1 Introdução
O exercício da docência do ensino superior vem enfrentando, nos últimos 30 anos, a reestruturação da forma do trabalho dos docentes, tanto pela adoção de novas tecnologias quanto pela precarização das condições do trabalho (RAITZ; OSTROVSKI, 2016). Nesta perspectiva, a precarização do trabalho docente é compreendida como um processo de intensificação da jornada de trabalho, envolvimento em diversas atividades, exigências de produtividade científica e vínculos empregatícios vulneráveis (MAUÉS e BORGES, 2016). Os aspectos de precarização das mudanças do labor da docência parecem estar conectados com o conjunto de ideias econômicas nomeado como Consenso de Washington, que norteou muitas ações e políticas governamentais direcionadas à educação superior.
As ideias de cunho neoliberal produzidas a partir do encontro sediado em Washington, em 1989, ficaram conhecidas, nos meios acadêmico e jornalístico, como Consenso de Washington e apresentavam recomendações para a superação das crises do endividamento enfrentadas por diversos países. A partir dos anos 1990, o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) adotaram as diretrizes do Consenso de Washington, formatadas como cartilha obrigatória de ajuste e estabilização das economias latino-americanas para a concessão de novos empréstimos, bem como cooperação econômica.
Embora não trate diretamente das políticas educacionais, pode-se acreditar que a cartilha neoliberal tenha determinado as mudanças educacionais por serem pujantes na exigência da reforma do Estado, na qual está contida a reforma educacional em todos os seus níveis (GENTILI, 1998).
Medidas governamentais emitidas nos primeiros anos da década de 1990, de descapitalização das universidades públicas e de favorecimento à expansão do ensino superior privado, cernes da precarização do trabalho da docência do ensino superior, apresentaram alinhamento com as direções político-econômicas da cartilha já mencionada (SANTOS, 2002).
Os organismos internacionais vocacionados à educação, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), entre outras agências internacionais do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), patrocinaram a conferência internacional “Educação como direito de todos” (WERTHEIN, 2000) por reconhecê-la como principal instrumento de vencimento da pobreza e garantia de desenvolvimento dos países periféricos. O discurso e o relatório final voltavam-se para a defesa da universalização da educação básica como prioridade, o redirecionamento das verbas do ensino superior à formação fundamental e recomendava a diversificação das fontes de financiamento do ensino superior (UNESCO, 1990).
Nesse cenário, pergunta-se: qual o impacto dos direcionamentos neoliberais do Consenso de Washington nas novas relações entre professor/instituições no ensino superior?
Diante disso, o objetivo deste artigo é discutir os impactos das diretrizes do Consenso de Washington na precarização das condições do trabalho do docente de ensino superior no Brasil.
A fim de responder a tais questões, pesquisou-se sobre as principais deliberações do Consenso de Washington e buscou-se identificar as suas consequências na organização do ensino superior no Brasil e possíveis implicações nas condições de trabalho dos referidos docentes.
Os procedimentos adotados neste estudo foram as pesquisas bibliográficas e a análise documental, que está relacionada com os relatórios da UNESCO (1990 e 1995) sobre as conferências Educação para Todos e com os relatórios do Ministério da Educação e Cultura do Brasil acerca do Programa Educação para Todos. As principais referências foram Batista (1994), Boaventura Santos (2002 e 2004), Gentili (1998), Gomes (2008), Lima (2002), Maués e Borges (2016) e Sobrinho (2003).
Além da introdução e das considerações finais, o presente artigo está organizado em três partes. A primeira, com o subtítulo “O Consenso de Washington e suas deliberações”, aborda o que foi, como surgiu, quais os interesses e as deliberações da reunião que gerou o ideário do Consenso de Washington, bem como suas ligações e implicações com os organismos internacionais vocacionados à educação. Na segunda parte, intitulada “Os organismos internacionais e a mercadorização do ensino superior”, apresenta-se uma contextualização das políticas educacionais propagadas pela UNESCO e pelo UNICEF, derivadas do pensamento hegemônico neoliberal, e as diretivas da Conferência Educação para Todos, que antecedeu a exacerbação da mercadorização do ensino superior. Na terceira parte, denominada “A precarização do trabalho do docente de ensino superior frente as influências das ideias neoliberais do Consenso de Washington”, abordam-se a intensificação do labor e a retirada de direitos trabalhistas que configuram um processo de precarização das universidades públicas.
2 O Consenso de Washington e suas deliberações
Após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), durante a reconstrução da Europa Ocidental, prevaleceu o modelo político-econômico da social-democracia, que alicerçava a estrutura do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). O Estado havia alçado o comando das nações e da regulação da economia e administrava os recursos de amparo à população por meio dos serviços de natureza pública. Tais serviços eram identificados como direitos sociais dos cidadãos. Os sindicatos praticavam expressiva influência sobre a dinâmica das relações no mundo do trabalho a fim de manter os direitos dos trabalhadores, notabilizando, assim, o Estado como responsável pela superação das dificuldades da nação (HARVEY, 2005).
As ideias do economista John M. Keynes estavam em evidência. Mundo afora, as nações recorreram às diretrizes da teoria keynesiana em suas políticas fiscais e monetárias como medidas de controle das economias. Apesar, porém, da expansão dos pressupostos teóricos, o keynesianismo não foi uma unanimidade. Pensamentos divergentes surgiram ainda no calor da reconstrução dos flagelos da II Grande Guerra e transformaram-se em forte oposição doutrinária naquela época, gerando o embrião da doutrina neoliberalista (HARVEY, 2005; PAULANI, 2008).
Historicamente, a origem do neoliberalismo está ligada a dois grupos de intelectuais: a Mont Pelerin Society, que nasceu nos idos de 1947, cujos debates filosóficos e políticos orbitavam principalmente em torno das convicções de Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Bertrand de Jouvenel e Karl Popper; e a Escola de Chicago, termo cunhado no final da década de 1950 para identificar um grupo de expoentes professores da Universidade de Chicago liderados por dois detentores do prêmio Nobel, Milton Friedman e George Stigler. Esse grupo disseminava ideias contrárias ao keynesianismo e a favor do monetarismo. Opunham-se destacadamente às teorias do Estado intervencionista e concordavam com o princípio da mão invisível como o melhor recurso de equilíbrio de mercado. Acreditavam que a liberdade nas relações de mercado era impulsionadora do desejo de riqueza dos homens e que sua desregulação geraria a possibilidade de desenvolvimento econômico (HARVEY, 2005; PAULANI, 2008).
As ideias dos dois grupos poderiam ser resumidas na crença de que “a dignidade humana e a liberdade individual”, apontadas como “os valores centrais da civilização” (HARVEY, 2005, p. 5), estavam em perigo. Segundo eles, o cerceamento da livre iniciativa estava subtraindo as características do mercado competitivo e o desenvolvimento econômico/social estava sendo galgado graças à negação do regime de direitos e do declínio do respeito à propriedade privada. Tais situações tornavam impossível a crença na liberdade e nas realizações a partir dela, como, por exemplo, o enriquecimento por livre iniciativa (HARVEY, 2005; PAULANI, 2008).
Mesmo que essas ideias, entretanto, tenham atraído a atenção da burguesia organizada e de grupos opositores às formas de regulação do Estado, o arcabouço filosófico doutrinário permaneceu em hibernação até a chegada das crises da década de 1970. O fenômeno da estagnação do desenvolvimento econômico, associado ao crescimento do desemprego e à crescente inflação, constituiu os substratos econômico e social para o florescimento do neoliberalismo. A “teoria neoliberal, em especial em sua versão monetarista”, começou a despertar como alternativa de solução para a referida crise (DUMÉNIL; LEVY, 2004; HARVEY, 2005, p. 30).
Por mais de três décadas, enquanto o crescimento econômico se mantinha em altos níveis, era possível, para o Estado, manter a regulação da economia com estratégias corporativistas, como o controle de preços e salários, políticas de distribuição de renda e medidas de austeridade frente aos movimentos populares. Essas práticas eram implementadas por partidos socialistas em diversos países da Europa – Portugal, Espanha, França e Itália – pela experiência de Bolonha, representando uma perspectiva de avanço do socialismo no Velho Mundo e que simbolizava uma ameaça aos interesses da burguesia organizada (PAULO NETO, 2012).
A repercussão da crise dos anos 1970 nos 10 anos seguintes, associada às perceptivas de avanço do socialismo e à gravidade da crise da dívida externa que acometeu o mundo, batizou esse período como “a década perdida” (SALLUM JR.; KUGELMAS, 1991). Quando os Estados Unidos colocaram fim no padrão ouro para o dólar, destituindo o sistema monetário construído em Breton Woods, impactaram profundamente a América Latina, que, acreditando na estabilidade do dólar, das taxas de juros e na liquidez do capital internacional, havia contraído empréstimos com taxas de juros flutuantes e encontrava-se em níveis preocupantes de endividamento (HARVEY, 2005; PAULO NETO, 2012).
Inúmeros estudos econômicos, com destaque especial para a situação dos países periféricos, foram produzidos nessa época sobre o tema, indicando possíveis calotes internacionais. Alertados por tais análises econômicas, os países desenvolvidos se mobilizaram com a finalidade de evitarem para si os prejuízos de possíveis falências econômicas dos países endividados (SALLUM JR.; KUGELMAS, 1991; PEREIRA, 2014).
O Instituto Internacional para Economia – com o envolvimento do FMI, do BM e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – organizou, em 1989, na cidade de Washington, o encontro “Latin American: How Much has Happened?”. Além dos organismos internacionais já mencionados, o encontro envolveu economistas e administradores das nações desenvolvidas e de países latino-americanos (em sua maioria, pensadores neoliberais) para discutirem as questões de enfrentamento das crises e misérias dos países periféricos, sobretudo os da América Latina (BATISTA, 1994).
Desse encontro surgiu um conjunto de diretrizes de ajustes e estabilização da economia, como já mencionado, batizado como Consenso de Washington, que, inicialmente, foi apresentado sob a égide de ser uma recomendação consensual. Mais tarde, foi transformado, pelo FMI e BM, em medidas condicionais ao fornecimento de ajuda aos países em crise e às negociações das dívidas externas (BATISTA, 1994; LIMA, 2002); GENTILI, 1998).
Entre as ideias apresentadas na referida cartilha neoliberal são listados abaixo, de maneira sintética, os principais eixos diretores, conforme Santos (2002):
abertura comercial – redução do protecionismo ao mercado interno com diminuição das taxas alfandegárias e abertura para o investimento estrangeiro;
reforma tributária/fiscal – reformulação do sistema tributário (arrecadação de impostos), minimizando os tributos para as empresas, com a finalidade de contribuir para sua competitividade;
encolhimento da máquina governamental – o Estado deveria cortar gastos, diminuir as suas dívidas, encolhendo seu tamanho e seus programas sociais, a fim de demandar menor cobrança de tributos;
privatização – amplo programa de privatização das estatais, tanto em áreas comerciais quanto nas áreas de infraestrutura, para garantir o predomínio da iniciativa privada em todos os setores;
desregulamentação progressiva do controle econômico e das leis trabalhistas.
As propostas desse encontro representaram um “divisor de águas” na deliberação das políticas setoriais aos países periféricos, entretanto as diretrizes ideológicas congregadas pelo Consenso de Washington não eram exatamente inovadoras. As administrações de Reagan nos Estados Unidos e de Thatcher no Reino Unido, desde as décadas de 1970 e 1980, defendiam amplamente a doutrina neoliberalista e, em especial, a tese do Estado mínimo como artilharia para vencer as crises econômicas (BATISTA, 1994; HARVEY, 2005).
O pensamento político-econômico em quase todas as nações, desde os anos 1970, absorveu as ideias e as práticas de desregulação, privatização e retirada do Estado de muitas áreas do bem-estar social. Após a ruptura da União Soviética, as sociais-democracias e os Estados do bem-estar social adotaram, voluntariamente ou não, algum tipo de versão da teoria neoliberal. A África do Sul pós-apartheid rapidamente aceitou o neoliberalismo. Na América Latina, economistas latinos que estudaram na Universidade de Chicago – dentro de um programa da Guerra Fria destinado a neutralizar a ascensão da esquerda – foram chamados a ocupar posições estratégicas nas economias de seus países de origem, corroborando os avanços dos pressupostos do Consenso de Washington (BATISTA, 1994; HARVEY, 2005).
No Brasil, foi a partir da década de 1990 que o presidente Collor, em seu primeiro ano de governo, alinhado com as recomendações do Banco Mundial, procedeu a uma progressiva liberalização do regime de importações, dando execução, por atos administrativos, a um programa de abertura unilateral do mercado brasileiro. Embora o governo Collor não tenha tido uma longa existência, por meio de suas medidas a força das ideologias e políticas neoliberais emergiu fortemente (BATISTA, 1994; SILVA, 2001).
O governo de Fernando Henrique Cardoso introduziu uma ofensiva ainda mais agressiva na reforma do Estado. Pretendendo reduzir o “custo Brasil”, apontou os direitos sociais como entraves ao desenvolvimento econômico e implementou ações objetivando a desregulação da economia, a flexibilização da legislação do trabalho, a privatização das empresas estatais, a abertura do mercado aos investimentos transnacionais e iniciou a reforma da educação (COSTA, 2011; GENTILI, 1998; SILVA, 2001:).
A reforma da educação estava contida na reforma do Estado. Embora as diretrizes do Consenso de Washington não tratassem especificamente das políticas educacionais, em paralelo observavam-se norteamentos políticos para a área da educação propostos pela UNESCO e pelo UNICEF, que se mostraram alinhados às ideias hegemônicas neoliberalistas (GENTILI, 1998).
Dessa forma, para compreender a conexão das políticas econômicas do BM com as políticas educacionais da UNESCO e do UNICEF, uma análise mais aprofundada será desenvolvida a seguir.
3 Os organismos internacionais e a mercadorização do ensino superior
No site oficial da ONU Brasil, o FMI é apresentado como uma agência especializada das Nações Unidas fundada na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, na cidade de Bretton Woods, New Hampshire, Estados Unidos, em julho de 1944, que tem como missão “promover a cooperação monetária global, garantir a estabilidade financeira, facilitar o comércio internacional, promover o alto nível de emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza em todo o mundo” (ONU-BRASIL, 2018). Na mesma conferência foi fundado o Banco Mundial, definido como “uma agência especializada independente do Sistema das Nações Unidas” (ONU-BRASIL, 2018) que empresta recursos financeiros aos países-membros (ONU-BRASIL, 2018; PEREIRA, 2014).
No ano seguinte, em 1945, na cidade de San Francisco, na Conferência sobre Organização Internacional, após muitas negociações, oficializou-se a fundação da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) ou, simplesmente, Nações Unidas, endossada por países que se reuniram em nome da paz e do desenvolvimento no pós-guerra. Para que pudesse atingir seus objetivos, também foram criadas várias agências dentro do Sistema das Nações Unidas. As agências são organizações autônomas, com seus próprios planejamentos financeiros e quadro de profissionais internacionais, porém ligados à ONU mediante acordos internacionais (ONU-BRASIL, 2018).
A UNESCO foi fundada em 16 de novembro de 1945 com a finalidade prioritária de amparar a educação de qualidade para todos e a promoção do desenvolvimento humano e social. Sua forma de atuação é o desenvolvimento de projetos de cooperação técnica em parceria com os três níveis do governo, com a sociedade civil e a iniciativa privada, norteando a formulação de políticas públicas concatenadas com as metas acordadas entre os estados-membros da organização (ONU-BRASIL, 2018).
Segundo Lima (2002), as interferências das agências da ONU na definição das políticas educacionais do Brasil datam do período do nacional-desenvolvimentismo, com três etapas distintas: a primeira, na década de 1950, foi uma fase de intercâmbios entre os educadores; a segunda, na década de 1960, quando as interferências estavam inclusas nos acordos econômicos de outras agências voltados para o desenvolvimento de infraestruturas; na terceira fase (década de 1970), o mote estava vinculado às verbas para projetos educacionais interligados a políticas de desenvolvimento do Banco Mundial e concentrado no argumento de alívio da pobreza. O que já se pode perceber é o entrelaçamento das agências internacionais atuando em diferentes funções – entretanto com o mesmo objetivo, o desenvolvimento (LIMA, 2002; COSTA, 2011; GOMES, 2008; PEREIRA, 2014).
Na década de 1980, a renegociação da dívida externa do Brasil teve como condicionante a implantação de medidas de estabilização da economia que previam a reforma do governo e, inserida nela, a reforma da educação. Os debates sobre as reformas educacionais, contudo, tornaram-se acirrados a partir da década de 1990 e, muito especificamente, na Conferência Mundial de Educação para Todos, organizada pela UNESCO, pelo UNICEF, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial. Em tal conferência se articularam o cenário econômico, a conjuntura política do início dos anos 1990 e o argumento da educação como direito de todos para o combate à pobreza – mas, sobretudo, como instrumento atrelado ao desenvolvimento (LIMA, 2002; PEREIRA, 2014).
Na Conferência Mundial Educação para Todos, no ano de 1990, realizada na Tailândia e organizada por UNESCO, UNICEF e PNUD – porém sob a regência do Banco Mundial –, os representantes trataram essencialmente da satisfação das necessidades básicas de aprendizagem e produziram a chamada Declaração de Jomtien, na qual estavam contidas as diretrizes de reordenamento das políticas educacionais dos países-membros das Nações Unidas. Esse documento levou o Brasil, em cumprimento às resoluções da conferência, a realizar a Conferência Nacional Educação para Todos, em 1994, o Plano Decenal (1994-2003) e, mais tarde, o Programa Educação para Todos (BRASIL. MEC/INEP, 2000).
No discurso que o Ministro da Educação, Paulo Renato, proferido por ocasião do I Seminário Nacional Educação para Todos: avaliação da década, no ano de 2000, são ressaltadas as seguintes conquistas:
Continuidade das políticas: houve um esforço nacional contínuo ao longo dos anos 90, uma preocupação do País com a educação básica, o que não tinha sido característica da política educacional nas décadas anteriores;
Regime de colaboração: tivemos envolvimento e articulação muito maiores entre os três níveis de governo – União, Estados e Municípios – em torno da promoção da educação básica como prioridade nacional;
Surgimento de novos atores: vimos um crescente envolvimento das organizações não-governamentais e da sociedade civil organizada nas questões educacionais, revelado tanto na formulação de políticas quanto na análise de resultados, principalmente nas ações diretas para melhorar a qualidade da educação;
Mobilização social: empenhamo-nos para chamar a comunidade a participar cada vez mais da educação, o que se traduz nos conselhos e associações de pais e mestres, no Programa Acorda, Brasil etc.;
Participação do setor empresarial: é perceptível o maior envolvimento das empresas com a educação. (BRASIL. MEC/INEP, 2000, p. 9)
Esse discurso mascara o fato de que, de acordo com Lima (2002), em virtude da concentração dos esforços na educação básica, surgiram três fenômenos: a assimetria da aplicação dos investimentos educativos, que objetiva os níveis mais baixos, precisamente no ensino fundamental – em detrimento dos demais; uma percepção do processo educacional como escada – a expansão de um nível após o outro, começando pelo fundamental, depois o secundário e, por último, o superior; e a visão de que a democratização e o acesso ao ensino superior se darão pelo incremento dos setores privados no financiamento e na execução das políticas educacionais.
No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o propósito era ajustar a educação superior ao formato de direcionamento ao mercado, que havia possibilitado a expansão do setor privado. As instituições federais de ensino superior, ao mesmo tempo em que sofriam cortes orçamentários e congelamentos salariais, foram submetidas às determinações que “procurassem expandir o volume de matrículas, melhorassem seus indicadores de eficiência, aumentassem seus níveis de produtividade, elevando de maneira acentuada a carga de trabalho do corpo docente” (GOMES, 2008, p. 26; NOVAIS, 2008).
A redução dos investimentos do Estado no orçamento para a educação aponta um decréscimo de 4,2 bilhões entre 1995 e 2001. Tal redução é um direcionamento do Banco Mundial especificado no documento A educação superior: lições da experiência (1993), que aponta o segmento, por seus altos investimentos e baixa produtividade, como perdulário. Estimular a diversificação das instituições e a competitividade entre elas, fomentar a expansão do ensino privado, buscar financiamentos variados, cobrar taxas de alunos e exigir produtividade são medidas recomendadas no documento. A educação superior foi obrigada a se adaptar aos imperativos econômicos. Deixa de ser um direito de todos para pertencer ao segmento de serviços não exclusivos do Estado, com características de gestão mercadológica e flexibilização administrativa. Os contratos de trabalho flexíveis de curta duração, característicos dessa forma de administração, embora acarretem problemas nas pesquisas de médio e longo prazos, passam a representar uma alternativa para necessidades emergenciais e tarefas específicas (SOBRINHO, 2003).
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) criou e implantou três programas de acesso às instituições de ensino superior (IES) privadas, a saber: o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que consistiu em bolsas de estudos para alunos de baixa renda provenientes de escolas públicas para ingressarem em instituições privadas; o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que objetivava criar condições de ampliação do acesso e permanência nas universidades; e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), mais um recurso para acesso ao ensino mediante financiamento da educação superior em instituições privadas (GOMES, 2008, p. 28).
O efeito do financiamento do ensino privado com verba pública e das políticas de descapitalização das universidades federais foi a diminuição das matrículas nas universidades públicas e a ampliação da busca pelo ensino superior privado (GOMES, 2008), configurando o que Bobbio (2000) chama de primado do privado sobre o público e que efetiva a mercantilização da educação no Brasil.
Frente a toda essa metamorfose provocada pelo capital no mundo das instituições de ensino superior, sejam elas públicas ou privadas, o docente não ficaria isento. Os impactos nas transformações de suas atividades, de seu papel na ensinagem e nos vínculos empregatícios constituem-se como um profundo processo de precarização que será discutido no item a seguir.
4 A precarização do trabalho do docente de ensino superior frente às influências das ideias neoliberais do Consenso de Washington
Os docentes, progressivamente, na mesma extensão em que encaram a intensificação de seu trabalho, assistem a seus direitos serem suprimidos juridicamente, com a participação incisiva do Executivo e Legislativo – responsáveis por propostas de leis com nefastas consequências no ensino superior (MAUÉS; BORGES, 2016).
Guimarães e Chaves (2015) definem a intensificação do trabalho docente como o conjunto de novas funções emergidas das mudanças administrativo-pedagógicas “como resultado da expansão da universidade por meio de cursos de graduação e pós-graduação e do desenvolvimento de projetos de pesquisas e extensão” (GUIMARÃES; CHAVES, 2015, p. 583), que exigem mais dedicação de horas de trabalho, além das atividades já desenvolvidas. Essa intensificação ainda se justifica pelo aceleramento do ritmo de trabalho. Apontam, também, os autores a ampliação da jornada regulamentar e do tempo despendido extraclasse, inclusive nos períodos de descanso.
Assunção e Oliveira (2009) ratificam que a intensificação do trabalho do docente emerge do redirecionamento das instituições de ensino ao mercado e apontam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) como suporte para as transformações dos processos administrativo-pedagógicos, cujas responsabilidades são partilhadas com os professores, trazendo-lhes novas atribuições. Para além da LDB, no entanto, os poderes Executivo e Legislativo empreendem suas reformas legislativas que levam a perdas mais significativas do tempo dos docentes.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, no qual o financiamento do ensino superior se aprofundou, os docentes de ensino superior federais testemunharam, por oito anos, o discurso e os programas de redução de gastos e enxugamento de “gorduras”. Mas, no período do governo petista, de 2003 até 2016, o processo de extinção de direitos e transformação do papel dos professores de ensino superior, com bases legislativas, prosseguiu, com significativo número de aprovação de leis e decretos que precarizaram, de maneira legítima e oficial, a docência de ensino superior (MAUÉS; BORGES, 2016).
A seguir serão citadas, com base no levantamento de Maués e Borges (2016), algumas leis de maior impacto.
Lei nº 10.887/2004, da Reforma da Previdência, entre muitas medidas, aumentou a idade de aposentadoria e instituiu o pagamento da previdência pelos aposentados. A Lei nº 10.973/2004, de Inovação Tecnológica, autorizou as universidades e outros institutos de ciência e tecnologia a compartilharem laboratórios, equipamentos, instrumentos e instalações com empresas e permitiu “o uso de seu capital intelectual em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação” (art. 4º, inciso III). Além disso, os pesquisadores podem receber recursos diretamente das empresas para a realização dos projetos de pesquisa. Decreto nº 6.096/2007, Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), estabeleceu o contrato de gestão no qual as universidades federais se comprometeram, em um prazo de cinco anos, a elevar a taxa de conclusão média da graduação para 90% e a aumentar a relação professor/aluno para 18.
Em troca das metas alcançadas, o governo federal concederia aporte de recursos financeiros para as instituições federais de ensino (IFEs) em até 20% do total das despesas de custeio e pessoal. A Portaria Normativa Interministerial MEC/MP nº 22/2007, alterada pela Portaria nº 224/2007 (banco de professor-equivalente), criou uma referência numérica, por meio de uma tabela, para novas contratações de professores substitutos e abertura de concursos para professores efetivos, estimulando as administrações das IFEs a darem preferência para, em ambos os casos, estabelecerem vínculos empregatícios de 20 horas.
Ainda no governo Lula, a Lei nº 12.550/2011 criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Com base nessa lei, as universidades devem transferir, por adesão, os hospitais universitários para essa entidade jurídica, obrigando os professores a se submeterem à gestão dessa empresa, muitas vezes em detrimento da qualidade de ensino. A Lei nº 12.772/2012 dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal e do Magistério do Ensino Básico Federal, Técnico e Tecnológico, porém com achatamento salarial e formulação arbitrária para a Retribuição de Titulação (pagamento por títulos adquiridos pelos professores). A retribuição de titulação (RT) deixou de ter seu quantitativo vinculado ao vencimento básico (VB), sendo estipulado um valor para cada título (mestrado e doutorado) arbitrariamente.
A Lei nº 12.618/2012 criou o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais e limitou o valor das aposentadorias e das pensões ao valor do teto do benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Já a Lei nº 13.243/2016 aprofundou a Lei nº 10.973/2004, possibilitando maior privatização das instituições públicas, quer pelo compartilhamento da infraestrutura e de pessoal, quer pela flexibilização dos concursos públicos, uma vez que permite a contratação temporária de pessoal de qualquer qualificação. Essa lei permite a ampliação da carga horária docente para que os professores de dedicação exclusiva possam se dedicar às pesquisas privadas e contribuir para a transformação do professor em captador de recursos para a instituição e suas pesquisas. A Lei nº 13.325/2016 alterou a remuneração, regras de promoção, incorporação de gratificação de desempenho a aposentadorias e pensões de servidores públicos da área da educação com propostas que desencadearam uma longa greve, mas que acabou tendo a adesão forçada dos docentes.
Maués e Borges (2016) apontam que tal cenário jurídico incita a um exame mais minucioso, entretanto o resultado parcial da análise das leis mencionadas já permite listar, sinteticamente, as consequências, para os docentes, dos direitos duramente conquistados no passado e que foram retirados:
a intensificação da carga horária e de atividades diversas do trabalho do docente;
a desestruturação da carreira, a desvalorização da titulação e achatamento salarial;
precarização dos vínculos contratuais;
o aumento do tempo de contribuição e da idade para a aposentadoria, que não será remunerada integralmente;
o surgimento de uma previdência alinhada às oscilações do mercado;
o encaminhamento para o fim do regime de dedicação exclusiva e a transformação do professor em um agente comercial que busca recursos para suas pesquisas em empresas privadas. (MAUÉS e BORGES, 2016).
Ledo engano acreditar que as reformas no campo da educação findaram. As investidas neoliberais do Estado sobre as universidades estão mais presentes do que nunca. Os recentes esforços para desoneração do Estado em relação aos custos da manutenção das universidades, por intermédio do Future-se, demonstram o quão atual ainda são as diretrizes do Consenso de Washington.
Segue os trâmites legais o projeto do programa Future-se, proposta dos atuais ministro da educação, Abraham Weintraub, e secretário de educação superior, Arnaldo Lima, que, sob o argumento de proporcionar mais autonomia para as universidades e institutos federais, objetiva a criação de um fundo privado de financiamento de pesquisa e inovação. Suas fontes de recurso seriam as demandas do setor empresarial de inovação. Se aprovado, esse projeto conduzirá as universidades a uma maior aproximação com o setor privado (BRASIL, 2020).
Em suma, em uma perspectiva crítica, o Future-se pode ser entendido como um alinhamento das pesquisas científicas às demandas do mercado e representar a subsunção do trabalho dos professores de ensino superior ao capital privado. Em termos gerais, é o contorno mais refinado e atual da precarização do trabalho docente público.
6 Considerações finais
Após identificar o Consenso de Washington e suas principais deliberações, suas influências nos organismos internacionais e os impactos de suas políticas na educação, é importante, nessa etapa, que sejam retomadas as perguntas que levaram ao estudo do tema: “qual o impacto dos direcionamentos neoliberais do Consenso de Washington nas novas relações entre professor/instituições no ensino superior?”; “a que novas formas de espoliação os professores do ensino superior estão submetidos como trabalhadores?”.
Tais impactos começam na origem das ideias norteadoras do Consenso de Washington por parte de sua comissão organizadora – uma comissão eminentemente formada por organismos e agências defensoras dos interesses hegemônicos do capital que desejavam os ajustes econômicos por meio das reformas, incluindo a reforma do Estado, e essa desencadeando a reforma da educação. Muito embora o Consenso de Washington não tenha tratado da reforma da educação de maneira direta, teve grande impacto nos programas sociais por suscitar o Estado mínimo mediante cortes de gastos.
As ideias neoliberalistas do Consenso de Washington alinharam e redirecionaram as ações das agências da ONU vocacionadas à educação – UNICEF e UNESCO –, que defenderam a universalização do ensino básico em detrimento dos demais. Assim, o ensino superior foi preterido de maneira destacada. Dentro de uma percepção gradual dos degraus de uma escada, seria a última etapa a ser expandida e suas verbas deveriam ser direcionadas para os outros níveis, ficando seu financiamento direcionado à inciativa privada. Com a descapitalização das universidades públicas e as facilidades de financiamento do ensino superior privado, fragilizou-se o ensino público e se fortaleceu o privado.
Outra questão levantada pelo estudo – e a ser também retomada – diz respeito às novas formas de espoliação às quais os professores do ensino superior estão submetidos como trabalhadores. Os pensamentos neoliberais de Estado mínimo, ajustes e redução dos gastos sociais advindos do Consenso de Washington incidiram em novas formas de organização do trabalho dos docentes, gerando a intensificação das tarefas e a redução dos direitos por intermédio de projetos e leis aprovados pelo Legislativo e sancionados pelo Executivo, constituindo um labor vulnerabilizado e precarizado.
Ante a complexidade do tema, o presente trabalho não pretendeu esgotar o assunto, contudo não se furta de apontar que existe uma forte ligação entre as diretrizes de ajustes econômicos do Consenso de Washington e um conjunto de eventos da reforma do Estado, a partir de 1990 e até o presente, que, em sua trajetória, muito influenciou e ainda influencia as reformas educacionais e a precarização do trabalho da docência superior.