espaços para sua reprodução em diferentes regiões. Isso significa que a penetração das relações capitalistas em diferentes nações e regiões não ocorre de forma homogênea, mas permite a existência de processos combinados e desiguais de desenvolvimento econômico.

Assim sendo, é preciso mencionar, ainda, que o processo de modernização do capitalismo brasileiro se deu a partir de uma perspectiva que não livrou o país das relações marcadas pela subordinação aos interesses imperialistas, além de agravar nossas contradições internas, o que fez com que a burguesia lançasse mão da violência e de golpes de Estado de que não podem ser desvinculados do plano histórico-mundial ao longo do século XX e XXI.

Historicamente, para assegurar a manutenção da ordem econômica e social, as classes dominantes rasgaram as leis que juraram obedecer, conforme as circunstâncias do momento. Esse processo pode ocorrer por meio de ações violentas que revoguem os direitos constitucionais dos cidadãos, com a instalação do terror policial ou por meio de artifícios supostamente legais. No primeiro caso, podemos citar os golpes de 1937 e de 1964, em que os golpistas se utilizaram da repressão para “salvar a democracia” e combater a “subversão”; no segundo caso, em 2016, o golpe foi apresentado como um “legítimo” processo de impeachment, situado dentro das normas legais.

Ainda não temos uma teorização acabada que possa dar conta das mudanças pelas quais passou o país recentemente culminando com o golpe jurídico parlamentar em 2016 que afastou a colisão do PT do poder, mas pode se dizer que em 2016 representa um momento de inflexão na política brasileira, não por acaso com o apoio incondicional do PSDB e do antigo PL, agora o DEM - sem contar o partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), cujas fileiras era o vice-presidente na colizão PT-MDB, elevado pelo golpe à condição de presidente da República, em 2016, com impeachment da presidente Dilma Rousseff. Mas pode-se dizer que 2016 representa um momento em que sai o desenvolvimento, cedendo lugar a uma retomada do liberalismo econômico (neoliberalismo) na política brasileira (Freitas, 2018.p. 10).

Ainda há muito o que desvelar sobre os bastidores do golpe operacionalizado em 2016, mas é a partir da concepção marxista do Estado que encontramos o arcabouço teórico que explicita as relações entre a produção material da existência, o Estado e as lutas de classes. Assim, apesar da existência de divergências no interior do bloco dominante burguês, é evidente que, historicamente, o Estado é uma instituição mantenedora da ordem social capitalista e seu propósito é a exploração da força de trabalho.

As ações com vistas à conservação podem diferir no tempo e no espaço em função da correlação de forças existentes na sociedade. Nesse sentido, no contexto das relações econômicas internacionais, mais especificamente a partir da década de 1970, as transformações do capitalismo, oriundas do advento do Toyotismo e das mudanças operadas no processo produtivo, ocorre uma crescente hegemonia das pautas liberais, como meio de superação da crise que avançava a passos largos. Já nas primeiras décadas do século XXI, a crise financeira de 2008 e 2009, que arrastou milhões de trabalhadores para a miséria, gerou fraturas maiores que a crise de 1929. Dessa forma, não se pode esquecer o fato de que a hegemonia estadunidense passou a ser cada vez mais ameaçada com a ascensão da China no cenário mundial.

No caso do Brasil, é importante considerarmos a sua histórica condição periférica, em que os interesses imperialistas se voltam com mais apetite, diante da crise global. Por conseguinte, em meio à disputa geopolítica entre China e Estados Unidos, o Brasil tornou-se um território mais cobiçado, com a descoberta do pré-sal.

Com o agravamento da crise, que reverberava internamente na economia e na política brasileira, o primeiro Governo de Dilma Rousseff (2011-2014) conviveu com uma das maiores manifestações de rua da história do país: as jornadas de junho de 2013. Marcadas pela violência policial e pela participação ativa de estudantes e de trabalhadores em torno da mobilidade pública, não se tratou de um fato isolado, pois tal evento se inseriu em um contexto marcado pela insatisfação popular em um momento que o país se preparava para receber a Copa das Confederações no mesmo ano.

A crítica à democracia representativa, a negação dos partidos políticos e a ocupação dos espaços públicos sem uma pauta definida constituíram-se em elementos presentes em 2013, que foram apropriados por setores empresariais, igrejas neopentecostais, amplos segmentos das classes médias, etc.

Nesse contexto, a bandeira do combate à corrupção esteve entre as manifestações presentes nas ruas e nas praças, que ganharam força com a Operação Lava Jato, iniciada em 2014. Ainda que predominantemente houvesse um sentimento antipetista, havia, também, o sentimento antissistema e antipolítico.

Entretanto, apesar do bombardeio midiático aos governos petistas, Dilma Rousseff foi reeleita em 2014, ainda que sua permanência do Palácio do Planalto não tenha sido tolerada pelo capital e seus apóstolos. O que estava em jogo, na época, não era somente as disputas pelo orçamento do Estado, mas, também, os projetos de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, além das disputas geopolíticas no contexto mundial. Após o término das eleições, as ações de bastidores de instituições empresariais, em associação com o capital estrangeiro, financiaram manifestações em apoio ao processo de impeachment da presidenta, sem que houvesse crime para isso.

Diante de tal cenário, a grande imprensa, em conluio com o Parlamento e com o Poder Judiciário - contando com a participação do STF -, contribuíram de forma decisiva para o Golpe contra Dilma. Dessa vez, a farsa repetiu a tragédia de 1964 de forma diferente, mas com os mesmos objetivos. Os tanques militares foram substituídos e, em seu lugar, a grande imprensa difundiu uma verdadeira campanha de ódio, permeada pelo discurso moralista em defesa da família, contra a corrupção e contra o comunismo.

Dessa forma, a “democracia burguesa” e liberal foi deixada de lado, para satisfação da própria burguesia. Para o capital, era fundamental golpear Dilma, a fim de acelerar as reformas pretendidas pelos homens de negócios. Em outras palavras, diante de uma crise estrutural, o capital buscou, mais uma vez, meios de renovação para recomposição das taxas de lucro. Obviamente, isso não significa a redução do número de miseráveis no mundo, mas o aprofundamento das contradições inerentes ao capitalismo, cada vez mais destrutivo e letal aos interesses dos trabalhadores.

As reformas promovidas pelo Governo de Michel Temer (2016-2018) trouxeram, em sua bagagem, os postulados do liberalismo econômico. No entanto, antes mesmo de consumado o golpe, o então PMDB lançou uma proposta denominada “Uma ponte para o futuro”, que foi amplamente divulgada pela mídia e destinado aos representantes do capital financeiro, empresários, latifundiários e representantes do imperialismo.

Temos que viabilizar a participação mais efetiva e predominante do setor privado na construção e operação de infraestrutura, em modelos de negócio que respeitem a lógica das decisões econômicas privadas, sem intervenções que distorçam os incentivos de mercado, inclusive respeitando o realismo tarifário

Em segundo lugar, o Estado deve cooperar com o setor privado na abertura dos mercados externos, buscando com sinceridade o maior número possível de alianças ou parcerias regionais, que incluam, além da redução de tarifas, a convergência de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no Atlântico Norte. Devemos nos preparar rapidamente para uma abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo, graças ao acesso a bens de capital, tecnologia e insumos importados. O próprio agronegócio, que andou até agora com suas próprias pernas, cada vez dependerá destes acordos para expandir sua presença nos mercados do mundo (Fundação Ulysses Guimarães, 2015, p. 17).

Além do claro compromisso com a privatização, o documento demonstra que o Estado esteve compreendido como um incentivador dos negócios privados e condutor das reformas demandas pelo mercado. Nada de novo no horizonte burguês. Marx e Engels já alertaram em 1848 que “[o] poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (Marx; Engels, 1998, p. 7). Entretanto, como expressão ideológica dos interesses dominantes, o documento pemedebista apresenta-se como um programa de interesse geral da nação, escamoteando os interesses de classe que representa.

Nesta hora da verdade, em que o que está em jogo é nada menos que o futuro da nação, impõe-se a formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial, capaz, de num prazo curto, produzir todas estas decisões na sociedade e no Congresso Nacional (Fundação Ulysses Guimarães, 2015, p. 2).

A vinculação dos interesses de classe presentes no documento é evidente. Isso porque os representantes executivos do capital clamavam por reformas que possibilitassem a manutenção de suas taxas de lucro e a intensificação da exploração da força de trabalho.

Executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se à Petrobras o direito de preferência.

[...]

Realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes - Estados Unidos, União Europeia e Ásia - com ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com eles. Apoio real para que o nosso setor produtivo integre-se às cadeias globais de valor, auxiliando no aumento da produtividade e alinhando nossas normas aos novos padrões normativos que estão se formando no comércio internacional (Fundação Ulysses Guimarães, 2015, p. 18).

A leitura atenta do documento revela a preocupação constante com a iniciativa privada, com as demandas do mercado, com os investidores, com parceiros internacionais, etc. Nesse contexto, a economia brasileira não perdeu a característica de produtora de bens primários. Permanecemos, então, atrelados às relações de dependência, em que o atraso é um desdobramento do desenvolvimento do capitalismo mundial e também é condição da acumulação de capitais nos grandes centros. Em outras palavras, as relações entre centro e periferia do capitalismo constituem-se em uma unidade histórica, onde a acumulação de riquezas no primeiro acarreta a miséria no segundo.

Nesse sentido, como ficou evidenciado no período pós golpe, a classe trabalhadora pagou muito caro pelos interesses do capital, sendo que as reformas sequer minimizaram a desigualdade social e, diga-se de passagem, nem poderiam.

Fora do espectro conservador, é praticamente unânime a análise que o golpe de 2016 é contra a classe trabalhadora. Mais que isso, é uma contrarrevolução que mantém suas características históricas: é antinacional, antipopular, antidemocrático e pró-imperialista. Através do golpe garante-se a acumulação do capital monopólico internacional, com o uso crescente da repressão e da violência institucionalizada. Com o retrógrado lema do governo golpista - “ordem e progresso5” -

o Estado brasileiro articula todas as suas forças midiáticas, parlamentares, empresarial-corporativas, religiosas, avançando contra as irrisórias conquistas sociais, entre as quais a educação pública e gratuita para os trabalhadores.

Em sua ânsia por recuperar a taxa de lucro abalada pela crise

estrutural, não bastou ao capital expropriar os recursos da educação, pois também é preciso controlar ideologicamente o conteúdo, pois nenhum gérmen de “educação para além do capital” pode prosperar (Lombardi; Lima, 2018, p. 52).

Historicamente, os golpes de Estado no Brasil constituíram-se em mecanismos de contenção dos interesses populares e de extermínio de lideranças que pudessem representar a resistência ao arbítrio. É, portanto, a partir desse modus operandi do capital que podemos compreender as reformas empreendidas contra os interesses da classe trabalhadora, tais como a promulgação da Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017, que permitiu a terceirização irrestrita de trabalhadores, além da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que destruiu uma série de direitos trabalhistas.

Em outras palavras, o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff representou a ruptura da conciliação de classes, num quadro de uma profunda crise econômica, em que a burguesia e seus associados buscaram criar condições para a imposição de novas relações entre capital e trabalho, com o objetivo de garantir a intensificação da exploração da classe trabalhadora. Cumpre assinalar, então, se o Estado burguês, segundo os postulados de Lênin, deve ser considerado uma democracia para a burguesia e uma ditadura para os trabalhadores. Se assim for, o mesmo pode ser entendido no caso da educação estatal.

Assim sendo, deve ser considerada, também, a ofensiva contra a educação pública, por meio do movimento da Escola sem partido. Isso porque, por meio de uma verdadeira “guerra cultural”, os setores mais retrógrados e conservadores buscaram legitimar a necessidade de reformas e de modernização da educação.

Não se trata de uma guerra motivada tão somente por uma cruzada moral e religiosa, mas fundamentalmente por razões políticas e econômicas, engendradas por uma realidade em que o capital busca espaços de reprodução. É o que abordaremos a seguir.

A reforma do Ensino Médio: a tragédia se repete como farsa

A reforma do Ensino Médio, promulgada por meio da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, alterou a proposta presente na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), ao flexibilizar o currículo, enxugando-o de modo a esvaziar ainda mais o papel da escola na transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados.

Nessa perspectiva, as condições de materialização da educação escolar no Brasil devem ser compreendidas como um desdobramento da dinâmica do atual processo produtivo. Some-se a isso, então, o fato de que, em uma sociedade capitalista, a educação não pode objetivar a formação integral plena dos filhos da classe trabalhadora. Vejamos, por exemplo, o artigo 35, parágrafo 3º e 4º, da Lei nº 13.415:

§ 3º O ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do Ensino Médio, assegurada às comunidades indígenas, também, a utilização das respectivas línguas maternas.

§ 4º Os currículos do Ensino Médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa e poderão ofertar outras línguas estrangeiras, em caráter optativo, preferencialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de ensino).

Com a flexibilização curricular permitida pela lei, apenas as disciplinas de matemática, língua portuguesa e inglês serão obrigatórias ao longo dos três anos do Ensino Médio, totalizando 60% da carga horária. Os demais 40% serão constituídos a critério da escola, segundo as possibilidades materiais da instituição, e do aluno conforme os itinerários formativos.

Antes de prosseguirmos, convém lembrar que a Reforma do Ensino Médio foi originada da Medida Provisória (MP) nº 746/2016, constituindo-se, dessa forma, em uma ação de caráter arbitrário, não levando em consideração a voz das entidades representativas da educação: Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED); Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) e de movimentos sociais.

O autoritarismo presente nas ações do Estado pós-golpe de 2016 se fez presente também no âmbito da sociedade civil, como, por exemplo, por meio do movimento da “Escola Sem Partido”, criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, que defendeu uma série de ações restritivas ao trabalho docente e no que diz respeito ao princípio da autonomia didática. Posteriormente, o movimento passou a ser representado em Câmaras municipais, Assembleias estaduais, no Câmaras dos Deputados e no Senado Federal.

Em uma breve síntese, a proposta do Movimento da Escola Sem Partido orientava-se pelo fim da “doutrinação política e ideológica” nas escolas e da veiculação de temas que pudessem colocar em conflito com as tradições religiosas e morais da sociedade vigente. Nesse sentido, a escola deve constituir-se tão somente por meio da divulgação dos valores aceitos pela burguesia e seus apóstolos. Em nenhum momento, por exemplo, é colocada em discussão a construção de uma prática pedagógica capaz de contribuir para a elevação cultural das massas populares.

Portanto, quanto menor for o tempo de formação profissional exigido por um trabalho, menos será o custo de produção do operário e mais baixo será o preço de seu trabalho, de seu salário. Nos ramos industriais onde não se exige quase ou nenhuma aprendizagem e onde a simples existência material do operário é bastante, o custo da produção deste se limita quase que unicamente às mercadorias indispensáveis à manutenção de sua vida, à conservação de sua capacidade de trabalho (Marx, 2004, p. 89).

Considerando as contradições insolúveis do modo de produção capitalista, as contribuições de Marx permanecem válidas em diferentes aspectos. Nesse sentido, o papel do Estado cumpre as determinantes do capital, que demanda um dócil exército de reserva e trabalhadores determinados a aceitarem a “impossibilidade” de transformações na ordem social.

É importante nos atentarmos para o fato de que a crise que se arrasta por décadas coloca em risco a existência da própria civilização, além de empurrar milhões de homens e mulheres para as condições de indigência. Para preencher as lacunas resultantes de um processo de putrefação desse modelo societário comandado pelo capital, foi se consubstanciando o padrão econômico monetário e (neo)liberal, que também apresentou desdobramentos no campo educacional, sendo que o paradigma empirista-pragmático-escolanovista materializou a retomada de velhas propostas, repaginadas em termos de um ensino mais flexível e apropriado para os interesses empresariais.

A imposição total da economia de mercado se torna muito mais fácil quando o caminho é preparado por algum tipo de trauma (natural, militar, econômico), que, por assim dizer, force as pessoas a abrir mão dos ‘velhos hábitos’ e as transforme em tabulas rasas ideológicas, sobreviventes de sua própria morte simbólica, prontas para aceitar a nova ordem, já que todos os obstáculos foram eliminados. [...]. Consequentemente, [...], a tarefa central da ideologia dominante na crise atual é impor uma narrativa que atribua a culpa do desastre não ao sistema capitalista global como tal, mas a desvios secundários e contingentes (regulamentação jurídica excessivamente permissiva, corrupção das grandes instituições financeiras, etc.) (Zizek, 2011, p. 28-29).

O fato é que, diante do contexto histórico contemporâneo, o objetivo das classes dominantes é aproveitar-se da crise para aprofundar as reformas de caráter liberal, que se materializam nas restrições de direitos sociais, incluindo a educação. Pautados pelas razões do mercado, o projeto educacional em curso é fundamentalmente o mesmo que propõe cortes orçamentários, que fragiliza ainda mais os serviços essenciais, conforme havia sido determinado pela Emenda Constitucional 95/2016.

Ora, diante da conjuntura que presenciamos, as contribuições de Libâneo et al. (2012) apontam para uma tendência presente nas reformas da educação.

No que se refere à área do currículo, observa-se que, em lugar dos currículos rígidos e mínimos para um mercado de trabalho mais estável, se tornou necessário instituir currículos mais flexíveis e com eixos temáticos mais amplos e diversificados, tendo em vista um mercado de trabalho cambiante e instável, que demanda alterações permanentes na formação dos trabalhadores e consumidores. Assim, o currículo tem-se voltado mais para o desenvolvimento de competências e capacidades necessárias ao trabalhador polivalente e flexível, acarretando maior individualização dos sujeitos na responsabilização pelo sucesso ou fracasso na trajetória escolar e profissional (Libâneo et al., 2012, p. 254).

É possível perceber, a partir das contribuições de Libâneo, o esvaziamento das funções escolares, com a transmissão do conhecimento sendo colocada em segundo plano, em favor de uma formação genérica para o mercado de trabalho. Nesse contexto, o objetivo da escola é desenvolver competências e habilidades que permitam ao sujeito ser flexível diante das demandas do mercado.

Cumpre assinalar que a reforma promulgada e a BNCC apontam para a desvalorização da formação e do trabalho docente. A título de exemplo, o artigo 61, inciso IV, da Lei nº 13.415/2017, estabelece a existência de

profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado, exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36;

Ora, a letra da lei permite a valorização da experiência cotidiana em detrimento de uma sólida formação do professor. Em outras palavras, trata-se de garantir, por vias indiretas, a omissão do Estado em políticas de formação docente.

Em termos práticos, isso significa que professores serão direcionados para um novo tipo de formação, incorporando “novas competências e habilidades” para o atendimento das demandas do capital. No entanto, seriam as reformas educacionais que buscam adaptar o indivíduo, por meio dos processos formativos e de qualificação, dentro da perspectiva das competências a resposta efetiva para a crise das relações entre capital e trabalho? Nesse sentido, o que vem a ser a promessa de “formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (Lei nº 13.415, Art. 35, § 7º), senão preparar o futuro trabalhador para estar disponível a todas as mudanças e caprichos dos empregadores?

Essa perspectiva fica evidente na BNCC:

No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações. Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades (Brasil, 2018, p. 14).

É evidente, também, a partir da leitura do documento, o retorno das velhas propostas tecnicistas presentes ao longo da ditadura civil-militar, mas tal instância também apresenta um novo tecnicismo, convergente com as transformações das relações entre capital e trabalho. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que condiciona a educação escolar ao atendimento das demandas do capital.

O conceito de competência, adotado pela BNCC, marca a discussão pedagógica e social das últimas décadas e pode ser inferido no texto da LDB, especialmente quando se estabelecem as finalidades gerais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (Artigos 32 e 35).

Além disso, desde as décadas finais do século XX e ao longo deste início do século XX, o foco no desenvolvimento de competências tem orientado a maioria dos Estados e Municípios brasileiros e diferentes países na construção de seus currículos. É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCD), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol) (Brasil, 2018, p. 13).

Conforme é possível observarmos no documento, segundo seus autores, o objetivo da reforma se pauta pela melhoria de desempenho dos alunos nas avaliações padronizadas que compõem as políticas de Estado, além de preparar os futuros trabalhadores para o ingresso em um mercado instável e em constante transformação. Assim, basta alterar os currículos para que os problemas sejam resolvidos. Em nenhum momento, entretanto, se coloca a questão das condições materiais do trabalho docente.

Para responder a essa necessidade de recriação da escola, mostra--se imprescindível reconhecer que as rápidas transformações na dinâmica social contemporânea nacional e internacional, em grande parte decorrentes do desenvolvimento tecnológico, atingem diretamente as populações jovens e, portanto, suas demandas de formação. Nesse cenário cada vez mais complexo, dinâmico e fluido, as incertezas relativas às mudanças no mundo do trabalho e nas relações sociais como um todo representam um grande desafio para a formulação de políticas e propostas de organização curriculares para a Educação Básica, em geral, e para o Ensino Médio, em particular. (Brasil, 2018, p. 462).

No entanto, os discursos oficiais, empenhados em oferecer pílulas de esperanças douradas, são confrontados com as condições materiais de vida de milhões de jovens trabalhadores. É cada vez mais visível, então, o tormento de quem está empregado ou desempregado. No primeiro caso, tais indivíduos estão sujeitos às pressões intermináveis e à intensificação de sua produtividade; no segundo caso, trata-se da tensão de um futuro incerto. Ainda assim, a precarização das condições do trabalhador se espalha por todas as áreas do mundo do trabalho, incluindo o magistério. Diante disso, vale indagarmos: teriam as novas proposições curriculares presentes na BNCC a possibilidade de modificar uma realidade material totalmente desigual? Como as mudanças curriculares poderiam materializar-se sem alterar as relações de produção marcadas pelo antagonismo de classes?

Grande parte dos jovens se dá conta, ainda que de modo quase inadvertido ou espontâneo, de que a escola os formará apenas para reproduzirem uma vida social insuportável e que muito pouco diferirá daquele em que nasceram e vivem. Uma vida social que de sempre presente há apenas a carência, a guerra civil entre os pobres e a polícia. É a polícia que representa o Estado, nãos as chamadas políticas públicas, que na verdade são políticas de construção de uma hegemonia burguesa débil. Como pode o “sistema escolar” ser aderente aos interesses das classes subalternas se tal como a educação também os direitos fundamentais lhes são negados. Não pode haver escola se não há trabalho, saúde, habitação, transporte e lazer (Roio, 2016, p. 4).

Nesse aspecto, a BNCC dilui ainda mais o conhecimento com a expansão de uma carga horária diluída, com ausência da perspectiva de totalidade e de confrontação com os fundamentos de uma sociedade profundamente desigual. Apesar disso, não se trata de um projeto ingênuo. Isso porque, ciente da incapacidade do mercado em absorver todos os jovens, o Estado busca administrar o que não é administrável: as contradições do capitalismo. Assim, a educação é reformada de modo a atender de forma supérflua as demandas da juventude trabalhadora. Não por acaso, ocorrem a existência e a reprodução do discurso do “aprender a aprender” e do empreendedorismo, que implicitamente culpabiliza o pobre por seu infortúnio.

No objeto de conhecimento Qualificação do Projeto de Vida, é indicado elaborar, com os estudantes, uma pesquisa interna sobre suas expectativas profissionais, seus sonhos e desejos futuros com relação ao mundo do trabalho, e investigar, utilizando-se da pesquisa web, como está o mercado de trabalho para essas profissões e quais as possibilidades de executar os planos para se tornar um profissional da área escolhida. Sob essa ótica, sugere-se que os educandos promovam feiras das profissões ou seminários, ou em grupos formados por afinidade nos projetos, apresentando para seus colegas as características e possibilidades no mundo do trabalho, das atividades profissionais escolhidas pelos estudantes (Paraná, 2021, p. 816).

Afinal, o que significa o Projeto de Vida em uma sociedade produtora de mercadorias, o que inclui o trabalhador? O que significa “qualificação do projeto de vida” em uma sociedade de produz desemprego estrutural? Trata-se de propostas vazias de conteúdo, mas que funcionam como um dos instrumentos da burguesia na luta de classes contra os interesses dos trabalhadores. Por isso, tais instâncias negam o acesso ao conhecimento sistematizado em nome do senso comum e dos saberes cotidianos.

Isto posto, as contradições das relações capitalistas de produção também estão presentes no âmbito da escola e das práticas pedagógicas, reiterando a dualidade escolar e o esvaziamento dos conteúdos ofertados aos filhos dos trabalhadores, que se expressa também nos cortes de recursos para a manutenção escolar, nas precárias condições de trabalho dos professores, etc.

Assim, os objetivos proclamados de inserção dos jovens como cidadãos e trabalhadores na sociedade se situam em um nível genérico e sem fundamento material, o que cumpre a função de mascarar a verdadeira função da educação burguesa: legitimar a ordem do capital.

Para formar esses jovens como sujeitos críticos, criativos, autônomos e responsáveis, cabe às escolas de Ensino Médio proporcionar experiências e processos que lhes garantam as aprendizagens necessárias para a leitura da realidade, o enfrentamento dos novos desafios da contemporaneidade (sociais, econômicos e ambientais) e a tomada de decisões éticas e fundamentadas. O mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para investigação e intervenção quanto a seus aspectos políticos, sociais, produtivos, ambientais e culturais, de modo que se sintam estimulados a equacionar e resolver questões legadas pelas gerações anteriores - e que se refletem nos contextos atuais -, abrindo-se criativamente para o novo (Brasil, 2018, p. 463).

Caberia perguntar aos autores do documento o que seria a formação de “sujeitos críticos, criativos, autônomos e responsáveis” ou o que seria abrir-se “criativamente para o novo” em uma sociedade dividida em classes antagônicas? O “novo” seria a emancipação dos trabalhadores de uma ordem que condena milhões de homens, mulheres e crianças à fome ou a aceitação da ordem social e econômica como imutável?

Conforme as evidências presentes na BNCC, tudo é considerado aprendizagem, qualquer tipo de experiência prática que o jovem se defronte no seu dia a dia, no trabalho ou na vida cotidiana. É óbvio que, em última instância, a produção da existência cotidiana é um aprendizado, mas a questão é como essas experiências serão incorporadas no currículo. Além disso, o senso comum e o saber espontâneo por si só não justificam a existência da escola. A escola existe, pois, para propiciar o acesso ao conhecimento elaborado, sem o qual verifica-se o esvaziamento dos conteúdos escolares.

[...] eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular.

Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente o saber metódico (Saviani, 2003, p. 14).

No entanto, a BNCC, tal qual os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), publicados durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso, reproduz a ideia de alargamento da educação, que impõe à escola exigências mais amplas. Trata-se, agora, de formar a juventude para a aquisição de novas competências e habilidades, o que dispensa o conhecimento sistematizado. Em seu lugar, cabe inserir “saberes” que permitam os futuros trabalhadores resolver problemas do cotidiano, o trabalho em equipe e a adaptação aos novos tempos.

Considerando a sociabilidade pautada pelas relações capitalistas, em que as relações são marcadas pela apropriação de riqueza nas mãos de poucos, é importante, do ponto de vista do capital, o esvaziamento do acesso aos conteúdos necessários para a compreensão da sociedade para além das aparências imediatas. Nesse ínterim, a permanência de uma existência alienada do trabalhador requer que se continue preso ao senso comum da vida cotidiana. Tal perspectiva não é nova, mas se fez presente ao longo da história, como demonstra Ponce com o dilema de um fabricante de vidros na Inglaterra do século XIX - Mr. Geddes: “Ao meu ver, a maior parte da educação de quem tem desfrutado uma parte da classe trabalhadora nos últimos anos é prejudicial e perigosa, porque a torna demasiado independente” (Ponce, 2001, p. 150). Aqui, evidencia-se uma das grandes contradições presentes no capitalismo:

[…] o trabalhador não pode ter meio de produção, não pode deter o saber, mas, sem o saber, ele também não pode produzir, porque para transformar a matéria precisa dominar algum tipo de saber. Sim, é preciso, mas “em doses homeopáticas”, apenas aquele mínimo para poder operar a produção. É difícil fixar limite, daí por que a escola entra nesse processo contraditório: ela é reivindicada pelas massas trabalhadoras, mas as camadas dominantes relutam em expandi-la (Saviani, 1994, p. 161).

A partir dessa perspectiva, entendemos a Reforma do Ensino Médio como um projeto alinhado com as demandas do capital, o que significa, em contrapartida, a formação do trabalhador disponível e flexível para os “novos tempos”. Em outras palavras, trata-se de intensificar a exploração da força de trabalho a partir da sujeição dos trabalhadores, mas, para isso, é importante, também, reduzir o potencial crítico da educação pública.

Em síntese, a reforma não prioriza, em nenhum momento, a apropriação do conhecimento. Isso porque o esvaziamento é intencional e sistemático, como meio de empobrecimento das possiblidades de acesso ao conhecimento por parte dos trabalhadores e seus filhos. Assim, se no discurso proclamado a perspectiva “aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível” designa um ensino supostamente com ênfase na formação teórica e prática, na essência, essa perspectiva materializa os fundamentos da reprodução do capital, que nega a apropriação da ciência por todos.

Considerações finais

Diante das análises realizadas, dentro dos limites de um artigo, apontamos que a reforma do Ensino Médio Lei nº 13.415/16 e a BNCC, originadas de um processo arbitrário, implicam na desvalorização e na precarização da educação básica, o que as situa estritamente na lógica histórica, econômica e social que a implementou.

Os reformadores e os apóstolos da reforma partilham da ilusão de que a reestruturação curricular é um mecanismo de superação dos problemas educacionais e de desenvolvimento, negligenciando questões importantes, inerentes a uma sociedade periférica e dependente: a ausência de estrutura básica em diferentes estabelecimentos de ensino, as condições precárias de trabalho dos professores, salas lotadas, etc.

Considerando as incertezas de uma economia em crise constante, advoga-se o “protagonismo” dos estudantes e de suas respectivas liberdades na escolha dos “projetos de vida”, responsabilizando-os pelo sucesso ou pelo fracasso de suas escolhas. Nada de novo no front. Ao capital não interessa uma formação que oferte as armas da crítica ao proletariado.

Há inúmeras questões a serem respondidas a respeito da reforma do Ensino Médio e da BNCC, mas também é preciso estarmos atentos para não cairmos na ilusão de acreditarmos que o simples combate teórico pode, por si só, revogar a reforma.

A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão longo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem (Marx, 2013, p. 157).

Isto posto, se a educação escolar não transforma o mundo por si só, consideramos que esta deve ser espaço de todos que se identificam com a luta pela emancipação dos trabalhadores e com a superação do modo de produção capitalista. Nesse sentido, é fundamental a organização de base e a formação das novas e velhas gerações. Diante disso, há muito trabalho a fazer, se queremos arrancar os grilhões e “suas flores imaginárias” dos braços dos trabalhadores.

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Recebido: 31 de Março de 2023; Aceito: 23 de Setembro de 2023

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