INTRODUÇÃO
Quando falo que leciono semiologia no curso de Medicina, várias pessoas me perguntam o que ensino, dependendo do referencial profissional de cada um. Professores de letras associam à semiótica; psicanalistas pensam em signos e símbolos da psique. No entanto, de forma bem simples, a semiologia médica diz respeito à coleta da história do paciente e à realização do exame físico, a fim de acharmos sintomas e sinais que nos direcionem para o diagnóstico clínico1.
Ao escrever sobre o ensino da semiologia, escrevo sobre histórias, imagens, signos e símbolos; sobre percepções, interpretações, encontros e desencontros. O que me leva a perceber que a semiologia transita pelo campo das letras e pelo terreno do imaginal muito mais do que eu poderia supor no início da minha carreira como docente.
É a história do outro que se entrelaça com a minha, pois, ao ouvir, ver e examinar um paciente, vou além do que aprendi nos livros de medicina. Uso toda a minha bagagem de histórias pessoais e de histórias lidas na literatura, por meio dos tempos. Uso a minha subjetividade para entrar em contato com a subjetividade do outro; observo (e vivo) o fenômeno do encontro humano e coloco em prática com os estudantes ao confrontá-los com suas próprias subjetividades, ao discutirmos uma anamnese e os sentimentos que perpassam o encontro, os medos que surgem e como podemos lidar com eles; ao refletirmos sobre o que queremos realmente com a “coleta” da história do paciente; a semiologia, aqui, ultrapassa a técnica e chega a esse terreno que vai além dos livros; começa o entrelaçamento entre o aluno e o paciente; termina a neutralidade. Então, como posso simplesmente “descartar” a narrativa de vida do paciente para transformá-la “apenas” em um registro claro, objetivo, com termos técnicos que irão “traduzir” o sentimento e desconforto do outro? Como posso colocar tudo apenas na dimensão técnica de um roteiro de anamnese e ensinar que o médico é “o dono” da condução da história do outro? Que nós sabemos mais do que o paciente, que está sofrendo? Como não prestar atenção à sutileza da linguagem que, segundo Benveniste2, é responsável pela nossa constituição como sujeito ao carregar uma subjetividade caracterizada pela condição de que “o locutor se coloca como um sujeito”; na qual o “eu” não se concebe sem o “tu”, sem o outro.
DESENVOLVIMENTO
Neste artigo, quero falar de uma insurreição contra essa ditadura técnico-cognitiva no ensino da semiologia. Contar do encontro com a medicina narrativa, do novo olhar que a literatura oferece ao ensino médico. Vou tentar não ter medo da liberdade que essa abordagem proporciona: a liberdade de ensinar o encontro clínico como uma experiência humana plena, na qual tempo, espaço e símbolos do estudante de Medicina transitam e se entrelaçam com o tempo, espaço e símbolos do paciente, na qual narrar a história de vida define o caminho a ser seguido3. Tentarei trazer a minha experiência, ou seja, aquilo que me aconteceu no meu percurso docente, que não é comum a todos, mas traz uma reflexão que pode induzir outras reflexões e experiências4.
A anamnese médica é o relato da história do paciente, além de conter a descrição do exame físico realizado. Basicamente, é o resumo do encontro clínico que vai guiar o caminho do médico na sua formulação diagnóstica e no planejamento dos cuidados necessários para cada paciente5. Seguindo o modelo biomédico, a história do paciente deve ser encaixada em um roteiro definido; suas expressões, traduzidas para a linguagem técnica, em uma organização clara, objetiva e concisa. Estudos da década de 1990 mostram que, em geral, o médico interrompe o paciente nos 23 primeiros segundos de fala e direciona o caminho da entrevista; que ele domina a consulta, deixando pouco espaço para o paciente, em uma relação explícita de poder6, e que de 45% a 50% das queixas e preocupações dos pacientes não são ouvidas nem levadas em consideração pelo médico7.
A abordagem deste trabalho é qualitativa, em que se adotou o método da cartografia, que se associa bem à fenomenologia e permite acompanhar o meu percurso nessa narrativa8),(9. A cartografia permite narrar o meu caminho, numa analogia geográfica com os acidentes e obstáculos, bem como associar sentimentos e emoções nessa exploração. A cartografia se relaciona com a fenomenologia10, ao descrever o fenômeno vivido pelo pesquisador, e com os envolvidos, ao buscar a essência do problema.
A cartografia se baseia nas pistas que orientam o percurso e não separa o conhecer do fazer, o pesquisar do intervir, ou seja, é no fazer da experiência vivida que o saber emerge, e o conhecimento se produz em um campo de relações e de implicações, que se atravessam transversalmente. Diante disso, Passos et al.11 nos apresentam Guattari, ao nos dizerem que o método cartográfico é um trabalho de análise que traz simultaneamente os atos de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade, por meio de um plano que atravessa a realidade em largura, altura e profundidade, ou seja, leva em conta o caráter multidimensional da realidade em um movimento de transversalidade. Esse movimento amplia o conceito de conhecer, favorece a compreensão de que existe uma rede de comunicação complexa e não permite uma neutralidade no processo de pesquisa. O trabalho da cartografia é feito pelo compartilhar de um território de existência, em que sujeito e objeto de pesquisa se entrelaçam intimamente, e, dessa forma, o pesquisador acompanha processos, se torna aprendiz e se engaja afetivamente na ocupação de um território. Essa ocupação não pressupõe controle, mas participação e entrega; uma relação de cultivo e cuidado da experiência vivida. Essa postura permite ao pesquisador compreender a amplitude e complexidade do fenômeno estudado, mas também exige desse pesquisador certo abandono das normas rígidas de análise “sobre o saber” para adotar uma abordagem de “saber com”11),(12.
Deleuze e Guattari11 nos dizem que “somente a expressão nos dá o procedimento”, e, por isso, podemos entender que as narrativas são o tecido que envolve o trabalho da saúde. As narrativas dos sujeitos se entrelaçam no encontro clínico, com toda a subjetividade inerente ao processo. Criam um mapa, uma cartografia aberta, e constroem conhecimento no ensino da saúde12.
Trazer um método que não dissocia a subjetividade do processo de pesquisa é coerente com o meu trajeto até aqui, com o objeto de estudo que quero abordar. Quando se realiza pesquisa sobre educação médica, especialmente no que concerne ao campo das narrativas dos sujeitos e à relação que se estabelece por meio dessas histórias, não é possível afastar a subjetividade, o campo relacional, nem as sensações, as emoções e os sentimentos que surgem e fundamentam o encontro clínico. A abordagem quantitativa não dá conta de aprofundar o fenômeno, nem de ampliar a reflexão sobre o problema.
Escrever este artigo é me posicionar perante o ensino tradicional médico e questionar o modelo biomédico, ancorado tão firmemente na abordagem cartesiana do conhecimento8. É refletir sobre o preconizado nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de 2014, que definem o perfil do egresso em Medicina como um profissional “com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva [...]”13, cotejando com o que acontece na prática do dia a dia do ensino. E, ao trazer a discussão sobre esse desalinhamento e suas implicações no ensino médico, posso tecer um raciocínio que busque estabelecer o papel das humanidades na formação do futuro profissional médico. Além disso, posso trazer à tona a pergunta sobre o papel da universidade nessa formação:
Trata-se de uma postura ampla, de estímulo à reflexão sobre a ciência, ou uma atitude reducionista, atrelada a uma concepção de produção e de manutenção do poder hegemônico, como diria Ortega y Gasset14?
Nesse caminho, também surge Paulo Freire que nos coloca diante da função libertadora da educação, que permite a consciência crítica de si e do outro, em um processo de humanização do ser humano15.
Outro aspecto importante, que embasa essa reflexão sobre a formação médica, é o preconizado na Política Nacional de Humanização (PNH): “Humanizar se traduz, então, como inclusão das diferenças nos processos de gestão e de cuidado”. E essa inclusão significa transversalizar saberes e poderes, trazer para a roda usuários, profissionais de saúde e gestores, com o exercício de uma escuta qualificada, um diálogo aberto que leve em conta o processo de adoecimento e sofrimento16.
Nesse contexto, Ayres17 nos convida a pensar sobre humanização e cuidado, ampliando a reflexão que a PNH propõe. Humanizar implica dar novo contexto à técnica e às ciências, de modo que elas respondam às reais necessidades de atenção à saúde das pessoas. É justamente “a permeabilidade do técnico ao não-técnico, o diálogo entre essas dimensões interligadas” (18 (pag.22). . Ao levarmos a discussão sobre humanização para esse âmbito mais largo, estabelecemos uma atitude dialógica com outros saberes, com um sentido de responsabilidade com o outro, e consigo mesmo, que permite ao profissional de saúde, especialmente o médico, entrar na perspectiva do cuidado que Ayres19 apresenta: “a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre a tecnociência médica e a construção livre e solidária de uma vida que se quer feliz, a que estamos chamando de Cuidado” (pag.85).
Fazer a relação entre as narrativas dos pacientes, dos seus corpos, e a narrativa dos médicos com a literatura, ou seja, a formação humanística desejada para o futuro médico, é tentar contribuir para o delineamento de um profissional que use da escuta sensível, que não ignore as histórias (suas e dos seus pacientes) contadas e que consiga compreender o espaço entre ele e o paciente como um local vivo, de trocas e construção interativa, considerando que cada corpo tem uma história própria e uma densidade peculiar3),(20. A medicina narrativa, tal como Charon21, Charon et al.22 e Launer23 preconizam, traz muitos benefícios tanto para os pacientes como para os médicos. E é uma técnica que, ao ser trabalhada e exercitada ao longo do tempo, permite que a arte da medicina se manifeste em uma prática médica centrada no paciente, além de possibilitar que o profissional reflita sobre a própria vulnerabilidade e a capacidade que tem de se comunicar com o paciente. As histórias fazem parte da essência humana; somos feitos de histórias. E, ao praticarmos a medicina com competência narrativa, conseguimos nos mover no terreno do adoecer do outro, e até no nosso, e, dessa forma, o equilíbrio entre a visão do médico e o desejo, os medos e as incertezas do paciente passa a ser possível24. Podemos ir além da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e recuperar a capacidade perdida nos currículos médicos de ouvir, apreciar e interpretar a história contada pelo paciente; podemos resgatar uma maneira de transitar entre os mundos dos pacientes e dos profissionais de saúde, de forma empática e não reducionista ao saber fisiopatológico, diagnóstico ou terapêutico25. Podemos fazer o diálogo entre a MBE e a Medicina Baseada na Narrativa (MBN), que mostra o quão importantes são a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade nos cuidados em saúde. A MBN não esquece o sofrer do paciente, pois não guarda o seu foco apenas na doença, ela nos traz a possibilidade de pensar fenomenologicamente o adoecer, encoraja a empatia e a construção de sentido no encontro entre médico e paciente, permite um olhar mais amplo para opções de manejo do indivíduo; enfim, desloca o médico de uma zona de “verdade técnica” para um local de escuta e vinculação25. Ela amplia a visão pela partilha, pelo diálogo, pelo encontro marcado pelos sete Cs identificados por John Launer: conversação, curiosidade, contexto, complexidade, challenge (desafio), caution (precaução) e cuidado26. Essa abordagem permite abrir o campo de pesquisas nessa área, como defendem o Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde para a Europa (World Health Organization Regional Office for Europe), na síntese do Relatório 4927 para o Health Evidence Network (HEN), e Rita Charon28),(29.
MEU CAMINHO
Comecei o meu caminho de docente na semiologia médica. E é esse percurso que trago, neste artigo, como material de estudo. Fazendo uma retrospectiva, vejo que o meu caminho não foi uma linha reta, mas uma estrada sinuosa, com algumas paradas, alguns avanços e também retrocessos. Discutir esse processo pode ajudar outros colegas na reflexão sobre sua práxis.
Divido essa trajetória da docência em três momentos: “O começo”, “O ‘divisor de águas’” e “Redescoberta”.
O começo
A docência entrou no meu caminho quando eu era aluna do mestrado de Medicina, nos anos 1990, pois fazia parte da nossa formação de futuros mestres. Ser estudante e docente, nesse momento, trouxe uma outra versão do ensino: a de que nunca estamos prontos. Aprendi que, por trás das técnicas de ensino, existia o porquê de ensinar. Realmente, foram momentos de reflexão e de discussão em grupo, que mostraram que a importância do caminho era maior que a da chegada. Ou essa percepção era apenas porque eu era jovem e sonhadora? Talvez os dois.
Ao terminar o mestrado, continuei como professora substituta, sempre na semiologia. Mas eu me questionava se me encaixava no papel de professora. Nessa época, eu era mais médica do que docente e não consegui equilibrar esses papéis. Afastei-me da docência... E senti um vazio.
Surgiu a possibilidade de voltar a ensinar em 2002, para fazer algo novo com um grupo idealista e, novamente, na semiologia. Revi conceitos, introduzi meus aprendizados, mas, nesse momento, ainda achava que o ensino da semiologia era mais técnico e que eu reproduzia modelos aprendidos por observação e não por experiência própria. A anamnese era formatada; o exame físico, padronizado, tal qual eu tinha aprendido (inconformada) na faculdade... No entanto, os estudantes viam uma outra faceta do meu ensino - enxergavam o lado humano da minha relação com eles e com os pacientes; conseguiam perceber a subjetividade do encontro clínico. Passei a pedir aos estudantes que não usassem o roteiro de anamnese durante o encontro com o paciente e que conversassem com ele, ouvissem a sua história. A literatura médica vem nos mostrando que a história do paciente tem uma estrutura, uma cronologia, nem sempre linear, nem sempre explícita, e é nesse momento que usar a literatura, a arte, pode nos ajudar a perceber o que está por trás da narrativa, em um trabalho mais humano de cuidar do outro, de ouvir com mais atenção; afinal, a medicina é um trabalho de ouvir e contar histórias30. Esta era a minha forma de ensinar a anamnese: conversar com o paciente, ouvir o que ele diz e trabalhar com sensibilidade, com curiosidade. Dessa forma, fui trazendo a minha experiência para a prática, mostrando que os caminhos não precisam ser retos sempre e que a história do paciente ia além da história da doença; a semiologia passa a ser muito mais do que um jogo de detetive atrás de sinais e sintomas como pistas, e os estudantes podiam vivenciar, cada um, a sua experiência do encontro clínico. Foi um tempo de mudanças, de reflexões, de busca de novos referenciais para a minha prática docente e de ir mudando de direção progressivamente.
O “divisor de águas”
Nessa reflexão, percebi qual era a minha lacuna: unir a base científica à minha prática humanizada; ter um referencial teórico para a prática docente, ou seja, precisava me tornar realmente uma docente! Essa era a necessidade identificada, e, para isso, eu tinha que participar de um programa de desenvolvimento docente compatível com essa associação.
Mais uma curva na estrada em 2009. Começo o programa Foundation for Advancement of International Medical Education and Research (Faimer - Brasil), uma especialização em Educação para Profissionais de Saúde que traz uma proposta inovadora de construir comunidades de prática de educadores em ciências da saúde como um dos objetivos centrais do programa31. Conhecer um grupo de professores no qual a formação docente não excluía a subjetividade foi transformador. Aliar a técnica à sensibilidade, ampliando as discussões sobre o ensino médico, permitiu-me voltar às origens, me sentir mais segura na minha prática e também questionar a rigidez do processo de ensino-aprendizagem semiológico. A Faimer me trouxe também o rigor da pesquisa em educação, me deu bases para adentrar esse campo e, com isso, a liberdade de buscar outras formas de ensinar, de testá-las e analisá-las do ponto de vista científico; mostrou-me que a diversidade de histórias e de ideias enriquece o processo e estimula o indivíduo a sair da sua zona de conforto. Senti-me incluída em uma comunidade de prática criativa, amorosa, científica e crítica, e também mais respaldada para revisitar o que já vinha fazendo na semiologia: fortalecer a escuta, flexibilizar o roteiro da anamnese, valorizar a experiência do encontro e fazer pesquisa para consolidar minhas práticas. O programa fez nascer e germinar a semente da inclusão da arte no ensino. E nesse processo, ampliei ainda mais a minha necessidade de ouvir a história do outro, de usar a linguagem do cinema para discutir com os monitores de semiologia sobre empatia, relação médico-paciente e morte. O processo seletivo para ser monitor do módulo passou a contar com uma parte de autorreflexão, de um espaço próprio para contar histórias de si e ouvir as histórias dos outros. Sem saber, eu estava me aventurando no campo da medicina narrativa e explorando possibilidades do uso dela com os estudantes de semiologia. Era uma forma real de mostrar aos discentes que podemos unir arte e técnica na nossa formação e, assim, ser profissionais melhores, com competências de comunicação, reflexão, escuta, ampliação de perspectiva e criação de vínculos mais sedimentados. E esses são alguns dos benefícios que podemos ter ao incluirmos a arte e a medicina narrativa na formação médica32)-(34. A racionalidade médica se enriquece com outros saberes e abre espaço para a possibilidade de termos uma pluralidade dialógica, como nos aponta Ayres19),(25.
Redescoberta
Continuei o meu caminho com mais tranquilidade e aberta às várias possibilidades de mudanças. Levei novas referências para o grupo de docentes da semiologia, fiz o doutorado na área de educação médica e envolvi os professores na minha pesquisa. Aproximei-me da literatura (ou ela se reaproximou de mim), das narrativas, das humanidades em saúde. (Re)descobri que a semiologia é a arte da escuta, é campo de interação de histórias de vida e de corpos, e que a introdução da arte no seu ensino é fundamental para formar profissionais sensíveis, competentes tecnicamente e reflexivos, como as DCN preconizam. Essa introdução da arte no ensino da semiologia (literatura, música, cinema) criou oportunidades de novas experiências para trabalhar a escuta, a percepção do outro como sujeito, dono de sua história. Uma escuta de qualidade que amplia o horizonte meramente técnico e leva o profissional a uma dimensão existencial, em que não só a funcionalidade da anamnese importa, mas também a pessoa que conta sua história e suas verdadeiras necessidades de cuidado17),(18. O que faz pensar nesta fala de Rita Charon: “A medicina narrativa proporciona aos profissionais de saúde uma sabedoria prática na compreensão sobre o que o paciente sofre no adoecer e o que os próprios médicos passam no cuidado do doente”34) (tradução livre).
Ensinar a semiologia médica sob a luz da medicina narrativa permite aos estudantes e aos docentes a reflexão sobre a escuta da história do adoecer do paciente, sobre a singularidade de cada um e sobre o sofrimento comum que entrelaça os pacientes e seus médicos, ajudando assim a compreender o contexto sociocultural de cada indivíduo; talvez seja uma possibilidade para o médico de se olhar pela história do paciente e enxergar suas próprias dores, medos, angústias e esperanças. Ao unir literatura e medicina, pude ampliar a possibilidade de compreensão do humano, melhorar a competência de escuta, de escrita e da percepção ética do cuidado destinado àquele que sofre e está em situação de vulnerabilidade por essa condição22),(35)-(38. Embora as histórias de vida e as histórias literárias difiram aparentemente entre si, há alguns aspectos que as tornam complementares: a literatura nos traz exemplos, nos permite uma dialética entre vida e morte, entre dor e sofrimento, nos permite pensar em unidade narrativa de uma vida. A literatura nos permite, como diria Ricoeur39, uma reflexão sobre identidade e alteridade, e, consequentemente, uma postura ética diante do outro e de si mesmo.
Nessa perspectiva, além do trabalho com os monitores de semiologia, tive a possibilidade de incorporar a escrita reflexiva como processo avaliativo nas atividades de simulação clínica e de cinedebate que ocorrem na semiologia do quinto semestre. O intuito foi provocar a reflexão sobre a consulta simulada para além da técnica, pois relacionar os sentimentos gerados nesse processo com a capacidade de ver o outro para além do diagnóstico permite que os alunos ampliem o horizonte e percebam a importância do reconhecimento da subjetividade e da necessidade de uma postura empática, ética e estética no atendimento clínico. Por meio desse processo, é possível reconhecer que as palavras dos pacientes têm poder e definem quem eles são - o que não ocorre apenas com as nossas palavras4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Rever o meu trajeto é me encontrar com a jovem sonhadora do início, mas com uma segurança e tranquilidade que eu não tinha lá atrás. Ver e refletir sobre o caminho percorrido e minhas escolhas é parte fundamental do meu processo de aprendizagem docente. Pensar na literatura, na arte, como parte integrante do ensino médico é resgatar a subjetividade de cada um para uma prática profissional mais completa.
Fica claro para mim que a inclusão da literatura no ensino médico, para repensar o modelo biomédico de escuta, a escrita e a relação médico-paciente, faz-se necessária. A inserção das humanidades no curso de Medicina traz uma reflexão fundamental sobre o fazer médico e sobre o próprio ensino na saúde. E o caminho para incorporar a literatura e a medicina narrativa no ensino da semiologia médica da nossa instituição, bem como em outros momentos do curso de Medicina, está sendo construído com as iniciativas descritas anteriormente no texto.
Rever esse espaço entre o médico e o paciente, tendo a literatura e as narrativas como interface, amplia as possibilidades de relação e escuta, redefine o modelo baseado no poder médico e permite a criação de vínculos horizontalizados, nos quais o outro tem lugar reconhecido e respeitado.
Usar o método da cartografia para narrar o meu percurso docente e as reflexões surgidas nesse caminhar pode ter contribuído para uma formação docente mais humanizada e compatível com uma visão mais ampla do que é saúde e do que é o ensino na saúde. Esse recurso também me fez perceber que as minhas buscas para mudar o ensino da semiologia médica me aperfeiçoaram como pessoa e profissional, que é possível manter a técnica, sem sacrificar a sensibilidade, vivendo a experiência do ensino de forma reflexiva, e que estaremos mais próximos da cura/do cuidar bem se aprendermos a ouvir palavras que transformam.