INTRODUÇÃO
Ser profissional da medicina demanda dedicação integral, busca de aprendizado constante, fundamentação das ações em conhecimentos científicos e técnicos, acompanhamento de inovações e novos recursos, e desapego de alguns momentos pessoais e sociais. Optar por esse caminho profissional é complexo, pois a pessoa vocacionada atende a um chamado e, para isso, assume uma responsabilidade imensurável, por lidar com vida e morte, cura e doença, e orientação para que o paciente busque postura e comportamentos mais saudáveis1.
Nos últimos anos, diversos estudos têm voltado sua atenção às emoções de estudantes de Medicina. Maia et al.2 encontraram sintomas depressivos em 46,2% da amostra de 173 estudantes. Nesse contexto, ser do sexo feminino aumentou o risco para sintomas depressivos em 2,05 vezes, e a insatisfação com o método de Aprendizagem Baseada em Problemas, em 3,57 vezes. Em contraposição, uma ampla margem de sentimentos de natureza positiva foi identificada em estudantes quando em contato com a prática no Sistema Único de Saúde (SUS)3. Ambos os estudos, desenvolvidos em duas universidades distintas do Brasil, apontaram para a necessidade de explorar formas de intervenções terapêuticas para promover melhor qualidade de vida aos alunos de Medicina, melhorar desempenhos acadêmicos e formar, futuramente, profissionais mais humanizados e adequados ao SUS.
Saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente ausência de doença ou enfermidade”4. Apesar de utópico, é precisamente o aspecto positivo da saúde que interessa a este estudo: a saúde como estado de bem-estar. Assim, promover saúde significa promover bem-estar. Este, por sua vez, é definido como “um estado positivo experimentado por indivíduos e sociedades. Semelhante à saúde, é um recurso para a vida diária e é determinado por condições sociais, econômicas e ambientais”5.
Cuidar da própria saúde física e mental e alcançar o bem-estar como médico e cidadão foi a expectativa de 46% dos estudantes de primeiro ano de Medicina investigados em um estudo6. A prática de atividade física, inclusive, foi apontada como fator de proteção para o desenvolvimento de sintomas depressivos em estudantes de Medicina2. Contudo, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN) de 2014 retrocederam em relação às DCN de 2001, ao não considerarem a saúde do discente6. Afinal, para que o futuro médico, hoje discente, tenha visão biopsicossocial e humanista, é necessário que ele se conheça e que vivencie um cuidado com a própria saúde nas dimensões biológica, psicológica e social. Somente assim, poderá no futuro ter uma visão mais integral do paciente.
Por isso, considera-se relevante desenvolver estratégias para sensibilizar e orientar os discentes desse princípio de cuidar da própria saúde física, mental, emocional e psicológica.
As intervenções terapêuticas assistidas por animais são diversas e estão em emergência no mundo, com evidências de sua utilização nas áreas de saúde, educação7 e desenvolvimento de liderança8, mostrando-se cofacilitadoras dinâmicas que oferecem aos participantes oportunidades de engajamento e coerência interna entre o que dizem e o que fazem como líderes9, e para o desenvolvimento de habilidades de comunicação, de modo a melhorar a relação médico-paciente10)-(12. A utilização do cavalo em processos terapêuticos não é recente. Como na natureza os animais são presas, isso os leva a estar sempre alertas, em conexão com o meio; eles não respondem a definições analíticas de problemas ou pedidos de ajuda, mas reagem instintivamente ao que existe aqui e agora13.
Os estudantes de Medicina da Universidade de Stanford têm acesso ao curso eletivo de Medicine and Horsemanship (M&H), desenvolvido por uma médica com o objetivo de desenvolver habilidades interpessoais12, qualidades de liderança, técnicas de autocuidado, reflexão e redução de estresse14. O curso parte do princípio de que a interação com os cavalos desenvolve inteligências não cognitivas, por requererem uma apreciação verbal e não verbal, o que ajuda a desenvolver habilidades necessárias ao médico15.
Na Flórida, foi realizada uma coorte observacional com 28 estudantes de Medicina de primeiro e segundo anos14. Durante dois meses, os estudantes cumpriram as sete sessões do curso de H&M, que trabalha no nível comportamental. Os resultados mostraram melhoras significativas na prevalência e gravidade dos sintomas cognitivo-afetivos e depressivos somáticos, no estresse global percebido no mês anterior e na gravidade e frequência geral do estresse. Na avaliação dos fatores de estresse, aqueles considerados isolados tiveram melhora significativa na frequência e gravidade após o curso de M&H, como solidão, relação com o sexo oposto, dificuldade de dormir, exercício, dificuldade de ler livros didáticos e aspectos associados ao currículo acadêmico. Entretanto, a performance nos exames foi o fator de estresse mais fortemente pontuado e não teve melhora com o curso de M&H.
Knaapen13 distingue três diferentes níveis de atuação no seu trabalho com cavalos: comportamental, intrapsíquico e sistêmico:
Comportamental: sessões com contexto orientado por tarefas a serem executadas com o cavalo, pelo participante, com o objetivo de trabalhar comportamento e ações.
Intrapsíquico: o cavalo espelha o estado interior do indivíduo participante, informando ao terapeuta suas incongruências, conscientes ou inconscientes.
Sistêmico: o cavalo espelha a imagem interna de como o sistema ao qual o participante pertence é sentido por ele e influencia em suas escolhas. Parte-se do princípio de que o sistema - familiar ou organizacional - é um todo, um organismo vivo; o participante é uma parte desse todo, e o cavalo reage ao sistema, e não apenas ao participante como indivíduo.
Em uma sessão psicoterapêutica com cavalos, os níveis comportamental, intrapsíquico e sistêmico podem se mesclar. Especialmente estes dois últimos exigem uma atitude fenomenológica do terapeuta; em outras palavras, considerar somente o acontecimento, o fenômeno da intervenção dos cavalos no processo13.
Nas intervenções terapêuticas com cavalos (ITC), de modo semelhante ao que acontece nas constelações sistêmicas, os animais entram no papel de “representantes” do sistema familiar do cliente, representando sentimentos, emaranhamentos e, até mesmo, suas soluções, entendidas aqui como o impulso para uma ação de harmonização, de modo a respeitar e restaurar os “princípios sistêmicos” apontados por Hellinger16.
As ITC podem ser individuais ou em grupo. O que acontece durante a intervenção assemelha-se a um ato sociopsicodramático, e a hipótese explicativa do processo é que os cavalos entram no campo mórfico17 do cliente de uma forma genuína, livre, espontânea.
Com base na hipótese de que as ITC, objeto de trabalho cotidiano de um dos autores, poderiam contribuir positivamente para o bem-estar dos discentes de Medicina, auxiliando-os a ter maior autoconhecimento, redução de estresse e melhora nas relações interpessoais, objetiva-se neste artigo relatar o processo e os resultados de duas intervenções terapêuticas desenvolvidas com estudantes, tendo como foco situações-problema enfrentadas no curso de Medicina e como finalidade a promoção do bem-estar.
MÉTODO
Esta investigação se propôs a olhar para a subjetividade e complexidade do ser humano, tendo como pano de fundo epistemológico as noções de intervenções sistêmicas e a abordagem terapêutica de grupo proposta pelo psicodrama moreniano, relacionando sua utilidade e seus efeitos na experiência da formação em Medicina. Para alcançar tal subjetividade e complexidade, optou-se pela abordagem qualitativa e pelo relato de atividades como forma de comunicar o processo e seus resultados. A pesquisa tem natureza exploratória e aplicada, no sentido estrito das participantes da pesquisa, pois há a hipótese de que elas serão capazes de utilizar imediatamente a experiência para a solução de problemas que enfrentem no universo da educação médica, recorte da realidade escolhido para este estudo18. Espera-se também reunir subsídios para continuidade de pesquisas e utilização das ITC de forma mais específica e direcionada.
Além de ser estudante de Medicina, arbitrou-se como critério de inclusão “ser participante do Centro Acadêmico (CA) de seu curso”. Assumiu-se, no protocolo de pesquisa, que a participação do estudante no CA poderia ser considerada um indicador de comprometimento com a educação médica, pessoal e institucional, passível de ser encontrado nas duas instituições de ensino superior (IES). Respeitando as etapas da pesquisa-ação, a coleta de dados foi feita em três diferentes momentos: 1. entrevista semidirigida aberta, minutos antes da intervenção; 2. por meio de observações sistemáticas diretas da intervenção; e 3. entrevistas individuais posteriores, realizadas seis meses após a intervenção19.
A ITC é uma técnica de abordagem terapêutica rápida, com efeitos prolongados, caracterizando-se como um método de diagnóstico de motivações inconscientes, ao trazer à tona padrões e informações implícitas que podem ser a chave para deflagrar harmonia no sistema trabalhado, de modo a proporcionar melhores resultados ao cliente.
Além dos participantes provenientes do sistema em pauta, o cenário se desenrolou com a presença de um terapeuta e 11 cavalos, atuando como objeto intermediário, ao representarem elementos do sistema.
As intervenções foram conduzidas pelo próprio pesquisador, que atuou como terapeuta, por ter experiência com a aplicação da técnica. Para que o trabalho estivesse apropriado com o rigor metodológico científico, foi necessário determinar o setting mental do pesquisador/terapeuta, a fim de disciplinar sua mente para captar os ruídos internos e externos na interação estabelecida entre pesquisador-pesquisado durante a intervenção20, sempre de acordo com as leis do não julgamento e da imparcialidade.
No palco-arena, a movimentação de todos os participantes - humanos e animais - é livre. Não há montaria. A intervenção transcorre com uma conversa entre pesquisador e participante, mediada pela observação que ambos fazem da movimentação dos animais. Estes movimentam-se como e para onde quiserem, dentro do palco-arena. O tempo de duração da intervenção é variável e não pode ser estabelecido com precisão antes, mas dura em média 45 minutos.
Cada vivência foi individual e aconteceu no dia e horário mais convenientes para a dupla pesquisador-participante.
Este estudo relata a atividade feita com duas pessoas. Não buscou, portanto, a saturação dos dados, não sendo possível extrapolar seus resultados para outras situações. Seu caráter exploratório, entretanto, permitirá qualificar o método a fim de estender a pesquisa para mais participantes no futuro.
A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) -Parecer nº 5.044.789 - e pela Comissão Ética no Uso de Animais (Ceua) do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF) - Parecer Consubstanciado nº 005/2021 -, e fez parte do processo de mestrado do autor21.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Participaram do estudo duas estudantes, aqui chamadas ficticiamente de Hortência e Camélia. O corpus foi constituído pelo conjunto de informações gravadas na vivência e na entrevista de partilha que aconteceu seis meses após o ato.
Na ocasião da entrevista inicial, Hortência tinha 23 anos e cursava o sexto semestre de Medicina. Filha única, será a primeira da família a ter curso superior, realizando o desejo de ser médica, que acalenta desde os 7 anos de idade. Camélia, com 25 anos e cursando o oitavo semestre de Medicina, refere ser muito calada e próxima à família. A distância de cerca de 100 quilômetros entre as cidades de origem e de estudo foi fator importante na escolha de ambas, que queriam estar próximas à família.
A literatura evidencia que o sexo feminino predomina entre os acadêmicos de Medicina3),(22. Em nosso estudo, as duas representações de liderança no CA, que aceitaram participar da pesquisa no primeiro convite, são mulheres. Estudo de sintomas de depressão em estudantes de Medicina identificou que ser do sexo feminino aumenta em duas vezes a chance de desenvolver sintomas depressivos. Outrossim, morar com os pais apareceu como fator de proteção2.
Em relação ao curso, Hortência relatou dedicação exclusiva, de 21 horas diárias, ao curso de Medicina; Camélia também mencionou dedicação exclusiva, dormindo cerca de cinco horas por noite. A dedicação ao curso inclui tarefas curriculares e extracurriculares. Tais resultados estão em acordo com outros que identificaram alta prevalência de má qualidade do sono em estudantes de Medicina23),(24.
Ao serem abordadas sobre desconfortos relacionados a seus processos na formação em Medicina, Hortência relatou “competitividade na tutoria”, e Camélia, “sobrecarga e autocobrança”.
A vivência com os cavalos revelou que ambas sentem necessidade de ajudar as pessoas, o que lhes causa sobrecarga e vem relacionado ao benefício secundário de obter o reconhecimento dos pais.
Hortência considera que a competição na tutoria influencia seu relacionamento interpessoal e aprendizado. Ela trata a colaboração, um pré-requisito necessário ao aprendizado nas sessões tutoriais25, como “competição saudável” e reproduz, em sua fala, a conserva cultural de que a competição é da natureza do estudante de Medicina. Hortência não se exime da responsabilidade sobre o processo competitivo, percebendo que, embora seja um comportamento de que não goste, ela o reproduz. Hortência apresenta uma resposta culturalmente conservada, por meio da imitação de modelos existentes, que se manifesta na tomada de um papel (role-taking) competitivo como apontado por Moreno na teoria de papéis, mediante a cristalização de um contrapapel patológico, que impede respostas espontâneo-criativas26.
Camélia, ao buscar conciliar suas necessidades de aperfeiçoamento pessoal e acadêmico, fez escolhas que, segundo sua visão, resultaram em algum sucesso, mas a um preço que acabou influenciando seu desempenho e levando-a ao estressor escolhido como o maior desconforto: a sobrecarga. Camélia identificou que a autocobrança em relação às suas responsabilidades gerou estresse, que teve como consequência a irritabilidade e perda de paciência, o que a levou a brigar com familiares, amigos e, finalmente, pacientes, e a afastou do ideal de médica que ela quer ser.
Bem-estar é um estado positivo experimentado por indivíduos e sociedades. É um recurso diário para a vida e demanda senso de significado e propósito para que as pessoas atendam à necessidade humana de prestar uma contribuição ao mundo5. Um ambiente competitivo e sobrecarregado como o que Hortência e Camélia espelham não permite a expressão de solidariedade, felicidade, ética, respeito à diversidade e humanização, que são valores fundantes para a efetivação promoção da saúde27 e das DCN28.
O movimento de transformação pelo qual a medicina passou no século XX, evoluindo de uma profissão liberal e autônoma para ser ligada a instituições, com consequente perda de autonomia, aumento no número de profissionais no mercado, perda de ganhos, exigência de especialização etc., gerou um setor ainda mais competitivo, com crise de confiança e prejuízos na humanização1. Essa situação reflete na formação dos médicos, reforçando a conserva cultural na qual discentes e docentes estão envolvidos.
Para Rupert Sheldrake17, esse fenômeno pode ser explicado pela ressonância mórfica. O sistema médico, há muito estabelecido, teria um campo mórfico social muito forte, dificultando a entrada de novos hábitos no sistema. A tendência é a repetição. Entretanto, ele afirma que a repetição de novos hábitos pode gerar novos sistemas, tornando-os mais frequentes com a repetição e o tempo.
Assim como nos sistemas, a concepção moreniana parte da ideia do homem em relação, com necessidade de sentir-se pertencente a um grupo29. Esse pode ser um estímulo para a cristalização de papéis e atitudes. Na teoria de papéis, quando se abre espaço para a criação de novos papéis, aflora um processo criativo e espontâneo que permite a descristalização cultural26.
Tais possibilidades devem ser consideradas porque “promover o empoderamento e a capacidade para tomada de decisão e autonomia dos sujeitos e coletividades, por meio do desenvolvimento de habilidades pessoais”, é objetivo específico da Política Nacional de Promoção da Saúde27 (artigo 7º, inciso VII) e, portanto, um imperativo para as IES que formam médicos no Brasil, quando comprometidas com a saúde de seus integrantes e com a contribuição social que os profissionais darão ao desenvolvimento.
Do corpus analisado, depreendeu-se uma perda de si e do autocuidado durante o processo formativo. Sentimentos negativos como estresse e resignação representaram esse afastamento de si. Hortência mostra que tem consciência de que deveria dormir mais e comprometer-se menos, mas mostra-se também resignada diante de uma realidade que entende não ter governabilidade para mudar, porque é a condição para realizar seu desejo de tornar-se médica.
Uma revisão bibliográfica com 16 estudos nacionais e internacionais concluiu que “as atividades envolvidas na formação médica estão aliadas ao acometimento da saúde mental do estudante”30, o que parece, por ser tão comum, reforçar a resignação e a conserva cultural nesse grupo social. Inclusive, os autores usam a expressão “saúde mental” para referir-se ao adoecimento mental.
Quando abordadas sobre terapias, exercícios de respiração e/ou meditação, ambas demonstraram pouca ou nenhuma intimidade com processos terapêuticos e de autoconhecimento,
Valorização dos relacionamentos interpessoais e dos fenômenos do cotidiano, equilíbrio entre estudo e lazer, cuidados com saúde, alimentação e sono, prática de atividade física, religiosidade, trabalhar a própria personalidade e contar com assistência psicológica foram descritos por estudantes de Medicina como estratégias de enfrentamento do estresse31. Pelo conteúdo apresentado por Hortência e Camélia na vivência, tais estratégias têm sido pouco ou nada utilizadas por elas. E não estão sozinhas. Outro estudo que avaliou o nível de atividade física em estudantes de Medicina no terceiro ano, em 2001 e 2011, constatou que, nesse intervalo de dez anos, o nível de atividade física caiu e o tempo sentado permaneceu o mesmo32.
A mudança do comportamento em saúde também é difícil quando se fala em meditação. Hortência e Camélia relataram que a pouca experiência delas com práticas de meditação foi disponibilizada pelas suas escolas médicas. Isso reflete o movimento de preocupação que as escolas vêm dando33),(34, cada vez mais, ao sofrimento mental e ao adoecimento psíquico do seu corpo discente. Silveira et al.34 relatam os efeitos positivos de um programa de prática de mindfulness entre os estudantes. Os discentes mencionaram maior autocuidado, aprimoramento na organização pessoal e melhor compreensão das emoções. A prática mostrou-se um método barato, de fácil reprodução e com efeitos positivos até mesmo seis meses após a intervenção. Entretanto, os alunos não incorporaram a meditação como hábito diário.
Apreende-se a necessidade de mudança de comportamento nos estudantes se quiserem melhorar sua saúde física e mental e, por conseguinte, seu bem-estar, pois o comportamento de saúde é um determinante crítico para a obtenção desse resultado. Esse comportamento é influenciado por múltiplos fatores - emocionais, cognitivos e interpessoais - e pelas habilidades individuais para a saúde. A OMS5 alerta que tais comportamentos e habilidades são fundamentalmente formados pelos ambientes sociais, culturais, comerciais e físicos nos quais as pessoas vivem e trabalham, e que a alfabetização (letramento) em saúde não é responsabilidade exclusiva dos indivíduos, mas mediada por demandas culturais e situacionais. “Comportamentos de saúde são frequentemente relacionados em clusters e em grupos de pessoas que formam um conjunto complexo de relações interdependentes”5, como é o caso dos estudantes de Medicina. Logo, no que concerne à saúde desse público, a promoção da mudança de comportamento deve ser apoiada em abordagens que considerem as realidades complexas que moldam a vida dos discentes.
Durante vivências terapêuticas com cavalos, o que acontece se percebe por meio de movimentos deles. Ausência de movimentos também fornece informação. Uma vez que a informação é interpretada, que um conflito ou emaranhamento no sistema é detectado, há a possibilidade de dizer palavras de solução, que representam o impulso para uma ação de harmonização, respeitando e resgatando os princípios sistêmicos16. Tais palavras devem ser ditas - verbal ou mentalmente - pelo participante, desde que ele as sinta como verdadeiras em sua emoção.
Palavras não são suficientes para explicar o processo das ITC, mas o seu efeito imediato é visível no comportamento do cavalo. Este “conta” ao terapeuta quando o emaranhamento foi desfeito, por força da solução empreendida em campo13. Entretanto, mudanças visíveis na vida do participante podem não ser imediatas, seja porque exigem rupturas de padrão difíceis de enfrentar imediatamente, seja porque demandam escolhas e comportamento ativo do participante.
Imediatamente após a ITC, houve deslocamento no sentido da compreensão, por Hortência, da influência dos chamados “emaranhamentos sistêmicos” em suas relações e posicionamentos, o que lhe permitiu avançar no autoconhecimento e assumir compromissos com ela mesma. Seis meses após a vivência, Hortência partilhou com o terapeuta que o movimento de tomada de consciência que se deu no palco-arena a ajudou a assimilar a emoção de aceitação, isto é, de compreensão de alguns dos seus limites pessoais, sem sentimentos negativos de repreensão ou resignação. Também a ajudou a assimilar o movimento de retirada, auxiliando-a a descristalizar seu papel social adoecido e assumir uma postura espontâneo-criativa com vistas a rematrizar seu comportamento e viver uma vida com maior bem-estar.
Assim como se deu com Hortência, imediatamente após a intervenção, Camélia demonstrou deslocamento na compreensão da influência dos “emaranhamentos sistêmicos” em suas relações e posicionamentos, e também aceitou o convite para assumir compromissos com ela mesma.
Seis meses após a intervenção, Camélia diz que, em relação aos desconfortos que vinha vivenciando na faculdade, especialmente os conflitos com as amigas, houve mudanças substanciais e melhoria significativa no seu bem-estar. Ela atribui parte da melhora do seu bem-estar a um fato que aconteceu com outra pessoa, uma amiga. Sua fala corrobora o que um estudo no ensino fundamental II já havia demonstrado, de menor rendimento escolar quando os amigos de turma estão doentes35. Camélia ainda relatou como a tomada de consciência propiciada pelo ato psicodramático lhe permitiu vivenciar a emoção da aceitação, com consequente mudança de atitude.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ITC correspondem a um conjunto de técnicas que podem trabalhar aspectos comportamentais, intrapsíquicos e sistêmicos, e contêm características de uma cosmologia que integra homem e natureza numa perspectiva diferente daquela da ciência ocidental moderna. Por isso, podem ser consideradas uma prática integrativa e complementar, que, stricto sensu, demanda uma visão de mundo mais facilmente adquirida pela via da experiência. Trata-se de uma modalidade recente, ainda com carência de estudos e publicações, que vem se desenvolvendo a passos largos, com atendimentos individuais e grupais em diversos pontos do Brasil e do mundo. As aproximações teóricas das ITC com Rupert Sheldrake, Bert Hellinger e Jacob Moreno são portadoras da necessidade de mais estudos, o que este relato de atividades pretende estimular.
Este relato de atividade desenvolvida com duas participantes não pretende inferir seus resultados para a população, tampouco validar a técnica das ITC. Os resultados mostram tão somente que, para as discentes expostas à intervenção ora relatada, a conscientização de alguns padrões intrapsíquicos e sistêmicos que influenciavam seu comportamento diante de situações estressoras na rotina acadêmica lhes permitiu, até o prazo de seis meses após a intervenção, tomar decisões cotidianas que propiciaram o desenvolvimento de habilidades sociais favoráveis ao seu bem-estar.
Em outras palavras, retomando a ideia de esboçar uma articulação teórica com o psicodrama, os resultados apontam para a presença do fator espontaneidade-criatividade como recurso contra as conservas culturais, o que proporcionou às participantes melhor saúde psíquica e melhor bem-estar.
Ainda como sugestão, recomenda-se a ampliação da pesquisa para mais discentes e para outros agentes do sistema educação médica, como dirigentes institucionais, docentes e pessoal técnico-administrativo. É importante observar que o recorte da educação médica escolhido aqui não impede que tais estudos se deem no âmbito da educação em geral, pois os resultados apresentados nos levam a avaliar que as ITC têm potencial para fornecer às instituições de ensino uma estratégia operacional para produzir saúde e cuidado dos seus discentes. No caso específico da formação médica, a técnica abordada neste estudo se baseia no cuidado destinado ao profissional médico ainda no estágio de formação, de modo a atuar para que ele descristalize conservas culturais há muito estabelecidas e a abrir o caminho para uma sociedade de bem-estar.