CONTEXTUALIZAÇÃO DO RACISMO NO BRASIL
No Brasil, a história da população negra começa a ser escrita com a escravização, em que europeus sequestraram milhões de pessoas africanas e impuseram a elas um processo de desumanização, objetificação e comercialização por mais de 300 anos. Os povos nativos que aqui existiam desde antes do início da colonização também não eram considerados humanos e foram vítimas de escravização e genocídio.
A escravização negra no Brasil é um período marcado pela violência brutal com que essa população foi tratada. Homens e mulheres negros eram rotineiramente violados e usados a serviço do prazer e do interesse de uma hegemonia social branca. As mulheres negras eram vítimas de sucessivos estupros, e retiravam-se crianças negras do seio familiar para que pudessem ser vendidas como pessoas escravizadas ou para o entretenimento de famílias brancas, tal como animais de estimação. Os castigos impostos às pessoas escravizadas não tinham o objetivo de ferir apenas, mas de humilhá-las e reforçar a negação de humanidade e cidadania ao indivíduo castigado e aos demais1).
A partir da abolição da escravatura em 1888 e da proclamação da República em 1889, os negros deixaram a condição de escravizados e passaram a vivenciar a marginalização social, tendo sido negado seu direito à cidadania. O caminho pós abolição é permeado por ações e políticas públicas estatais de manutenção dos negros na condição de sub-humanos, sem acesso a terras, educação ou trabalho. Com a República passou-se a contar também com o aparato do sistema punitivista prisional para modo a torná-los, mesmo que livres da escravização, presos a uma estrutura social que os condiciona à marginalidade. Nesse cenário, as políticas imigratórias, que privilegiavam a vinda de europeus para o país, com garantia de acesso a terras e trabalho, tinha o objetivo de embranquecer a população, algo que era visto, no século XX, como caminho para o desenvolvimento do país, pois os negros, considerados uma raça inferior, dificultariam a construção de uma nação brasileira civilizada e moderna2.
Sem políticas de integração, a população negra brasileira não teve acesso a trabalho, saúde ou educação. Assim, a abolição produziu no país uma enorme massa de desempregados, dispostos a trabalhar em qualquer função que oferecesse um mínimo de renda para a própria subsistência e de suas famílias. A falta de acesso a condições de moradia e emprego, que impulsionou uma grande quantidade de pessoas negras a migrar para os centros urbanos em busca de renda, levou muitas pessoas a viver em casas sem estrutura ou saneamento básico, chamadas de cortiços. Das senzalas para os cortiços e dos cortiços para as favelas - quando começaram a incomodar os centros urbanos pelo cheiro, pela produção de doenças e pela arquitetura sem padrões europeus, os cortiços foram implodidos, deixando novamente a população negra sem opções de moradia. Nessa seara, com os escombros dos cortiços, a população negra migrou para as encostas de morros, áreas que não eram economicamente interessantes, e fez desses espaços sua moradia. A favela da Providência, considerada a primeira favela do Rio de Janeiro, origina-se dessa maneira e recebe o nome de favela após o retorno dos militares da Guerra de Canudos3.
Não é possível pensar os espaços urbanos brasileiros sem considerar o racismo que atravessa a construção das cidades. Favelas e periferias não recebem investimentos públicos para garantia de direitos básicos, pois são espaços ocupados até hoje majoritariamente por pessoas negras. Não é possível pensar as favelas sem conhecer a trajetória de marginalização daqueles que as habitam ou sem reconhecer que a ideia social desse espaço como lugar perigoso, sujo e produtor de delinquência tem um importante viés racista2.
O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking dos países com as maiores concentrações de renda4. O desemprego, fruto de uma estrutura racista, é essencial para manter as desigualdades econômicas e hierarquizações sociais. Quanto mais pessoas desempregadas e sem condições mínimas de sobrevivência, maiores as chances de manter empregos com alta exploração e baixa valorização e remuneração. Os dados da pesquisa Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, demonstram que as pessoas que ocupam empregos informais, com condições precárias e sem direitos trabalhistas, são, na grande maioria, negras, que também lideram o percentual de pessoas desempregadas5.
Em 1933, o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre6 lançou o livro Casa-grande & senzala, no qual afirma que a sociedade brasileira se construiu a partir da miscigenação de “senhores bons e escravos submissos”. Trata-se de uma forma de romantizar essa violenta e desigual relação de poder e dar base para o que se convencionou chamar de democracia racial brasileira. Segundo esta, o negro brasileiro é condicionado a marginalidade e submissão não pelo racismo estrutural, mas por sua incompetência e inabilidade de ascender, e, em contrapartida, a branquitude se mantém em condição social de poder devido a mérito próprio como sua intelectualidade e capacidade. Até hoje o Brasil vive sob esse mito, que silencia as opressões raciais e valoriza o conceito de meritocracia1),(5),(6.
Ao abordar a população negra no Brasil, usamos o conceito de raça e não de etnia por conta do apagamento das distintas etnias africanas ocorrido durante o período da escravização. No sequestro das pessoas negras para o Brasil, os europeus deliberadamente optaram por mesclar indivíduos de grupos étnicos distintos, com língua, códigos e símbolos culturais diferentes, com o propósito de apagar as bagagens culturais deles e dificultar a mobilização e reivindicação contra o regime escravocrata. Na chegada ao Brasil, cada pessoa negra escravizada recebia um novo nome cristão, o que representa a imposição de uma nova religião, e era socializada em grupos de origens étnicas heterogêneas1),(2),(7.
Raça, tal como se compreende hoje, é uma construção social. As teorias raciais vão surgir com o movimento filosófico do Iluminismo e com o avanço da ciência moderna, incluindo a medicina ocidental. Cabia a essas teorias justificar os processos de colonização e escravização ainda vigentes e explicar os motivos pelos quais os ideais defendidos por iluministas burgueses europeus (liberdade, igualdade, fraternidade) não deveriam ser aplicados a todos os seres humanos, mas apenas a grupos (hegemônicos) específicos. Teorias de que o cérebro da população negra é menor ou menos desenvolvido, de que é intelectualmente menos capaz ou de que tende a ter comportamentos mais agressivos ou próximos ao selvagem foram reproduzidas como verdades científicas por muitas décadas e até hoje tem seguidores na instituição saúde. As teorias raciais são formas de subjugar, inferiorizar e desumanizar os grupos raciais considerados não hegemônicos ao associá-los com selvagens, não civilizados, que precisariam do apoio de seres humanos mais desenvolvidos para promover o processo civilizatório. O mapeamento do genoma humano em 2003 foi um marco importante para que as teorias raciais perdessem força dentro das discussões biológicas e que suas origens sociais nas relações de poder pudessem ser finalmente reconhecidas1),(7.
A medicina ocidental moderna foi e é um forte instrumento mantenedor do racismo, primeiro por meio de teorias raciais biológicas infundadas, que foram importantes alicerces para a construção da medicina no Brasil e justificaram o uso de corpos negros para treinamentos experimentais e avanços da biomedicina. Hoje, por meio do silenciamento ou não reconhecimento das influências do racismo tanto no processo de saúde e adoecimento da população negra como na forma de oferta de cuidado em saúde para esta população, a hierarquização racial é mantida e reproduzida, como afirma a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)8.
Um equívoco comum que se reproduz no campo da saúde é pensar a saúde da população negra no âmbito apenas de uma faceta da diversidade cultural. É preciso reconhecer que falar em cultura negra é falar em cultura brasileira e que os processos de marginalização e subjugação dos grupos raciais considerados não hegemônicos brasileiros fez e faz parte da construção da estrutura e da subjetividade da identidade nacional que tenta apagar, por meio da miscigenação romantizada e do embranquecimento, as perspectivas e vivências de quem foi e é oprimido socialmente numa sociedade racializada. Não cabe aqui uma discussão sobre competência cultural nem tampouco transcultural, mas o reconhecimento de que esse processo de apagamento foi e é provocado tanto pelo racismo internalizado que nos constitui como sujeitos sociais como pelo racismo estrutural que dá contornos de exótico, ao que é essencialmente constituinte da população brasileira. Esse reconhecimento é essencial para uma postura antirracista e para uma abordagem em prol de equidade racial no lugar de mais uma vez colocar o olhar eurocêntrico e étnico branco, como padrão.
VULNERABILIDADE E INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA NA PANDEMIA
Desde fevereiro de 2017, a Portaria n° 344 do Ministério da Saúde (MS) instituiu a obrigatoriedade dos dados referentes à raça/cor nos sistemas de informações utilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), respeitando a autodeclaração do usuário e os padrões do IBGE9. A ação visa traçar o perfil epidemiológico da população e visibilizar impactos do racismo no processo de adoecimento.
Com o reconhecimento oficial da transmissão comunitária da “doença causada pelo SARS-CoV-2” (Covid-19) no Brasil, em março de 2020, o país viu crescer de maneira acelerada o número de casos e óbitos em decorrência da pandemia. Mesmo em vigência da Portaria MS nº 344, a plataforma criada para notificação dos casos de síndrome gripal inicialmente não continha o quesito raça-cor. Ademais, os oito primeiros Boletins Epidemiológicos Especiais (BEE): Doença pelo Coronavírus COVID-19, publicados pelo MS, não apresentaram dados referentes a notificação de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) ou óbitos confirmados pela Covid-19 desagregados por raça-cor.
Somente com grande mobilização social de movimentos negros organizados, inclusive dentros das sociedades científicas, como no Grupo de Trabalho (GT) de Saùde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e o GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que exigiram a inclusão do quesito e a publicização de dados racializados, o MS passou a cumprir tal obrigação10.
A SBMFC, por meio do GT de Saúde da População Negra11, manifestou-se em relação à não produção e análise de dados com desagregação racial. Sem isso perde-se a oportunidade de conhecer demandas específicas da população negra ante a pandemia e a possibilidade de pensar estratégias de acesso ao cuidado em saúde com vistas à equidade racial. Não desagregar dados implica invisibilizar os impactos do racismo no país10.
A partir da publicização dos dados, chamou a atenção o acentuado número de notificações de SRAG e de declarações de óbito com o quesito raça/cor ignorado. O BEE nº 09, o primeiro a apresentar os dados desagregados por raça/cor, apontou 49,7% das notificações de SRAG com esse quesito ignorado, demonstrando o não reconhecimento, por parte de profissionais de saúde, da importância de considerar os impactos do racismo no processo de adoecimento.
O isolamento social e as práticas de higiene sugeridas como estratégicas pelo Ministério da Saúde (MS) para redução da contaminação pela Covid-19 têm desdobramentos distintos para diferentes grupos sociais no país12),(13. Estando cronicamente à margem da sociedade, a população negra representa o maior percentual entre a parcela populacional em condições precarizadas de vida5),(14. Segundo o IBGE, trata-se da maioria entre as pessoas sem saneamento básico, com condições precarizadas de moradia, incluindo adensamento urbano, desempregadas ou empregadas de maneira informal5, demonstrando que o racismo que atravessou todo o processo de estruturação do país segue vulnerabilizando a população negra.
No âmbito da saúde, a população negra apresenta maior prevalência de comorbidades cardiovasculares crônicas quando comparada com a população branca, segundo os resultados da Pesquisa “Vigitel Brasil 2018 População Negra: vigilância de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico”14. Essas condições, como diabetes mellitus, obesidade e hipertensão arterial, justamente representam fator de risco para um quadro agravado da Covid-1915. Com o intuito de pensar o cuidado em saúde de maneira equânime, tais informações já seriam suficientes para o reconhecimento da necessidade de pensar políticas públicas e estratégias de promoção de equidade racial, algo que até o momento não foi objeto de análises dos BEE ou de orientações específicas para gestores, profissionais de saúde e população.
Além das comorbidades que acentuam a possibilidade de agravamento dos casos de Covid-19, a população negra enfrenta ainda barreiras importantes de acesso ao sistema de saúde. A terceira edição da PNSIPN, lançada em 201716, revela que a população negra, embora seja maioria entre a população brasileira, tem menor acesso a consultas e exames. Do total de pessoas que depende exclusivamente do SUS, 67% são negras16. Esse número é especialmente importante no contexto da pandemia, uma vez que há no país uma grande concentração de leitos hospitalares e de cuidados intensivos no sistema suplementar de saúde, o que provoca, mais uma vez, iniquidades de acesso ao cuidado.
Outra barreira enfrentada pela população negra é o que tem-se chamado de viés implícito ou racismo interpessoal de profissionais de saúde que, por serem sujeitos socialmente construídos numa sociedade racista, que naturaliza a morte de pessoas negras cotidianamente, reproduzem racismo na oferta de cuidado. A Nota Técnica nº 11 do Núcleo de Operações e Inteligência e Saúde (NOIS), evidenciou que, independentemente do nível de escolaridade, a taxa de mortalidade por Covid-19 entre pessoas negras é sempre maior do que entre pessoas brancas no país17.
O BEE nº 21 do MS apresentou dados que demonstraram que, dentre as mulheres em período gravídico-puerperal que faleceram por Covid-19 no Brasil, mais de 75% eram negras18. Posteriormente um estudo de pesquisadoras brasileiras evidenciou, com base em dados do sistema de informação de vigilância epidemiológica da gripe do MS, que as mulheres negras gestantes hospitalizadas com SRAG por Covid-19 tinham idade média e perfil de morbidade similares às mulheres brancas, contudo foram admitidas em piores condições e apresentaram maior taxa de admissão em unidade de terapia intensiva (UTI), ventilação mecânica e óbito19.
ESCOLA MÉDICA E RACISMO
Ainda que a maioria da população brasileira seja negra5),(14, a proporção de negros que acessa o ensino superior é significativamente menor5. Nesse sentido, pode-se entender que as escolas de Medicina são ocupadas por uma maioria de pessoas brancas, incluindo o corpo docente, discente e gestor. Essa iniquidade sistêmica tem sido paulatinamente remediada pelas políticas de ações afirmativas, ainda que em dimensão muito inferior à reparação histórica necessária. Apesar do avanço promovido pelas políticas afirmativas na promoção de acesso à universidade, faltam políticas voltadas para permanência estudantil nessas instituições. O lugar social pensado para corpos negros na medicina era (e é) o de objeto a ser estudado e explorado. Por isso, para a população negra, estar na escola médica, implica em ocupar um espaço que não foi idealizado para si e ter sua permanência constantemente questionada e ameaçada20.
Existem bases nas políticas educacionais para a inserção do estudo das relações étnico-raciais nas universidades e nas escolas de Medicina. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Medicina de 2014 apresentam como um dos seus objetivos formar egressos que possam considerar as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural e ética21. Nesse caminho, destacam-se ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER)22 que foram instituídas em 2004 e que orientam a inserção de conteúdos sobre a história e cultura africana em todos os níveis de ensino. Entretanto, esses documentos não fornecem os instrumentos necessários à constituição de uma educação antirracista nas escolas médicas23.
O ambiente institucional das escolas de Medicina é permeado por violências como o racismo, o machismo e a cisheteronormatividade e apresenta mecanismos falhos de prevenção e denúncia dessas situações, o que contribui para sua perpetuação. Apesar de imprescindível, a ênfase na mediação das relações interpessoais entre estudantes não deve suprimir a necessidade de reflexão crítica e mudanças estruturais nas dinâmicas sociais dos ambientes acadêmicos24),(25.
A não abordagem das questões raciais na escola médica não a impede de ser, no entanto, um espaço perpetuador do racismo em suas diferentes dimensões24),(26. A ausência de uma discussão estruturada sobre branquitude e privilégio nos processos de ensino-aprendizagem e de cuidado, e de uma abordagem racializada dos processos de saúde e de adoecimento leva a deficiências na formação dos estudantes, mascara a deficiente formação dos educadores, além de produzir lacunas de cuidado.
As necessidades de saúde da população negra no Brasil estão demarcadas desde a estruturação do SUS e também na PNSIPN, oficializada em 2009, que reconhece a relação entre racismo e vulnerabilidade em saúde, apontando o racismo institucional na produção de cuidado e a necessidade de construção de ações26.
A pandemia pela Covid19 e os impactos catastróficos na população negra são exemplos de uma situação que deveria ser inadmissível nos tempos atuais17),(19. As estratégias de resposta à pandemia no país desconsidera as questões socioculturais e econômicas, a carga de doença prévia e as questões territoriais e ambientais que se somam ao racismo para vitimizar milhares de pessoas negras.
COMO PROMOVER UM AMBIENTE EDUCACIONAL ANTIRRACISTA EM TEMPOS DE PANDEMIA?
Discutir racismo no Brasil é um tabu. Os impactos do racismo nas populações racialmente inferiorizadas são narrativas à margem de um discurso e uma produção de conhecimento hegemônicos7),(26. Essa invisibilidade é reforçada por estereótipos que determinam o lócus social e as experiências das populações com cidadania e subjetividade negadas7.
A associação direta de pessoas negras com situações de violência, delinquência e marginalidade as condiciona a se constituir sujeito social num árduo processo de reconhecer-se ou negar a própria identidade racial27. Em sociedades racistas, o racismo impacta a socialização de pessoas negras desde a primeira infância28. Crescer numa sociedade que o tempo inteiro delimita lugares, profissões e ambientes de circulação possíveis, que reforça a ideia de que jovens negros são mortos ou encarcerados massivamente por escolhas negativas individuais e que arte, cultura e religião produzidas por pessoa negras não devem ser valorizadas é um desafio que a população branca tem o privilégio de não viver.
Às mulheres negras são ofertados dois lócus sociais possíveis: a empregada doméstica ou a mulata do Carnaval29. Em ambos, o papel delas é servir. Ocupar qualquer outro lugar é uma ruptura de expectativa, a vivência de um não lugar e a necessária reafirmação contínua da possibilidade de se estar nesses outros espaços. O mito de que mulheres negras são mais resistentes à dor, francamente reproduzido nas instituições de saúde, tenta romantizar uma história de violações corporais, de negação da maternidade e de enlutamento por irmãos, filhos e maridos assassinados por uma sociedade que ainda teme reconhecer-se como racista.
A pandemia de Covid-19 tem escancarado as tentativas de invisibilizar os impactos do racismo no processo de adoecimento e morte da população negra. Seja no descompromisso com a produção e análise de dados desagregados, na falta de estratégias para garantir acesso a cuidados de saúde ou na falta de políticas públicas para equacionar a vulnerabilidade da população negra à Covid-19, o Brasil reproduz a política de genocídio vigente desde o período escravocrata.
No contexto da produção de cuidado, a pandemia evidencia o despreparo de profissionais em reconhecer os impactos do racismo, acolhê-los e lidar com eles. O despreparo da formação e a reprodução do racismo interpessoal implicam hipóteses diagnósticas equivocadas, negligência e iatrogenias no enfrentamento da doença, com desfechos desfavoráveis para a população negra.
Para promover um ambiente educacional e um processo de ensino-aprendizagem pautado na integralidade do cuidado e na equidade racial, é preciso reconhecer o racismo como fator que atravessa a construção de subjetividade de toda a população brasileira. Twine30 propõe o letramento racial como caminho para acessar os impactos do racismo. De maneira resumida, são propostas cinco ações: o reconhecimento dos privilégios de ser branco numa sociedade racializada; a compreensão do racismo como prática atual que se mantém e se reproduz nas relações sociais; o entendimento de raça como uma construção social dinâmica e variável; assumir e reproduzir uma gramática e um vocabulário raciais, percebendo opressões naturalizadas em discursos e expressões; e o desenvolvimento da capacidade de interpretar situações, práticas e códigos de maneira racializada, de modo a identificar possíveis naturalizações de reprodução do racismo.
Para sistematizar o ensino de relações étnico-raciais no currículo médico, uma matriz de competência deve ser proposta. Dentro de conhecimentos cabe incluir a própria PNSIPN16, a legislação nacional vigente sobre racismo, o conceito de raça como construção social, raça dentro dos determinantes sociais de saúde e o conceito de interseccionalidade31, as distintas dimensões do racismo26 (internalizado, interpessoal e institucional) e o letramento racial30. Em habilidades, é necessário incluir o treinamento de acolhimento e escuta qualificada adequados, a abordagem com perspectiva interseccional e integral, o reconhecimento e a validação do sofrimento por racismo, a abordagem da auto-estima e direito à plena cidadania e o estímulo ao autocuidado voltados para a população negra. Existem também atitudes necessárias a uma assistência antirracista que devem ser incentivadas: competência/humildade cultural32, empatia, reflexão crítica constante acerca do viés racial implícito, prática de advogar pelos direitos do usuário e o combate ao racismo interpessoal e institucional no local de trabalho.
A medicina, como área socialmente elitizada, é um ambiente marcadamente ocupado e gerido pela população branca. O ingresso de pessoas negras nesse espaço começa a se dar de maneira mais evidente com a entrada em vigor das políticas afirmativas de cotas raciais no país. Apesar da mudança no corpo discente, provocada por tal política no ensino médico, o racismo segue presente na graduação, sendo reproduzido na forma de ensinar cuidado em saúde e também na forma de (não) acolher jovens negros estudantes. É importante ponderar que as políticas afirmativas que promovem a entrada de jovens negros na educação superior são um avanço importante para equidade racial no país, no entanto tais política precisam ser acompanhadas de políticas de permanência estudantil para esses estudantes e políticas antidiscriminatórias para todo o ambiente educacional.
As DCN de 2014 dão enfoque à necessidade de considerar as relações étnico raciais no processo de saúde e adoecimento, no entanto, para que essas diretrizes sejam efetivamente colocadas em prática, de maneira transversal, num processo de ensino-aprendizagem inclusivo, é necessário que as instituições de ensino superior (IES) promovam espaços de sensibilização e capacitação de gestores e docentes acerca dessa temática. O investimento na contratação de profissionais negros para compor o corpo técnico, docente e gestor é também uma ação importante, que confere representatividade aos discentes negros. No entanto, é um erro considerar que a pauta do racismo na saúde deva ser abordada exclusivamente por docentes negros. Combater o racismo institucional na saúde é uma responsabilidade de todas as pessoas envolvidas com o cuidado.
Uma experiência brasileira que deve ser reconhecida e exaltada no cenário da educação médica foi a fundação de um coletivo de estudantes negros na Medicina, com o objetivo de promover acolhimento e fortalecimento entre pessoas que vivenciavam a mesma experiência de não lugar no espaço médico. O Coletivo Negrex, fundado no ano de 2015, conta hoje com estudantes de Medicina, médicas e médicos negros por todo o país33. Além de manter o objetivo de acolher e fortalecer as pessoas ao longo do processo de formação, o coletivo tem conseguido se organizar localmente para pautar a inclusão da temática racial no currículo formal de graduação. Com organização de seminários para o internato, participação ativa na construção de ligas acadêmicas, aulas e simpósios ou com propostas de disciplinas eletivas, os membros do Coletivo Negrex têm cada vez mais tensionado a presença de temáticas raciais no ensino curricular e extracurricular. Esse tensionamento capitaneado por discentes negros do Coletivo Negrex, mas que também pode ser colocado em prática por todos os discentes da saúde, é uma estratégia importante de estimular mudanças urgentes nas grades curriculares, com vista a um cuidado em saúde antirracista, equânime e universal.
O desafio de transformar o ensino médico em um ambiente antirracista está posto desde 2009 com o lançamento da PNSIPN e reforçado em 2014 pelas DCN. Após 11 anos da política, a pandemia de Covid-19 reforça a existência do racismo institucional na saúde e os danos provocados por ele, convocando mais uma vez os profissionais de saúde e escolas médicas a refletir sobre seu papel no combate ao racismo estrutural na sociedade ou na reprodução dele. Por um lado, mudanças são processos sempre difíceis que exigem comprometimento, autoconhecimento, reconhecimento de limitações e enfrentamento de dificuldades. Por outro lado, também é difícil para a população negra viver em um país que insiste em negar o racismo como fator que impacta o processo de saúde e adoecimento, ainda que este esteja provocando a morte de vidas negras cotidianamente. É de cada profissional de saúde, de cada IES e de cada entidade médica a decisão diária de silenciar e reproduzir ou de ativamente se implicar no combate ao racismo na saúde e em todas as esferas sociais.