INTRODUÇÃO
Reconhecer que os problemas de saúde se tornam cada vez mais complexos e dinâmicos é reconhecer que novas formas de cuidado devem ser postas em prática. Assim, a educação interprofissional (EIP) e o trabalho colaborativo (TC) vêm ganhando destaque. O TC “deve ser entendido enquanto complementaridade das práticas das diferentes categorias profissionais, atuando de forma integrada, compartilhando objetivos em comum para alcançar os melhores resultados de saúde”1. Segundo Ceccim2,
[...] a interprofissionalidade é mote e potência de mais pesquisa, experimentação e renovação, não aniquilando as profissões, antes aperfeiçoamento e elevando suas competências e habilidades a patamares distintos, mais capazes de resolubilidade e interação com os saberes e fazeres no campo de ação em que se inscrevem ou inserem (p. 52).
Entretanto, ressalta-se que “formar profissionais mais colaborativos implica em mudanças culturais, com grandes desafios que também são institucionais e políticos” (p. 18)3; assim, o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), instituído pela Portaria Interministerial nº 421, de 3 de março de 2010, assume importante papel nos âmbitos institucionais e políticos ao promover reflexões acerca da formação profissional.
O PET-Saúde colabora para a concretização das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação4. As DCN “trouxeram a interprofissionalidade como um dos marcos capazes de transformar a lógica de futuros profissionais da saúde” (p. 19)3. Sua edição Interprofissionalidade selecionou projetos que fomentassem a “qualificação dos processos de integração ensino-serviço-comunidade, de forma articulada entre o Sistema Único de Saúde-SUS e as instituições de ensino [...]”1, promovendo a “[...] EIP e as Práticas Colaborativas em Saúde”1.
Professores/tutores do PET-Saúde e profissionais/preceptores dos serviços de saúde orientam os alunos4. Os selecionados para participar do PET-Saúde recebem uma bolsa, entretanto podem também ser encontrados estudantes e preceptores voluntários. O Consultório na Rua (CnaR), selecionado para integrar a preceptoria do PET-Saúde/Interprofissionalidade, compõe a atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial, seguindo seus fundamentos e diretrizes5. As equipes do CnaR (eCnaR) são constituídas por profissionais de diferentes formações e podem se estruturar em três distintas modalidades de acordo com os profissionais que as compõem6.
MÉTODO
Este trabalho relata experiências da acadêmica de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), estagiária bolsista do PET-Saúde/Interprofissionalidade, no CnaR de uma cidade do estado do Rio de Janeiro, sendo assistida por dois tutores/professores da UFF e três preceptores/profissionais do CnaR de distintas formações profissionais e interagindo com alunos da UFF de diferentes cursos. O PET-Saúde/Interprofissionalidade iniciou-se no primeiro semestre de 2019, encerrando-se no primeiro semestre de 2021.
Para Pacheco e Onocko-Campos7, “conta-se a vida ou a experiência pela narrativa” (p. 4). Utilizando-se como ferramenta metodológica a narrativa, será partilhado não apenas o que o campo prático trouxe à luz, mas também o que ganhou vida por meio da intersubjetividade no encontro com diversos personagens e dos processos reflexivos decorrentes dessa aproximação. Bondía8 fala da experiência como aquilo “que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (p. 21). Sendo assim, esse será um movimento de partilha não apenas do que observei, mas sobretudo do que vivenciei, daquilo que produziu marcas, tocou, afetou, somou, fortaleceu e teve força transformadora no encontro com o outro.
Foram utilizados como base 44 relatórios reflexivos enviados semanalmente aos preceptores e tutores do PET-Saúde/Interprofissionalidade. Esses relatórios foram revisitados e passaram por novo processo reflexivo, trazendo outras memórias e novas formas de enxergar os fatos vivenciados. Segundo Benjamin9, “o narrador retira o que ele conta da experiência: de sua própria experiência ou da relatada por outros. E incorpora, por sua vez, as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (p. 217), destacando que a narrativa “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desdobramentos” (p. 220).
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Durante os ricos encontros com a população em situação de rua (PSR), pude observar diversas, complexas e dinâmicas situações. Para alguns, o atendimento médico era o que precisavam em determinados momentos; para outros, obter um documento de identidade era o principal. Por meio da escuta qualificada, foi possível identificar pessoas que demonstravam intensa preocupação com o estado de saúde de outros, esquecendo-se por vezes de si mesmas. A violência nas relações conjugais estava presente em diversas ocasiões, e talvez o primeiro e maior desafio seria levar o indivíduo a perceber que era vítima de violência, pois frequentemente tanto mulheres quanto homens agredidos nomeavam essa agressão como uma simples discussão.
Outra situação delicada diversas vezes abordada foi a que envolvia puérperas que faziam uso prejudicial de álcool e outras drogas. A busca ativa realizada pela eCnaR para que as gestantes tivessem um pré-natal adequado era umas das prioridades e muitas vezes o começo da construção de vínculos mais fortes com a equipe e do desenvolvimento de uma relação mais profunda com o bebê. Embora algumas crianças fossem incentivo para uma mudança na vida da mulher, algumas eram separadas dos filhos. É indiscutível que a criança deva ser protegida, mas o afastamento familiar não era a resposta em todos os casos, havendo, portanto, movimentos da equipe para que, até o parto, a mulher que desejasse permanecer com seu filho estivesse em processo de progressivo restabelecimento da cidadania; buscava-se também contactar algum familiar com o qual a criança pudesse permanecer, de modo a preservar os laços.
Compreender as dinâmicas que envolvem a PSR foi importante não apenas para o desenvolvimento de maior habilidade para lidar com essas pessoas, mas também para a inserção em ações que contemplassem os indivíduos em suas necessidades e para o entendimento das relações que se formavam naquele espaço.
DISCUSSÃO
A figura do professor facilitador é vital para o sucesso da EIP, pois ele auxilia na aprendizagem colaborativa dos estudantes ao garantir ambientes interprofissionais propícios10, porém ampliar a qualificação de docentes para que lecionem em classes formadas por alunos de diversos cursos é tarefa árdua, pois o modelo tradicional permanece enraizado nas instituições de ensino. Reeves et al.10 chamam a atenção para o fato de que o suporte/apoio organizacional/institucional também é fundamental para o sucesso da iniciativa ao garantir acesso aos recursos necessários para a implementação e o desenvolvimento da EIP.
Autores como Guraya et al.11 e Costa et al.12 acreditam que a EIP possa desconstruir estereótipos que trabalhadores tenham sobre outros de diferentes formações. Além disso, “professores de diferentes cursos podem ajudar a pensar as disciplinas, estimulando a colaboração”12 (p. 69) e fortalecendo esse modelo de ensino. Mas essa integração nem sempre ocorre; as grades curriculares deixam pouco ou nenhum tempo disponível para interação entre cursos, sendo possível encontrar discentes dividindo o mesmo espaço, como enfermarias, sem que sejam estimuladas as trocas de saberes/experiências entre eles.
No Brasil, o TC vem sendo discutido de modo a dar sustentação a um sistema de saúde universal, equânime e integral, mas os desafios são ainda inúmeros, sendo necessário o desenvolvimento de estratégias que garantam a consolidação da EIP13. Embora sejam necessários mais estudos para conhecer melhor os resultados de longo prazo da EIP na saúde, sendo ainda limitado o conhecimento sobre a repercussão dessa nas mudanças organizacionais e de atenção ao paciente, evidências de seu impacto continuam expandindo-se, indicando que esse tipo de educação pode melhorar notavelmente as atitudes/percepções colaborativas e os conhecimentos/habilidades dos envolvidos, alcançando alunos em diferentes estágios de graduação10),(11.
Por meio do TC e das interações interpessoais com usuários do serviço, novas necessidades poderão ser identificadas e novos objetivos traçados e, se necessário for, modificados: “Sabemos que não somos capazes de estabelecer vínculos positivos com todas as pessoas, por isso é bom trabalhar em equipes que avaliam constantemente suas ações. Não podemos tudo, precisamos conhecer nossos limites e possibilidades” (p. 27)5. Mas não se pode ignorar o fato de que
[...] um dos pontos de fragilidade do processo de formação dos profissionais de saúde é a pouca capacidade na formação de profissionais aptos ao efetivo trabalho em equipe, reproduzindo um modelo de atenção à saúde muito fragmentado e pouco resolutivo14(p. 710).
Inúmeros desafios surgem quando a EIP é debatida, sendo necessário repensar a organização curricular das instituições de ensino e a qualificação docente, conectando práticas em saúde à realidade da comunidade e promovendo a articulação com diferentes cursos da saúde e outras áreas14. Mas é necessário ter em mente que, nesse dinâmico processo, a abordagem interprofissional não exclui as abordagens uni ou multiprofissional, havendo situações em que as últimas são capazes de oferecer bons resultados12, mas sozinhas estas seguramente não serão capazes de ofertar todo o suporte necessário.
Há divergências entre diversos estudos em relação ao tempo de introdução do estudante às práticas colaborativas. Alguns acreditam que ela deva ocorrer após a aquisição dos conhecimentos relativos e específicos ao curso, o que daria aos alunos maior segurança na discussão dos casos; outros acreditam que essa interação deva ocorrer mais precocemente, quando os elementos que constroem suas identidades profissionais ainda não estão consolidados12.
Para Reeves15, a EIP poderia ser utilizada nas fases mais iniciais da graduação com o propósito de inicialmente preparar os estudantes em relação às práticas colaborativas e em uma fase mais tardia com o objetivo de reforçar as experiências de aprendizado. Apesar dessas dúvidas em relação ao tempo em que a EIP deva se dar, não restam dúvidas de que a presença do TC tem se tornado cada vez mais significativa na oferta de um serviço de melhor qualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As transformações/ampliações no modo de pensar a relação com o outro devem vir acompanhadas de reais mudanças na atuação do estudante, que se torna multiplicador da interprofissionalidade no âmbito das atividades realizadas com outros alunos em salas de aula, enfermarias, ambulatórios - e por que não dizer no espaço da rua? - etc. Esse longo processo nem sempre - ou quase nunca - é fácil, no entanto a colaboração entre profissionais tem potência para despertar no estudante habilidades que o auxiliarão a enfrentar dificuldades e a transpor obstáculos que se erguerão nessa complexa tarefa de se relacionar com o outro.
A EIP amplamente abordada, mas de forma alguma esgotada, pelo PET-Saúde/Interprofissionalidade possibilita a interação entre discentes de distintos cursos e a convivência com profissionais de diferentes formações, enriquecendo o processo ensino-aprendizagem. O TC em saúde realizado por profissionais de diversos campos de formação torna-se ponto primordial na formação do acadêmico de Medicina, que passa a ter a oportunidade de se inserir em unidades de saúde que têm como foco a interprofissionalidade, possibilitando uma aquisição significativa desse novo conceito.
Sendo assim, a EIP possui potência para favorecer a formação de futuros profissionais envolvidos com práticas interprofissionais no SUS, entretanto análises constantes do currículo de Medicina, educação permanente em saúde dos profissionais, reestruturação das práticas docentes, apoio institucional e outras ações para implementação de espaços de troca de experiências/saberes entre alunos de diferentes cursos constituem importantes passos na formação de graduandos comprometidos, desde o início da caminhada, com a oferta de serviços de qualidade, centrados no cuidado integral e em rede dos usuários.