INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, vêm ocorrendo mudanças no processo de formação dos profissionais da saúde, sendo estas conduzidas pelo Ministério da Saúde (MS), que assumiu o papel e a responsabilidade de orientar e formar estes profissionais para atender as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS)1.
Diante disso, em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), destaca-se que os trabalhadores de saúde precisam desenvolver competências por meio do ensino em prática, estabelecendo responsabilidade e compromisso com a sua educação e com as capacitações de futuras gerações de trabalhadores2. Igualmente, espera-se que a formação favoreça o benefício mútuo entre estudantes, profissionais de saúde, usuários e gestores, visando à articulação entre ensino, pesquisa, extensão e assistência2. Com base nessa perspectiva, surgem as Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS), que possibilitam o contato do profissional com o mundo do ensino-serviço. Assim, esperam-se mudanças no modelo tecnoassistencial mediante um processo de Educação Permanente em Saúde (EPS)3.
Os PRMS foram instituídos a partir da promulgação da Lei nº 11.129 de 2005, sendo definidos como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu, dirigidos a profissionais da área da saúde, atuando na educação em serviço4. As residências foram definidas como um programa de cooperação intersetorial que deve favorecer uma inserção qualificada de jovens profissionais no mercado de trabalho, de acordo com as áreas prioritárias do SUS5.
As Residências em Saúde devem ter duração mínima de dois anos e carga horária de 60 horas semanais destinadas às profissões da saúde, em regime de dedicação exclusiva (exceto a Medicina) e supervisão docente-assistencial5. Atualmente, as profissões a que se destinam são: Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional6.
Nesse contexto, a literatura afirma que o trabalhador que participa de um programa de residência, especificamente o residente, está sujeito a se deparar com eventos desafiadores, associados a pressões internas e externas, o que pode resultar em situações geradoras de estresse7. Tais situações podem ir desde a sobrecarga de trabalho, alta carga horária, cobranças de diversas naturezas, baixa remuneração por hora trabalhada, instabilidade de vínculo profissional até o não reconhecimento do trabalho desenvolvido no cotidiano dos serviços7.
Embora existam muitas definições e significados para o termo estresse, um dos mais utilizados considera esse fenômeno como uma “reação psicofisiológica muito complexa que tem em sua gênese a necessidade do organismo fazer face a algo que ameace sua homeostase interna”8. O estresse pode ocorrer quando o sujeito se depara com determinada situação que, de algum modo, cause irritação, medo, excitação ou até mesmo lhe traga uma imensa felicidade9.
Para entender as respostas do estresse, é preciso considerar tanto os fatores potencializadores desse, como também os fatores individuais, a forma como cada indivíduo reage às pressões cotidianas e os fatores sociais e culturais a que está exposto8. Além de ter um efeito facilitador no desenvolvimento de muitas doenças, o estresse gera desgastes, insatisfação e pode provocar sofrimento psíquico9.
É válido destacar que, em relação aos residentes em áreas profissionais da saúde, as publicações científicas são consideradas escassas10. Um fato que pode explicar o reduzido número de estudos publicados relacionados a residentes multiprofissionais é a natureza recente da criação das RMS, tendo decorrido pouco mais de uma década para a produção de evidências acerca do tema11. Assim sendo, este estudo tem como objetivo avaliar o estresse de pós-graduandos do RIMS de uma maternidade-escola, como também compreender a experiência desses residentes diante do processo de formação profissional.
METODOLOGIA
Tipo de pesquisa
Este estudo tem caráter exploratório, descritivo, fundamentado numa abordagem metodológica quanti-qualitativa de forma complementar, a fim de obter uma visão mais profunda do fenômeno estudado. Acredita-se que a metodologia quanti-qualitativa possa associar a análise estatística à investigação dos significados das relações humanas, privilegiando a melhor compreensão do tema a ser estudado e facilitando a interpretação dos dados12.
Participantes da pesquisa
Participaram do estudo os residentes multiprofissionais matriculados no primeiro e segundo ano do Programa de Terapia Intensiva Neonatal, distribuídos de forma equivalente, nas seguintes áreas de formação: Enfermagem (3), Farmácia (4), Fisioterapia (4), Fonoaudiologia (4), Nutrição (4), Serviço Social (4) e Psicologia (3), totalizando 26 residentes.
O estudo foi desenvolvido na Maternidade Escola Januário Cicco, Unidade Suplementar da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no período de maio a outubro de 2018. A instituição é referência no Estado do Rio Grande do Norte (RN) nas áreas de Alto Risco Gestacional e Saúde da Mulher, estando suas ações inseridas na média e alta complexidade.
Instrumentos de coleta de dados
Para cumprimento dos objetivos propostos, os residentes responderam aos seguintes instrumentos de coleta de dados:
Ficha de Identificação: Para caracterizar a população do estudo, foi utilizada uma ficha de identificação, que incluiu questões sobre gênero, idade, naturalidade, estado civil, número de filhos, religião, profissão, renda mensal familiar, escolaridade, tempo de trabalho anterior, ano de entrada no PRMS e processos seletivos anteriores, carga horária de trabalho, como também o tempo no programa de residência atual.
Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp (ISSL): Para avaliar o estresse, foi utilizado esse instrumento, validado em 1994 por Lipp e Guevara e que tem sido empregado em dezenas de pesquisas e trabalhos clínicos na área do estresse. Essa ferramenta avalia os sintomas físicos e psicológicos experimentados nas últimas 24 horas, na última semana e no último mês, permitindo estabelecer um diagnóstico preciso da ocorrência do estresse, fase em que se encontra (alerta, resistência, quase exaustão e exaustão) e se a sintomatologia é predominante nas áreas física ou psicológica8.
Questionário com questões abertas: No intuito de compreender a experiência, comportamentos e atividades dos residentes, os pesquisadores elaboraram questões de natureza desencadeadora, de esclarecimento e de aprofundamento. O instrumento continha as seguintes questões norteadoras: “comente sobre a sua rotina na residência multiprofissional”; “comente sobre situações que lhe trazem satisfação profissional”; “comente sobre situações que lhe causam insatisfação profissional”; “o que significa para você ser residente multiprofissional em saúde?”.
Para explorar os resultados, foi realizada uma análise descritiva das informações obtidas. A tabulação e a análise das frequências foram obtidas por meio do programa PSPP versão 1.0.1 desenvolvido pelo projeto GNU (Gnuis Not Unix).
No que diz respeito ao tratamento dos dados alcançados pelo Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp (ISSL), seguiram-se, também, as instruções contidas em seu manual. Os dados obtidos foram apresentados em tabelas e analisados por meio de percentuais de acordo com a correção e interpretação que o instrumento oferece, o que permitiu agrupar os residentes segundo a presença de estresse, a fase deste e a sintomatologia presente.
Na abordagem qualitativa, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo de Bardin, que obedeceu às seguintes fases: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação13.
A aplicação de todos os instrumentos foi precedida de um esclarecimento junto ao voluntário sobre a importância de seus resultados e os procedimentos para correto preenchimento, deixando espaço para esclarecer eventuais dúvidas. O processo se deu por autopreenchimento, sendo os instrumentos devolvidos ao pesquisador em momento posterior para consolidação dos dados e análise.
O anonimato dos participantes foi mantido durante todo o estudo, e para isso foram utilizados codinomes fictícios com nome de pedras para identificá-los na discussão dos resultados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (processo no 3934413.8.0000.5346), e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterizando-se a população estudada, percebeu-se que, dos 26 residentes pesquisados, a maioria pertence ao gênero feminino (80,7%). Esses dados corroboram outro estudo, o qual mostra que em cursos de graduação da área da saúde há prevalência de mulheres14. A maioria dos participantes (61,55%) tem idade superior a 25 anos; grande parte está solteira (76, 92%); 62% afirmam ser católicos, enquanto 7,69% dizem não ter religião. Sobre a formação profissional, os que disseram ter especialização correspondem a 7,69%; e mestrado, 3,85%. Quanto ao tempo cursando a residência, 50% estão concluindo o primeiro ano (R1) e 50% estão finalizando o segundo ano (R2). No que diz respeito ao número de processos seletivos realizados para ingressar no PRMS, 50% tentaram duas vezes; 38,46%, uma vez; e 11,54% tentaram três vezes. O tempo de conclusão da graduação variou entre 10 meses e 11 anos.
Quanto à presença de estresse na amostra estudada, de acordo com o ISSL, observou-se que 96,2% apresentam estresse; destes, 72% estão na fase de resistência e 28% estão na fase de quase exaustão. É preciso destacar, em números absolutos, que, dos 26 participantes do estudo, 25 apresentaram estresse. Destes, 12 estavam no primeiro ano de residência e 13 no segundo, conforme se observa na Tabela 1.
R1 % (n = 13) | R2 % (n = 13) | ||
---|---|---|---|
Presença de estresse | Sim | 92,3 | 100 |
Não | 7,7 | 0 |
Fonte: Autores
R1 = residente do primeiro ano; R2 = residente do segundo ano.
Nesse contexto, um estudo sobre estresse e qualidade de vida em residentes multiprofissionais em saúde verificou que 77,8% dos pesquisados apresentaram estresse10. Outro estudo também realizado com residentes multiprofissionais em saúde verificou a ocorrência de síndrome de burnout, mostrando que 51,35% dos pesquisados apresentavam baixo estresse e 48,65% alto estresse15. Esses estudos corroboram os dados encontrados nesta pesquisa.
No tocante à fase do estresse e à predominância dos sintomas, os resultados indicaram que a fase predominante nos dois grupos (R1 e R2) foi a de “resistência”, seguida pela “quase exaustão”, conforme a Tabela 2.
R1 % (n = 12) | R2 % (n = 13) | ||
---|---|---|---|
Fase do estresse | Alerta | 0 | 0 |
Resistência | 66,6 | 76,9 | |
Quase exaustão | 23,0 | ||
0 | |||
33,3 | 0 | ||
Exaustão | 0 | ||
Sintomas predominantes | Físicos | 8,3 | 23,2 61,5 15,3 |
Psicológicos | 75,0 | ||
Físicos e psicológicos | 16,6 |
Fonte: Autores.
R1= residente do primeiro ano; R2 = residente do segundo ano.
As RMS apresentam um contexto peculiar em função dos processos de trabalho e de ensino-aprendizagem que podem ser avaliados como estressores16. A presença de estresse nos residentes da pesquisa se encontra na fase de resistência seguida da quase exaustão, o que pode sinalizar um nível importante de tensão. Nessa fase, é fácil imaginar os prejuízos que esses residentes podem apresentar, uma vez que a demanda (prazos e exigências) durante o processo de formação é bastante significativa e o organismo está debilitado para atendê-la17. É possível que os residentes que se encontram nessa fase evoluam para uma fase mais avançada do estresse, podendo apresentar problemas de saúde física ou psicológica17. Não foi identificada a fase de alerta e exaustão em nenhum participante.
Um número significante de residentes se encontra na fase de quase exaustão, o que constitui um indicativo de evolução do estresse em relação à fase anterior, ou seja, a fase de resistência. Os resultados sugerem que esses sujeitos já não estão conseguindo resistir às tensões e restabelecer o equilíbrio interior8. Desse modo, parece ocorrer alternância entre momentos em que os residentes conseguem resistir às pressões e tensões do cotidiano e se sentem razoavelmente bem, com outros momentos de cansaço e ansiedade16. Além do aumento de ansiedade e esgotamento das energias adaptativas, o residente que se encontra em nível de quase exaustão pode apresentar sintomas físicos e psicológicos na mesma proporção8.
Estudos mostram que o processo de estresse evolui para quase exaustão quando as defesas do organismo começam a ceder e ele não consegue resistir às tensões e restabelecer a homeostase interior do organismo8,16.
Nesse contexto, é imprescindível pensar acerca da interferência dessa situação na vida pessoal e profissional dos residentes multiprofissionais, uma vez que o estresse, além da capacidade adaptativa do sujeito, pode também influenciar os diversos aspectos de sua vida17.
Em relação aos sintomas de estresse, houve predominância dos psicológicos sobre os físicos, 68% e 16%, respectivamente. Dos sintomas psicológicos mais frequentes, destacaram-se cansaço excessivo, vontade de fugir de tudo, angústia/ansiedade diária, pensar constantemente em um só assunto, dúvida quanto a si próprio, entre outros. Esses dados podem revelar insatisfação em relação a aspectos da vida e sugerem sofrimento psíquico intenso10. Assim, a fragilidade psicológica do profissional de saúde influencia o exercício do cuidado e demonstra a necessidade de intervenção na saúde mental do trabalhador18.
Já em relação aos sintomas físicos mais frequentes, destacaram-se sensação de desgaste físico, cansaço constante, problemas com memória, náuseas e tontura/sensação de estar flutuando. É notório que a predominância de sintomas na área física ou psicológica se refere à área de maior vulnerabilidade do indivíduo, tornando-se necessária a criação de intervenções nesse âmbito8.
De acordo com os dados encontrados, tornam-se indispensáveis pesquisas que investiguem as fontes de estresse desses profissionais em formação, com o objetivo de propor mudanças de forma a contribuir para a redução dos índices de estresse. Os dados deste estudo reforçam a importância de intervenções voltadas ao acolhimento e cuidado desses residentes, propiciando o desenvolvimento de uma prática mais humanizada.
A Tabela 3 apresenta os sintomas físicos e psicológicos mais frequentemente citados pelos pesquisados (R1 e R2). Destaca-se que sensação de desgaste físico constante e cansaço excessivo foram os dois sintomas mais frequentes, presentes em 100% da amostra, seguidos por cansaço constante, com 96%.
(n) | (%) | |
---|---|---|
Sensação de desgaste físico constante (SF) | 26 | 100 |
Cansaço excessivo (SF) | 26 | 100 |
Cansaço constante (SF) | 24 | 96 |
Tensão muscular (SF) | 20 | 80 |
Problemas com memória (SF) | 20 | 80 |
Pensar constantemente em um só assunto (SP) | 19 | 76 |
Vontade de fugir de tudo (SP) | 18 | 72 |
Dúvida quanto a si próprio (SP) | 17 | 68 |
Angústia/ansiedade diária (SP) | 17 | 68 |
Sensibilidade emotiva excessiva (SP) | 16 | 64 |
Fonte: Autores.
SF = sintoma físico; SP = sintoma psicológico.
COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA DOS RESIDENTES MULTIPROFISSIONAIS DURANTE O PROCESSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL
No tocante à categorização dos dados qualitativos, a Tabela 4 apresenta o processo de categorização, definido a posteriori, de acordo com a técnica de análise de conteúdo de Bardin13, na qual emergiram 3 categorias, 7 subcategorias e 103 unidades de análises. As subcategorias foram analisadas separadamente e articuladas sob um olhar teórico, o que propiciou melhor compreensão das vivências.
Categorias | Subcategorias | Nº de unidades de análise |
---|---|---|
Desafios e entraves do cotidiano | Sobrecarga | 17 |
Escassez de articulação entre teoria e prática | 13 | |
Fatores gratificantes vivenciados durante a residência | Trabalho interdisciplinar | 9 |
Reconhecimento por parte do usuário | 13 | |
Fatores que ocasionam insatisfação durante a residência | Dificuldade de reconhecimento por parte da equipe | 12 |
Preceptoria | 19 | |
Mão de obra barata | 20 |
Fonte: Autores.
Desafios e entraves do cotidiano
Em relação aos desafios e entraves do cotidiano, a análise das categorias permitiu identificar os aspectos que determinam essa vivência: sobrecarga no processo de formação e escassez de articulação entre teoria e prática.
Sobrecarga
Percebe-se que as expressões de sobrecarga surgem de forma significativa, de modo que os residentes se sentem esgotados, imersos numa rotina exaustiva, conforme evidenciam as falas:
Me sinto inserido num processo de intensificação de trabalho, sofrendo rebatimentos de acúmulo de atividades e grande aumento de jornada de trabalho (mais-valia absoluta) [...]. (Topázio, R1)
[...] ao longo do dia seguimos a rotina de atividades práticas e alguns períodos teóricos semanalmente. Ao fim do dia, precisamos seguir atividades da residência em casa, porque a carga horária destinada às atividades teóricas é insuficiente. (Safira, R2)
Os PRMS no Brasil possuem carga horária de 60 horas semanais. Esta é uma das principais características desta modalidade, que é acompanhada por queixas acerca do número exacerbado de horas trabalhadas durante os dois anos de duração da residência18.
Desse modo, a sensação de desgaste e sobrecarga de atividades é um elemento que pode gerar sofrimento no processo de formação na residência multiprofissional, uma vez que os residentes não conseguem realizar todas as atribuições que lhes são conferidas18. Esses dados apontam que os limites postos pela extensa carga horária podem causar descontentamento entre os residentes.
É indiscutível a importância do trabalho na vida das pessoas, uma vez que se entende que para obter satisfação no trabalho é preciso que haja flexibilidade e que o trabalhador possa utilizar suas aptidões psicomotoras, psicossensoriais e psíquicas19. Portanto, é necessário que o trabalho proporcione um planejamento flexível e que as tarefas individuais sejam realizadas de acordo com as funções de cada trabalhador, para que assim a sobrecarga possa ser minimizada20.
Escassez de articulação entre teoria e prática
Dos vários desafios enfrentados no contexto da RMS, um deles está relacionado à formação de profissionais que possam articular teoria e prática, tendo em vista uma visão crítica e responsável sobre a realidade nos serviços de saúde e o desenvolvimento de novos saberes22.
De acordo com as falas dos residentes, foi percebido que eles se referem às atividades teóricas do processo formativo como restritas e pouco produtivas:
A maioria das nossas aulas não ajuda muito na nossa prática. Existem aulas muito boas dadas pelos professores da universidade, mas também existem outras não tão boas que são dadas por profissionais da própria instituição [...]. (Rubelita, R1)
[...] teoricamente somos profissionais em formação para atuar no SUS, vivenciamos o ensino em serviço. Porém, na prática, vivenciamos a negligência com os módulos teóricos [...]. (Jade, R2)
Esses apontamentos vão ao encontro de uma pesquisa realizada com residentes multiprofissionais que identificou um distanciamento significativo entre a teoria ministrada nas disciplinas e a realidade vivenciada na prática23. No que diz respeito à formação dos residentes, é esperado que eles possam refletir acerca de sua prática profissional, como também atuar de forma ativa na resolução de problemas nos diferentes contextos do SUS23.
No processo formativo dos residentes existe o trabalho que chamamos de prescrito, que é definido e norteado por teorias que embasam os PRMS23. Assim, na rotina de formação, os residentes vão de encontro ao trabalho real, para o qual não estão sendo capacitados18. Para diferenciar o trabalho prescrito do real, dizemos que o primeiro é aquele que precisa ser feito pelos trabalhadores segundo normas e definições exatas, em outras palavras, é o trabalho a se cumprir; o trabalho real seria justamente o que foge à prescrição, aquele que é inesperado24.
Nesse sentido, estabelece-se uma dicotomia entre a teoria e a prática no processo de formação, ou seja, um “abismo” entre o que os PRMS sugerem como ideal e o que de fato acontece nos cenários práticos21.
Sendo assim, é preciso que a formação no contexto da residência esteja articulada com as demandas inerentes à prática, buscando estratégias para que as atividades teóricas estejam em consonância com a realidade que o residente vivencia, gerando maior investimento na integração ensino-serviço.
Fatores gratificantes vivenciados durante a residência
Trabalho interdisciplinar
Por meio das falas dos residentes, foi possível discutir sobre as vivências de satisfação que perpassam o processo de formação. Entre elas, destaca-se o trabalho interdisciplinar como forma de crescimento e desenvolvimento profissional.
A formação dos residentes também ocorre por meio da atuação em equipe interdisciplinar, com ênfase na integração entre as profissões e no compartilhamento de saberes18.
[...] um dos momentos muito bons durante a nossa rotina é quando conseguimos fazer um trabalho com a equipe interdisciplinar. Não é sempre que conseguimos, mas, quando acontece, conseguimos adquirir novos conhecimentos e contribuímos para a resolução das situações e problemas do setor de trabalho. (Almandine, R1)
[...] fico feliz quando sei que o trabalho em equipe é valorizado. Os trabalhos realizados com a equipe interdisciplinar são de qualidade e contribuem para quem precisa. (Fluorita, R1)
Pôde-se perceber satisfação dos residentes no trabalho em equipe, o que contribui para a integralidade do cuidado em saúde. Desse modo, a interdisciplinaridade remete a uma intensa troca entre profissionais que buscam a integração das disciplinas em um mesmo projeto25. Os residentes multiprofissionais de saúde precisam desenvolver ações interdisciplinares e intersetoriais para a melhoria da qualidade de vida da população com o objetivo de potencializar a integração ensino-serviço de forma crítica e reflexiva25.
As ações em equipe, quando de fato consolidadas nesses pressupostos, oferecem aos residentes fatores gratificantes no cotidiano de trabalho, uma vez que a satisfação profissional advém do esforço investido para os resultados do trabalho26.
Reconhecimento por parte do usuário
A realização pessoal e profissional provém do reconhecimento do esforço que é investido na realização do trabalho26. Nesse sentido, percebe-se que os residentes se sentem gratificados quando o usuário reconhece seu compromisso com a assistência, como observado nos recortes dos seguintes discursos:
Me dá satisfação a oportunidade de poder ajudar meus pacientes e saber que meu trabalho e dedicação são reconhecidos por eles. São meus pacientes que me fazem continuar. (Jaspe, R2)
É gratificante saber que eu pude contribuir de alguma forma na vida dessas pessoas. Os pacientes são os que mais valorizam nosso trabalho. (Berilo, R2)
O reconhecimento no trabalho é de primordial importância na saúde e no equilíbrio psíquico de qualquer trabalhador, uma vez que representa um elemento essencial na relação sujeito-trabalho, ocasionando grande investimento nas relações humanas e na construção da identidade pessoal27. Os residentes sentem que seu trabalho é reconhecido quando os pacientes verbalizam agradecimento pela assistência prestada e reconhecem seu papel como profissional de saúde. Quando os pacientes demonstram satisfação, os residentes constatam que as ações desenvolvidas no programa trazem benefícios por meio da assistência qualificada28.
Pesquisas mostram a importância de os profissionais de saúde conquistarem a confiança dos usuários e o reconhecimento do seu papel profissional. Quando isso acontece, o vínculo estabelecido é consequência da relação de proximidade do profissional com o usuário, estimulando sua autonomia e participação no processo de cuidado, gerando uma relação de respeito e valorização das individualidades29,30.
Fatores que ocasionam insatisfação durante a residência
Dificuldade de reconhecimento por parte da equipe
Nesta subcategoria, os residentes referem sentimentos de insatisfação pela dificuldade de reconhecimento do trabalho no cotidiano da formação, o que provoca angústia. Assim, as falas chamam a atenção para a relação entre o não reconhecimento e os processos de sofrimento e adoecimento:
O residente é tratado como um estagiário e muitas vezes não tem voz para se colocar. E existem muitos “profissionais” do quadro da instituição que fazem questão de deixar isso bem claro, com frases do tipo: o residente é a primeira pessoa depois de ninguém. (Ágata, R1)
Quando há reconhecimento do trabalho, há também a possibilidade de um processo de construção de um significado do trabalho na esfera psíquica do trabalhador. Sem esse processo, uma mobilização conjunta de sentimentos que aguçam a inteligência e a criatividade pode ser prejudicada19,20.
Nesse contexto, políticas públicas relacionadas aos PRMS precisam ser repensadas com o objetivo de incentivar a discussão e o planejamento da inclusão de profissionais para permanecerem colaborando no âmbito do SUS31. Pesquisas que discutem os fatores que geram satisfação no trabalho em residentes multiprofissionais, apontam o reconhecimento do trabalho realizado como um dos aspectos positivos e de satisfação durante o processo de formação32.
O reconhecimento nas situações de trabalho é essencial para a manutenção do equilíbrio psíquico do trabalhador, uma vez que, quando a dinâmica do reconhecimento não acontece, o trabalhador se vê obrigado a se engajar em estratégias defensivas na tentativa de evitar a doença mental19. Esses apontamentos demonstram a necessidade de inovação das propostas pedagógicas nas residências, pois o reconhecimento do trabalho é primordial nos processos de construção identitária nesse contexto6.
Preceptoria
Na RMS, o preceptor é considerado um profissional da mesma área do residente, sendo vinculado à instituição formadora ou executora, com formação mínima de especialista. Sua função é supervisionar diretamente as atividades práticas realizadas pelos residentes nos serviços de saúde onde se desenvolve o programa33.
No que se refere à preceptoria, os residentes relatam que, muitas vezes, o preceptor não apresenta o preparo necessário para atuar no programa, o que pode dificultar o processo de ensino-aprendizagem. Os discursos também sugerem a existência de relações conflituosas entre preceptor e residente, o que parece ser uma situação angustiante, como mostram as verbalizações:
[...] acredito que a maioria dos preceptores nem sabe qual é a verdadeira proposta da residência. Muitos deles já foram residentes, mas é como se tivessem esquecido disso. Eles vão fazendo do jeito deles e pronto. (Zafira, R2)
[...] me causa angústia e insatisfação quando percebo que o meu trabalho é criticado pela própria preceptoria que deveria me ajudar. A relação vai se desgastando e o diálogo é quase inexistente. (Turquesa, R2)
Nesse contexto, percebe-se que os preceptores podem não receber a formação didático-pedagógica necessária ao desenvolvimento das atividades34. A capacitação dos preceptores é muito importante na residência, uma vez que, ao mesmo tempo em que possibilita o ensino dos residentes multiprofissionais de saúde, também pode auxiliar na reflexão sobre as questões de saúde no contexto dos serviços em que se está inserido34.
É importante salientar que, sem uma preceptoria adequada, os residentes podem se sentir desamparados em sua prática, o que provoca sentimentos de desilusão quanto ao trabalho na saúde pública35.
É primordial que a identificação do preceptor com a função de ensinar seja um ponto relevante para tais práticas, sendo um dos elementos mais importantes para um ensino em serviço efetivo36. No mais, espera-se que a relação entre o preceptor e o discente seja horizontal, que o ato de pensar e de construir hipóteses seja estimulado e que o trabalho coletivo seja de fato concretizado36.
Mão de obra barata
Quando se fala na formação em serviço com um horário de trabalho de 60 horas semanais, a residência traz consigo grandes polêmicas que são discutidas em colegiados e fóruns nacionais das RMS36. Levando em consideração essa discussão, é possível concluir que é significativa a incidência de uma vulnerabilidade em maior ou menor grau inerente à própria condição de ser residente37, conforme o seguinte recorte:
[...] há uma supercobrança em torno da execução dos cenários práticos, em uma clara exploração da mão de obra barata de residentes que estão submetidos a uma carga horária de 60 horas semanais. (Pérola, R2)
De acordo com a fala apresentada, é necessário pensarmos acerca da substituição de profissionais por residentes nos cenários práticos, o que pode ser um reflexo da falta de debates sobre a proposta dos PRMS.
O processo de integração entre residentes e profissionais nos serviços em que se encontram inseridos apresenta vários conflitos, uma vez que não é claro o papel do residente nos cenários de práticas33. De um lado, o residente é visto como um “estudante” em processo de formação; por outro, é visto como “mão de obra barata” e “precarizada” graças à insuficiente quantidade de profissionais junto ao SUS33.
[...] devido ao cansaço e aos adoecimentos que vão surgindo, a qualidade da residência é questionável: até que ponto a residência tem cumprido seu papel de formadora de profissionais para o SUS? Ou se tornou uma forma mascarada de exploração para as instituições se eximirem de contratar pessoal? [...]. (Jade, R2)
Os residentes multiprofissionais não são profissionais com vínculos efetivos junto aos serviços de saúde. Os problemas encontrados no contexto da prática influenciam diretamente o processo de formação, a exemplo da quantidade insuficiente de preceptoria de campo, seguida da utilização do residente em substituição a uma categoria profissional insuficiente no serviço38.
Portanto, 60 horas semanais refletem uma intensificação do trabalho e seguem o caminho contrário às lutas trabalhistas no tocante à carga horária de 30 horas semanais33. Essa é uma discussão extremamente necessária nos espaços organizativos e instâncias legais dos Programas de Residência33.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo mostrou que a maioria dos residentes multiprofissionais pesquisados apresentou sintomas de estresse em nível considerado não saudável. Os sintomas psicológicos predominaram, tais como cansaço excessivo, vontade de fugir de tudo, angústia/ansiedade diária e dúvida quanto a si próprio, o que pode sinalizar sofrimento psíquico e problemas na saúde como um todo.
No que diz respeito aos desafios e entraves do cotidiano do PRMS, percebeu-se que o processo formativo apresenta problemáticas significativas, o que gera impactos negativos no cotidiano de prática dos residentes. A sobrecarga e a escassez de articulação entre teoria e prática parecem ser fatores que causam experiências negativas durante o cotidiano do ensino-serviço. Todavia, o trabalho interdisciplinar e o reconhecimento profissional por parte do usuário fazem com que os residentes alcancem experiências positivas e gratificantes.
Quanto aos fatores que causavam insatisfação, a dificuldade de reconhecimento por parte da equipe acerca do trabalho que os residentes desempenham, surge como um fator potencializador de sofrimento psíquico. Os residentes citam o papel da preceptoria como mais um ponto que lhes causam angústia, uma vez que o despreparo de alguns preceptores para lidar com demandas gerais do programa dificulta a construção do conhecimento de práticas em saúde. A mão de obra barata também é apontada como um fator que traz insatisfação, gerando conflitos no âmbito pessoal e profissional.
É necessário considerar as limitações deste estudo, desde a impossibilidade de cruzar os dados e compará-los de forma mais específica, até a dificuldade em comparar os resultados desta pesquisa com aqueles disponíveis na literatura, devido à escassez de produções sobre essa temática no país.
Assim, o estudo aqui apresentado não cessa a investigação acerca do tema, que é desafiador e complexo. Novos estudos são indispensáveis para que políticas de mudança sejam elaboradas e implantadas a fim de aprimorar os projetos pedagógicos dos PRMS e colaborar com a saúde física e psicológica dos residentes. Portanto, espera-se que as RMS se aproximem de seus reais objetivos formadores de habilidades e competências de um profissional resolutivo voltado para o SUS.