INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, nota-se um aumento dos estudos que investigam a saúde mental dos estudantes universitários brasileiros, e inquéritos epidemiológicos apontam uma prevalência maior de transtornos mentais nessa população1. No caso dos estudantes de Medicina, a saúde mental também se mostra comprometida, com uma prevalência de depressão entre esses discentes ligeiramente mais alta (30,6%) quando comparada aos universitários em geral (28,51%)1),(2. Quando essa população entra na universidade, há uma alta exigência acadêmica e exposição a fatores de tensão que podem gerar grande sofrimento psíquico ao longo da permanência na escola médica3, com destaque à elevada taxa de suicídio entre esses estudantes4.
Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19), caracterizando-a como doença de elevada gravidade clínica e de alta letalidade, cuja prevenção envolve distanciamento, isolamento social e interrupção de atividades coletivas5. A pandemia trouxe variáveis que também parecem ter impactado de forma negativa a saúde mental da população em geral. Nesse contexto, as taxas de sintomas depressivos na população mundial podem ser até sete vezes maiores durante a pandemia6 e aproximar-se dos 70% entre os estudantes de Medicina7.
Considerando o cenário apresentado, as práticas de atenção plena podem ser uma ferramenta útil para promoção do bem-estar mental dessa população1),(8. Por causa dos resultados positivos que as pesquisas têm encontrado sobre o impacto de programas de treinamento em atenção plena9, ela vem se tornando um princípio orientador de variados esforços que objetivam a promoção de reflexão, de autoconsciência e de bem-estar na graduação médica por seu potencial de desenvolvimento de habilidades como concentração e adaptação ao imprevisto10. Neste relato, apresentamos a experiência de uma disciplina optativa sobre atenção plena e equilíbrio emocional oferecida a estudantes de graduação do curso de Medicina de uma universidade de Minas Gerais no ano de 2020. A disciplina foi ofertada de forma exclusivamente remota11, tendo em vista o contexto da pandemia de Covid-19 nesse ano.
RELATO DA EXPERIÊNCIA
Apresentação da disciplina
A disciplina “Atenção Plena e Equilíbrio Emocional” foi ofertada entre setembro e dezembro de 2020, com 13 aulas síncronas, remotas e semanais com duas horas de duração, para 16 alunos do curso de Medicina. Gravações em vídeo das aulas, para revisão pelos estudantes, e material de apoio em texto e áudios, para autoaplicação das técnicas apresentadas nas aulas, foram disponibilizados no ambiente virtual de aprendizagem da disciplina. O currículo da disciplina e os métodos para treinamento de habilidades psicológicas apresentados nas aulas tiveram como principal referência a proposta de cultivo do bem-estar mental por meio dos quatro equilíbrios, apresentada por Wallace et al.12. Para esses autores, a psicologia ocidental no século XX investiu parte significativa dos seus esforços na identificação e no tratamento de doenças/transtornos mentais, e dirige pouca atenção ao entendimento do que podem ser considerados estados mentais positivos e de bem-estar. Baseados na psicologia positiva ocidental13 e na tradição budista oriental14, elaboraram um modelo de bem-estar mental centrado no cultivo de quatro equilíbrios: conativo, atencional, cognitivo e afetivo. No Quadro 1, descrevemos brevemente as habilidades psicológicas que caracterizam cada um desses equilíbrios.
Tipo de equilíbrio mental | Habilidades psicológicas |
---|---|
Equilíbrio conativo | Cultivo de interesses, reflexões e aspirações realistas orientados para a própria felicidade e o bem-estar coletivo. |
Equilíbrio atencional | Habilidade de sustentar voluntariamente a atenção em focos sensoriais, cognitivos e emocionais, e de reconhecer as oscilações da própria atenção. |
Equilíbrio cognitivo | Engajar-se com as experiências psicológicas, do próprio universo subjetivo e da realidade, de forma contemplativa sem impor automaticamente ideias e suposições. |
Equilíbrio afetivo | Habilidade de regulação emocional, caracterizada pela consciência dos próprios estados emocionais e pela flexibilidade de estimulá-los ou apenas acolhê-los com intencionalidade. |
Fonte: Adaptado de Wallace et al. (12.
A proposta de Wallace et al.12 e os trabalhos do psicólogo estadunidense Paul Ekman14),(15 originaram o treinamento “Cultivando o Equilíbrio Emocional”, que apresentou resultados positivos em estudos iniciais16)-(18. Além do currículo do “Cultivando o Equilíbrio Emocional”, o programa da disciplina resultou de uma síntese original que se baseou em outros treinamentos e modelos validados de intervenções para promoção da saúde mental, especificamente: o treinamento em mindfulness e compaixão proposto por Demarzo et al.19) e Campayo et al. (20, o treinamento em cultivo de compaixão21),(22 da Universidade de Stanford e as intervenções psicossociais de aceitação e compromisso23. O professor responsável realizou, em 2014, o curso “Capacitação para facilitadores de intervenções em atenção plena (mindfulness)” ofertado pelo Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No Quadro 2, apresentamos o plano de ensino da disciplina, com os temas das aulas, seu conteúdo teórico e as técnicas apresentadas e vivenciadas em cada encontro.
Disciplina “Atenção Plena e Equilíbrio Emocional” | ||
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Atenção plena (mindfulness) e equilíbrio emocional: conceitos básicos. Equilíbrio conativo e equilíbrio atencional. Atenção plena com foco no ambiente e no corpo. Atenção plena na respiração. Atenção plena dos pensamentos e emoções. Equilíbrio emocional e cognitivo. Relações complexas entre pensamentos, emoções e comportamentos. Técnicas para cultivo da compaixão e gentileza amorosa/interesse empático. Técnicas para flexibilização cognitiva. Aplicações clínicas de técnicas de atenção plena e equilíbrio emocional. Abordagem inicial da depressão e ansiedade com técnicas de atenção plena e equilíbrio emocional. | ||
Tema principal da aula | Conteúdo teórico abordado | Técnicas para treinamento de habilidades psicológicas de atenção plena e equilíbrio emocional |
Equilíbrio conativo | Conceito de conação/motivação. Desequilíbrio conativo. Equilíbrio mental como habilidade psicológica que pode ser cultivada em longo prazo. | Reflexão individual: “Autoconhecimento motivacional” e Cultivo da Atenção Plena em 3 minutos |
Equilíbrio atencional (I) | O conceito de atenção plena (midnfulness) e equilíbrio/desequilíbrio atencional. Modo “ser” e modo “fazer”. O que não é atenção plena. | Cultivo da Atenção Plena na Respiração |
Equilíbrio atencional (II) | Principais dificuldades que surgem nos exercícios de atenção plena e sugestões de como manejá-las. | Cultivo da Atenção Plena por meio do Body Scan (“escaneamento” corporal) |
Equilíbrio atencional (III) | Relações psicológicas entre pensamentos, emoções e atenção plena. O cultivo de estados mentais de curiosidade e abertura. | Cultivo da Atenção Plena observando pensamentos e emoções |
Revisão - equilíbrio conativo e atencional | Esclarecimento de dúvidas das aulas anteriores. | Treinamento sequencial das práticas apresentadas (aula 1-4) |
Equilíbrio afetivo (I) | Equilíbrio e regulação (não controle) emocional. Desequilíbrio (fixação) das emoções e dos sentimentos. Cultivo de emoções de curiosidade e abertura - compaixão e gentileza amorosa (loving kindness). | Reflexão contemplativa para cultivo amplo da compaixão e da gentileza amorosa |
Equilíbrio afetivo (II) | Autocompaixão e gentileza amorosa consigo. O conceito de autocompaixão segundo Kristin Neff. Manejo psicológico da autocrítica depreciativa. | Reflexão “Substituindo a Voz Autocrítica pela Voz Autocompassiva” |
Equilíbrio afetivo (III) | Compaixão em relações difíceis e conflituosas. Respostas psicológicas em situações de perturbação emocional. Injustiça percebida e repercepção positiva. | Reflexão contemplativa para cultivo da compaixão e bondade em relações difíceis |
Equilíbrio cognitivo | Fixação/rigidez e flexibilidade cognitivas. Impermanência e coermergência. “Fusões” cognitivas. O “eu” como contexto. | Contemplação analítica da experiência cognitiva |
Revisão - equilíbrios afetivo e cognitivo | Esclarecimento de dúvidas das aulas anteriores. | Treinamento sequencial das práticas (aulas 6 a 9) |
Atenção plena e equilíbrio emocional em consultas médicas (I) | O papel das emoções de profissionais e de pacientes nas consultas médicas. O uso pelo/a profissional das próprias emoções como recurso de autocuidado e do cuidado de pacientes. | Preparação das atividades de conclusão da disciplina e manutenção das técnicas apresentadas nas aulas anteriores |
Atenção plena e equilíbrio emocional em consultas médicas (II) | Princípios gerais e técnicas breves de aplicação de técnicas de atenção plena e cultivo da compaixão para dificuldades comuns (aflições psicossociais, sintomas depressivos e ansiosos) em saúde mental. | |
Apresentação das atividades de conclusão da disciplina | Dramatização em grupo da oferta de atividades de atenção plena e cultivo da compaixão para pacientes. |
Fonte: Desenvolvido pelo primeiro autor com base em Wallace et al.12, Ekman15, Demarzo et al.19, Campayo et al. (20, Jinpa21 e Robinson et al.23.
Metodologia de avaliação
Ao longo da última semana de oferta da disciplina, foi disponibilizado, no quadro de avisos do ambiente virtual de aprendizagem da disciplina, aos 16 estudantes participantes, o link para acesso on-line ao questionário da pesquisa da disciplina, a ser respondido de forma voluntária e após leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) da pesquisa e concordância com esse documento. O questionário da pesquisa foi dividido em três seções: levantamento sociodemográfico, avaliação da disciplina e avaliação dos impactos da disciplina no bem-estar mental dos estudantes.
No levantamento sociodemográfico, obtiveram-se as seguintes informações: idade, data de nascimento, gênero atribuído ao nascimento, gênero, raça ou cor da pele autodeclaradas, estado civil, escolaridade, renda familiar, religião e período do curso de Medicina. Para avaliação da disciplina, foi desenvolvido um questionário de avaliação abordando os principais itens e temas de avaliação para cursos universitários da Escala de Satisfação com a Experiência Acadêmica (ESEA) desenvolvida por Schleich et al.24, no seu domínio “curso”. No questionário da pesquisa, o respondente, por meio de uma escala de Likert, deveria manifestar o nível de concordância com as afirmações de avaliação da disciplina: “discordo totalmente”, “discordo parcialmente”, “indiferente”, “concordo parcialmente” e “concordo totalmente”.
Para a avaliação dos impactos do curso no bem-estar mental dos estudantes, adotou-se uma versão adaptada do Questionário de Saúde Geral 12 (General Health Questionnaire 12 - GHQ-12)25. O GHQ-12 é utilizado consensualmente como um escore geral de bem-estar psíquico26. Nessa adaptação do GHQ-12 (Tabela 2), os participantes foram apresentados a 12 afirmações sobre possíveis efeitos da disciplina em seu bem-estar mental, sendo solicitados a responder, também, como na avaliação da disciplina, com as opções em Likert mencionadas anteriormente. O instrumento da pesquisa também apresentou perguntas abertas. Foram sete perguntas de avaliação da satisfação e da percepção de aprendizagem, e cinco de avaliação dos efeitos da participação na disciplina no próprio bem-estar subjetivo, voltadas para aspectos positivos, aspectos negativos e sugestões.
Avaliação da disciplina e autopercepção de aprendizagem: |
---|
a) De maneira geral, como você avalia o ensino e a aprendizagem na disciplina “Atenção Plena e Equilíbrio Emocional”? |
b) Que principais aspectos você considera satisfatórios no ensino e na aprendizagem dessa disciplina? |
c) Por que você considera esses aspectos satisfatórios? |
d) Que principais aspectos você considera insatisfatórios no ensino e na aprendizagem dessa disciplina? |
e) Por que você os considera insatisfatórios? |
f) O que você sugere para possíveis próximas edições da disciplina? |
g) Quais aprendizados você considera mais significativos para sua futura prática profissional? |
Percepção de efeitos da disciplina no bem-estar mental dos estudantes |
a) Você avalia que a sua participação na disciplina contribuiu de alguma forma para o seu bem-estar subjetivo? Se sim, quais foram os principais aspectos da disciplina promotores do seu bem-estar subjetivo? |
b) Por que você considera esses aspectos da disciplina promotores do seu bem-estar subjetivo? |
c) Você avalia que a sua participação na disciplina trouxe prejuízos ou dificuldades ao seu bem-estar subjetivo? Se sim, quais foram os principais aspectos da disciplina que causaram prejuízos ou dificuldades ao seu bem-estar subjetivo? |
d) Por que você considera que esses aspectos causaram prejuízos ou dificuldades ao seu bem-estar subjetivo? |
e) Para evitar os efeitos prejudiciais ou dificultadores causados ao seu bem-estar subjetivo e/ou aumentar os efeitos promotores, quais sugestões você teria de mudanças para a disciplina? |
Por conta do curto intervalo de tempo (um mês) entre a aprovação da oferta da disciplina na modalidade remota e o início das aulas, e considerando também o processo de submissão do estudo avaliativo para apreciação de comitê de ética em pesquisa, não foi possível aplicar os questionários antes da disciplina, impossibilitando uma avaliação comparativa, que seria recomendada especialmente para o GHQ-12.
Considerando o pequeno número de participantes, as respostas ao instrumento da pesquisa foram analisadas por meio de uma descrição de frequência dos dados quantitativos e um exame de conteúdo dedutivo das respostas abertas27. As três categorias temáticas predefinidas para avaliar satisfação com a disciplina e o impacto no bem-estar mental foram: aspectos positivos, adequados e satisfatórios; aspectos negativos, dificuldades e insatisfações; e sugestões para novas edições do curso. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Viçosa com o registro de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 38496820.9.0000.5153.
Perfil sociodemográfico
Dos 16 estudantes de Medicina participantes, 13 responderam ao questionário. Os respondentes tinham de 18 a 24 anos e eram de ambos os sexos: oito (61,5%) do sexo feminino e cinco (38,5%) do sexo masculino. É importante destacar que se consideraram os sexos atribuídos ao nascimento, com os quais os participantes também se identificaram. Todos se autodeclararam solteiros. Em relação à raça, dez (76,9%) se autodeclararam brancos, e três (23,1%), pardos. Sobre a religião, cinco (38,5%) mencionaram não possuir religião, cinco (38,5%) se declararam católicos, dois (15,4%) indicaram que eram espíritas e um (7,7%) afirmou ser agnóstico. Verificou-se que a soma dos rendimentos individuais de todos que integram o núcleo familiar e contribuem para a sustentabilidade financeira dos participantes nos quatro últimos meses que antecederam a pesquisa ficou entre R$ 1.000,00 e R$ 2.500,00 reais para duas pessoas, entre R$ 2.501,00 e R$ 5.000,00 reais para oito pessoas e acima de R$ 5.000,00 para três. Todos os respondentes possuíam ensino superior incompleto.
Avaliação da satisfação com a disciplina e da autopercepção de aprendizagem
Os 13 participantes (100%) consideraram adequados os seguintes aspectos: a proposta pedagógica da disciplina, a utilidade dos aprendizados adquiridos na disciplina para a futura prática profissional, o sistema geral de ensino da disciplina, o conteúdo das aulas, o conteúdo extraclasse (referências de leitura, vídeos, textos e áudios orientadores das práticas) e a atuação do professor na disciplina. Da mesma maneira, 11 participantes (mais de 80%) consideraram adequado o sistema de avaliação da disciplina. O item considerado adequado por um menor número de estudantes foi o método de ensino com aulas síncronas pela plataforma Google Meets (nove estudantes, 69,2%). Em nenhum dos itens avaliados o somatório de avaliações “indiferente” ou “inadequado” foi maior do que 30,8%. Na tabela 1, apresentamos os resultados da avaliação de satisfação com a disciplina e da autopercepção de aprendizagem.
Item avaliado | Concordo total/parcialmente | Indiferente | Discordo total/ parcialmente |
---|---|---|---|
Objetivos de aprendizagem e da ementa foram claros. | 13 | - | - |
Proposta de organização foi adequada. | 13 | - | - |
Sistema de ensino foi adequado. | 13 | - | - |
Conteúdo das aulas foi adequado. | 13 | - | - |
Conteúdo extraclasse foi adequado. | 13 | - | - |
Método de ensino aulas síncronas pela plataforma Google Meet foi adequado. | 9 | 3 | 1 |
Método de ensino-avaliação fórum foi adequado. | 11 | 1 | 1 |
Sistema de avaliação foi adequado. | 11 | 1 | 1 |
Método de avaliação portfólio foi adequado. | 10 | 1 | 2 |
Método de avaliação exercício prático em grupos on-line foi adequado. | 12 | 1 | - |
Atuação do professor foi adequada. | 13 | - | - |
Professor demonstrou conhecimentos necessários. | 13 | - | - |
Professor apresentou habilidades de ensino necessárias. | 13 | - | - |
Professor foi pontual. | 13 | - | - |
Professor atendeu à solicitações fora dos meios regulares de aprendizagem. | 10 | 3 | - |
Recursos utilizados na modalidade remota foram adequados. | 13 | - | - |
Os aprendizados foram úteis para a futura prática profissional. | 13 | - | - |
Meu investimento pessoal na disciplina foi adequado. | 12 | 1 | - |
Considero-me apto a aplicar para o meu próprio bem-estar psicológico as técnicas ensinadas no curso. | 12 | 1 | - |
Considero-me apto a orientar as técnicas apresentadas no curso para pacientes em situações de desconforto/sofrimento psicológico e emocional leve e moderado. | 12 | 1 | - |
Foram atendidas as minhas expectativas de aprendizagem. | 12 | 1 | - |
Recomendaria a disciplina para outros colegas. | 13 | - | - |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Nas perguntas abertas, os 13 alunos (100%) avaliaram o ensino e a aprendizagem na disciplina “Atenção Plena e Equilíbrio Emocional” de maneira positiva, usando adjetivos como: positivo, satisfatório, muito bom ou excelente. Em relação aos aprendizados considerados mais significativos para a futura prática profissional, 11 alunos (84,6%) destacaram as técnicas para desenvolvimento de empatia que permitiriam melhor lidar com os sentimentos dos pacientes. Além disso, dez estudantes (76,9%) também destacaram, como aprendizado significativo, aspectos como: a habilidade de gerir suas próprias emoções e o desenvolvimento de autoaceitação, de autocompaixão e da capacidade de lidar com o próprio sofrimento.
Convergindo com as respostas às questões fechadas, o principal aspecto considerado prejudicial apontado nas respostas abertas por seis alunos (46,2%) foi o modelo de ensino remoto, descrito como causa de dispersão, de falta de atenção e de contato com colegas e professores. Da mesma maneira, sete estudantes (53,8%) sugeriram que a disciplina fosse ministrada de forma presencial.
Avaliação de percepção de efeitos da disciplina no bem-estar mental dos estudantes
Embora seja amplamente utilizado como um instrumento unidimensional, é possível agrupar os itens avaliados pelo GHQ-12 em três grandes componentes do bem-estar mental: a baixa frequência e/ou intensidade de sintomas de depressão e ansiedade; a experiência de funcionalidade e integração social; e a autoconfiança28. Quanto aos sintomas de ansiedade e de depressão, 12 estudantes (92,3%) concordaram que a disciplina contribuiu para: a amenização do sentimento de agonia e de tensão, o sentimento de que é possível superar as próprias dificuldades, um sentimento de felicidade e um humor equilibrado. Oito estudantes (61,2%) constataram melhoria na qualidade do sono.
Em relação à funcionalidade e à integração social, entre 11 e 12 (mais de 80%) estudantes concordaram que a disciplina contribuiu para: a melhora na concentração nas atividades que realizam, a capacidade de enfrentamento adequada dos problemas e sentir-se uma pessoa razoavelmente feliz considerando todas as circunstâncias. Entre 9 e 10 estudantes (de 69,3% a 76,9%) constataram que a disciplina contribuiu para a sensação de maior capacidade para tomada de decisões, a capacidade de desfrutar das atividades normais de cada dia e para ver-se como uma pessoa útil em diversos aspectos. Quanto aos itens que avaliaram autoconfiança, nove alunos (69,2%) concordaram que a disciplina contribuiu para aumentar a confiança em si, e dez estudantes (76,9%) consideraram que a disciplina contribuiu para percepção de ser mais útil na vida. Na Tabela 2, apresentamos as respostas ao questionário de avaliação da percepção dos efeitos da disciplina no bem-estar mental.
A participação na disciplina... | Concordo totalmente/Concordo parcialmente | Indiferente | Discordo totalmente/ Discordo parcialmente |
---|---|---|---|
Contribuiu para me sentir menos agoniado e tenso. | 12 | 1 | - |
Contribuiu para sentir que posso superar minhas dificuldades. | 12 | 1 | - |
Contribuiu para me sentir mais feliz e com humor mais equilibrado. | 12 | 1 | - |
Melhorou a qualidade do meu sono. | 8 | 3 | 2 |
Melhorou a concentração nas atividades que realizo. | 11 | 1 | 1 |
Contribuiu para a minha capacidade de enfrentar adequadamente os problemas. | 12 | 1 | - |
Contribuiu para me sentir uma pessoa razoavelmente feliz considerando todas as circunstâncias. | 11 | 2 | - |
Contribuiu para me sentir capaz de tomar decisões. | 9 | 3 | 1 |
Contribuiu para a minha capacidade de desfrutar as atividades normais de cada dia. | 10 | 3 | - |
Contribuiu para me ver como uma pessoa útil em diversos aspectos. | 9 | 3 | 1 |
Contribuiu para aumentar a confiança em mim mesmo. | 9 | 2 | 2 |
Contribuiu para me perceber mais útil na vida. | 10 | 2 | 1 |
Fonte: Itens de avaliação adaptados de Borges et al.26) pelos autores.
Nas respostas às perguntas abertas sobre esse tema, 13 estudantes (100%) avaliaram que a participação na disciplina contribuiu de forma significativa para promoção do bem-estar mental. Oito estudantes (61,2%) foram mais específicos e alegaram que os principais benefícios envolveram: tomar consciência sobre as próprias emoções e sobre o seu diálogo interno, perceber e interpretar melhor os próprios sentimentos e pensamentos, e cultivar o autoconhecimento.
DISCUSSÃO
O perfil sociodemográfico do grupo de estudantes demonstra que a disciplina não foi cursada em sua maioria por estudantes negros, de baixa renda e de identidade de gênero diversa, o que pode refletir o perfil populacional de discentes do próprio curso de Medicina em que a disciplina foi disponibilizada. O perfil sociodemográfico da população estudantil dos cursos de Medicina no Brasil ainda reflete a exclusão estrutural de populações vulnerabilizadas do ensino superior no país29. Essa exclusão estrutural tem sido mitigada pelas políticas de cotas raciais e sociais que têm promovido mudanças importantes, mas ainda insuficientes para enfrentar as diversas formas de violência sofridas por negros, pobres e pessoas LGTBQIA+ no Brasil.
Quanto ao modelo que adotamos de intervenção, em revisão sistemática e metanálise sobre intervenções psicológicas para promoção do bem-estar mental, Agteren et al.30 apontaram que propostas de intervenções psicológicas originais “multiteóricas” são comuns e contribuem para a promoção do bem-estar mental dos participantes, como sugerido também pelos nossos resultados. Agteren et al.30 definem como “multiteóricas” intervenções que reúnem elementos de diversas abordagens psicossociais da chamada “terceira onda”31 das terapias cognitivo-comportamentais, como abordagens baseadas em atenção plena, cultivo da compaixão e aceitação e compromisso. No entanto, também segundo essa revisão, nos estudos de abordagens “multiteóricas”, a qualidade da evidência e o impacto positivo na saúde mental são menores do que nas intervenções focadas apenas em atenção plena. Tal fato pode ser explicado pela variedade de componentes das intervenções “multi” e dos instrumentos de pesquisa utilizados que podem prejudicar a comparação entre as intervenções. Há respaldo, portanto, na literatura, para a oferta de intervenções que reúnem contribuições de diversas abordagens validadas separadamente, como a proposta apresentada no presente relato de experiência. Contudo, acentua-se o desafio de reconhecer e buscar soluções para as dificuldades em estabelecer comparações com a maioria dos estudos que acabam optando por modelos de intervenções já preestabelecidos e validados.
A escolha dos instrumentos para avaliar os desfechos em saúde mental também é um tema que merece atenção na análise de intervenções psicológicas. Na revisão de Agteren et al.30, o GHQ-12 não está relacionado entre os instrumentos mais utilizados para avaliação dos efeitos de intervenções psicológicas no bem-estar mental (subjetivo ou psicológico)32, tendo sido mais adotadas, por exemplo, a Escala de Satisfação com a Vida e a Escala de Afetos Positivos e Negativos. Por sua vez, Lima et al.33 identificaram, com o GHQ-12 aplicado pré e pós-intervenção e em follow-up, um impacto positivo significativo no bem-estar psicológico de 17 adultos que frequentaram um curso de treinamento em atenção plena. O GHQ-12 também foi utilizado em outros estudos para avaliar a relação entre atenção plena e saúde mental, demonstrando associações positivas34),(35. Apesar de ser um instrumento relativamente curto e que, por isso, avalia poucos componentes de bem-estar e saúde mental, os aspectos avaliados pelo GHQ-12 - sintomas depressivos e ansiosos, funcionalidade/integração social e autoconfiança - são relevantes e atenderam à nossa proposta de não perder a oportunidade de registrar as percepções dos estudantes sobre o impacto do curso em elementos básicos de sua saúde mental, sem, neste piloto, recorrer a questionários com muitos itens. A disciplina, para a maioria dos estudantes, contribui em todos os itens avaliados pela versão adaptada do GHQ-12, apontando para o potencial dessa intervenção como promotora do bem-estar mental.
Revisões de literatura sobre intervenções baseadas em atenção plena10),(36 e cultivo da compaixão/empatia37 na formação médica apontam que os estudos empíricos sobre essas intervenções não analisam, em geral, a satisfação dos estudantes com a própria intervenção, o curso ou a disciplina. Como exceção, Aherne et al.38 identificaram, por meio de questionário de satisfação com questões fechadas e abertas, que um programa de redução do estresse baseado em atenção plena para estudantes de Medicina foi associado a maior satisfação e feedback positivo quando ofertado de forma optativa em comparação à oferta obrigatória. Corroborando esses achados, em ensaio clínico randomizado realizado com estudantes de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Damião Neto et al.39 não identificaram diferenças entre o grupo controle e o grupo intervenção (curso de meditação baseada em atenção plena) quanto a melhorias na saúde mental e qualidade de vida. Segundo os autores, um possível fator explicativo foi justamente a obrigatoriedade de frequentar o curso pesquisado. Na presente pesquisa, os estudantes se perceberam em geral bastante satisfeitos com a disciplina cuja oferta também se deu de forma optativa. A opcionalidade aparece, portanto, como um fator importante para garantir essa satisfação.
Quanto à percepção dos estudantes sobre o desenvolvimento de habilidades emocionais, ressaltamos os potenciais benefícios não só na redução dos sintomas de depressão e de ansiedade e na melhora da qualidade de vida, mas também o possível impacto direto na qualidade do serviço de saúde prestado, auxiliando na construção da relação com o paciente e melhorando os níveis de adesão aos tratamentos. Uma revisão sistemática de 52 estudos sobre o treinamento em compaixão na formação médica concluiu que 75% dos currículos testados identificaram melhora da empatia em pelo menos uma medida de resultado com implementação de comportamentos eficazes pelos alunos nas consultas, tais como: detecção de pistas emocionais não verbais de pacientes e emissão de declarações verbais de reconhecimento, de validação e de apoio37.
CONCLUSÃO
Neste estudo-piloto, uma disciplina optativa sobre atenção plena e equilíbrio emocional foi avaliada como satisfatória em seus aspectos de currículo e métodos de ensino e avaliação, por mais de 80% dos estudantes participantes. Esses estudantes também perceberam que alcançaram os objetivos de aprendizagem propostos pela disciplina. A maioria deles também apontou impactos positivos em seu bem-estar mental, com mais de 80% de concordância em metade dos itens pesquisados. Esses resultados estão em consonância com a literatura internacional que aponta para a promoção do bem-estar mental da população em geral e de estudantes de Medicina com intervenções baseadas em mindfulness e cultivo da compaixão. A principal dificuldade apontada pelos estudantes participantes foi a modalidade remota de oferta da disciplina, visto que avaliaram que a aprendizagem dos conhecimentos e das técnicas poderia ser melhor em uma oferta presencial.
No curso de Medicina em que foi ofertada a disciplina, não há, usualmente, na grade regular, a possibilidade de cursar disciplinas optativas. Foi possível disponibilizar a disciplina aqui relatada porque, durante a pandemia, diversas disciplinas regulares não puderam inicialmente ser ministradas, em razão da alta carga horária de práticas presenciais exigidas, abrindo espaço para a oferta de optativas remotas. Portanto, os resultados apresentados convidam à reflexão sobre a relevância de organizar a grade horária dos cursos de Medicina para a oferta de disciplinas optativas sobre autocuidados em saúde mental. Os resultados também convidam a dirigir o olhar para a formação docente em medicina para ministrar atividades de promoção do bem-estar mental. No período de oferta da disciplina, apenas dois docentes do curso, em que foi realizado o estudo, já haviam recebido, por interesse próprio, capacitação para facilitação de treinamentos em atenção plena e vinham ministrando treinamentos, até antes da pandemia de Covid-19, no formato de cursos de extensão.
Este estudo apresentou limitações importantes, entre as quais destacamos: um pequeno número de participantes, o não levantamento de dados pré-intervenção e de follow-up, e a ausência de um grupo controle. Cientes dessas limitações, entendemos que a relevância do estudo se dá pela originalidade do currículo da disciplina ofertada e pela possibilidade de oferecer uma resposta aos desafios à saúde mental impostos pelo contexto da pandemia à população em geral e, em especial, aos estudantes universitários, nesse caso, discentes de um curso de Medicina. Considerando que já está sinalizado que os impactos sociais e mentais da pandemia de Covid-19 ainda se darão pelos próximos anos, esta experiência, embora incipiente tanto na proposta da disciplina quanto no seu formato de avaliação, aponta para a importância de novas ofertas de treinamentos em atenção plena e equilíbrio emocional e de avaliações mais amplas dos seus impactos, se possível, em diversos cursos de Medicina do Brasil.