INTRODUÇÃO
Determinadas substâncias, em razão de ocasionarem possíveis mudanças na funcionalidade neural central, tornaram-se conhecidas como substâncias psicoativas (SPA). Esse grupo não inclui apenas drogas ilícitas, como maconha, cocaína e crack, mas também álcool, tabaco, benzodiazepínicos, entre outros. Tal ingestão, do ponto de vista da saúde pública, traz preocupação porque predispõe a alterações fisiológicas importantes, acidentes diversos, violências e comportamentos de risco, além de forte tendência a causar dependência de acordo com sua utilização1. Segundo dados apresentados no Relatório do United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC)2, no ano de 2017, cerca de 217 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos usaram alguma substância psicoativa pelo menos uma vez no ano anterior, o que correspondia a cerca de 5,5% da população de todo o mundo nessa faixa etária, naquele ano.
O ingresso do estudante no ambiente universitário consiste em múltiplos processos que envolvem aspectos externos, dos ambientes acadêmico e social, e aspectos internos do indivíduo, como a habilidade de encarar as diversas situações, as reações físicas psicossomáticas e os diferentes estados de humor3. O contexto de formação em Medicina torna-se ainda mais denso, aglutinando responsabilidades sociais e técnicas desde a concorrência do vestibular, iniciando-se desde então uma dificuldade em estabelecer uma boa qualidade de vida4.
O primeiro ano da Faculdade de Medicina é um período de grandes expectativas, tendo em vista que muitos alunos têm as primeiras vivências no que diz respeito ao contato com a morte e a grande demanda de estudo. A carga horária extenuante, em turno integral, além da necessidade de novos hábitos de estudo, faz com o que o discente se prive de suas atividades de lazer, bem como abandone as práticas de atividade física5. Em contrapartida, nos dois últimos anos do estágio supervisionado obrigatório, também referido como internato, renovam-se as angústias. Esse é um momento marcado por considerável relevância, que praticamente obriga o discente a dedicar-se quase que exclusivamente à medicina.
Nesse contexto, muitos estudantes de Medicina buscam alívio e equilíbrio emocional por meio do uso de SPA6. Essas substâncias ativam o circuito neural de recompensa e prazer e são utilizadas pelos discentes com o intuito de buscar sensações prazerosas de bem-estar, permitindo, assim, o controle do estresse7. Diversas pesquisas apontam para um consumo de drogas crescente no decorrer do curso médico, com o pico do consumo nos dois últimos anos, sendo as atividades práticas iniciadas no quinto ano do curso geradoras de ansiedade. Tal cenário soma-se com as exigências frequentes de frutos pelo seio familiar e pelo próprio discente, o que culmina, de forma direta, na ingestão desenfreada de certas drogas8. As pesquisas têm demonstrado índices elevados de consumo de drogas entre os acadêmicos desse curso, constituindo uma das inúmeras “válvulas de escape” para os problemas psicológicos ou de resiliência provocados pela rotina estressante9.
A Faculdade de Ciências da Saúde (FACS) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), de acordo com seu projeto pedagógico, possui três ciclos: ensinos básico, profissionalizante (técnico/clínico) e prático (internato), com duração de dois anos cada. Esses ciclos utilizam-se de uma articulação entre as várias etapas do percurso educativo, o que implica uma sequencialidade progressiva, de modo a conferir a cada etapa as funções de completar, aprofundar e alargar a etapa anterior, numa perspectiva de continuidade e unidade global do ensino e aprendizagem, a fim de favorecer a transição adequada entre os ciclos. As disciplinas de farmacologia são lecionadas de acordo com a seguinte organização: farmacologia básica no quarto período, farmacologia aplicada I no quinto e farmacologia aplicada II no oitavo, sendo o conteúdo de dependência química e alcoolismo administrado nesta última. Logo, espera-se que, de acordo com o avanço dos semestres, os acadêmicos dos períodos finais do curso sejam mais responsáveis em relação ao consumo de SPA, tendo em vista que conhecem as consequências que elas podem causar a si próprios e à população10.
Lemos et al.11, em pesquisa realizada com 404 estudantes de Medicina das escolas médicas de Salvador, constataram elevados valores de frequência de uso de SPA durante a vida para álcool, lança-perfume, tabaco e maconha: 92,8%, 46,2%, 38,9% e 20,5%, respectivamente. Nessa pesquisa, a diversão foi apontada como principal razão para o uso de SPA, com 58,7%. A expectativa da comunidade é de que os profissionais da saúde, nesse caso os futuros médicos, sejam cientes dos efeitos nocivos dessas substâncias e as utilizem menos, quando comparados com a população no geral. Entretanto, isso não é visualizado na literatura nacional e internacional. Esse fato suscita a importância de as universidades oferecerem serviços de apoio psicológico, sobretudo quando existe dependência química.
Dessa forma, considerando a facilidade do acesso às SPA entre os estudantes universitários, a prevalência do uso abusivo e os potenciais riscos à saúde, torna-se relevante investigar esse contexto. Quando se analisou a produção científica sobre a temática, evidenciou-se uma lacuna no que tange aos estudos que abordam especificadamente estudantes de Medicina, sobretudo na Região Nordeste do Brasil. Sendo assim, esta pesquisa teve como objetivos analisar o consumo de SPA entre os acadêmicos de Medicina da FACS/UERN e verificar as substâncias mais utilizadas com o intuito de contribuir para a formulação de atividades de prevenção. Neste estudo, adotaram-se as seguintes variáveis: idade, sexo, cidade da origem, período do curso, insônia e estresse.
MÉTODO
Efetuou-se um estudo transversal analítico com abordagem quantitativa. A pesquisa foi realizada com os estudantes de Medicina da UERN por meio da aplicação de questionários aos discentes do primeiro ano da faculdade e do internato, que compreende o quinto e sexto anos. A escolha dessa amostra deu-se em virtude de serem períodos extremos do curso, que compreendem alta carga de ansiedade e expectativas envolvidas. Dessa forma, pôde-se analisar e comparar se há diferenças no uso das SPA e, sobretudo, na frequência e consciência dos efeitos colaterais.
Realizou-se esse levantamento a partir de um questionário utilizando a ferramenta Google Forms e todos os convites para preenchimento foram enviados via WhatsApp. Os critérios de inclusão foram: ser aluno devida e regularmente matriculado na FACS/UERN no primeiro, quinto e sexto anos de curso e ter assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que aparecia on-line. O questionário só começava após o respondente marcar “sim”, informando que havia lido o TCLE e concordado com ele. Os critérios de exclusão foram: responder ao questionário de forma incompleta.
Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário padronizado, de autopreenchimento e com questões objetivas. Esse questionário consistiu em uma adaptação do instrumento proposto e desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS): Research and Reporting Project on the Epidemiology of Drug Dependence12. Um teste piloto foi realizado com cinco estudantes de Medicina que não foram incluídos na pesquisa.
O questionário foi composto por três seções. A primeira referia-se a dados sociodemográficos, incluindo sexo, idade, período do curso (primeiro ano ou internato) e se o estudante cursava Medicina na sua cidade de origem. A segunda interrogava aspectos sobre o uso de SPA: tabaco (cigarros, charutos, cigarrilhas etc.), álcool (cervejas, vinhos, licores, bebidas espirituosas, shots etc.), Cannabis (haxixe, erva, marijuana, pólen etc.), cocaína (coca, crack etc.), estimulantes do tipo anfetamina (speed, anfetaminas, ecstasy etc.), inalantes (cola, gasolina, óxido nitroso, solvente etc.), ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, alucinógenos (dietilamida do ácido lisérgico (Lysergsäurediethylamid - LSD), cogumelos, fenciclidina (phenylcyclohexyl piperidine - PCP), ketamina etc.) e opiáceos (heroína, morfina, metadona, buprenorfina, codeína etc.). Abordaram-se ainda a frequência, a dependência e a relação com quadro de estresse e insônia. A terceira seção investigava as causas associadas a esse uso, a relação com a Faculdade de Medicina, as consequências e a consciência acerca dos efeitos do consumo.
O cálculo amostral foi realizado para estimar a proporção de alunos que fazem uso de SPA considerando uma amostragem aleatória simples. Consideraram-se um nível de confiança de 95%, uma margem de erro de 5% e uma proporção estimada de 0,5. Para uma população de 164 alunos, obteve-se um tamanho de amostra de 131, sendo 80 do internato e 51 do primeiro ano. Analisaram-se variáveis de natureza categórica por meio de frequências e percentuais, e a associação entre essas variáveis foi realizada pelo teste qui-quadrado ou exato de Fisher (no caso de valores esperados menores do que 5). Também se calculou o resíduo do teste qui-quadrado para verificar a significância da categoria. Associações e comparações, em relação aos períodos, foram consideradas significativas no caso de p-valor < 0,05. Os dados foram tabulados em planilha do Microsoft Office Excel 2016 e analisados no programa Statistical Package for the Social Sciences (IBM SPSS Statistics 24).
O questionário foi aplicado entre outubro e dezembro de 2020, e todos os participantes assinaram o TCLE antes de responderem à pesquisa. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERN, sob o nº 4.295.616 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética(CAAE) nº 29323520.0.0000.5294.
RESULTADOS
No início do presente estudo, havia 59 alunos regularmente matriculados no primeiro ano e 104 no internato do curso de Medicina da UERN. A coleta de dados ocorreu entre outubro e dezembro de 2020, e obteve-se uma amostra de 51 discentes do primeiro ano (86%) e 80 do internato (77%), totalizando 131 respostas (80%) do público-alvo. Consideraram-se um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%. O sexo masculino representou 60,3% (n = 79) dos estudantes, 45,8% (n = 60) situavam-se na faixa etária entre 23 e 26 anos, e 61,1% (n = 80) eram estudante do internato. Entre os alunos entrevistados, 87,8% (n = 115) não moravam em Mossoró antes de iniciarem a faculdade, e 45% (n = 59) hoje moram sozinhos. Dos entrevistados, 56,5% (n = 74) possuem excelente relação com os pais, 77,9% (n = 102) não se consideram possuidores de insônia, e 58,8% (n = 57) afirmaram que apresentam um quadro de estresse diário (Tabela 1).
Variável | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 79 | 60,3 |
Feminino | 52 | 39,7 |
Idade | ||
18-22 anos | 28 | 21,4 |
23-26 anos | 60 | 45,8 |
27-30 anos | 21 | 16 |
> 30 anos | 22 | 16,8 |
Período do curso | ||
Primeiro ano | 51 | 38,9 |
Internato | 80 | 61,1 |
Cursa Medicina em sua cidade de origem? | ||
Sim | 16 | 12,2 |
Não | 115 | 87,8 |
Relação com os pais | ||
Excelente | 74 | 56,5 |
Boa | 49 | 37,4 |
Regular | 7 | 5,3 |
Ruim | 1 | 0,8 |
Mora sozinho? | ||
Sim | 59 | 45 |
Não, moro com colegas | 27 | 20,6 |
Não, moro com familiares | 45 | 34,4 |
Tem insônia? | ||
Sim | 29 | 22,1 |
Não | 102 | 77,9 |
Apresenta um quadro de estresse? | ||
Sim | 77 | 58,8 |
Não | 54 | 41,2 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
A prevalência do uso de SPA na vida foi de 81,7% (n = 107). As substâncias mais consumidas foram álcool (78,6%, n = 103), ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (29,8%, n = 39), Cannabis (22,9%, n = 30) e tabaco (21,4%, n = 28). Em relação às outras substâncias pesquisadas, o consumo de inalantes, estimulantes do tipo anfetamina, alucinógenos, opiáceos e cocaína durante a vida foi, respectivamente, de 6,9% (n = 9), 6,1% (n = 8), 4,6% (n = 6), 2,3 (n = 3) e 2,5% (n = 2) (Tabela 2).
Substância | n | % |
---|---|---|
Tabaco (cigarros, charutos, cigarrilhas etc.) | ||
Sim | 28 | 21,4 |
Não | 103 | 78,6 |
Álcool (cervejas, vinhos, licores, bebidas espirituosas, shots etc.) | ||
Sim | 103 | 78,6 |
Não | 28 | 21,4 |
Cannabis (haxixe, erva, marijuana, pólen etc.) | ||
Sim | 30 | 22,9 |
Não | 101 | 77,1 |
Cocaína (coca, crack etc.) | ||
Sim | 2 | 1,5 |
Não | 129 | 98,5 |
Estimulantes do tipo anfetamina (speed, anfetaminas, ecstasy etc.) | ||
Sim | 8 | 6,1 |
Não | 123 | 93,1 |
Inalantes (cola, gasolina, óxido nitroso, solvente etc.) | ||
Sim | 9 | 6,9 |
Não | 122 | 93,1 |
Ansiolíticos, sedativos e hipnóticos | ||
Sim | 39 | 29,8 |
Não | 92 | 70,2 |
Alucinógenos (LSD, cogumelos, PCP, ketamina etc.) | ||
Sim | 6 | 4,6 |
Não | 125 | 95,4 |
Opiáceos (heroína, morfina, metadona, buprenorfina, codeína etc.) | ||
Sim | 3 | 2,3 |
Não | 128 | 97,7 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Quando questionados sobre a substância mais frequentemente utilizada no dia a dia, 60,3% dos estudantes (n = 79) mencionaram o álcool. Em seguida, obtiveram-se 18,3% (n = 24) com uso principal de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, e 1,5% (n = 2) e 0,8% (n = 1), respectivamente, para Cannabis e tabaco. As demais SPA não foram escolhidas por nenhum discente. Outrossim, não houve diferença relevante na comparação desse consumo entre acadêmicos do primeiro ano e do internato (Tabela 3). Ademais, também não houve diferenças significativas quando esses dois grupos foram comparados quanto ao consumo individual de cada SPA, bem como no que concerne ao padrão de consumo.
Tabaco | Álcool | Cannabis | Ansiolíticos, sedativos e hipnóticos | Nenhum | Total | ||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Primeiro ano | % | 2,0% | 58,8% | 2,0% | 19,6% | 17,6% | 100% |
Internato | % | 0,0% | 61,2% | 1,2% | 17,5% | 20,0% | 100% |
Total | % | 0,8% | 60,3% | 1,5% | 18,3% | 19,1% | 100% |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Em relação ao padrão de consumo, 42,7% (n = 56) dos estudantes fizeram uso de SPA nos últimos 30 dias; 19,8% (n = 26), nos últimos 12 meses; 20,6% (n = 27), em qualquer período da vida; e 16,8% (n = 22) nunca utilizaram essas substâncias. Além disso, 58,8% (n = 77) dos alunos acreditam que cursar Medicina é um fator precipitante para o consumo de SPA, sendo os principais motivos a carga horária extenuante (49,6%, n = 65) e a privação do lazer (43,5%, n = 57). Quando questionados sobre o que a universidade poderia fazer para orientar os acadêmicos quanto ao uso das SPA, os participantes da pesquisa mencionaram: proporcionar assistência estudantil com equipe multiprofissional (69,5%, n = 91), abordar o tema nas aulas de farmacologia básica e aplicada (62,6%, n = 82), buscar fortalecer as relações interpessoais entre discentes, docentes e servidores (62,6%, n = 82), e organizar eventos temáticos (53,4%, n = 70).
O consumo de tabaco e Cannabis foi significativamente maior em mulheres em relação aos homens (p = 0,019 e p = 0,05, respectivamente) (Tabela 4). Além disso, 48,4% dos discentes com insônia, 85,7% dos que relataram possuir dependência e 39% dos que acreditam que cursar Medicina é fator precipitante de consumo de SPA fazem uso de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, p = 0,025, p = 0,004 e p = 0,01, respectivamente (Tabela 5).
Variável | Tabaco (Sim) | Tabaco (Não) | Cannabis (Sim) | Cannabis (Não) | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Masculino | 11 | 13,9 | 68 | 86,1 | 13 | 16,5 | 66 | 83,5 |
Feminino | 17 | 32,7 | 35 | 67,3 | 17 | 32,7 | 35 | 67,3 |
p valor | 0,019 | 0,05 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Variável | Ansiolíticos, sedativos, hipnóticos (Sim) | Ansiolíticos, sedativos, hipnóticos (Não) | |||
---|---|---|---|---|---|
Tem insônia? | n | % | n | % | p valor |
Sim | 14 | 48,3 | 15 | 51,7 | 0,025 |
Não | 25 | 24,5 | 77 | 75,5 | |
Considera-se dependente? | n | % | n | % | p valor |
Sim | 6 | 85,7 | 1 | 14,3 | 0,004 |
Não | 33 | 26,6 | 91 | 73,4 | |
Acredita que cursar Medicina é um fator precipitante para o uso dos psicoativos? | n | % | n | % | p valor |
Sim | 30 | 39 | 47 | 61 | 0,011 |
Não | 9 | 16,7 | 45 | 83,3 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
A fase de transição do ensino médio para a faculdade é repleta de dúvidas e incertezas. Na faculdade, inicia-se uma trajetória, em tempo integral e durante seis anos, que expõe o estudante a diversos fatores estressantes3. Essa experimentação acadêmica gera possibilidades vivenciais diferenciadas e perspectivas futurísticas profissionais, sendo também um período crítico por vulnerabilizar o estudante para iniciar a ingestão de SPA e prosseguir com ela1. Atualmente, o uso de SPA tem sido considerado um impasse preocupante, uma vez que predispõe a acidentes, comportamentos de risco, distúrbios do sono e até mesmo dependência, tanto física quanto psicológica13.
Os jovens representam a maior parcela daqueles que usam drogas e os que mais consomem tais substâncias em excesso, constatação que também preocupa, uma vez que constituem o grupo populacional mais vulnerável às consequências desse uso14. Um estudo com 567 estudantes da área da saúde realizado na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) mostrou prevalência de “uso na vida” de 88,4%15. Nesta pesquisa, encontrou-se valor de 81,7%. Elevados valores de consumo entre estudantes universitários do Brasil foram encontrados também em diversos outros estudos, os quais apontaram o uso de drogas por parte dos acadêmicos de Medicina com objetivos de melhorar a performance acadêmica, reduzir o estresse psicológico e compensar a falta de tempo e de lazer16),(17.
Seguindo uma tendência mundial, em estudos realizados com acadêmicos de Medicina no Brasil, o álcool ainda é a SPA mais consumida, seguido do tabaco e da maconha18)-(21. Entretanto, as SPA apresentadoras de maior relevância no presente trabalho, no que tange à ingesta, foram álcool (78,6%), ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (29,8%), Cannabis (22,9%) e tabaco (21,4%). No que tange ao padrão de temporalidade do consumo das SPA, observa-se uma concentração de ingesta nos últimos 30 dias (42,7%). Essa realidade é, possivelmente, contextualizada no andamento do curso e em suas exigências e consequentes necessidades de válvulas de escape diversificadas por parte do alunado.
O álcool é a droga legal mais usada no Brasil, ingerida por quase 70% da população22. No presente estudo, a prevalência para uso de álcool na vida foi de 78,6%, índice semelhante aos achados de Gomes et al.23, que constataram que 81,1% de discentes já haviam feito uso de álcool na vida. Vários fatores podem contribuir para o consumo de álcool pelos estudantes universitários. Possivelmente, o prevalecimento alcoólico dá-se em razão da legalização e da amplitude da aceitação social do composto24. Além disso, tem-se o fato de que a universidade representa uma oportunidade de independência, estimulando uma maior socialização e exposição a ambientes de festas, locais onde o álcool é frequentemente encontrado25. Outrossim, no caso deste trabalho, 87,8% dos estudantes tiveram que mudar de cidade para cursar Medicina, e essa situação de afastamento da família pode desencadear sentimentos de solidão e depressão que também se correlacionam com o maior consumo de álcool23.
Quando se analisou a segunda SPA mais consumida, verificou-se o prevalecimento dos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, o que é discordante da literatura nacional que aponta resultados com predomínio do tabaco nessa posição. Entretanto, apesar de o tabaco ocupar a posição de quarto lugar neste trabalho, esta pesquisa mostrou uma prevalência de consumo de tabaco (21,4%), concordante em relação a estudos semelhantes envolvendo estudantes de Medicina no Espírito Santo e em faculdades no Nordeste, que evidenciaram prevalências de uso de tabaco de 20,1%, 22% e 24,3%20),(26),(27. Nessa perspectiva, os dados mais recentes do ano de 2019, a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)28, apontam o percentual total de adultos fumantes em 12,6%. Essa diferença de valores pode ser explicada pelo fato de essa amostra de estudantes ser composta de uma população mais jovem que vivencia um ambiente competitivo e desafiador, que pode levar o aluno a uma sensação de frustração e cobrança diante do fracasso, e suscitar o consumo dessa e de outras drogas ilícitas29.
Outrossim, visualizou-se a manutenção do perfil de consumo ao longo dos períodos da graduação que foram pesquisados, cenário que se contrapõe a diversos estudos que relataram um relevante padrão de crescimento desse consumo ao decorrer do curso de Medicina3),(11),(16),(20),(23),(30. Esse resultado divergente sinaliza um acesso da juventude universitária cada vez mais precoce às SPA, inclusive antes do início da vida universitária, o que justifica tal achado. Essa situação é ainda mais preocupante quando se raciocina que o lógico seria ocorrer um decréscimo do consumo de SPA à medida que se espera que os futuros médicos tenham consciência acerca dos prejuízos do uso dessas substâncias e, ainda, sejam um exemplo para os pacientes, sobretudo para aqueles que precisam de orientação quanto ao uso de drogas.
Outro resultado interessante avaliado foi o significativo maior consumo de tabaco e Cannabis por mulheres de 32,7% para ambas as drogas (p = 0,019 e p = 0,05, respectivamente). Esse achado é dissonante de outras bibliografias levantadas que estudaram jovens universitários brasileiros, as quais relataram consumo estatisticamente significante maior tanto de tabaco quanto de Cannabis por homens1),(30)-(32. Uma hipótese levantada pelos pesquisadores e justificadora dessa descoberta discrepante reside na possibilidade de as mulheres participantes da pesquisa encontrarem no consumo de tabaco e Cannabis uma possibilidade de sanar suas demandas individuais e acadêmicas com compostos de menor apelação social, culminando em menor visibilidade e estereotipação da coletividade sobre a conduta da mulher. Vê-se que a associação foi ainda mais significante entre mulheres e tabaco, uma droga há décadas manifestadamente consumida em decréscimo social. Isso, conjuntamente com os outros achados do trabalho, sugere que não há uma padronização genérica já esperada do perfil de consumo de SPA entre graduandos de Medicina. Dessa forma, deve-se falar, então, em hábitos e comportamentos configurados em heterogeneidade, consoante a motivação e os contextos da ambiência acadêmica do alunado, bem como da disponibilidade locorregional de compostos para os discentes.
No estudo em questão, a prevalência de uso na vida de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos correspondeu a 29,8%, sendo a segunda SPA mais consumida. Contudo, tanto Lemos et al.11 quanto Petroianu et al.19 encontraram, respectivamente, 11,9% e 12% de uso na vida de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos em pesquisas equivalentes com estudantes de Medicina. Segundo Brito et al.33 em estudo realizado com 870 estudantes de Medicina, conforme o avançar do curso, observam-se um aumento no consumo desse tipo de SPA e uma piora na qualidade do sono, consequências que poderão ser criadas se se considerarem o aumento das exigências acadêmicas e o esgotamento físico e mental. Destaca-se ainda, na presente pesquisa, que 48,4% dos discentes que manifestaram ter insônia, 85,7% dos que relataram possuir dependência e 39% dos que acreditam que cursar Medicina é fator precipitante de consumo de SPA fazem uso de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos (p = 0,025, p=0,004 e p = 0,01, respectivamente). Essa incorporação medicamentosa significa potencialmente o manejo de problemas contextuais e estruturais pelos quais o discente de Medicina perpassa, e, por isso, ele sente a necessidade de tal usufruto29.
Diante dessa realidade existente, diversas hipóteses são formuladas para tentar explicar tão relevante quadro de consumo de SPA. A priori, esse grupo de indivíduos apresenta menor qualidade de vida quando confrontado ao restante da população no que diz respeito à saúde psicológica e às relações sociais8. Em pesquisa realizada com acadêmicos de Medicina da UERN, Cardoso Filho et al.34 constataram, em uma amostra de 72 discentes, que 45% se sentiam sobrecarregados por atividades extracurriculares e como consequência dispunham de pouquíssimos momentos de lazer. No atual estudo, 58,8% (n = 77) dos acadêmicos responderam que cursar Medicina é um fator precipitante para o consumo de SPA, sendo os principais motivos a carga horária extenuante (n = 65) e a privação de lazer (n = 57).
Portanto, salienta-se a importância de a universidade e suas estruturas administrativas tomarem ciência da realidade com o intuito de possibilitar a criação de mecanismos assistenciais para esses acadêmicos. O conhecimento do perfil discente relativo à temática é primordial para a construção de políticas e estratégias focadas na prevenção e no combate do uso dessas substâncias. O sistema público de saúde e as universidades têm a responsabilidade de conduzir pesquisas e intervir no consumo de estimulantes entre acadêmicos de Medicina35. Destacam-se, assim, estratégias de intervenções voltadas para o apoio pedagógico e psicológico. No arremate, faz-se necessário criar ações que visem orientar e prevenir o consumo de SPA, lembrando que a melhoria do ambiente universitário é essencial nesse contexto, tornando-se fundamental que seja provocada a reflexão do tema no meio acadêmico.
Com base nos resultados obtidos, sugere-se que o curso de Medicina é fator estimulante para o consumo de SPA. Para além do fator tipo de graduação, os contextos sociodemográficos, como a idade jovem e o uso e o apelo social que fomenta o consumo diverso de psicoativos, devem ser considerados porque também predispõe o uso dessas substâncias. É preciso destacar que tais discentes serão futuros médicos, responsáveis pelo cuidado e pela promoção de saúde na comunidade. Assim, este estudo evidencia um resultado preocupante que ecoa na saúde pública, o qual é essencial que seja compreendido pelos representantes das universidades.
Destarte, convém destacar que este estudo apresenta como limitação o fato de ter sido realizado por questionário on-line, já que não foi possível aplica-lo presencialmente em razão da pandemia da coronavírus disease 2019 (Covid-19). Ademais, por conta da complexidade e dos múltiplos fatores acerca do tema, faz-se imperativo que estudos a posteriori ampliem as populações estudantis médicas estudadas, as quais se revelam heterogêneas e não padronizadas em termos de perfil de consumo dessas substâncias.
CONCLUSÃO
Constata-se elevado uso na vida de SPA entre os estudantes de Medicina da UERN, perfil que se mostrou semelhante entre os semestres pesquisados, ao longo da evolução do curso. É exibido um perfil majoritariamente alcoólico, seguido de medicamentos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, Cannabis e tabaco, com prevalecimento temporal chamativo nos últimos 30 dias, indicando utilização constante e perene. A segunda posição de consumo das SPA mencionadas, em contraponto à literatura, sinaliza um cenário preocupante de tentativa de medicalização discente diante dos contextos vivenciados.
A pesquisa averiguou uma diferença significativamente maior do consumo de Cannabis e tabaco por mulheres em comparação com os homens, achado dissonante das literaturas utilizadas para o embasamento do trabalho. Além disso, demonstrou relação relevante quanto à prevalência de insônia e à dependência entre os estudantes que utilizam ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, e o fato de acreditarem que cursar Medicina é um fator precipitante para o uso de SPA.