INTRODUÇÃO
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)1 para o curso de graduação em Medicina trazem, explicitamente, a necessidade da formação de médicos cientificamente críticos e reflexivos. Nesse sentido, boa parte das escolas médicas tem se movimentado para oferecer uma melhor formação científica durante a graduação2. Tal recomendação se tornou ainda mais evidente durante o recente cenário de pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19), o qual evidenciou a má qualidade da educação científica no país. Corroborando essa percepção, observa-se que grande parte das escolas médicas apresenta uma formação científica deficiente3),(4 apesar do crescente interesse estudantil nesse aspecto5),(6.
Entre os fatores que podem influenciar esse cenário de formação deficitária em pesquisa científica, estão o ensino fortemente voltado para o conteúdo assistencial, a falta de orientação específica e de qualidade, o reduzido estímulo institucional, além do baixo engajamento pedagógico e científico do corpo docente atuante nos cursos de graduação3),(6),(7.
Aliado a esses fatores, é importante destacar o recente cenário de expansão do número de matrículas em escolas médicas no país, gerando um possível déficit de professores orientadores para a quantidade de novos estudantes que carecem de desenvolvimento científico na sua formação. Essa relação entre professor-orientador e estudante de Medicina é especialmente importante na educação científica desses discentes8),(9. Nesse cenário de precariedade do desenvolvimento científico, as instituições de ensino superior (IES) precisam adotar novas estratégias para estimular o interesse dos estudantes de Medicina em pesquisa científica e consequentemente alcançar os objetivos das DCN. Nesse âmbito, a reestruturação curricular e a implementação de mentorias científicas podem contribuir para a melhor formação científica do corpo discente e o incremento das produções científicas do curso.
A mentoria se constitui de uma relação de orientação, treinamento, aconselhamento e suporte entre profissionais mais experientes (mentores) e jovens iniciantes (mentorandos), com reconhecido benefício para ambas as partes envolvidas10)-(12. Apesar de ser um conceito antigo13, as mentorias estão cada vez mais presentes no âmbito acadêmico14)-(16 e têm assumido diferentes formatos17)-(19. Em geral, notam-se benefícios, como a criação de ambientes de acolhimento e afetividade, a discussão de conteúdos médicos, além de temas relacionados à formação profissional (como gestão de tempo, cuidados com a saúde física e mental, entre outros)20),(21. Entretanto, pouco se discute acerca dessa estratégia com finalidades científicas.
Com base nessas considerações, este estudo teve como objetivo descrever o processo de implementação e sistematização do programa de mentorias científicas em um curso de graduação em Medicina, além de investigar a percepção dos estudantes e professores/mentores sobre a sua implantação e execução, e mensurar os indicadores de êxito dessa ferramenta acadêmica.
MÉTODOS
Local de estudo
O presente estudo foi realizado no curso de graduação em Medicina do Centro Universitário FTC (UniFTC), localizado em Salvador, na Bahia. O curso, fundado em 2004 e atualmente com conceito 4 atribuído pelo Ministério da Educação, passou por uma recente reformulação do seu plano pedagógico instituindo uma carga horária total de oito mil horas. Destas, 200 horas são dedicadas ao eixo de pesquisa científica, representado pelas disciplinas Metodologia Científica (I e II) e Trabalho de Conclusão de Curso (I e II). Essas disciplinas são ofertadas, sequencialmente, do quinto ao oitavo semestre da graduação, tendo, cada uma, um professor supervisor responsável, totalizando quatro docentes. Além disso, criou-se a figura do coordenador de pilar, nesse caso de Ciências Fundamentais da Vida e Pesquisa, que gerencia todas as disciplinas básicas e de pesquisa. O curso possui entrada semestral de 180 estudantes, tendo uma estimativa de 720 discentes cursando as disciplinas do eixo de pesquisa semestralmente.
Desenho de estudo
Nesse cenário, foi realizado um estudo observacional, seccional, de natureza descritiva, incluindo os estudantes do terceiro ao quarto ano da graduação.
Modelo de implementação das mentorias científicas
A coordenação de pesquisa e os seus professores supervisores reuniram-se com o objetivo de traçar estratégias para melhorar as condições de produção científica do curso, beneficiando estudantes, professores, o curso e a própria IES em avaliações internas e externas, bem como - e principalmente - contribuindo para uma melhor formação científica de seu corpo discente.
Com esse propósito, em 2020, decidiu-se ofertar aos estudantes interessados, de maneira extracurricular, o serviço de mentorias científicas. Para a oferta dessas mentorias, os quatro professores supervisores das disciplinas do eixo de pesquisa receberam uma carga horária complementar de 12 horas para que pudessem se dedicar a essa estratégia. Os estudantes, por sua vez, puderam agendar encontros de aproximadamente 60 minutos com os mentores para discutir, especificamente, seus trabalhos de conclusão de curso (TCC) em desenvolvimento, desde a concepção até a análise de dados, a redação e a apresentação final. O agendamento dos encontros era optativo, e a participação dos professores orientadores nesses encontros era permitida e estimulada. Os encontros aconteciam de maneira síncrona por meio da plataforma institucional BlackBoard. O fluxo do processo de mentorias é ilustrado na Figura 1.
Coleta e análise de dados
Aplicou-se um questionário virtual, estruturado, anônimo, com perguntas objetivas relacionadas ao perfil discente (sexo, faixa etária, estado civil, raça, período acadêmico em curso, participação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) e modalidade deste), além das percepções sobre o programa de mentorias científicas. Utilizou-se a escala Likert, e consideraram-se três estratos para as análises: concordância (total ou parcial), indiferença e discordância (total ou parcial). Os estudantes também puderam avaliar as mentorias realizadas atribuindo notas de 0 a 10. Além disso, para a avaliação do êxito da estratégia implementada, foi realizado um levantamento do número de TCC publicados pelos estudantes sob orientação de professores da instituição em anais de congressos e periódicos científicos.
Os possíveis respondentes foram convidados a participar da pesquisa por meio do método snowball, técnica de amostragem não probabilística na qual os sujeitos de estudo existentes recrutam sujeitos futuros22. O questionário foi estruturado por meio da plataforma Google Forms, sendo o link de participação enviado, inicialmente, aos líderes de turmas envolvidos nas disciplinas do eixo científico, os quais, posteriormente, recrutaram seus pares por meio de grupos específicos de aplicativos de mensagens e rede social própria da coordenação de pesquisa. Os dados foram tabulados e analisados por meio do Programa Excel, sendo as variáveis apresentadas em medidas descritivas. A comparação entre as notas atribuídas às mentorias científicas pelos estudantes de diferentes semestres foi realizada pelo teste ANOVA one-way. Consideraram-se como estatisticamente significantes valores de p < 0,05.
Além disso, com o objetivo de avaliar a percepção dos professores-mentores envolvidos nessa intervenção, realizou-se uma entrevista semiestruturada alicerçada em um roteiro que contemplava os seguintes itens: vantagens, desvantagens, aspectos facilitadores e obstáculos da estratégia de mentorias científicas no curso de graduação em Medicina. Para a análise qualitativa, os discursos foram categorizados considerando os conceitos-chave identificados.
Aspectos éticos
Todos os participantes do estudo receberam informações sobre os objetivos e a metodologia da pesquisa, sendo garantido o sigilo sobre a origem dos dados. A participação voluntária se concretizou por meio da assinatura virtual do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O presente trabalho está em consonância com as Resoluções nºs 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Mantenedor de Ensino Superior da Bahia: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 47770721.4.0000.5032 e Parecer nº 5.375.931.
RESULTADOS
A amostra da pesquisa foi composta por 143 estudantes (19,9% do total de estudantes) com média de idade de 25,3 + 5,54 anos, majoritariamente solteiros (90,9%), autodeclarados pardos (46,2%) e do sexo feminino (72,0%). Além disso, poucos estudantes afirmaram integrar o Pibic (11,2%), e, entre aqueles que participaram, a maioria ocorreu na modalidade voluntária (68,8%) (Tabela 1).
Características | Amostra (n=143) |
---|---|
Idade (em anos), MA+DP | 25,3+5,54 |
Sexo, n (%) | |
Feminino | 103 (72,0) |
Masculino | 40 (28,0) |
Raça, n (%) | |
Amarela | 2 (1,4) |
Branca | 65 (45,5) |
Parda | 66 (46,2) |
Preta | 10 (6,9) |
Estado civil, n (%) | |
Casado (a) | 12 (8,4) |
Divorciado (a) | 1 (0,7) |
Solteiro(a) | 130 (90,9) |
Semestre acadêmico em curso, n (%) | |
5° Semestre | 26 (18,2) |
6° Semestre | 68 (47,6) |
7° Semestre | 18 (12,6) |
8° Semestre | 31 (21,7) |
Participação em atividades formais de iniciação científica (Pibic), n (%) | |
Não | 127 (88,8) |
Sim | 16 (11,2) |
Modalidade da iniciação científica (Pibic), n (%) | |
Bolsista | 5 (31,3) |
Voluntário | 11 (68,8) |
n: frequência absoluta; %: frequência relativa; MA: média aritmética; DP: desvio padrão; Pibic: Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Apesar do baixo número de estudantes no programa de iniciação científica, quando a totalidade da amostra estudada foi questionada sobre a importância do TCC na formação acadêmica dos futuros médicos, os estudantes, majoritariamente, declararam estar de acordo com a necessidade dessa atividade curricular (73,5%). Do total de estudantes respondentes, 70,6% participaram das mentorias científicas ofertadas pelo curso. Destes, 97,1% consideraram que essa atividade contribuiu para o desenvolvimento do TCC. Nesse sentido, ao serem perguntados se as mentorias deveriam ser mantidas, os acadêmicos apresentaram uma percepção altamente favorável à manutenção dessa oferta (98,0%). Observamos, ainda, que 82,2% dos estudantes afirmaram não saber ou não conhecer outra IES que forneça mentorias científicas, e 85,0% concordaram que foi uma estratégia inovadora (Tabela 2). Por fim, quando se analisou a pontuação atribuída pelos estudantes às mentorias realizadas, verificou-se uma nota global de 8,84 ± 1,95 pontos, sem diferenças estatisticamente significantes entre os semestres.
A percepção docente também foi investigada e valorizada neste trabalho. Os professores envolvidos enfatizaram (1) o incremento do interesse discente pela pesquisa científica, (2) a quali-dade dos TCC e (3) a possibilidade da utilização do modelo remoto como principais fortalezas da estratégia. Entre as fragilidades, destacaram-se (1) a dependência do estudante ao mentor e (2) o conflito de ideias entre professor-orientador e professor-mentor (Quadro 1).
Percepção discente | n (%) |
---|---|
Segundo as DCN para Cursos de Medicina, o TCC é um elemento importante na formação acadêmica. Você concorda? | |
Concordo totalmente | 59 (41,3) |
Concordo parcialmente | 46 (32,2) |
Nem concordo nem discordo | 9 (6,2) |
Discordo parcialmente | 18 (12,6) |
Discordo totalmente | 11 (7,7) |
Você participou das mentorias de pesquisa científica oferecidas para o seu semestre? | |
Não | 42 (29,4) |
Sim | 101 (70,6) |
Você considera que as mentorias de pesquisa científica contribuíram no desenvolvimento do seu TCC?* | |
Concordo | 98 (97,0) |
Nem concordo nem discordo | 1 (1,0) |
Discordo | 2 (2,0) |
Não aptos a responder | 42 (N/A) |
Na sua perspectiva, as mentorias de pesquisa científica devem ser mantidas nos próximos semestres?* | |
Não | 1 (1,0) |
Não sei | 1 (1,0) |
Sim | 99 (98,0) |
Não aptos a responder | 42 (N/A) |
Você conhece outra instituição que disponibilize atividades semelhantes ao nosso sistema de mentorias?* | |
Não | 83 (82,2) |
Sim | 18 (17,8) |
Não aptos a responder | 42 (N/A) |
Você considera inovadora a implementação de mentorias científicas no curso de Medicina?* | |
Concordo | 85 (84,1) |
Nem concordo nem discordo | 11 (10,9) |
Discordo | 5 (5,0) |
Não aptos a responder | 42 (N/A) |
n: frequência absoluta; %: frequência relativa; DCN: Diretrizes Curriculares Nacionais; TCC: trabalho de conclusão de curso; * frequência relativa calculada considerando um total de 101 estudantes que informaram ter realizado mentorias de pesquisa científica; N/A: não se aplica.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Professor | Fortalezas | Fragilidades |
#1 | Vantagens: Incremento da aprendizagem significativa Incremento da produção científica conjunta (docentes e discentes) Incremento da qualidade dos trabalhos Incremento do interesse pela Pesquisa Científica | Desvantagens: Carga horária extracurricular Dependência do estudante ao mentor |
Aspectos Facilitadores: Modelo híbrido (presencial e remoto) Possibilidade de agendamento Possibilidade de participação do orientador | Principais Obstáculos: Carga horária insuficiente Conflito de ideias (orientador vs mentor) | |
#2 | Vantagens: Acompanhamento e controle constante da evolução dos trabalhos Auxílio para as aulas regulares | Desvantagens: Dependência do estudante ao mentor |
Aspectos facilitadores: Modelo híbrido (presencial e remoto) | Principais obstáculos: Falta de comprometimento de alguns estudantes | |
#3 | Vantagens: Incremento da aprendizagem significativa Incremento da qualidade dos trabalhos | Desvantagens: Dependência do estudante ao mentor |
Aspectos facilitadores: Transmissão de bons resultados entre os discentes Transmissão de bons resultados entre os docentes | Principais obstáculos: Conflito de ideias (orientador vs mentor) Falta de comprometimento de alguns estudantes | |
#4 | Vantagens: Acompanhamento e controle constante da evolução dos trabalhos Flexibilidade dos horários Incremento da produção discente Incremento da produção docente Incremento da qualidade dos trabalhos Incremento do interesse pala Pesquisa Científica | Desvantagens: Dependência do estudante ao mentor |
Aspectos facilitadores: Carga horária dedicada exclusivamente à estratégia Modelo híbrido (presencial e remoto) Possibilidade de agendamento Transmissão de bons resultados entre os discentes | Principais obstáculos: Conflito de ideias (orientador vs mentor) Diversidade temática |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Quando se analisou o êxito da estratégia implementada, verificou-se que, dos TCC apre-sentados em 2021, findando o primeiro ano da implementação das mentorias científicas, 27,5% foram publicados em anais de congressos ou periódicos científicos (Tabela 3). Destes, participou da autoria um total de 19 professores, sendo 11 médicos e oito não médicos, com uma média per capita de 1,89 produção por professor (máximo de seis e o mínimo de uma participação autoral).
TCCs apresentados em 2021 | Amostra (n=131) | |
---|---|---|
TCCs publicados, n (%) | ||
Total | 36 (27,5) | |
Artigos científicos* | 25 (69,4) | |
Apresentações em congresso* | 11 (30,6) | |
Classificação**, n (%) | ||
A3 | 1 (4,0) | |
B1 | 14 (56,0) | |
B2 | 5 (20,0) | |
B3 | 2 (8,0) | |
B4 | 1 (4,0) | |
Sem Classificação | 2 (8,0) | |
Apresentações em congresso, n (%) | ||
Nacional | 11 (100) | |
Internacional | --- |
TCC: trabalhos de conclusão de curso; * frequência relativa calculada considerando 36 TCC publicados; ** artigos estratificados de acordo com a classificação da extensão Chrome Qualis (área única), sendo a frequência relativa calculada considerando 25 artigos publicados.
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
No presente estudo, os discentes do terceiro e quarto anos do curso de graduação em Medicina avaliados demonstraram, especialmente com relação à participação nas mentorias, majoritário envolvimento nas atividades científicas propostas. Tal percepção está de acordo com estudos prévios que apontam que a maioria dos acadêmicos de Medicina concorda que a pesquisa científica é uma experiência institucional importante3),(6),(9),(23)-(25. Esse fato nos faz perceber que existe um grande potencial científico represado para ser desenvolvido no âmbito da educação médica. A busca pela diferenciação em seus currículos para as concorridas provas de residência, para o mercado de trabalho cada vez mais competitivo, além do aperfeiçoamento em determinada área do saber, pode ajudar a explicar esse engajamento26. Ademais, os benefícios da participação em pesquisa na graduação estão bem documentados para graduados, instituições e comunidade acadêmica. Essa experiência tem sido associada ao aumento da empregabilidade9, fator que potencializa a relevância de uma formação científica adequada.
Em consonância com esse raciocínio, observamos que, apesar de temido por muitos estudantes, o TCC é considerado essencial por boa parte do corpo discente5),(6. Nesse contexto, é importante destacar que essa atividade é estimulada pelas DCN1 para cursos de graduação em Medicina que preza uma formação médica mais crítica, investigativa e autêntica18. Ademais, sabe-se que o interesse dos acadêmicos de Medicina aumenta se há curricularização de atividades de pesquisa27. Todavia, apesar de não ser possível precisar em números, acredita-se que, pela dificuldade de execução de projetos consistentes, ainda é escasso o número de cursos de Medicina que possuem programas bem implantados de iniciação científica8.
Como já descrito, as mentorias científicas foram implantadas para que os estudantes tivessem incentivo, apoio e metas para a execução inicial do projeto de pesquisa até sua apresentação final. Nesse cenário, apesar de se constituir em uma atividade extracurricular e, portanto, não obrigatória, a maior parte dos estudantes buscou ativamente as mentorias e, em uma escala de 0 a 10, classificou-as com nota média superior a 8,5 em todos os semestres avaliados. Esse resultado aponta para uma carência de acompanhamento científico de qualidade, uma aparente realidade em diversas escolas médicas no país.
Apesar desses dados positivos quanto ao interesse dos estudantes pela pesquisa científica, contrasta-se o fato amplamente conhecido de que há escassez de profissionais médicos que efetivamente seguem a carreira acadêmica e científica23. O corpo docente dos cursos de Medicina não tem, em geral, uma formação científica sólida e dificilmente se mantém atuante em pesquisa, especialmente nas escolas privadas, por causa de suas atribuições e da rotina profissionais fora do meio acadêmico. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que 76,3% dos professores da instituição avaliada não possuem Currículo Lattes ou o têm desatualizado por mais de 12 meses (dados administrativos disponibilizados pela instituição). Soma-se a isso uma falta de engajamento pedagógico-científico de parte dos professores, especialmente médicos, os quais executam as atividades docentes com diletantismo7.
Ainda sob a ótica estudantil, 98,0% dos estudantes concordaram que a estratégia das mentorias científicas deveria ser mantida como atividade extracurricular no curso. Essa percepção lança luz sobre a necessidade de implementação de inovações educacionais que sejam viáveis nas escolas médicas. Em uma sociedade marcada por disseminação de fake news em redes sociais, repensar a formação científica dos futuros médicos deve ser um compromisso prioritário dos atores envolvidos na gestão acadêmica da educação médica, pois a aquisição dessas habilidades contribuirá para a futura atuação profissional dos estudantes, tornando-os capazes de pautar suas atuações pelas melhores evidências científicas. Nesse contexto, a recente pandemia provocada pelo novo coronavírus escancarou a má formação científica da sociedade brasileira, não excluindo os profissionais de saúde28.
Programas bem estruturados de desenvolvimento e produção científica em cursos de Medicina podem ser bastante exitosos4),(29. Porém, em algumas instituições, especialmente faculdades e centros universitários, tais programas são dificilmente exequíveis por causa da escassez de investimentos, da limitada disponibilidade de professores orientadores com pós-graduação stricto sensu e da dedicação exclusiva à grande demanda discente30. Aqui, o sistema de mentorias se mostrou uma estratégia exequível, viável e exitosa, de modo que apenas quatro professores experientes, designados, cada um, para ofertar dois turnos de mentorias, foram capazes de atender a uma demanda estimada de cerca de 720 estudantes no desenvolvimento de suas atividades. Além disso, os indicadores de êxito não se limitaram apenas à percepção positiva dos estudantes, mas também às métricas de produção. Cerca de três em cada dez TCC apresentados já tinham sido publicados em anais de congressos e/ou em revistas científicas indexadas, o que demarca o alcance dos objetivos formativos com a implementação da estratégia. De maneira contrária, outros estudos apontam para um índice de produção discente bem abaixo do aqui apresentado3. Porém, mais do que as métricas, o engajamento científico com profundidade é a maior marca e legado que o curso pode deixar para esses futuros profissionais médicos.
Como limitações do estudo, é importante salientar que parte dos resultados se alicerça na percepção estudantil que, apesar de válida, pode ter viés de avaliação. Além disso, a impossibilidade de comparar as métricas de produção científica (quantidade e qualidade) é uma característica deste estudo seccional e de amostra obtida por meio do método snowball. Entretanto, o número expressivo de estudantes participantes, sua majoritária percepção positiva e a porcentagem de trabalhos publicados no curso em um corte de um ano de atividades devem ser destacados, e acreditamos que representam indicadores importantes de êxito. Outrossim, dado que a plataforma utilizada para agendamento das mentorias não solicitava os nomes de todos os integrantes dos encontros, não foi possível cruzar os dados para relacionar, de maneira confiável, a produção (quantidade, qualidade) dos estudantes que tiveram mentoria com os que não tiveram. Vale destacar que pouco ainda é discutido sobre as mentorias com finalidades científicas, e, em geral, estudos que tratam do assunto são essencialmente descritivos com pouca ou nenhuma análise quantitativa e indicadores de êxito31. Assim, a implementação de estratégias inovadoras como a descrita neste trabalho deve ser estimulada, além de constantemente acompanhada e analisada por meio de estudos com crescente robustez metodológica.
Finalmente, reconheceu-se, aqui, a percepção fundamental dos professores-mentores, sujeitos-chave na implementação da estratégia. Dentre os aspectos positivos destacados, foram especialmente citados o aumento da qualidade dos trabalhos e a aprendizagem significativa dos estudantes. Assim, há reconhecimento docente do êxito das mentorias científicas, já que os principais objetivos de sua implementação foram alcançados. Além disso, os professores-mentores destacam a utilização do modelo remoto como um aspecto facilitador da execução das mentorias.
Por sua vez, a dependência dos estudantes em relação à figura do mentor foi citada por todos os professores como uma desvantagem. Isso pode estar relacionado com a relatada falta de assistência e formação científica dos professores orientadores3, em especial os médicos7.
Além disso, acerca da estratégia em si, é importante destacar os desafios enfrentados durante a sua implantação que garantam a sua exequibilidade. Um dos desafios mais relevantes refere-se aos potenciais conflitos de orientação entre os professores-mentores e os orientadores dos trabalhos. Para mitigar essa possibilidade, duas ações principais foram realizadas durante o curso de implantação das mentorias. A primeira delas foi o treinamento dos mentores, os quais foram instruídos a não atuar efetivamente nas competências específicas do orientador. Como exemplos, os mentores não podem ter acesso ao texto fora dos momentos agendados, bem como não realizam alterações neles, apenas sugestões e direcionamentos. Assim, pede-se que os orientadores atuem no desenvolvimento e na análise profunda do TCC, tendo especial atenção aos aspectos científico-metodológicos e éticos do trabalho. Além disso, foi amplamente divulgado o convite aos orientadores para a participação nas mentorias, não sendo este momento, portanto, exclusivo aos estudantes e, sim, ao grupo de trabalho.
A escassez de estudos que avaliem a implantação de programas científicos na educação médica aponta para a dificuldade da aplicação de práticas consistentes e exitosas nas escolas médicas brasileiras8. Por esse motivo, estudos como este são importantes e reforçam a necessidade de explorarmos melhor a temática e divulgarmos informações de valor para a disseminação de boas práticas pedagógicas no âmbito da pesquisa científica na área de medicina.
CONCLUSÃO
O estudo mostrou que os estudantes de Medicina têm consciência da importância da atividade de pesquisa e demonstram uma percepção favorável à implementação do sistema de mentorias científicas, o qual se mostra factível e potencialmente eficaz. Sendo assim, podemos observar a utilidade da mentoria e de um plano educacional voltado ao estímulo à pesquisa em que o estudante seja acompanhado de forma seriada ao longo de sua formação, com incentivos permanentes e estabelecimento de metas, que vão desde a compreensão da importância do assunto até a efetiva publicação de um trabalho científico. Além disso, é possível contemplar o mentor como instrumento essencial na construção dos saberes científicos.