INTRODUÇÃO
A ampliação da educação superior no Brasil é um fenômeno recente e vem se dando graças a uma série de políticas públicas e de governo1.
Esse cenário é viabilizado pelo Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 e, particularmente, pelas estratégias de interiorização de instituições e de aumento do número de vagas, principalmente, nas grandes metrópoles e regiões adjacentes2.
Na área de saúde e, em particular, na área médica, essa expansão tornou-se uma realidade com o advento do Programa Mais Médicos (PMM). Essa iniciativa do governo federal não ficou restrita à contratação de profissionais formados no exterior para atuação em regiões remotas e/ou com escassez desses profissionais, e incluiu uma série de outras ações, que foram desde a previsão de reformas nos currículos dos cursos de graduação até a abertura de novas vagas e criação de cursos de Medicina e de programas de residência médica3.
Do lançamento do PMM, em 2013, até novembro de 2018, foi autorizado um total de 13.624 novas vagas em cursos de Medicina no Brasil4.
Essa política expansionista gerou uma série de questionamentos acerca da qualidade de formação profissional e fez com que entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) classificassem como “desastroso” e “indiscriminado” o cenário de expansão de formação de médicos no território nacional às custas de taxas tão elevadas e à mercê de uma política de monitoramento desproporcional5. Essas instituições, por meio de um embate jurídico-político e na “defesa de um apropriado provimento e da importância da devida qualificação profissional”, obtiveram o congelamento - sancionado pela Portaria do Ministério da Educação (MEC) nº 328, de 5 de abril de 2018 - de novas autorizações para abertura de cursos de Medicina no país por cinco anos. Essa portaria estabeleceu a suspensão dos protocolos de pedidos de aumento no número de vagas e de novos editais de autorização de cursos de graduação em Medicina em todo Brasil, e instituiu um grupo de trabalho para análise e proposição sobre a reorientação da formação de profissionais médicos no âmbito nacional6)-(9.
No entanto, para além da “moratória” mencionada, é relevante considerar que a própria constatação do acelerado e desordenado crescimento de cursos e da oferta de vagas de graduação em Medicina no país, por si só, já indica a necessidade de estudos adicionais sobre o assunto. Ademais, é conveniente trazer que, apesar do reconhecimento consolidado desse fenômeno, há considerável escassez de informações publicadas na literatura especializada sobre esse tema. Assim, conhecer o panorama da formação em Medicina no país e dos parâmetros de qualidade desses cursos torna-se relevante e necessário para (re)pensar o processo formativo dessa força de trabalho indispensável no segmento da saúde.
Dessa forma, no presente trabalho, pretende-se responder às seguintes questões norteadoras:
Qual é o panorama da formação de médicos no Brasil?
O que apontam as avaliações institucionais dos órgãos de regulação quanto ao desempenho dos cursos de graduação em Medicina do país?
Assim, o objetivo deste estudo é traçar um panorama da formação e da avaliação dos cursos de graduação em Medicina no contexto nacional. Pretende-se, com isso, sistematizar indicadores de qualidade e parâmetros oficiais de avaliação, e discutir implicações da política de expansão dos cursos e vagas na oferta e na qualidade da formação de médicos no Brasil.
MÉTODOS
Trata-se de estudo descritivo, com abordagem quantitativa, que teve como procedimento metodológico a análise documental.
Para coleta dos dados, foi adotado um recorte temporal e espacial, considerando o limite territorial das unidades federativas do Brasil e as avaliações processadas a partir de 2000, ano anterior ao lançamento da primeira Diretriz Curricular Nacional (DCN) do Ensino Médico.
Foram adotados como fonte de dados os resultados da Sistemática de Avaliação Nacional da Educação Superior do Ministério da Educação para acompanhamento dos cursos de graduação em Medicina no país. Incluíram-se, nesta pesquisa, exames de desempenho, avaliações seriadas para fins de autorização e reconhecimento dos cursos, além dos conceitos obtidos em avaliações nacionais de verificação de desempenho vinculadas ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) disponíveis no e-MEC, no período de 1º de dezembro de 2019 a 30 de janeiro de 2020, intervalo em que fora realizada a extração dos dados.
A extração das informações foi realizada por meio do sistema eletrônico de informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) que coordena e gerencia dados relativos aos processos de regulação, avaliação e supervisão da educação superior no sistema federal de educação - e-MEC (www.emec.mec.gov.br).
Os dados extraídos da plataforma eletrônica foram confrontados com o “Relatório de Cursos” disponibilizado pela Área Técnica da Diretoria de Estatísticas Educacionais do MEC/Inep fornecido em janeiro de 2020 por meio do Protocolo nº 23480.017699/2019-13.
Os autores do projeto agruparam em tabela os dados no software Microsoft Excel 2010, os quais foram armazenados em pastas (arquivos físicos) e em computador, a fim de evitar perda das informações colhidas. Após uma primeira análise, excluíram-se da amostra os cursos em processo de extinção e/ou aqueles que se encontravam extintos.
Calcularam-se indicadores tomando-se como referência as seguintes variáveis: número de cursos, número de vagas, tipo de organização administrativa e acadêmica das instituições de ensino superior (IES), ano de início da oferta, localidades onde estavam situadas as escolas médicas, número de vagas por habitantes, conceitos em avaliações institucionais do Inep/MEC e notas obtidas em exames nacionais de avaliação.
Na análise das informações, adotou-se a estatística descritiva de frequências absolutas e relativas, as quais foram apresentadas em gráficos, tabelas e mapas.
A discussão dos achados foi realizada à luz da literatura especializada sobre o tema.
Por se tratar de pesquisa que envolveu o uso de dados de natureza secundária, sem o envolvimento direto e/ou indireto de seres humanos, não houve a necessidade da aprovação por Comitê de Ética, conforme Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510/2016.
RESULTADOS
No que se refere à evolução do número de IES que ofertam cursos de graduação em Medicina no Brasil - aqui denominadas escolas médicas -, os dados extraídos do portal e-MEC até o mês de janeiro de 2020 apontaram para uma soma de 337 (98%) entidades em atividade, além de sete (2%) instituições com oferta autorizada pelo MEC, mas que ainda não haviam iniciado seu funcionamento e/ou realizado processo seletivo para ingresso de discentes em seus cursos.
Nos 20 anos de observação deste estudo (2000-2019), o número de escolas médicas no Brasil apresentou um crescimento de 214,9% (Gráfico 1).
Em 2000, o Brasil possuía 107 IES ofertando cursos de graduação em Medicina, das quais 54 (50,5%) eram públicas e 53 (49,5%) privadas. Em 2019, esse número somava 337 (100%) entidades em atividade, e aproximadamente dois terços (65%) dos cursos eram ofertados por IES privadas (Gráfico 1).
A série temporal do número de IES com oferta do curso de graduação em Medicina no país revela crescimento linear nas duas grandes categorias administrativas de IES, além de maior presença de escolas médicas privadas em relação às IES públicas durante toda a série histórica (Gráfico 2).
O Brasil contava, em dezembro de 2019, com 34.585 vagas de graduação em Medicina/ano com oferta regular. A unidade federativa (UF) com maior número absoluto de vagas em cursos de graduação em Medicina e com maior número de escolas médicas foi o estado de São Paulo, com 7.130 vagas de Medicina/ano e 63 escolas médicas em atividade. A UF com menor oferta anual de vagas e IES foi o Amapá com 60 vagas e apenas uma IES (Figura 1).
A média nacional do número de vagas/ano e da razão vagas/habitantes foi de 1.280,9 vagas/ano e 16,5 vagas/100 mil, nessa ordem (Tabela 1).
Localidade | NEM | % | NVEM | % | População** | NVH | EMH | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Norte | AC | 2 | 0,6 | 161 | 0,5 | 881.935 | 18,3 | 440,9 mil |
AM | 5 | 1,5 | 585 | 1,7 | 4.144.597 | 14,1 | 828,9 mil | |
AP | 1 | 0,3 | 60 | 0,2 | 845.731 | 7,1 | 845,7 mil | |
PA | 8 | 2,4 | 785 | 2,3 | 8.602.865 | 9,1 | 1075,3 mil | |
RO | 5 | 1,5 | 375 | 1,1 | 1.777.225 | 21,1 | 355,4 mil | |
RR | 2 | 0,6 | 140 | 0,4 | 605.761 | 23,1 | 302,8 mil | |
TO | 6 | 1,8 | 640 | 1,9 | 1.572.866 | 40,7 | 262,1 mil | |
Região NO | 29 | 8,6 | 2.746 | 7,9 | 18.430.980 | 14,9 | 635,5 mil | |
Nordeste | AL | 5 | 1,5 | 495 | 1,4 | 3.337.357 | 14,8 | 667,4 mil |
BA | 23 | 6,8 | 2.209 | 6,4 | 14.873.064 | 14,9 | 646,6 mil | |
CE | 8 | 2,4 | 1.036 | 3 | 9.132.078 | 11,3 | 1141,5 mil | |
MA | 6 | 1,8 | 559 | 1,6 | 7.075.181 | 7,9 | 1179,1 mil | |
PB | 9 | 2,7 | 1.082 | 3,1 | 4.018.127 | 26,9 | 446,4 mil | |
PE | 11 | 3,3 | 1.390 | 4 | 9.557.071 | 14,5 | 868,8 mil | |
PI | 7 | 2,1 | 601 | 1,7 | 3.273.227 | 18,4 | 467,6 mil | |
RN | 6 | 1,8 | 585 | 1,7 | 3.506.853 | 16,7 | 584,4 mil | |
SE | 3 | 0,9 | 300 | 0,9 | 2.298.696 | 13,1 | 766,2 mil | |
Região NE | 78 | 23,1 | 8.257 | 23,9 | 57.071.654 | 14,5 | 731,6 mil | |
Centro-Oeste | DF | 6 | 1,8 | 576 | 1,7 | 3.015.268 | 19,1 | 502,5 mil |
GO | 14 | 4,2 | 1.466 | 4,2 | 7.018.354 | 20,9 | 501,3 mil | |
MS | 5 | 1,5 | 388 | 1,1 | 2.778.986 | 14,0 | 555,7 mil | |
MT | 6 | 1,8 | 431 | 1,2 | 3.484.466 | 12,4 | 580,7 mil | |
Região CO | 31 | 9,2 | 2.861 | 8,3 | 16.297.074 | 17,6 | 525,7 mil | |
Sul | PR | 25 | 7,4 | 2.225 | 6,4 | 11.433.957 | 19,5 | 457,3 mil |
RS | 19 | 5,6 | 1.770 | 5,1 | 11.377.239 | 15,6 | 598,8 mil | |
SC | 17 | 5 | 1.250 | 3,6 | 7.164.788 | 17,4 | 421,4 mil | |
Região SU | 61 | 18,1 | 5.245 | 15,2 | 29.975.984 | 17,5 | 491,4 mil | |
Sudeste | ES | 6 | 1,8 | 730 | 2,1 | 4.018.650 | 18,2 | 669,7 mil |
MG | 47 | 13,9 | 4.725 | 13,7 | 21.168.791 | 22,3 | 450,3 mil | |
RJ | 22 | 6,5 | 2.891 | 8,4 | 17.264.943 | 16,7 | 784,7 mil | |
SP | 63 | 18,7 | 7.130 | 20,6 | 45.919.049 | 15,5 | 728,8 mil | |
Região SD | 138 | 40,9 | 15.476 | 44,7 | 88.371.433 | 17,5 | 640,3 mil | |
Brasil | 337 | 100 | 34.585 | 100 | 210.147.125 | 16,5 | 623,5 mil |
NO: Norte; NE: Nordeste; CO: Centro-Oeste; SU: Sul; SD: Sudeste. NEM: Número de escolas médicas; NVEM: número de vagas em escolas médicas; NVH: número de vagas em escolas médicas por 100 mil habitantes; EMH: número de escolas médicas por habitantes. **Estimativas de população em 2020 (www.ibge.gov.br). Fonte: Elaborada pelos autores com base nos dados do MEC/Inep.
Em relação à distribuição geográfica, a Região Sudeste apresentou a maior concentração de vagas no período analisado, com 15.476 vagas/ano, enquanto a Região Norte, com 2.746 vagas/ano, foi aquela com menor oferta (Tabela 1). Esse mesmo cenário foi compatível para o indicador vagas em escolas médicas por 100 mil habitantes (Tabela 1).
As Regiões Sudeste e Norte também apresentaram maior e menor proporção de escolas médicas em relação às demais regiões do país, concentrando, nesta ordem, 41% e 9% das IES que ofertam cursos de Medicina no território nacional (Gráfico 3).
Na avaliação da qualidade institucional dos cursos de Medicina aferida pelo Inep, evidenciou-se que a maioria dos cursos de formação de médicos do Brasil está classificada com Conceito Preliminar de Curso (CPC) mediano - nota 3 (Gráfico 4).
O conceito máximo no CPC não foi obtido por nenhuma escola médica do Brasil em três avaliações trienais consecutivas, e, na última avaliação dos cursos médicos realizada pelo Inep em 2016, apenas uma IES figurou com nota máxima no conjunto de características que definem a qualidade do ensino superior no país.
Na avaliação do desempenho dos concluintes dos cursos de graduação em Medicina quanto aos conteúdos programáticos apropriados no decorrer da graduação, aferida pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), verificou-se que, do mesmo modo que no CPC, houve predomínio de instituições de ensino com formando apresentando conceito mediano. Observou-se, ademais, que, do total de 175 instituições que possuíam estudantes habilitados para realização do exame, apenas três escolas médicas apresentaram desempenho “máximo” no Enade.
DISCUSSÃO
Este estudo descreveu a expansão e a caracterização das escolas médicas no Brasil. Apontou que as duas primeiras décadas dos anos 2000 foram marcadas por um forte processo de incremento na quantidade de novas escolas médicas e pela multiplicação no número de vagas nos cursos de graduação em Medicina.
Essa dinâmica de expansão do ensino superior não é aleatória, sendo fortemente influenciada por projetos políticos, regimes de governo, modelos econômicos, propostas de intervenção social e, propriamente, projetos de gestão do Estado e de suas políticas de educação9)-(11. Na área médica, igualmente, múltiplos fatores estão presentes, somando-se, ademais, a própria necessidade de provimento adequado de condições de saúde para os territórios e para as comunidades em geral12.
Em estudo prévio sobre a oferta de vagas de Medicina, publicado no ano de 2006, já havia sido constatado o crescimento acelerado da oferta de cursos médicos no Brasil. À época, tal fenômeno fora atribuído à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que favorecia a criação de cursos e a privatização do ensino superior em decorrência do maior nível de autonomia concedida às IES a partir dessa legislação13. Nos dias atuais, esse mesmo cenário vem se concretizando por meio de um conjunto de políticas públicas indutoras de mudanças, tais como o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab) e o PMM14)-(16. Tais estratégias, na medida em que surgem com a proposta de combater desigualdades regionais na área da saúde, constituem-se, também, em fatores de estímulo à formação de pessoal especializado nesse segmento.
Outro conjunto de políticas públicas de estímulo ao ingresso na educação superior no país que contribuiu igualmente para o incremento no número de vagas foi o aumento dos financiamentos públicos em IES privadas por meio da concessão de bolsas e subsídios, como ocorre no Programa de Financiamento Estudantil (Fies) e no Programa Universidade para Todos (ProUni), além da crescente oferta de vagas nas universidades federais, da abertura de novos campi e do movimento de interiorização do ensino superior nacional10),(17),(18.
De todas essas iniciativas, no entanto, o PMM foi a mais representativa no que tange ao fenômeno de estímulo à expansão do ensino médico no Brasil. Lançado em 2013, o programa tinha, entre outras finalidades, orientar a expansão de novos cursos de graduação em Medicina no território nacional, sobretudo em regiões de saúde com menor quantidade de médicos e que tivessem estrutura de serviços de saúde compatíveis com as exigências de formação na área2. No entanto, relata-se que houve descompasso desse objetivo em relação aos demais do programa, que deveria melhorar a estruturação da rede de saúde, em especial da rede de atenção básica, aumentar o volume de atendimento assistencial à comunidade e incrementar a ocupação efetiva de vagas em programas de residência médica19)-(21. Como mostraram os estudos analisados em uma revisão sistemática22, o PMM, de fato, contribuiu para a melhoria do provimento de médicos no Brasil, tornando a distribuição geoespacial desses profissionais mais equânime no período em que esteve em vigência em sua plenitude. Contudo, esse provimento foi pontual e esteve ancorado em uma destinação emergencial de profissionais, não tendo resolvido as questões relativas à fixação desses médicos nessas localidades e tampouco seguido a mesma lógica quando da implementação das novas escolas médicas autorizadas, o que implicou a não resolução da problemática da má distribuição de profissionais médicos no país e, por consequência, a manutenção das desigualdades espaciais de formação e oferta desses profissionais desveladas neste trabalho.
Observou-se, neste estudo, que, ao longo dos 20 anos avaliados, o ensino médico tornou-se progressivamente privatizado. No último ano analisado, o país concentrava 65% de seus cursos médicos em instituições privadas, um dado particularmente relevante no cenário da expansão das escolas médicas. Dessa forma, o caráter majoritariamente privado da expansão reflete a oportunidade da forte participação desse setor na educação de médicos no país. Se, por um lado, a desigualdade espacial de formação profissional era uma realidade a ser enfrentada, verifica-se, por outro, que evidentes interesses econômicos estiveram presente no processo de expansão do ensino médico no país. Por tais motivos, esse contexto precisa ser interpretado não meramente como uma medida para equilibrar as desigualdades espaçotemporais de médicos, mas como uma convergência de interesses e necessidades, alguns públicos e outros privados.
A privatização do ensino superior não é a regra nos demais países das Américas, e, seguramente, o Brasil figura no grupo de países que mais apresentam IES privadas ofertando cursos de graduação no continente23. Nesse ponto é conveniente destacar o elevado custo das mensalidades dos cursos de graduação na área de saúde, especialmente dos cursos de bacharelado em Medicina, o que torna esse segmento um mercado atrativo e de alta rentabilidade para as instituições privadas ofertantes24. Tal aspecto explica o crescimento desse setor na oferta dos cursos de formação de médicos e a maior presença dessas IES na série temporal analisada.
Ainda sobre esse tema, não existe no território nacional um levantamento efetivo das reais necessidades do mercado de trabalho que preceda a criação de cursos de graduação. Apesar de a legislação exigir a avaliação por parte do Poder Público e de o governo acompanhar a evolução do ensino com censos periódicos, não há nenhum direcionamento por parte do Poder Público na criação desses cursos. Essa tarefa sempre ficou restrita às próprias IES, as quais, muitas vezes, seguem regras nem sempre muito claras. No caso das IES privadas, não são raras as vezes em que elas possuem total liberdade de seguir as diretrizes do mercado comercial de ensino23. Sobre esse tema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que as escolhas das intervenções na área de formação em saúde devem ser baseadas em um conhecimento aprofundado do perfil de saúde-doença do território, da realidade dos trabalhadores, do mercado de trabalho em que estão inseridos e dos fatores que influenciam a atuação profissional deles24.
Até mesmo por parte dos conselhos e das entidades profissionais da área ainda existe uma participação limitada na tomada de decisão em relação à abertura de novos turmas e vagas no Brasil, ficando a participação dessas instituições restrita a termos de colaboração com o MEC23. Do mesmo modo, os processos de avaliações sistemáticas desses cursos enfrentam resistências institucionais, como é o caso da Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem), que foi realizada apenas uma vez, em 2016, e encontra-se suspensa26),(27. No bojo dessa discussão, Balzan et al.27 citam que boa parte das escolas médicas privadas não apresenta interesse em ser avaliada, pois isso significaria mais investimento no corpo docente, em laboratórios e biblioteca médica, e mencionam como exemplo o fato de mais de 80% dos cursos médicos privados do estado de São Paulo não possuírem hospital-escola26. Dessa forma, é inegável a influência de interesses privados em detrimento dos pressupostos iniciais de democratização do acesso à saúde, objetivo inicial do PMM.
A OMS preconiza como parâmetro ideal de atenção à saúde da população a relação de um médico para cada mil habitantes25. No Brasil, esse indicador é duas vezes superior ao preconizado (2,18 médicos por mil habitantes), entretanto não reflete a má distribuição, a concentração urbana e os déficits rurais desses profissionais, fortemente marcados por desequilíbrios no âmbito dos estados e municípios e pela falta localizada de médicos em determinadas circunstâncias e territórios28)-(30. A dinâmica de distribuição de escolas médicas no Brasil está longe de superar a desigual distribuição espacial de médicos no território nacional, tendo em vista que, mesmo com o processo de expansão, a maioria das vagas em cursos de Medicina no país ainda continua concentrada em escolas localizadas no eixo Sudeste-Sul e em áreas com maiores indicadores de desenvolvimento.
Há, portanto, uma grande distorção entre o aumento do número de cursos e vagas de Medicina e a necessidade de profissionais médicos no país. Essa realidade não se distancia do cenário relatado em outros estudos que revelam alta concentração de médicos em grandes centros urbanos e baixa presença desses profissionais em áreas mais remotas, como é o caso dos estados e das cidades da Região Norte e de cidades do interior do país28),(29.
Não menos importante é destacar que o número de vagas em cursos de Medicina no Brasil cresceu dissociado de iniciativas de recrutamento e fixação desses profissionais em área prioritárias, aspecto que não foi contemplado quando da formulação do PMM. Tal aspecto é apontado pela OMS como requisito essencial para que se possa ter sucesso em um programa de recrutamento e fixação de profissionais de saúde, devendo estar atrelado a outras categorias de intervenções, como formação, regulação, incentivos e apoio profissional e pessoal25.
Acerca do aspecto “regulação”, aqui analisado na perspectiva da qualidade dos cursos, cabe destacar a importância dos processos de avaliação de desempenho dos estudantes e das escolas médicas perante todas as mudanças no cenário de oferta de formação e das próprias demandas em saúde da população brasileira. Nesse ponto, verificou-se que, mesmo nas avaliações trienais dos órgãos reguladores, a maioria dos cursos de Medicina do Brasil está enquadrada no conceito mínimo estabelecido pelo MEC e pelo Inep para fins de credenciamento e manutenção do seu funcionamento. Tal cenário revela mais que a necessidade de ajustes no processo de avaliação e acompanhamento do processo formativo dos futuros médicos, transparecendo verdadeiras deficiências no que tange ao corpo docente, à infraestrutura, aos recursos didático-pedagógicos, ao desempenho de concluintes em relação à apropriação de competências necessárias ao exercício profissional, entre outros aspectos concernentes às condições de oferta dos cursos. Preocupante também é o conjunto considerável de instituições que obtiveram conceitos insuficientes (notas 1 e 2) nas avaliações, bem como o reflexo para os sistemas de saúde do país da formação de profissionais por entidades com reconhecidos déficits formativos, cenário que pode prejudicar diretamente a população.
Diante do crescimento vertiginoso de IES que oferecem cursos de Medicina no país, discute-se a importância de ser implementado um método efetivo de avaliação das condições de funcionamento, em termos de instalações e de conteúdo pedagógico, como critério de funcionamento das escolas médicas nacionais26),(27),(31)-(33. Discutem-se também a relevância da avaliação da qualidade da formação dos profissionais médicos na perspectiva seriada (no segundo, quarto e sexto anos; neste último ano, necessariamente, com avaliação prática)20),(26),(32 e, como alternativa, a instituição de um exame de desempenho como requisito para o exercício profissional no país27),(34. Independentemente do meio de avaliação de competências médicas defendido, há relativa unanimidade na literatura especializada em relação à urgência de se estabelecerem efetivos mecanismos regulatórios da qualidade do profissional médico formado no território nacional, em face do cenário de expansão da formação médica no Brasil aqui evidenciado.
CONCLUSÃO
Este trabalho debruçou-se sobre a distribuição de escolas médicas nas diferentes regiões do Brasil, tendo traçado um panorama da formação e da avaliação dos cursos de graduação em Medicina no contexto nacional.
Constituiu-se num estudo de análise da situação de formação desse segmento profissional em saúde em um espaço-tempo e, portanto, permitiu caracterizar, medir e explicar o perfil de ensino em Medicina no país. Os dados e as análises aqui contidos indicam o seguinte:
Houve importante incremento no número de vagas e cursos na área de médica nos últimos 20 anos no Brasil.
A maioria das escolas médicas está sob gestão do setor privado.
A grande maioria dos cursos de graduação em Medicina continua localizada em regiões centrais e em áreas mais desenvolvidas do país.
Os cursos de formação de médicos, nas avaliações dos órgãos reguladores nacionais, figuraram, em sua maioria, com conceito mediano.
Espera-se que as informações produzidas com esse estudo possam contribuir para o (re)planejamento de políticas no campo da formação de médicos e para a (re)organização de estratégias de intervenção no campo do ensino na saúde, em especial no que tange às ações de autorização de novos cursos de graduação na área médica.
Os resultados deste estudo poderão servir, ademais, de base para análises mais aprofundadas e segmentadas envolvendo os diversos aspectos que permeiam a formação de médicos no país, tais como a caracterização das políticas educacionais na área médica e seus impactos no desenvolvimento das regiões; a correlação com indicadores de desenvolvimento; a eficácia da política de expansão dos cursos de graduação em Medicina e sua relação com a retenção de médicos para atuação na atenção básica, entre outros.