SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 issue2The Education through Work Program for Health/Interprofessionality: experiences of a Medical studentActive methodologies and digital technologies in medical education: new challenges in pandemic times author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista Brasileira de Educação Médica

Print version ISSN 0100-5502On-line version ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.2 Rio de Janeiro  2022  Epub May 03, 2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.2-20210282 

Relato de Experiência

Aprender e ensinar semiologia médica em situações de deficiência auditiva: nossa experiência

Learn and teach medical semiology front hearing impairment: our report

Raquel Moret Henrique Campos1 
http://orcid.org/0000-0002-2704-2759

Gabriela Cristina Coelho Pereira1 
http://orcid.org/0000-0003-4289-4543

Elisa Guimarães de Figueiredo1 
http://orcid.org/0000-0002-2843-958X

Evelyn Cristina Silva Venturini1 
http://orcid.org/0000-0001-7571-7880

Luisa Cardoso Maia1 
http://orcid.org/0000-0002-0348-1343

Érika Lima Pimenta1 
http://orcid.org/0000-0003-0903-3629

Gabriela Costa de Andrade1 
http://orcid.org/0000-0003-1957-4218

Thiago Luiz do Nascimento Lazaroni1 
http://orcid.org/0000-0002-5703-8558

1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil.


Resumo:

Introdução:

Da população brasileira, 5% vivem com algum nível de deficiência auditiva. Apesar desse número, poucas pessoas têm acesso à educação superior. A legislação nacional defende a integração e, principalmente, a inclusão dessas pessoas no ambiente acadêmico brasileiro. Poucos são os dados sobre o acesso dos deficientes auditivos ao curso de Medicina no Brasil.

Relato de experiência:

Este artigo apresenta relatos de experiências de uma estudante com deficiência auditiva que cursou a disciplina de Introdução à Semiologia Médica e de seus professores e da estudante-monitora que acompanhou a disciplina. Para discutir os temas, foram selecionados 12 artigos das bases de dados MEDLINE, SciELO e LILACS, publicados entre julho de 2019 e outubro de 2021. Também se utilizaram informações publicadas pelo IBGE e Portal MEC.

Discussão:

A estudante relata sua dificuldade em compreender termos semiológicos, bem como suas alternativas para adquirir habilidades referentes ao exame físico. O relato do professor aborda como a inclusão é possível porém desafiadora ao se ensinar semiologia médica a uma pessoa com deficiência auditiva.

Conclusão:

Estudantes deficientes auditivos se beneficiam de adequação acadêmica visando à integração e inclusão para obter êxito em adquirir e treinar suas habilidades semiotécnicas. Há urgente necessidade de novas pesquisas brasileiras nessa área, principalmente relacionadas à medicina e ao ensino médico.

Palavras-chave: Educação de Deficientes Auditivos; Deficiência Auditiva; Educação Médica

Abstract:

Introduction:

Five percent of the Brazilian population lives with some level of hearing impairment. Despite this number, few of these people have access to higher education. National legislation defends the integration and, mainly, the inclusion of these people in the Brazilian academic environment. There are few data on the access of the hearing impaired to the Medicine course in Brazil.

Experience report:

This article brings reports of experiences of a medicine student with hearing impairment, her monitor and her professors, with the aim of discussing the challenges faced. A contextualization with the current literature was carried out.

Discussion:

The student reports her difficulty in understanding semiological terms, as well as her alternatives for acquiring skills related to the physical examination. The role of the monitor and the teacher is approached with personal accounts that show how inclusion is possible and challenging.

Conclusion:

Hearing impaired students benefit from academic adequacy aimed at integration and inclusion to successfully acquire and train their semiotechnical skills. There is an urgent need for new Brazilian research in this area, mainly related to medicine and medical education.

Keywords: Hearing Deficiency Education; Hearing Deficiency; Medical Education

INTRODUÇÃO

Perda auditiva é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como impossibilidade de ouvir no limiar da audição normal subtraídos até 25 decibéis (dB). Pode afetar um ou ambos os ouvidos e causar dificuldade em ouvir desde conversas até sons mais altos. Deficiência auditiva é a expressão usada para pessoas com perda auditiva de intensidade leve a severa, sendo a audiometria utilizada para sua classificação (Quadro 1)1),(2. Pessoas que vivem com deficiência auditiva podem se comunicar por meio da linguagem falada, como também podem se beneficiar do uso de aparelhos auditivos, implantes cocleares ou outros dispositivos auxiliares, bem como legendas. Essas pessoas podem ainda se comunicar em linguagem de sinais ou por meio do uso de linguagens mistas, inclusive leitura orofacial. Já a surdez é definida como perda auditiva profunda, caracterizada por pouca ou nenhuma audição. As pessoas surdas costumam se comunicar pela linguagem dos sinais e pela leitura orofacial para compreender as pessoas que usam a linguagem falada1.

Quadro 1 Classificação da perda auditiva. 

Limiar auditivo Grau da perda auditiva Habilidade para compreensão da fala
≤ 25 dB Audição normal Sem dificuldade de compreensão
26 a 40 dB Leve Dificuldade somente na fala fraca
41 a 55 dB Moderada Frequente dificuldade na fala normal
56 a 70 dB Marcada/Moderada-severa Frequente dificuldade na fala intensa
71 a 90 dB Severa Só entende fala gritada/amplificada
≥ 91 dB Profunda Não entende a fala, mesmo com amplificação

Fonte: Davis e Silverman (1970) apud Conselho Federal de Fonoaudiologia2.

Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou o último censo demográfico brasileiro, no qual cerca de 5,1% da população brasileira declarou possuir alguma deficiência auditiva. Dos indivíduos acima de 5 anos dessa população, 75,5% eram alfabetizados. O censo também apontou que há quase um milhão de brasileiros com até 19 anos com deficiência auditiva, enquanto outros oito milhões estão acima dessa idade. Em 2013, um total de 29.034 estudantes com alguma deficiência auditiva estava matriculado no ensino superior brasileiro: 1.488 estudantes surdos (5,13% do total), 7.037 deficientes auditivos (24,24% do total) e 151 estudantes surdos-cegos (0,52% do total)3.

Visando criar adaptações para eliminar as barreiras físicas, de comunicação e de informação, que restringem a participação e o desenvolvimento acadêmico e social de estudantes com deficiência, em 2011 foi editado o Decreto nº 7.611, que instituiu a obrigatoriedade da estruturação de Núcleos de Acessibilidade e Inclusão (NAI) nas instituições federais de educação superior3. Além disso, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi oficializada na grade curricular de cursos de formação de professores e fonoaudiólogos4. É importante ressaltar que, no Brasil, existem algumas leis até mais antigas sobre a temática. De acordo com os decretos nºs 5.296/2004 e 5.626/2005 e o Edital INCLUIR nº 04/2008, fundamentados nos princípios e nas diretrizes contidos na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), o programa de acessibilidade na educação superior se tornou obrigatório nas faculdades e universidades do país. O programa INCLUIR já propunha a criação de NAI que garantissem a integração de pessoas com deficiência à vida acadêmica, eliminando barreiras comportamentais, pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação5.

Essas medidas decretadas nos últimos anos foram extremamente importantes, porém não representam a solução ideal de inclusão de alunos brasileiros que vivem com deficiência. Também é preciso compreender melhor essas deficiências e necessidades, bem como as potencialidades individuais, e criar meios que permitam equiparar a experiência do ensino vivida por esses estudantes com a de estudantes não deficientes6.

Na área de ensino médico e em outras áreas de ensino da saúde, a necessidade de ampliar o debate inclusivo é premente. Por serem cursos essencialmente práticos e que exigem habilidades técnicas diversas, a discussão sobre acessibilidade, adaptação de ferramentas pedagógicas e reinvenção do processo de ensino-aprendizagem é ainda mais desafiadora.

Por exemplo, nas disciplinas de semiologia médica, o uso de Libras e a presença obrigatória dos NAI podem não representar a solução de acessibilidade ao ensino médico. Tal disciplina é parte integrante da formação médica fundamental cujo objetivo é desenvolver as competências e habilidades para o futuro médico realizar uma boa anamnese e um bom exame físico. Para que o médico possa obter informações acerca do estado de saúde do paciente, ele deve utilizar habilidades refinadas relacionadas à inspeção, palpação, percussão e ausculta do corpo humano. Tais habilidades exploram o uso de múltiplos sentidos do examinador, como a visão, a audição, o olfato e o tato. A aquisição de habilidades semiológicas que envolvam a audição pode ser, portanto, um grande desafio para o estudante com deficiência auditiva, seus colegas e professores. O estudante com deficiência auditiva pode ter dificuldade em compreender a fala do paciente, quando este apresenta suas queixas e histórias, e/ou perceber os diversos sons obtidos através da percussão e ausculta. Portanto, apenas a introdução de Libras em sala de aula não seria suficiente para a emancipação inclusiva desses estudantes6.

Paradoxalmente, há poucos dados na literatura científica sobre metodologias pedagógicas, materiais e tecnologias que poderiam melhorar o ensino da semiologia médica para um estudante com deficiência auditiva.

Diante dessas constatações, o presente texto tem como objetivo principal relatar a experiência vivida por uma estudante do curso de Medicina com deficiência auditiva. Além disso, apresenta-se o relato dos professores envolvidos no processo de ensino de semiologia médica e da monitora da disciplina em questão, de modo a levantar uma discussão sobre os desafios de aprender e ensinar semiologia em um cenário de deficiência auditiva.

Apresentamos ao final do texto informações práticas de como melhorar as experiências futuras semelhantes tanto para os discentes quanto para os docentes envolvidos, utilizando dados legais e orientações recebidas pelo Núcleo de Acessibilidade e Inclusão quanto da reflexão dos relatantes.

MÉTODOS

Foram obtidos relatos de experiências de uma estudante com deficiência auditiva que cursou a disciplina de Introdução à Semiologia Médica e de seus professores. Também se obteve relato da estudante-monitora que acompanhou a estudante durante a disciplina. Tal disciplina foi ministrada no segundo ano do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) durante o primeiro semestre de 2019. Os relatos dos participantes foram colhidos ao término do semestre letivo.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da PUC Minas, de acordo com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 37857920.0.0000.5137 e Parecer nº 4.428.003, e todos participantes concordaram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) após explicação do objetivo do relato de caso.

Entre julho de 2019 e outubro de 2021, realizaram-se buscas nas bases de dados MEDLINE, SciELO e LILACS pertinentes ao tema aqui abordado. Selecionaram-se 12 artigos relevantes para discutir o relato de experiência. Dados governamentais obtidos nos sítios do IBGE e do Portal do Ministério da Educação (MEC) também serviram de subsídio para a discussão do tema.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Relato de uma estudante com deficiência auditiva

A estudante relatante tem perda auditiva neurossensorial bilateral profunda em ambos os ouvidos, de acordo com os critérios de classificação de Davis e Silverman (1970) apud Conselho Federal de Fonoaudiologia2. Tal classificação (Quadro 1) é utilizada até os dias atuais pela sua praticidade. A estudante faz uso de um aparelho auditivo do tipo amplificador, que capta ruídos sonoros ambientais e é acoplado a uma prótese de silicone. Para a compreensão da fala humana, ela se utiliza ainda da leitura orofacial. A estudante é ainda capaz de se expressar por meio da fala, não necessitando do uso de Libras para comunicação.

Logo após o término do semestre letivo, a estudante foi convidada a relatar a experiência de cursar a disciplina de Introdução à Semiologia Médica. Cabe aqui ressaltar a importância do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão e da coordenação do curso que permitiram que os professores tomassem ciência antecipada da matrícula e que forneceram orientações sobre como eles deveriam proceder para receber a aluna no início das aulas. A importância desse preparo institucional é relatado na experiência da estudante:

Antes de cada semestre, o NAI entra em contato comigo com o objetivo de verificar as minhas principais dificuldades nos semestres anteriores, bem como as principais alternativas que possam facilitar a minha compreensão nas aulas. Depois dessa discussão, o núcleo entra em contato com a coordenação e com os professores, deixando-os cientes da minha necessidade. Acho muito interessante que, antes do início de cada semestre, o NAI e a coordenação enviam um e-mail em conjunto para todos os professores que me darão aula ao longo dos próximos seis meses. Assim, os educadores possuem um tempo para se adaptar e me receber. É uma oportunidade para todos se prepararem.

Mesmo com as informações oferecidas pelo NAI e o preparo dos professores, os desafios surgiram. Conforme relatado, os desafios começaram nas aulas teóricas da disciplina. Há que se considerar a quantidade de novas informações que são apresentadas, bem como a pronúncia diferenciada de palavras até então desconhecidas:

No final das aulas teóricas, eu sempre pedia para os meus colegas para que eu pudesse tirar foto das anotações deles, para não deixar passar alguma informação. Nos horários de estudos, eu comparava com as minhas anotações, e complementava o que eu, de certa forma, deixava passar. [...] Quando eu anoto alguma coisa, eu desvio de foco do professor, pois eu paro de olhar para ele e passo a olhar para o caderno, para que possa ser feita a anotação. Às vezes, quando eu olho novamente para o professor, ele já se encontra em outra linha de raciocínio, na maioria das vezes completamente diferente daquela última que foi captada. Eu particularmente acho um hábito difícil de largar - não anotar alguma coisa no caderno e depender mais de leitura de livros. [...] Nas aulas teóricas de semiologia, eu cheguei a confundir muitas manobras por causa de nomes, principalmente os que têm pronúncia estrangeira. [...] Eu escutava uma coisa, mas falava ou escrevia no caderno algo completamente diferente. Eu também cheguei a confundir e trocar conceitos parônimos, que são ditos de forma semelhante mas com significados muito diferentes Por exemplo, fiz muita confusão entre colelitíase e colecistite, arteriosclerose e aterosclerose [...].

Sobre o papel da monitoria, a estudante relatou o seguinte:

Tive alguns encontros extraclasse e extramonitorias com a monitora que me acompanhou na disciplina. Me senti muito grata quando ela buscou, por iniciativa própria, a me compreender da melhor forma possível, abordando a minha história e as minhas dificuldades com relação à perda auditiva. E, diante disso, buscamos a melhor forma de ministrar as monitorias para que eu usufruísse ao máximo o que ela tinha para me oferecer.

Além disso, o relato mostra a dificuldade em conseguir a aparelhagem adaptada ao seu grau de deficiência, bem como o seu primeiro contato com um estetoscópio eletrônico adaptado:

Antes de comprar o estetoscópio, eu estava procurando um exemplar aqui mesmo no Brasil para que eu pudesse fazer um teste pessoalmente. Demorei muito para encontrá-lo, pois não são muitos profissionais que o possuem. Consegui fazer um teste graças a uma conhecida que ficou sabendo da minha busca pelo estetoscópio e disponibilizou o dela para a testagem. Nesse dia, eu ouvi sons que nunca imaginava que ia ouvir! Os sons pulmonares, com certeza, foram os sons mais novos para mim! [...] Porém, outra coisa que me barrou foi o preço: por ser fora do Brasil, o preço ficava extremamente alto, e só consegui obtê-lo na metade do segundo semestre de 2019.

Nem sempre o estudante com deficiência auditiva, mesmo com mecanismos amplificadores, irá conseguir ouvir o som de maneira eficiente. Uma alternativa interessante encontrada pela aluna e visualizada pelos monitores e professores foi o aprimoramento do uso do tato: “Consegui conciliar o som que ausculto com a vibração que sinto ao percutir o paciente. De certa forma, a vibração é como se fosse uma ‘leitura labial’ do som percutido: sem ela eu posso até auscultar o som, mas não consigo compreendê-lo”.

Por fim, a estudante concluiu o relato:

Definitivamente, sem a paciência e a colaboração de todos os envolvidos, como os professores, os meus colegas e a monitora, eu não teria aproveitado a disciplina tanto quanto eu aproveitei. Além disso, me senti muito bem recebida, principalmente quando todos buscavam compreender a minha dificuldade auditiva.

Relato dos professores e da estudante-monitora

Os professores envolvidos relataram que tiveram que manter um olhar atento em suas ações para que o ensino se tornasse mais inclusivo possível. Com relação às aulas teóricas, combinaram que se postariam sempre de frente para a estudante, de modo a possibilitar a leitura orofacial. Mesmo com olhar atento às práticas de ensino inclusivas, algumas observações foram levantadas:

Apesar de saber previamente da dificuldade auditiva da estudante, não temos preparo didático para enfrentar essa situação com êxito. A preocupação em oportunizar a ela as mesmas condições que os outros estudantes têm durante as aulas expositivas e práticas é uma constante. Não raro, a cobrança pessoal é imensa. Nos sentimos estimulados, mas por vezes muito despreparados para fornecer uma experiência de aprendizagem de qualidade. Começamos a rever, mesmo findadas as atividades, o que poderia ter sido melhor. Não há clareza se estamos acertando. É algo angustiante. Por sorte, a deficiência auditiva não foi impeditivo para o engajamento da estudante. Isso estreitou as relações entre professor e estudante, e, ao longo das aulas, o processo foi mais fluido do que se imaginou no início. Outro processo problemático são as avaliações. Qual o tempo correto para destinar a uma avaliação prática? Quais metodologias se utilizam para se manter a equidade? Tudo nos faz pensar e repensar nosso papel enquanto professores e facilitadores. Em turmas muito grandes, a chance de insucesso pode ser maior. Oportunizar que este estudante esteja mais próximo de nós nos dá um feedback sobre como o processo de ensino-aprendizagem está transcorrendo e assim podemos nos aperfeiçoar. Por fim, uma das vivências mais emocionantes que tive na minha carreira docente foi presenciar essa estudante, já no meio de um semestre letivo, ter acesso a um estetoscópio eletrônico e auscultar pela primeira vez um som pulmonar. Todos nos emocionamos muito! E isso ficará marcado para sempre para nós professores. Na nossa prática, infelizmente não havia a disponibilidade de um intérprete de Libras, então tivemos que nos adaptar dentro da nossa realidade. A estudante sentava sempre na primeira cadeira, e sempre ministrávamos a aula de frente para ela, com uma fala mais pausada, para que ela pudesse acompanhar por meio da leitura orofacial.

Outra vivência no processo de ensino de semiologia é a monitoria, que consiste, entre outros aspectos, em aprofundar-se na teoria, treinar as habilidades docentes do estudante e incentivar o interesse pela carreira docente7. Sobre a experiência de monitoria nesse caso, foi relatado o seguinte:

Quando soube que daria monitoria para uma estudante com deficiência auditiva, fiquei muito apreensiva e tive medo de não conseguir [...]. Sempre que praticavam a ausculta, eu percebia a vontade que ela apresentava de poder ouvir aquele som; e explicar um som é algo muito difícil. Acho que esse foi o maior desafio. Mas a satisfação vinha a cada monitoria, quando eu descobri as formas que ela havia encontrado para entender as outras partes do exame físico, principalmente a percussão. Foi uma surpresa ver a precisão com que ela sentia a vibração na percussão e realizava tão perfeitamente uma hepatimetria! Eu sabia que com ela deveria ser diferente, que teríamos algumas limitações, mas fomos nos adaptando e conseguimos encontrar uma forma que fosse positiva para todos.

DISCUSSÃO

O ingresso no ensino superior é um evento importante na vida dos jovens em geral, e, no caso dos estudantes com deficiência auditiva, isso se torna ainda mais relevante, dadas as inúmeras dificuldades do percurso escolar prévio. O ensino superior exige adaptação a novos contextos acadêmicos e coloca os estudantes em situações que exigem maior autonomia8.

A inclusão de estudantes com alguma deficiência exige, além da promoção do acesso, que suas necessidades específicas sejam atendidas, para incentivar a permanência e o sucesso em seu aprendizado. Todo esse processo inclusivo exige mudanças no meio universitário5. Tais mudanças vão além de construções de espaços acessíveis: são imprescindíveis novos recursos pedagógicos, instruções e/ou capacitação destinadas aos professores e apoio institucional9.

Luetke-Stahlman10) brilhantemente sumariza ideias e desafios enfrentados por todo o sistema de ensino médico que deseja incluir o estudante surdo:

Quando os estudantes surdos ou com deficiência auditiva estão adequadamente alocados, adaptações ao nível do programa e do currículo podem precisar ser discutidas para garantir progresso social e acadêmico. As modificações podem envolver problemas de comunicação, linguísticos e de avaliação, além de configurações auditivas e físicas. As modificações curriculares podem envolver a estrutura da sala de aula, o formato e a linguagem da instrução, o formato e os materiais da aula, o monitoramento da compreensão, a conclusão da atividade e da atribuição, e as opções de colocação. Os profissionais devem trabalhar cooperativamente para fazer e monitorar mudanças.

O ensino da medicina possui o objetivo de formar profissionais que atendam às necessidades dos serviços de saúde brasileiros6. As competências fundamentais para o exercício da profissão englobam uma boa anamnese e o exame físico, e são aprendidas em disciplinas interligadas à semiologia11. Os autores observaram que há poucos dados sobre o ensino de semiologia para deficientes auditivos. A literatura enfatiza que o estudante sem deficiência seja capaz de conduzir uma boa anamnese e um exame físico em um paciente não ouvinte. A inclusão de pacientes na prática médica é fundamental, mas a inclusão de estudantes com deficiência auditiva em cursos da saúde parece ainda mais desafiadora. Esses cursos, além da dimensão teórica, apresentam uma grande carga prática, nas quais a audição e a fala são muito importantes.

O Brasil conta com poucos dados demográficos sobre a condição específica de estudantes da área de saúde com deficiência auditiva. Os dados estadunidenses apontam cerca de 15% da população com alguma perda auditiva. Contudo, os estudantes de Medicina com essa deficiência representaram apenas 0,01% dos médicos formados no Estados Unidos país entre 2001 e 2010. Ainda nos Estados Unidos, algumas faculdades ou programas residência médica impõem pré-requisitos ou desencorajam ao candidato à matrícula: possuir habilidades mínimas sensoriais e motoras12),(13.

Paradoxalmente a essas barreiras apontadas, alguns autores observaram que estudantes surdos desenvolvem melhores habilidades de comunicação e experiências mais ricas no cuidado de pacientes com deficiência auditiva e seus familiares14. Outros achados mostram que a presença deles na área médica pode levar ao aumento da conscientização sobre inclusão e deficiências13.

A realidade brasileira vem se tornando mais inclusiva nas últimas décadas. A estruturação de Núcleos de Acessibilidade e Inclusão nas universidades brasileiras pode iniciar o diagnóstico pedagógico dos desafios a serem vividos e das barreiras a serem transpostas, e fornecer apoio e suporte ao estudante com deficiência. As necessidades e o remodelamendo do processo de ensino-aprendizado diante de uma deficiência sensorial podem ser mais bem debatidos com apoio dos NAI, para que soluções sejam moldadas em conjunto. Tais ações foram de extrema importância e impactaram positivamente, ao longo do semestre, a vida da personagem principal do relato aqui apresentado.

Além da educação inclusiva centrada no estudante, cabe ressaltar que o professor é fundamental na facilitação do processo de ensino-aprendizagem. Há a expectativa de que ele possua as ferramentas didáticas necessárias para contribuir para a formação inclusiva. Para os docentes médicos, ensinar um estudante com deficiência auditiva envolve desafios nas suas competências didáticas e melhoria na sua habilidade de comunicação. Em um cenário ideal, o docente deve ser capaz de se preparar previamente. Além da capacitação em Libras ou da presença do intérprete dentro da sala de aula, o professor deve revisitar sua postura durante as aulas expositivas e propor extensão do tempo dedicado a tal estudante para solucionar dúvidas. Deve-se evitar o uso de áudios em dispositivos. Contudo, quando houver a necessidade desse recurso, deve-se permitir a repetição ou a utilização de legendas durante sua execução.

Não raro, será necessário maior tempo de dedicação do professor, em forma de carga horária, para que o estudante com deficiência auditiva tenha oportunidade de repetir, sanar dúvidas e se aprofundar na semiotécnica. O suporte institucional deve se manter atento a essa necessidade.

Outro ator muito importante no cenário inclusivo universitário é o estudante-monitor. Ele possui a capacidade de unir conhecimento e habilidades, e se dispõe a colaborar com a aprendizagem dos colegas15. A monitoria em semiologia médica é realizada com base na repetição das técnicas semiológicas para a consolidação do conhecimento teórico-prático. A semiotécnica do exame de cada sistema corporal é repetida diversas vezes em grupos pequenos. Nesse contexto, a experiência da monitoria também foi repleta de desafios durante a experiência aqui relatada.

De maneira sumarizada, tanto a experiência docente quanto a da monitoria revelam o quão necessário é o fato de aquele que já tem domínio do assunto se ajustar e se preparar para ensinar dentro de uma nova realidade. A flexibilidade docente é fundamental para que haja oportunidades equânimes de aprendizado. O enfoque na preparação dos conteúdos, nos programas e no sinergismo entre as metodologias de ensino, de modo a moldá-los à nova realidade, é imperioso.

Com base nas experiências aqui relatadas, bem como nas orientações recebidas pelo NAI institucional, na discussão da legislação atual e nas reflexões sobre dados encontrados na literatura, elencamos dez ações inclusivas que adotamos na nossa experiência e aqui formatamos em sugestões (Quadro 2) para a melhoria do processo de ensino-aprendizagem que podem ser aplicadas nas universidades brasileiras que se enquadrem em cenários futuros semelhantes.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 2 Sugestões dos autores. 

Além disso, o MEC promove regularmente editais para selecionar propostas de universidades brasileiras que visam à melhoria do acesso a todos os ambientes, das ações, das aulas e dos processos desenvolvidos na instituição, buscando integrar e articular as demais atividades para a inclusão educacional e social dessas pessoas5. Portanto, diante de situações que envolvam disciplinas práticas ou teóricas do estudante de Medicina com deficiência auditiva, é imprescindível que as instituições de ensino e os professores busquem recursos que aprimorem o processo de ensino-aprendizagem inclusivo e divulguem os sucessos pedagógicos obtidos no meio científico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência aqui relatada considera que o ensino médico para um deficiente auditivo é permeado por dificuldades a serem vencidas. A ausência de preparo dos professores, gestores e monitores e a falta de instrumental específico para atender às suas necessidades são algumas barreiras para um aprendizado satisfatório e inclusivo.

A barreira da comunicação em sala pode ser vencida por meio de um intérprete de Libras para auxiliar a compreensão do estudante da matéria ministrada, caso seja uma exigência do estudante, e a barreira na ausculta dos sons durante o exame físico pode ser vencida pelo uso de estetoscópio eletrônico. A habilidade de percussão pode ser conquistada com o aprimoramento de outras habilidades, como a percepção de vibrações, técnica utilizada na prática pela estudante em questão, com sucesso para seu aprendizado.

A sugestão, em conclusão, é que a comunidade acadêmica se prepare previamente para situações semelhantes, que o papel dos NAI nesse processo seja ativo e que, ao se confrontarem com o desafio de incluir o estudante de Medicina com deficiência sensorial, não negligenciem todo o potencial dessa oportunidade didática, para que se possa continuamente rever e aprimorar os métodos, os materiais e as práticas no ensino médico.

REFERÊNCIAS

1. Organização Mundial da Saúde. Surdez e perda auditiva. Genebra: OMS; 2020. [ Links ]

2. Conselho Federal de Fonoaudiologia. Guia de orientação na avaliação audiológica básica. Brasília: Conselho Federal de Fonoaudiologia; 2017. [ Links ]

3. Santana AP. A inclusão do surdo no ensino superior no Brasil. Journal of Research in Spacial Educational Needs. 2016;16(1):85-8. [ Links ]

4. Brasil. Lei nº 10.436/2002, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Brasília; 2002. [ Links ]

5. Brasil. Documento orientador - Programa INCLUIR - Acessibilidade na Educação Superior SECADI/SESu-2013. Brasília: Ministério da Educação; 2013 [acesso em 2 nov 2021]. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=12737-documento-orientador-programa-incluir-pdf&category_slug=marco-2013-pdf&Itemid=30192 . [ Links ]

6. Lima UTS, Costa ACS. Inclusão de uma estudante com deficiência auditiva no curso de Enfermagem em uma universidade pública de Alagoas. Revista de Atenção à Saúde. 2014; 12(41):57-64. [ Links ]

7. Dantas OM. Monitoria: fonte de saberes à docência superior. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. 2014;95(241):567-89. [ Links ]

8. Jorge A, Ferreira JA. Transição de estudantes surdos para o ensino superior. Revista Portuguesa de Pedagogia. 2007;43(3):335-57. [ Links ]

9. Guerreiro EMBR, Almeida MA, Silva Filho JH. Avaliação da satisfação do estudante com deficiência no ensino superior. Avaliação (Campinas). 2014;19(1):31-60. [ Links ]

10. Luetke-Stahlman B. Providing the support services needed by students who are deaf or hard of hearing. Am Ann Deaf. 1998;143(5):388-91. [ Links ]

11. Midão CMV, Ruiz-Moreno L. O ensino da semiologia nas escolas médicas do Rio de Janeiro. Rev Bras Educ Med. 2010;34(3):397-405. [ Links ]

12. Argenyi M. Technical standards and deaf and hard of hearing medical school applicants and students: interrogating sensory capacity and practice capacity. AMA J Ethics. 2016;18(10):1050-9. [ Links ]

13. Meeks LM, Engelman A, Booth A, Argenyi M. Deaf and hard-of-hearing learners in emergency medicine. West J Emerg Med. 2018;19(6):1014-8. [ Links ]

14. McKee MM, Smith S, Barnett S, Pearson TA. Commentary: what are the benefits of training deaf and hard-of-hearing doctors? Acad Med. 2013;88(2):158-61. [ Links ]

15. Natário EG, Santos AAA. Programa de monitores para o ensino superior. Estud Psicol (Campinas). 2010;3(27):355-64. [ Links ]

2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 15 de Março de 2022; Aceito: 06 de Abril de 2022

raquel.morethc@gmail.com gaby_amio@yahoo.com.br elisa@facile.com.br eventurine@gmail.com luisacardosomaia1@gmail.com erikapimenta@live.com gabriela.endocrinologia@gmail.com lazaronithiago@gmail.com

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Rosiane Viana Zuza Diniz.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Gabriela Cristina Coelho Pereira e Elisa Guimarães de Figueiredo participaram do levantamento bibliográfico, da construção do artigo e da revisão final do manuscrito. Evelyn Cristina Silva Venturini e Raquel Moret Henrique Campos participaram do levantamento bibliográfico, da construção do artigo, do relato de experiência e da revisão final do manuscrito. Luisa Cardoso Maia participou do levantamento bibliográfico, da construção do artigo e da revisão final do manuscrito. Érika Lima Pimenta, Gabriela Costa de Andrade e Thiago Luiz do Nascimento Lazaroni participaram do levantamento bibliográfico, da orientação e construção do artigo, do relato de experiência e da revisão final do manuscrito.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons