INTRODUÇÃO
Os avanços tecnológicos e científicos na área da genética cresceram exponencialmente nas últimas décadas. Houve também uma mudança significativa do perfil epidemiológico que tornou as doenças genéticas cada vez mais relevantes como problema de saúde pública1),(2. Nesse sentido, é imprescindível que os profissionais de saúde, notadamente os médicos e enfermeiros, desenvolvam competências básicas em genética, incluindo o manejo, de forma ética e cuidadosa, de pessoas e famílias com doenças genéticas3),(4.
Entidades médicas e de enfermagem em diversos países, como a International Society of Nurses in Genetics, a American Nurses Association e a Association of American Medical Colleges, já recomendaram competências necessárias na área de genética para seus profissionais3),(5),(6. Um consenso entre o National Human Genome Research Institute, o National Institutes of Health e a American Nurses Associations elaborou as “Competências Essenciais de Enfermagem e Diretrizes Curriculares para Genética e Genômica”7)-(9. Em 2008, a European Society of Human Genetics adotou um perfil mínimo de competências em genética para médicos e enfermeiros generalistas, e outro perfil específico para médicos e enfermeiros especialistas em outras áreas que não a genética10.
No Brasil, em 2017 a Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM) apresentou um conjunto de competências mínimas desejáveis em genética para todos profissionais de saúde4, considerando a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras11, e, em 2019, recomendou as competências em genética desejáveis especificamente para médicos12. Iniciativas como essas são oportunas para transformações no processo ensino-aprendizagem em áreas da saúde do país.
Dados nacionais sugerem que a maioria dos profissionais de saúde não especialistas em genética tem algum conhecimento básico sobre o assunto, o que não garante competência para fornecer informação e orientação adequadas sobre doenças genéticas13)-(15. Estudos internacionais sugerem que médicos não especialistas em genética não apresentam conhecimento suficiente sobre genética e testes genéticos, além de faltar-lhes habilidades para comunicação sobre informações genéticas16. Para garantir formação qualificada em genética, as escolas médicas e de enfermagem precisam de currículos estruturados que contemplem conhecimentos e habilidades na área6. Adicionalmente, é necessário que os atores envolvidos no processo ensino-aprendizagem discutam, de forma oportuna, os assuntos relacionados à genética.
Nessa perspectiva, este estudo surgiu do interesse em investigar como professores e preceptores de cursos de Medicina e Enfermagem, que não são especialistas em genética, percebem sua atuação em relação ao ensino do tema. Assim, o objetivo deste estudo foi explorar a percepção de professores e preceptores dos cursos de graduação em Medicina e Enfermagem de uma universidade pública brasileira sobre o processo de ensino-aprendizagem na área da genética.
MÉTODO
Desenho do estudo
Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva, transversal e de abordagem quantitativa que foi desenvolvida em concordância com as diretrizes do Strengthening the Reporting of Observational studies in Epidemiology (STROBE)17. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos -UFSCar (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 31532720.6.0000.5504), e todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Cenário do estudo
Este trabalho foi desenvolvido na UFSCar. Fundada em 1968, a UFSCar foi a primeira instituição federal de ensino superior instalada no interior do estado de São Paulo18.
A primeira turma do curso de Enfermagem da UFSCar iniciou suas atividades em 1977. No momento da coleta de dados, seu corpo docente era formado por 25 professores do Departamento de Enfermagem, com contribuição de professores de outros departamentos. Além disso, conta com suporte de enfermeiros que atuam no Hospital Universitário cuja função, além da assistência, inclui apoiar os estudantes nos cenários de práticas clínica e hospitalar. Sua matriz curricular é estruturada em semestres e possui quatro módulos: 1. Sociedade, saúde e enfermagem; 2. Instrumentalização para o processo de cuidar do indivíduo; 3. Processo de cuidar, gerenciar e pesquisar em enfermagem; e 4. Consolidação do processo de formação profissional em enfermagem. Especificamente em relação ao ensino de genética, no terceiro semestre, é ministrada, por docentes do Departamento de Genética e Evolução, a disciplina obrigatória “Genética e Evolução”, com carga total de 60 horas19.
A primeira turma do curso de Medicina da UFSCar iniciou suas atividades em 2006. No momento da coleta de dados, seu corpo docente era formado por 85 professores do Departamento de Medicina, com suporte de médicos preceptores, que são os profissionais que apoiam as atividades de ensino nos cenários da atenção básica, atenção especializada e hospitalar. Sua matriz curricular é estruturada de forma anual, articulada em três ciclos educacionais com dois anos de duração cada. Seu currículo é integrado e orientado por competências, articulando dimensões biológicas e biopsicossociais, teoria e prática, universidade e serviços de saúde da rede do Sistema Único de Saúde (SUS), em um processo de colaboração multiprofissional. A genética é considerada uma das áreas de conhecimento necessárias ao desenvolvimento de um médico competente e está presente no conteúdo dos três ciclos de forma longitudinal20.
Participantes
O único critério de elegibilidade para participar do estudo era ser professor ou preceptor dos cursos de graduação em Medicina ou Enfermagem da UFSCar. Dessa forma, foram convidados a participar todos os docentes dos Departamentos de Medicina e de Enfermagem, bem como 95 enfermeiros e 112 médicos preceptores. No total, foram convidados 317 profissionais. Portanto, o projeto foi desenvolvido com uma amostra de conveniência21.
Coleta de dados
Foi elaborado um questionário por professores universitários especialistas em genética médica, considerando-se o constructo a ser mensurado. O questionário continha 30 perguntas, sendo 29 de múltipla escolha e uma última aberta, no qual os participantes poderiam expressar-se livremente. O questionário autoaplicável foi disponibilizado na plataforma Google Forms e está disponível na plataforma Figshare22.
Entre outubro de 2020 e abril de 2021, foram enviados de três a quatro convites para cada possível participante, com intervalo médio de um mês entre eles. A coleta de dados considerou somente os participantes que responderam a todas as perguntas do questionário, não sendo possível submeter questionários incompletos. Consideraram-se perdas aqueles que, após o envio dos convites, não responderam ao questionário.
Análise dos resultados
Os dados coletados foram classificados em cinco categorias, de acordo com o sentido: 1. Descrição, formação acadêmica e atuação profissional da amostra; 2. Genética no processo ensino-aprendizagem; 3. Educação continuada em genética médica/clínica; 4. Genética na prática clínica; e 5. Testes genéticos.
Realizou-se análise descritiva, calculando-se frequências absolutas e porcentagens para construção de tabelas e gráficos. Os resultados foram examinados e discutidos com subsídio da literatura e da experiência das pesquisadoras, por meio de abordagem compreensiva e interpretativa.
RESULTADOS
Descrição, formação acadêmica e atuação profissional da amostra
O estudo compreendeu 40 participantes (12,6% dos convidados), sendo 25 (62,5%) do sexo feminino. Vinte e oito participantes eram formados em Medicina (70%), sete em Enfermagem (17,5%) e cinco em outras áreas da saúde (12,5%), sendo estes últimos vinculados ao curso de Medicina. Os participantes da Enfermagem atuavam entre o terceiro e o décimo semestre da graduação, enquanto os participantes da Medicina atuavam nos seis anos do curso, com ênfase no internato. A Tabela 1 apresenta a descrição, formação acadêmica e atuação profissional da amostra.
Descrição, formação acadêmica e atuação profissional | n (%) |
---|---|
Sexo | |
Feminino | 25 (62,5) |
Masculino | 15 (37,5) |
Área de formação | |
Medicina | 28 (70,0) |
Enfermagem | 7 (17,5) |
Outras áreas da saúde | 5 (12,5) |
Ano de conclusão da graduação | |
Entre 1970 e 1979 | 1 (2,5) |
Entre 1980 e 1989 | 12 (30,0) |
Entre 1990 e 1999 | 11 (27,5) |
Entre 2000 e 2009 | 14 (35) |
Após 2010 | 2 (5,0) |
Pós-graduação | |
Mestrado em áreas da saúde | 16 (40,0) |
Doutorado em áreas da saúde | 14 (35,0) |
Mestrado em Educação | 3 (7,5) |
Doutorado em Educação | 2 (5,0) |
Não tem pós-graduação stricto sensu | 5 (12,5) |
Atuação clínica | |
Não tem atuação clínica | 16 (40,0) |
Somente no SUS | 15 (37,5) |
No SUS e na saúde suplementar | 8 (20,0) |
Somente na saúde suplementar | 1 (2,5) |
Carga horária da disciplina de genética durante a graduação | |
Carga horária superior a 120 horas | 3 (7,5) |
Carga horária entre 60 e 120 horas | 13 (32,5) |
Carga horária inferior a 30 horas | 3 (7,5) |
Cursou a disciplina de genética, mas não se recorda da carga horária | 19 (47,5) |
Não teve disciplina de genética na graduação | 2 (5,0) |
Área de formação dos professores de genética na graduação a | |
Medicina | 28 (70,0) |
Biologia | 21 (52,5) |
Outros | 6 (15,0) |
Não teve disciplina de genética na graduação | 2 (5,0) |
Aulas práticas na disciplina de genética durante a graduação b | |
Discussão de casos clínicos | 28 (70,0) |
Observação de pacientes com problemas genéticos | 21 (52,5) |
Visita a laboratórios | 14 (35,0) |
Apresentação de caso clínico em congresso de pediatria | 2 (5,0) |
Não teve atividades práticas na disciplina durante a graduação | 11 (27,5) |
Disciplinas em que teve contato com conceitos de genética c | |
Pediatria | 29 (72,5) |
Patologia | 21 (52,5) |
Ginecologia e/ou obstetrícia | 20 (50,0) |
Fisiologia | 18 (45,0) |
Oncologia | 18 (45,0) |
Biologia celular e/ou molecular | 17 (42,5) |
Imunologia | 17 (42,5) |
Hematologia | 16 (40,0) |
Neurologia | 16 (40,0) |
Anatomia | 12 (30,0) |
Bioquímica | 12 (30,0) |
Histologia | 12 (30,0) |
Microbiologia | 8 (20,0) |
a Dos participantes, 12 tiveram mais de um professor de genética durante sua graduação.
b Dos participantes, 24 tiveram aulas práticas de genética com mais de um recurso metodológico.
c Dos participantes, 35 relataram mais de uma disciplina em que tiveram contato com conceitos de genética durante sua graduação.
Trinta e sete participantes (92,5%) concluíram a graduação entre 1980 e 2009, tendo, portanto, entre 41 e 11 anos de atuação profissional. Entre os participantes, 17 (42,5%) fizeram mestrado, sendo 14 em diversas áreas da saúde e três na área da educação; 18 (45%) fizeram doutorado, sendo 16 em áreas da saúde e dois na área da educação. No momento da pesquisa, 16 participantes (40%) não tinham atuação clínica, 15 (37,5%) atuavam no SUS, oito (20%) trabalhavam no SUS e na saúde suplementar, e um (2,5%) atuava exclusivamente na saúde suplementar.
Apenas dois participantes (5%) relataram que não tiveram disciplina específica de genética durante a graduação. De modo geral, a formação da maior parte dos professores que ensinou genética aos participantes era em medicina e biologia. Onze participantes (27,5%) relataram que não tiveram aulas práticas de genética durante a graduação. Adicionalmente, os participantes relataram outras disciplinas que possibilitaram contato com conceitos de genética na graduação, como pediatria, patologia, ginecologia e obstetrícia.
Genética no processo ensino-aprendizagem
Quando perguntados sobre como a sua atuação na docência, supervisão pedagógica ou preceptoria se relacionava com o ensino da genética, 31 participantes (77,5%) relataram que sua atuação se relacionava indiretamente com a genética, uma vez que esta faz parte do conteúdo das disciplinas/atividades que desenvolve, dada sua transversalidade; cinco participantes (12,5%) acreditavam que a genética não apresentava qualquer relação com suas disciplinas/atividades; e quatro participantes (10%) informaram que a genética estava diretamente associada com sua atuação na docência ou preceptoria, a partir da análise de casos clínicos. Vinte e dois participantes (55%) relataram ensinar conceitos de genética sempre os associando a situações concretas e práticas; 13 participantes (32,5%) relataram não ensinar genética; e cinco participantes (12,5%) afirmaram que às vezes associavam conceitos de genética às situações práticas.
Entre os recursos metodológicos adotados no ensino da genética, foram elencados os seguintes: discussão de casos clínicos, citada 21 vezes (52,5%); metodologia ativa com problematização, citada 17 vezes (42,5%); discussão de artigos científicos, citada oito vezes (20%). Outros recursos citados com menor frequência incluíram aula expositiva, laboratório e livro didático. A Figura 1 apresenta esses resultados.
Educação continuada em genética médica/clínica
A Figura 2 apresenta os resultados sobre educação continuada em genética médica/clínica. Vinte e nove participantes (72,5%) nunca fizeram atividade de educação continuada na área. Para se manterem atualizados em relação à genética, 22 participantes (55%) utilizavam artigos internacionais e 17 (42,5%) consultavam artigos nacionais. Adicionalmente, livros eram consultados por 15 participantes (37,5%); 12 participantes (30%) frequentaram palestras livres; oito (20%) compareceram a congressos e eventos científicos; e quatro (10%) realizaram cursos livres. Por sua vez, oito participantes (20%) relataram que o assunto “genética” lhes interessava, porém não buscavam se atualizar profissionalmente nessa área.
Genética na prática clínica
Quando perguntados sobre o costume de coletar a história familiar dos pacientes atendidos, 28 participantes (70%) relataram sempre coletá-la; um (2,5%) mencionou que fazia isso de vez em quando; e um (2,5%) afirmou coletá-la raramente. Entre os 30 participantes que, em algum momento, coletavam história familiar, o grau de extensão variou: 14 (46,7%) faziam história familiar até a segunda geração (avós e netos), incluindo tios e primos; 11 (36,7%), até a geração anterior ou seguinte (pais e filhos); três (10%), até a segunda geração (avós e netos), sem incluir tios e primos; e somente dois (6,6%) faziam história familiar completa até a terceira geração (bisavós e bisnetos).
Sobre o encaminhamento de pacientes para o especialista em genética, 17 participantes (42,5%) relataram que o faziam ocasionalmente; nove (22,5%) mencionaram que encaminhavam raramente; e cinco (12,5%) afirmaram nunca terem encaminhado. A Figura 3 ilustra as principais situações nas quais os participantes suspeitariam de doença genética e encaminhariam o paciente para o médico geneticista, e situações que justificariam o encaminhamento de um casal que deseja ter filhos para aconselhamento genético.
Dentre os 19 participantes (47,5%) que referiram atender mulheres grávidas, dez (52,6%) relataram orientá-las na prevenção, promoção e educação em saúde relacionada a substâncias teratogênicas nos três trimestres da gestação e na lactação; dois (10,5%) mencionaram que orientam nos três trimestres da gestação; e um (5,2%) afirmou que orienta somente no primeiro trimestre da gestação. Por sua vez, seis participantes (31,7%) relataram que não fornecem nenhuma orientação às gestantes em relação aos teratógenos, embora três deles recomendem que seus alunos o façam.
Com relação à herança genética de doenças comuns, 38 participantes (95%) reconheceram infarto do miocárdio, diabetes e Alzheimer como patologias habitualmente com herança multifatorial. Sobre genética e câncer, todos os participantes identificaram a ocorrência de vários casos de câncer em uma única família como fator de risco para câncer hereditário.
Testes genéticos
Com relação à prescrição de testes genéticos, apenas cinco participantes (12,5%) relataram que se sentiam seguros para solicitar, interpretar e comunicar os resultados; dois (5%) mencionaram que se sentiam seguros para solicitar e interpretar os resultados; sete participantes (17,5%) afirmaram que se sentiam seguros apenas para solicitar; e 26 (65%) não se sentiam seguros nem para solicitar, nem para interpretar e comunicar os resultados.
Sete participantes (17,5%) concordaram com a afirmação de que, “ao nascimento, uma amostra biológica do recém-nascido deveria ser coletada para a realização do sequenciamento do genoma, objetivando identificar precocemente genes que aumentam a predisposição para doenças”; 16 (40%) concordaram que essa coleta deveria ser feita às vezes, avaliando-se caso a caso; três (7,5%) responderam que essas amostras nunca deveriam ser coletadas para testes genéticos de susceptibilidade; enquanto 14 (35%) não tiveram opinião formada sobre o assunto.
Sobre a realização de testes preditivos (TP) em famílias com doenças genéticas de manifestação na fase adulta, 20 participantes (50%) concordaram com a realização de TP em menores de idade, se autorizada pelos pais; 11 (27,5%) concordaram com a realização de TP quando os filhos desejassem, se já fossem maiores de idade; dois (5%) concordaram com a realização de TP somente para planejamento familiar; sete (17,5%) consideraram que TP não deveriam ser realizados. Esses resultados encontram-se na Figura 4.
Na questão aberta do formulário de coleta de dados, alguns participantes manifestaram a percepção de que o ensino de genética é insuficiente nos cursos de graduação da área da saúde, referiram que a pesquisa possibilitou reflexão sobre o assunto e apontaram a importância de direcionar o ensino de genética na prática clínica para a promoção de um cuidado mais assertivo.
DISCUSSÃO
A maioria dos participantes deste estudo concluiu a graduação há mais de dez anos, e apenas dois não tiveram disciplina específica de genética no curso. É interessante observar que esses dois participantes, embora formados após o ano 2000, não eram médicos nem enfermeiros, o que pode sugerir que o ensino de genética é ainda mais frágil em outros cursos da saúde. Na década de 1980, pesquisas feitas em escolas médicas norte-americanas, canadenses e inglesas observaram que o ensino de genética nem sempre estava presente e era heterogêneo entre as instituições23)-(25. Em escolas médicas norte-americanas, o conteúdo de genética básica era majoritariamente ensinado no primeiro ano de faculdade, e, em mais da metade das escolas, a genética clínica era responsabilidade do Departamento de Pediatria26. Na década de 1990, no Brasil, pouco mais de metade das escolas médicas ministravam o conteúdo de genética em disciplina própria, sendo o assunto habitualmente abordado em outras matérias, como biologia27. Os resultados do nosso estudo confirmam essa aproximação da genética com outras disciplinas, em especial pediatria, patologia e ginecologia, explicitando seu caráter transversal nos currículos dos cursos de Medicina e Enfermagem.
No Brasil, na década de 1990, em menos da metade das escolas médicas as aulas práticas de genética eram feitas em laboratórios, e somente um quarto das escolas contava com ambulatório ou interconsulta de genética no ciclo profissional27. Na presente amostra, os participantes tiveram, na condição de estudantes, maior frequência de aulas práticas baseadas em discussão de casos clínicos, observação de pacientes e visitas a laboratórios. Mesmo assim, quase um terço dos participantes não frequentou atividades práticas relacionadas à genética na graduação. Ainda há grande diversidade e defasagem na oferta de disciplinas de genética entre as escolas médicas brasileiras, de forma que se podem esperar egressos com poucas competências para prestar assistência às pessoas com doenças genéticas28, quadro que precisa ser revertido com urgência.
No que concerne à graduação em Enfermagem, uma pesquisa realizada em 2012, com docentes de genética em diversas instituições de ensino superior (IES) brasileiras, apontou que a maioria dos educadores era formada em biologia29, reforçando a relação histórica percebida entre genética e ciências biológicas. Assim como nas escolas médicas, o ensino era heterogêneo: houve variações de conteúdo e carga horária, e as estratégias de ensino-aprendizagem foram, majoritariamente, compostas por aulas teóricas e estudos autodirigidos29. Por sua vez, uma pesquisa realizada com educadores no Reino Unido identificou a adoção metodológica, prioritariamente, de livros e sites30. O uso de tecnologias digitais oferece novas formas de acesso à informação, configurando um novo perfil discente. É essencial que as propostas pedagógicas dialoguem com estratégias de aprendizagem diversas, estimulando a postura investigativa e a autonomia na busca de conhecimento atualizado31),(32.
Apesar da reconhecida importância de integrar conhecimentos de genética e genômica à prática profissional nos currículos de formação de Enfermagem, diversos países desenvolvidos ainda não conseguiram conduzir essa incorporação de forma adequada29. A necessidade de atualização nos currículos de graduação em Enfermagem vem sendo debatida há anos, bem como a necessidade de capacitação de seus docentes para abordar genética e genômica no cuidado integral33. Entretanto, as IES têm enfrentado desafios para incorporar mudanças na formação dos futuros enfermeiros, e uma das dificuldades pode ser atribuída ao fato de os docentes terem se graduado na era pré-genômica, isto é, antes de 199929.
É importante que os professores e preceptores dos cursos de Medicina e Enfermagem não especialistas em genética desenvolvam competências mínimas essenciais na área e consigam colocá-las em prática com os estudantes. É esperado que as IES se comprometam com a formação docente continuada e propiciem recursos para o enfrentamento de novas demandas e desafios. As assessorias pedagógicas são instrumentos capazes de apoiar e intervir na construção desse conhecimento34),(35. Nesse sentido, cursos da área da saúde, sobretudo Medicina e Enfermagem, poderiam dispor de docentes especialistas em genética ou buscar assessoria externa para planejamento dos currículos e capacitação dos recursos humanos.
A educação em genética atualizada e focada no desenvolvimento de habilidades e pensamento crítico possibilita a ampliação do nível de proficiência dos profissionais36. Observamos em nosso estudo que, apesar de apenas 10% dos professores e preceptores considerarem sua atuação na docência diretamente relacionada com o ensino da genética, mais da metade informou que ensinava conceitos dessa matéria associando-os a situações práticas. Isso contribui para o desenvolvimento das competências esperadas, já que a articulação entre teoria e prática clínica colabora para a aprendizagem significativa. No que concerne ao ensino de genética, vários recursos metodológicos foram citados, o que reforça as inúmeras possibilidades de abordagem pedagógica do assunto.
É primordial garantir que os estudantes sejam apresentados aos conceitos genéticos e genômicos necessários para adequada prática profissional. A integração do ensino de genética ao cuidado destinado à saúde requer conhecimentos básicos sobre doenças genéticas comuns e padrões de hereditariedade, medidas de prevenção de agravos, interpretação de testes genéticos e inovações terapêuticas37),(38. Exige também habilidades para coletar, registrar e interpretar história familiar, facilitar o processo de aconselhamento genético e considerar questões de confidencialidade12),(39. Esses conhecimentos e habilidades devem, portanto, fazer parte do processo ensino-aprendizagem.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina no Brasil determinaram que egressos devem ser capazes de indicar o aconselhamento genético40. Em oposição, não há qualquer menção ao ensino de genética na última versão das DCN do curso de graduação em Enfermagem41 e nem na proposta das novas DCN42, limitando a atualização dos currículos de graduação em Enfermagem43. O “Perfil de Competência em Genética para Médicos do Brasil”12 e as “Competências Essenciais de Enfermagem e Diretrizes Curriculares para Genética e Genômica” (8 são produções importantes que podem guiar o processo de ensino-aprendizagem de genética no ensino superior brasileiro.
Uma das competências essenciais esperada de todo profissional de saúde em relação à genética é justamente a capacidade de identificar e direcionar indivíduos que apresentem ou possam desenvolver uma doença genética para encaminhamento regulado4),(12. Dada raridade de várias doenças genéticas, muitos profissionais de saúde aprenderam pouco sobre o assunto em sua formação e, portanto, têm dificuldade para suspeitar de uma doença genética rara44. Mesmo no cenário internacional, o encaminhamento para especialistas em genética está abaixo do ideal, e são apontadas como possíveis barreiras a falta de conhecimento sobre o tema e/ou a inexistência de protocolos de referência16.
Uma maneira de facilitar a identificação de pessoas e famílias com doenças genéticas ou sob risco de desenvolvê-las é por meio da construção do heredograma, instrumento que representa a história familiar por meio de uma simbologia universal, permitindo reconhecer padrões de herança e observar indivíduos sob risco45. Para isso, o heredograma deve conter, idealmente, informação de três gerações. Coletar história familiar completa é uma das habilidades desejáveis a todos os profissionais de saúde4),(12),(46. A inadequada coleta e documentação da história familiar tem sido apontada como um dos obstáculos para o encaminhamento ao especialista em genética16. Esse cenário pode levar a perdas de oportunidade de diagnóstico precoce, prevenção e/ou tratamento de condições genéticas.
Nossos resultados mostraram que os participantes foram, em geral, capazes de identificar as principais características clínicas que levam à suspeição de doenças genéticas. A despeito disso, algumas situações foram subestimadas, como a importância do aconselhamento genético nos casos de consanguinidade e a idade materna ou paterna avançada47)-(49. Os resultados também apontaram para necessidade de fortalecer os processos de educação em saúde junto às gestantes. Nem todos os participantes aproveitavam a oportunidade do pré-natal para orientá-las sobre a exposição a teratógenos e, assim, diminuir a ocorrência de defeitos congênitos e deficiência intelectual50),(51. Isso pode ter acontecido por falta de atualização na área, já que a maioria dos participantes tinha mais de dez anos de formados. O contínuo avanço no conhecimento e nas tecnologias em genética e genômica e sua translação para a clínica exigem atualizações constantes52),(53. A educação continuada possibilita treinamento, aprimoramento e modernização dos conhecimentos após a formação, podendo influenciar diretamente nas práticas dos serviços de assistência à saúde e na qualidade do cuidado prestado54)-(56.
Há iniciativas oportunas que visam contribuir especificamente para a educação continuada em genética dos profissionais da área de saúde57. O National Human Genome Research Institute, por exemplo, disponibiliza um curso de curta duração em genômica58, além de outros programas de educação continuada em genética e genômica voltados para profissionais de enfermagem, medicina e docentes dessas áreas59. A American Medical Association disponibiliza um repositório com materiais educacionais variados e gratuitos em genética e genômica60. Já no âmbito nacional, por meio de iniciativa da SBGM, foi desenvolvido o Curso sobre Doenças Genéticas Raras na Atenção Primária à Saúde, tendo como público-alvo profissionais e estudantes de saúde61. Uma iniciativa do Conselho Federal de Medicina (CFM) tem sido a organização regular de fóruns sobre doenças raras, com o propósito de disseminar informações atualizadas acerca do cuidado integral e das políticas públicas voltadas aos pacientes com doenças genéticas raras no SUS62)-(64.
Avanços nas tecnologias genômicas incorporadas à saúde vêm possibilitando maior acesso a testes genéticos, e os resultados deste estudo ressaltam a necessidade de educação continuada sobre o assunto65),(66. Testes genéticos são uma das etapas de um processo complexo de avaliação, aconselhamento, diagnóstico e manejo de pessoas e famílias com doenças genéticas67),(68. No Brasil, em 2021, a Agência Nacional de Saúde Suplementar ampliou o rol de profissionais autorizados a solicitar exames genéticos, incluindo médicos não geneticistas, como oncologistas clínicos, hematologistas e neurologistas entre os prescritores69, o que exigirá uma melhor abordagem do tema durante a graduação e a residência.
A tecnologia para realização de testes de sequenciamento de exoma/genoma (whole exome/genome sequencing - WES/WGS) evoluiu muito nos últimos anos, o que tem possibilitado a progressiva redução de custo e a expansão de sua oferta70),(71. Essa ferramenta pode detectar mais de 350 condições genéticas e tem sido utilizada na triagem neonatal72. Os WES/WGS estão amplamente disponíveis em laboratórios dos Estados Unidos73),(74 e, embora ainda não sejam acessíveis a todos os brasileiros, estão presentes em alguns laboratórios privados do país, sendo necessários para sua realização, basicamente, um pedido médico e o preenchimento de informações clínicas pessoais e familiares75),(76. Com essa evolução, surgem preocupações éticas relacionadas à privacidade e segurança de dados sensíveis para os indivíduos em idade pediátrica70, a necessidade de recomendação de WES/WGS feita de maneira diligente por profissional capacitado77 e a possível discriminação genética que o resultado do teste pode acarretar72.
Os TP, por sua vez, são oferecidos no âmbito da medicina personalizada ou de precisão, permitindo detectar precocemente doenças de manifestação tardia. Seus benefícios, entretanto, são restritos pela predição de doenças complexas e indisponibilidade de tratamentos eficazes68),(78. Os princípios fundamentais da ética médica devem ser observados para a prescrição de TP: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. No Brasil, em linha com a corrente internacional79),(80, a diretriz da Associação Médica Brasileira recomenda a realização de TP nos casos em que ações terapêuticas ou de prevenção possam evitar, retardar ou minimizar os sintomas da doença. Para doenças de início tardio sem perspectivas de tratamento, os TP devem ser oferecidos somente a adultos com busca espontânea, mediante aconselhamento genético pré e pós-teste, avaliação psicológica e suporte multidisciplinar78. O desconhecimento sobre essas recomendações pode estar relacionado aos resultados obtidos em nosso estudo.
Com a expansão do acesso às novas tecnologias, o conhecimento sobre os principais testes genéticos também precisa ser ampliado12),(78. A falta de preparação do profissional não especialista em genética é uma das barreiras à adoção de testes genéticos e genômicos em todo o mundo81. Uma pesquisa realiza em faculdades de Enfermagem no Brasil apontou que, em média, apenas 2,7 horas do conteúdo programático de genética são dedicadas a testes genéticos e serviços de genética ligados ao papel do enfermeiro29. Tópicos como aconselhamento genético não diretivo e conhecimentos básicos em testes genéticos são pobremente abordados no ensino superior em áreas da saúde82),(83. Em nossa pesquisa, poucos participantes relataram que se sentiam seguros para solicitar, interpretar e comunicar os resultados de um teste genético. Resultado similar foi apresentado em uma pesquisa recente realizada no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande84 e com profissionais de saúde na atenção primária no Canadá85. É possível elucubrar que esses resultados estão relacionados com a falta de educação continuada e com o fato de o assunto não ser abordado adequadamente durante a graduação. Além disso, os conhecimentos sobre genômica são, em geral, abordados no ciclo básico dos cursos de Medicina e Enfermagem, de maneira descolada da clínica, não favorecendo a consolidação da aprendizagem.
Assim, é de suma importância que todo profissional de saúde, geneticista ou não, tenha acesso, em sua formação, a fundamentos que lhe possibilitem lidar com questões complexas, técnicas, éticas e legais relacionadas à genética82),(83),(86.
Fortalezas e limitações do estudo
Este estudo apresenta algumas limitações: o questionário de coleta de dados não foi previamente validado; o tamanho amostral dificultou a realização de inferências e generalizações mais robustas; houve pouca participação de representantes do curso de Enfermagem, o que implicou um viés de amostragem adicional ao viés intrínseco das amostras de conveniência. Contudo, o tema é reconhecidamente relevante e, da forma como foi abordado nesta pesquisa, inédito no Brasil. Sugerimos que sejam realizados estudos multicêntricos, com ampliação do número de participantes e de instituições, para validar os resultados deste trabalho exploratório.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa possibilitou apresentar considerações acerca do ensino de genética nos cursos de Medicina e Enfermagem de uma universidade pública brasileira. A partir dos resultados, podem ser identificadas oportunidades para aprimorar o ensino de genética nesta e em outras IES. Reforça-se a importância de haver professores e preceptores que ensinem e discutam genética e genômica nos ambientes de ensino-aprendizagem dos cursos de graduação das áreas de saúde, de modo a estimular os estudantes a articular teoria e prática, e incorporar habilidades e competências relacionadas à genética no cuidado integral dos indivíduos. Para isso, pode ser interessante ter um professor de genética médica disponível ou acessível em cada IES, a fim de assessorar o núcleo de formação docente no planejamento dos currículos das áreas da saúde e na capacitação dos recursos humanos envolvidos.