1 Introdução
Tem-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado” (BRASIL, 1996, p. 48). Destaca-se que não há, na regulamentação citada, indicações a respeito de como essa preparação deve ser estruturada.
Como a literatura sobre a docência no ensino superior aponta, os programas de pós-graduação enfatizam as atividades de pesquisa, deixando a aprendizagem da docência em segundo plano (BASTOS et al., 2011; MASETTO, 2012; QUADROS et al., 2012). Essa ênfase pode levar os pós-graduandos a enxergarem a docência como um papel secundário do professor universitário, privilegiando a função de pesquisador e reafirmando a visão tradicional da docência como vocação. Trata-se de um raciocínio potencialmente prejudicial, visto que, como são poucos os cargos de pesquisadores no país, muitos desses pós-graduados serão absorvidos por instituições de ensino superior em que a docência é o principal elemento da carreira.
Ainda, de acordo com Diniz e Soares (2016), os alunos de graduação se queixam recorrentemente da falta de didática de seus professores, enquanto os professores de ensino superior sentem a falta de conhecimentos pedagógicos. Entende-se que, em grande medida, essa questão se relacione com a formação para a docência dos professores universitários ou com a falta dela (MARINI, 2013).
Nos últimos anos, a pós-graduação stricto sensu no país vivenciou um período de crescimento acelerado: a área de Engenharia, por exemplo, cresceu cerca de 288%, passando, no período de 1998 a 2018, de 145 para 419 cursos autorizados pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES, 2019). Se, por um lado, essa expansão não proporcionou melhor definição dos processos formativos de professores do ensino superior no que tange à regulamentação, já que a titulação continuou a ser o principal critério de seleção desses profissionais, por outro a docência universitária tem se tornado um assunto recorrente na literatura, discutindo questões como o impacto da formação desses professores no desempenho de seus alunos e a necessidade de profissionalização da carreira (CUNHA, 2009; MARINI, 2013).
Nesse sentido, uma das propostas que se difundiu como forma de preparação para a docência na pós-graduação foi o estágio de docência, instituído pela CAPES em 1999 e atualmente regido pela Portaria 076 de abril de 2010, que o estabelece como obrigatório para todos os bolsistas do Programa de Demanda Social, de acordo com os parâmetros definidos por cada instituição de ensino (BRASIL, 2010). É importante destacar que esse modelo foi inspirado nas universidades americanas, onde os pós-graduandos são utilizados como professores de cursos de graduação, os chamados graduate teacher assistants (GTA). Existem dados indicando que quase 50% dos cursos de graduação nos Estados Unidos da América são ministrados por eles, e a literatura internacional aponta que o tempo como GTA “prepara os alunos para seguir carreiras acadêmicas e se tornarem futuros professores (...) e são frequentemente as únicas oportunidades para os professores de engenharia receberem treinamento pedagógico”(FONG et al., 2019, p. 364).
No Brasil, estudo de Godoy, Silva e Figueiredo (2013) procurou compreender como o Programa de Estágio Docente (PED) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) afetava o nível de confiança de discentes de pós-graduação em engenharia elétrica e ciências da computação para a realização de atividades docentes, encontrando que os participantes que haviam tomado parte no PED possuíam maiores níveis de confiança em todos os 10 critérios avaliados.
Os estudos sobre o professor-engenheiro demonstram que os cursos de graduação em Engenharia possuem particularidades que evidenciam a necessidade de maior atenção à formação de seus professores: de acordo com Oliveira (2005), trata-se de cursos com índices de retenção e evasão muitas vezes superiores a 50% dos alunos, o que causa inquietação. Ainda, em pesquisa sobre a formação oferecida em cursos de graduação em Engenharia, Dijkstra et al. (2002) entrevistaram alunos concluintes que afirmaram que, embora os docentes nesses cursos demonstrassem muito conhecimento técnico, eles se limitavam a ministrar aulas expositivas com pouca ou nenhuma participação dos estudantes e as atividades avaliativas se baseavam na capacidade de memorização do conteúdo.
Na Colômbia, pesquisa com 511 professores de cursos de Engenharia demonstrou que 20% dos participantes pensavam que as dificuldades de aprendizagem dos alunos estavam relacionadas com as carências pedagógicas dos professores (LACLAUSTRA et al., 2008). Os autores apontaram, ainda, a necessidade de construção de processos de formação inicial e continuada que visem à profissionalização da docência no país, sugerindo a adoção de um registro profissional para professores-engenheiros que exigisse conhecimentos pedagógicos adquiridos por meio de formação específica.
Concordando com Bazzo e Pereira (2019, p. 172) quando estes apontam a necessidade de mudança da forma como se concebe e ensina engenharia, já que nos moldes atuais “os cursos de engenharia [são] basicamente conduzidos por engenheiros transformados em professores pela experiência” e entendendo que essa mudança pode se iniciar a partir da formação dos pós-graduandos, já que estes serão os futuros professores de graduação, estabeleceram-se as questões de pesquisa.
Buscou-se, então, responder: “quem são os pós-graduandos de instituições públicas em engenharia no Sul e Sudeste do país?”; “quais atividades estes consideram importantes para a sua formação docente?”; e, “qual a relação desses participantes com o estágio de docência?”. Para tanto, estabeleceu-se como objetivos identificar e descrever o perfil dos pós-graduandos em programas de Engenharia, visando a conhecer suas características pessoais e acadêmicas e relacioná-las com os processos formativos para a docência no ensino superior realizados durante o curso.
A realização desta pesquisa se justifica na medida em que estudos sobre o tema são importantes para fornecer subsídios tanto para a análise dos processos formativos sobre a docência disponíveis nos programas de pós-graduação, quanto para o levantamento de indícios que contribuam para a construção de novos processos formativos específicos da área.
2 Método
Trata este texto da análise de dados resultantes de pesquisa para a dissertação de mestrado da primeira autora. Realizou-se uma pesquisa exploratória, transversal e de natureza quanti-qualitativa utilizando-se os dados quantitativos coletados para a realização de análises e discussão de cunho qualitativo, compreendendo-se que “o estudo quantitativo pode gerar questões para serem aprofundadas qualitativamente” (MINAYO; SANCHES, 1993, p. 247). Após submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus Rio Claro/SP, sob o número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 33737914.9.0000.5465, os dados foram coletados de julho a outubro de 2014, por meio de um questionário autoaplicável disponibilizado via internet, utilizando-se a ferramenta Google Docs. Valeu-se de um questionário composto de 26 itens, entre os quais: “Até o presente momento, o quanto você acredita que o curso de pós-graduação contribuiu para a sua formação para atuação como docente?” e “Você pretende atuar como professor de ensino superior após a pós-graduação?”. A análise dos dados foi realizada com estatística descritiva no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22.
Participaram da pesquisa 340 estudantes matriculados em 33 programas de pós-graduação stricto sensu em instituições públicas das áreas de avaliação Engenharias I, II, III e IV situados nas regiões Sul e Sudeste do país, localizados a partir do censo da Pós-Graduação de 2012 (CAPES, 2019). Optou-se por coletar os dados nas citadas regiões em virtude de mais de 50% dos programas de pós-graduação do país se localizarem na região Sudeste, sendo a região Sul a segunda em número de cursos (BRASIL, 2010), o que sugere que parte dos egressos atuaria como docente em outras regiões do país. Excluíram-se da amostra, antes da coleta, os mestrados profissionais por entender-se que seu viés é a formação de engenheiros, e não de professores-engenheiros. Para aplicação do instrumento contataram-se os coordenadores dos programas, solicitando sua divulgação entre os discentes.
3 Resultados
Dos participantes, 33,2% estavam matriculados em cursos de doutorado e 66,8% de mestrado e tinham entre 22 e 59 anos, sendo a média = 30,75 e destacando-se que 57,4% deles tinham menos de 30 anos de idade. A maioria era do sexo masculino (58,2%) e teve sua formação na graduação em bacharelado (87,4%), tendo realizado seus estudos em instituições públicas (73,8%). Questionou-se também o ano de conclusão da graduação, encontrando-se que 50% dos participantes se graduaram nos quatro anos anteriores à realização da coleta.
Buscou-se saber quais dos participantes tinham experiência como professores: 111 (32,6%) atuavam como docentes no momento da resposta ao questionário, principalmente no ensino superior (70,9%). Quando analisados os resultados referentes aos pós-graduandos que já atuaram como professores, mesmo que atualmente não exerçam a docência, encontrou-se que 54,4% dos participantes já o fizeram e que 45,6% não têm experiência prévia, conforme exposto na Tabela 1.
Variável | Categorias | Frequência absoluta (n) | Frequência relativa (%) |
---|---|---|---|
Atua como professor atualmente? | Não | 229 | 67,4 |
(n = 340) | Sim | 111 | 32,6 |
Níveis de ensino* (n = 111) |
Ens. fundamental | 6 | 5,4 |
Ens. médio | 15 | 13,5 | |
Ens. técnico | 26 | 23,4 | |
Ens. concomitante (médio e técnico) | 17 | 15,3 | |
Ens. superior | 78 | 70,9 | |
Já atuou como professor? | Não | 155 | 45,6 |
(n = 340) | Sim | 185 | 54,4 |
Níveis de ensino* (n = 185) |
Ens. fundamental | 39 | 21,1 |
Ens. médio | 72 | 38,9 | |
Ens. técnico | 44 | 23,8 | |
Ens. integrado (médio e técnico) | 25 | 13,5 | |
Ens. superior | 87 | 47 | |
*Questão em que podia ser indicada mais de uma opção de resposta. |
Fonte: (MATOS, 2015)
Como resposta à questão “O quanto se sente preparado para realizar atividades como docente?” encontrou-se que 36,5% dos participantes responderam “muito” e 27,6%, “suficiente”, de modo que 50,9% dos pós-graduandos afirmaram se sentir suficientemente preparados para realizar atividades enquanto docentes. No entanto, 32,9% referiram sentir-se pouco preparados e 1,5% afirmou se sentir nada preparado. Indagou-se, ainda, a respeito da pretensão de atuar como professor no ensino superior após a pós-graduação, tendo a maioria (85,9%) respondido afirmativamente.
Questionou-se também quanto os pós-graduandos entendiam que o curso que estavam fazendo contribuía para sua formação docente, obtendo-se que 64,1% dos participantes acreditavam que a pós-graduação contribuía suficientemente ou muito. Apesar disso, quase 36% dos participantes entendia que a pós-graduação nada ou pouco contribuía para sua preparação para docente, o que parece uma quantidade preocupante.
Conforme exposto anteriormente, uma das propostas de formação para a docência universitária que se popularizou nos programas de pós-graduação foi o estágio de docência, motivo pelo qual incluíram-se no estudo questões sobre a atividade. Sobre a realização do estágio de docência durante a pós-graduação, 42,1% responderam que não o fizeram, 44,4% já concluíram e 13,5% frequentavam a atividade no momento da coleta. Entre os pós-graduandos que ainda não haviam realizado o estágio de docência, 58,7% pretendiam realizá-lo. Ressalta-se que a maior motivação para a realização da atividade foi a “obrigatoriedade em virtude de ser bolsista” (40,6%), conforme Tabela 2.
Variável | Categorias | Frequência absoluta (n) | Frequência relativa (%) |
---|---|---|---|
Estágio de docência durante a pós-graduação (n = 340) | Não realizou | 143 | 42,1 |
Em andamento | 46 | 13,5 | |
Concluído | 151 | 44,4 | |
O que motivou a realização de estágio de docência (entre os que responderam “em andamento” ou “concluído”) (n = 197) |
Obrigatoriedade em virtude de ser bolsista | 80 | 40,6 |
Obrigatoriedade em virtude da normalização do programa de pós-graduação | 40 | 20,3 | |
Interesse pela profissão docente | 67 | 34 | |
Outro | 10 | 5,1 |
Fonte: (MATOS, 2015).
Perguntou-se também aos participantes quais atividades realizadas durante a pós-graduação eles consideravam mais importantes na sua preparação para atuação como docente universitário, sendo as mais indicadas a “Participação em projetos de pesquisa” (74,7%), a “Participação em Congressos, simpósios e seminários” (70,6%) e o “Estágio de docência em cursos de graduação” (70,3%), como se vê na Tabela 3.
Atividades* | Frequência absoluta (n) | Frequência relativa (%) |
---|---|---|
Participação em projetos de pesquisa | 254 | 74,7 |
Participação em congressos, simpósios e seminários | 240 | 70,6 |
Estágio de docência em cursos de graduação | 239 | 70,3 |
Redação e publicação de artigos em periódicos | 216 | 63,5 |
Participação com apresentação de trabalhos em reuniões científicas | 203 | 59,7 |
Elaboração de material didático (livros, vídeos, softwares) | 196 | 57,6 |
Participação em grupos de estudo | 160 | 47,1 |
Oferecimento de palestras em instituições acadêmicas e não acadêmicas | 157 | 46,2 |
Elaboração e condução de oficinas, minicursos ou cursos | 155 | 45,6 |
Intercâmbios com grupos de pesquisas em outras instituições (nacionais ou internacionais) | 124 | 36,5 |
Elaboração e desenvolvimento de projetos pedagógicos | 118 | 34,7 |
Participação em projetos de extensão | 103 | 30,3 |
Participação em comissões organizadoras de eventos | 61 | 17,9 |
Participação em órgãos colegiados da universidade | 58 | 17,1 |
Participação em comissões da universidade | 51 | 15 |
Outro | 17 | 5 |
*Questão em que podia ser indicada mais de uma opção de resposta. |
Fonte: (MATOS, 2015)
4 Discussão
Em resposta à questão “quem são os pós-graduandos de instituições públicas em engenharia no Sul e Sudeste do país?”, encontrou-se que estes eram, de forma geral, jovens, considerando que mais de 57% deles tinham menos de 30 anos, do sexo masculino, cursavam o mestrado e eram graduados em cursos de bacharelado. Observou-se, ainda, uma tendência de ingressar na pós-graduação pouco tempo após a conclusão da graduação, visto que mais de 50% dos participantes haviam se graduado nos quatro anos anteriores ao ingresso na pós-graduação. Sobre a docência, 45,6% não tinham qualquer tipo de experiência prévia e 85,9% pretendiam ser professores do ensino superior.
No que se refere ao sexo, o número de participantes do sexo masculino é significativamente maior que os do sexo feminino, já que as mulheres representaram 41,8% dos que responderam à pesquisa. Esse dado é interessante se contraposto ao apontado por Cabral e Bazzo (2005), em que apenas 3.299 dos 13.006 pesquisadores das áreas de Engenharia e Ciências da Computação são do sexo feminino no país, ou seja, cerca de 25%. Assim, é possível que, aos poucos, as mulheres estejam adentrando o campo da Engenharia, já que os valores encontrados estão mais próximos do equilíbrio e um maior número de pós-graduandas se faz presente, o que poderá se traduzir, no futuro, em um aumento da quantidade de pesquisadoras no país. Pode-se conjecturar, por meio do perfil do pós-graduando aqui delineado, que a área vem mudando nos últimos anos, havendo maior presença das mulheres em um domínio que era tradicionalmente masculino, sendo essa uma das interpretações possíveis a partir dos dados coletados. Essa hipótese é corroborada por pesquisas recentes que apontam um aumento do número de mulheres ingressantes e concluintes em cursos de graduação em Engenharia, particularmente em cursos como os de Engenharia Química e de Produção (TONINI; ARAÚJO, 2020).
Destaca-se ainda que, embora Melo, Lastres e Marques (2004) indiquem que a diferença entre os sexos aumenta quando se analisam espaços de poder como reitorias, pró-reitorias e comitês de área, onde as mulheres ainda são minoria, entende-se que é possível que, com um maior número de pesquisadoras na área, existirá maior pressão por representatividade feminina também nesses espaços de poder.
Embora entenda-se que a docência universitária tenha especificidades que lhe são próprias, “atuar na educação superior envolve práticas que se identificam com a docência em outros níveis de ensino” (CUNHA, 2019, p. 122). Nesse sentido, assume-se que os pós-graduandos que fizeram cursos de licenciatura conheceram minimamente o processo de ensino-aprendizagem, no entanto mais de 87% dos participantes dessa pesquisa são bacharéis, o que redobra a importância da formação pedagógica oferecida a esses pós-graduandos, pois eles não a tiveram ao longo de sua formação inicial.
Outro dado que chama a atenção diz respeito à experiência prévia com a docência: 45,6% dos participantes mencionaram não a ter, o que reforça a importância das experiências vivenciadas durante a pós-graduação e a maneira como se constituem os processos formativos docentes nesse período. Estudos recentes têm apontado que, após o ingresso no ensino superior:
Os docentes iniciantes raramente encontram uma cultura de apoio dos mais experientes. Dá-se por pressuposto que possuem as condições necessárias à profissão e que podem enfrentar sozinhos os desafios que ela impõe. Não raras vezes, a eles são propostas as atividades mais penosas, aquelas que os veteranos não mais querem para si
(CUNHA; ALVES, 2019, p. 13).
Ou seja, ainda não existe uma cultura de inserção dos novos docentes na universidade, o que reforça a necessidade de uma preparação sólida que lhes permita adentrar a profissão de maneira menos traumática. Ainda, conforme apontam estudos com bacharéis em Engenharia que se tornaram professores, é comum que nos primeiros meses de magistério eles se sintam perdidos ou sobrecarregados com a necessidade de planejar e se preparar para as aulas, além de terem dificuldades para lidar com aspectos mais pontuais, como a indisciplina em sala de aula (SILVA; SOUZA, 2017; SOUZA, 2017). Nesse sentido, estudos realizados na Austrália apontam o processo de mentoria dos professores iniciantes no ensino superior por professores mais experientes como uma alternativa para o incremento da percepção de capacidade dos novatos de realizarem as tarefas inerentes à carreira, além de proporcionar familiarização com a burocracia institucional (HEMMINGS, 2015), o que poderia ser uma alternativa viável para implantação no Brasil.
Encontrou-se que 32,6% dos participantes atuavam como docentes no período da coleta de dados, o que é um fenômeno comum principalmente em regiões interioranas e com menos disponibilidade de professores qualificados, onde os pós-graduandos começam a atuar em instituições de ensino antes da conclusão ou mesmo logo após o ingresso na pós-graduação. Há que se indagar de que forma esse ingresso na pós-graduação influencia suas habilidades docentes, já que o mero ingresso, independentemente da formação para a docência oferecida, é considerado suficiente para exercer a docência na graduação. É possível que esse entendimento esteja relacionado com a adoção da titulação como critério de seleção de professores universitários, o que fica explicitado, inclusive, na já citada LDB (BRASIL, 1996) e que precisa ser discutido.
Sobressai nos dados coletados o fato de que 85,9% dos participantes intentam ser professores no ensino superior, o que é surpreendente por tratar-se de indivíduos que escolheram a Engenharia como formação inicial, mas optaram pela docência como carreira. Podem-se aventar várias hipóteses explicativas para essa decisão, entre elas: o aumento do número de pesquisas realizadas nas instituições de ensino na última década, a implantação do regime de dedicação exclusiva que pode ter favorecido a migração de profissionais que antes atuavam em empresas privadas para as universidades (PINTO, OLIVEIRA, 2012), a maior estabilidade financeira e profissional associada à carreira docente no ensino superior e o uso que profissionais liberais fazem da docência nesse nível como forma de complementação de renda. É possível também que o ingresso na pós-graduação e na docência aconteçam por motivos fortuitos, ou seja,
por uma combinação de acontecimentos ou eventos que os conduziram a isso: desemprego, busca por estabilidade profissional no serviço público, oportunidade dos concursos nos IFs, insatisfações com o trabalho na empresa privada, dentre outros motivos
(SILVA: SOUZA, 2017, p. 211).
Uma possível limitação do estudo consiste em não ficar claro o motivo pelo qual os participantes optaram pela realização do curso. Esse dado seria pertinente na discussão dos processos formativos, no sentido de orientá-los, e poderia ser explorado em estudos futuros.
Como resposta à questão “quais atividades os pós-graduandos consideram importantes para a sua formação docente?”, a atividade mais indicada foi “Participação em projetos de pesquisa”, com 74,7%, seguida por “Participação em congressos, simpósios e seminários” (70,6%). Apesar de serem atividades indicadas pelos participantes como as mais importantes para a sua formação enquanto docentes, trata-se de atividades diretamente relacionadas com as suas pesquisas de pós-graduação. Destaca-se, entretanto, que na literatura, existem estudos que ressaltam a importância de atividades como a iniciação científica e a participação em grupos de pesquisa para a constituição da docência por professores-engenheiros (SOUZA, 2017), de modo que poderia ser relevante explorar quais elementos dessas experiências são mais valorizados por eles e o porquê.
É necessário considerar, entretanto, que essa percepção dos participantes esteja associada não à pesquisa da própria prática docente, ferramenta indispensável a qualquer professor (FREIRE, 1997), mas à supremacia da pesquisa científica como principal atividade do professor de ensino superior, o que tem gerado desvalorização das atividades de ensino e dicotomia entre o ensino e a pesquisa dentro das universidades (MOITA; ANDRADE, 2009; JOAQUIM et al., 2013).
Como a pesquisa, por si só, não garante a apreensão dos conhecimentos e habilidades necessários à docência, é possível que a ênfase nessas atividades prejudique a formação para o ensino, encarando-a como secundária ou como tempo perdido, como retratado em estudos que apontam que os professores universitários muitas vezes “não se preocupa[m] com a docência, priorizando seus trabalhos de pesquisa – mais valorizados pela comunidade acadêmica” (PACHANE, 2007, p. 220).
Destaca-se, ainda, que a função social da universidade está intrinsecamente relacionada com suas três funções: ensino, pesquisa e extensão e que os pós-graduandos deveriam estar sendo formados para atuação no chamado tripé universitário. Os resultados apontam, no entanto, que quatro das cinco atividades mais elencadas pelos participantes são atividades de pesquisa e que apenas 30,3% consideram importante a “Participação em projetos de extensão”.
Da mesma questão, ressalta-se que o estágio de docência foi a terceira atividade mais indicada como importante para a formação docente dos pós-graduandos, com 70,3% dos participantes, o que denota reconhecimento de sua importância. Mesmo assim, a maior motivação dos pós-graduando para a realização dessa atividade esteve associada à sua obrigatoriedade aos alunos bolsistas. Pode-se depreender, então, que, embora reconheçam o estágio como importante na formação docente, não se voluntariam a realizá-lo.
Entre as atividades indicadas no campo “Outro”, encontram-se itens como “disciplinas de Didática”, “disciplina para docência” e “participação em disciplinas preparatórias”, o que sugere que os participantes entendem que, durante a pós-graduação, poderiam ser oferecidos outros conteúdos que contribuíssem para a sua formação para a docência e que o mero conhecimento técnico da área não é suficiente para ser professor. Conforme aponta a literatura,
programas voltados à formação pedagógica do professor universitário são necessários, possíveis de ser realizados e capazes de despertar naqueles que deles participam – sejam eles professores iniciantes ou veteranos – maior comprometimento com as questões educacionais, fator indispensável ao aprimoramento da qualidade nos cursos de graduação
(PACHANE, 2007, p. 219).
Para tanto, é necessário que haja um amplo programa de formação, que permita a construção do processo reflexivo por parte dos pós-graduandos, além do desenvolvimento de habilidades e competências. Dessa forma, ao propor um programa de formação para professores-engenheiros, ao menos três grupos de conhecimentos são necessários:
A primeira voltada à instrumentalização do docente para os conceitos básicos de como se forma o conhecimento e como ele é absorvido; a segunda voltada para a didática e metodologias para o ensino de engenharia; por fim, a terceira voltada para a compreensão do desenvolvimento da ciência e da tecnologia e suas implicações para a sociedade
(CANDIDO et al., 2019, p. 231).
Embora seja fundamental discutir a operacionalização do processo de ensino-aprendizagem, já que, conforme apontam Silva e Souza (2017), professores-engenheiros demonstraram dificuldades no planejamento e na execução das atividades docentes em seus primeiros semestres lecionando, ressalta-se que é necessária prudência por parte dos programas de pós-graduação na hora de desenvolver os processos formativos para que estes não repliquem a ideia de uma formação docente meramente baseada em técnicas e estratégias, sem a necessária articulação entre teoria e prática na construção do processo reflexivo que permeie a atividade docente.
Outra questão levantada a partir das respostas dos participantes ao item “Outro” diz respeito à necessidade de conhecimento prático da área de atuação: em indicações como “experiência de trabalho na indústria” e “consultorias”, sobressai a ideia de que o professor universitário deve ser capaz de fornecer a seus alunos conhecimentos sobre a realidade da profissão que escolheram. Destaca-se ainda que foi sugerida a “atuação como professor em outras instituições de ensino superior, cursos técnicos etc.” como possibilidade de preparação para a docência, o que supõe uma valorização da prática docente como lócus de formação. Nesse sentido, retoma-se a necessidade de que essa prática seja fundamentada em alicerces teóricos bem construídos.
5 Considerações finais
Conhecer o perfil do pós-graduando permite o direcionamento das atividades formativas de docência para o atendimento das necessidades da área. Em um contexto como o das Engenharias, no qual predomina o profissional formado em bacharelado, conforme atestado pelos resultados encontrados, e com dificuldade de atuação docente, como indica a literatura destacada, o conhecimento desse perfil pode ser associado às necessidades reais percebidas pelos pós-graduandos.
Entende-se que pensar o perfil do pós-graduando é pensar sobre o egresso do curso e, em última instância, sobre os futuros professores da área. Assim, e considerando os resultados encontrados, aponta-se a formação didático-pedagógica como fundamental na melhoria da qualidade dos cursos de pós-graduação, e com implicações diretas nos de graduação.
Cabe questionar, entretanto, o paradoxo que se estabelece entre a necessidade de melhoria na formação docente oferecida aos pós-graduandos e os mecanismos de avaliação dos programas de pós-graduação. Se, por um lado, a CAPES estabeleceu a obrigatoriedade da realização do estágio de docência, por outro, os próprios critérios de avaliação relegam a docência a uma atividade secundária ao priorizarem a produtividade em pesquisa em seus processos avaliativos.
Ainda, ao se analisar o processo de progressão da carreira universitária, particularmente em instituições públicas, evidenciam-se as contradições entre uma universidade cada vez mais voltada para a produtividade e as necessidades formativas dos alunos de graduação: se o professor é avaliado tanto profissionalmente quanto para a progressão com base em sua produção científica (de maneira geral desenvolvida na pós-graduação), como estimulá-lo a valorizar o ensino de graduação? Se a pós-graduação acaba por ser o âmbito que garante a produtividade do professor universitário, como estimular a reflexão e a formação sobre a docência em seus espaços?
No que se refere ao estágio de docência, entende-se que, embora a atividade possa não ser suficiente para fazer que os pós-graduandos compreendam e se sintam preparados para a docência, trata-se de um espaço consolidado nos programas e que pode ser estruturado de forma a contribuir para a formação docente dos pós-graduandos. Espera-se que a discussão proposta leve à reflexão sobre os critérios de avaliação dos programas de pós-graduação: como formar melhores professores em um contexto em que os critérios didático-pedagógicos são desconsiderados, contribuindo para o fortalecimento da cultura da pesquisa? Isso transparece na resposta dos alunos aos critérios considerados mais importantes para a preparação para a docência, conforme exposto nos resultados.
Um limite do presente estudo se refere ao não aprofundamento nas características do estágio de docência realizado pelos participantes. Assim, propõe-se que estudos futuros analisem e discutam as formas de estruturação dessa atividade na pós-graduação e suas implicações na prática docente. Para tanto, na literatura internacional encontram-se diversas estratégias consolidadas que poderiam ser utilizadas para melhorar a oferta do estágio docente, como a mentoria, o microensino ou microteaching e a reflexão-na-ação (FONG et al., 2019; HEMMINGS, 2015), por exemplo. Sugere-se também que estudos futuros analisem as possibilidades de outros processos formativos existentes nos programas de pós-graduação, realizando um mapeamento dessas atividades no país.
Existe ainda a necessidade de se refletir a respeito do impacto das crenças sobre o sentimento dos pós-graduandos no que se refere à preparação para exercer a docência, já que mais de 30% deles se sentem pouco ou nada preparados para exercer a docência e um número próximo entende que a pós-graduação não contribuiu para o processo. Cabe, então, um questionamento a respeito de qual é, em última instância, a função de um programa de pós-graduação: formar professores universitários, pesquisadores ou ambos? A resposta a essa questão é essencial para a estruturação do percurso formativo dos alunos de cada curso e pode direcionar as tomadas de decisão do corpo docente.
A nosso ver, o papel da pós-graduação na formação docente universitária não deve se limitar às atividades de caráter pedagógico: o percurso formativo do pós-graduando deve, como um todo, dar-lhe base para refletir sobre a sua profissão, cabendo aos programas construir espaços propícios, o que, de acordo com os resultados encontrados, não tem acontecido. Pode-se também pensar que o processo de mudança na formação do professor de ensino superior passa pela desconstrução das crenças a respeito da pesquisa como atividade primordial da profissão.
A valorização da docência universitária deve ocorrer a partir da elaboração de crenças que favoreçam o desenvolvimento de capacidades didático-pedagógicas em detrimento da exaltação exclusiva de capacidades técnico-científicas. A discussão sobre as formas de avaliação dos programas de pós-graduação perpassa todo o processo formativo disponível aos discentes, bem como as escolhas dos profissionais envolvidos nesse nível de educação e, em última instância, influencia diretamente o perfil do egresso a ser formado.