1 Introdução
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo conduzido pelo MEC (Ministério da Educação), cuja finalidade é definir o conjunto de aprendizagens essenciais necessárias para os alunos ao longo das etapas da Educação Básica, assegurando a eles os direitos de aprendizagem e desenvolvimento. O documento visa reformular os currículos e propostas pedagógicas das redes escolares dos estados, Distrito Federal e dos municípios, além de contribuir para o alinhamento de ações e políticas: formação de professores, avaliação, elaboração de conteúdos educacionais e critérios de infraestrutura adequada para o desenvolvimento da educação. ( BRASIL, 2017).
Desde a Constituição da República de 1988 até a publicação da BNCC, diversos documentos e eventos relacionados com a educação influenciaram o processo construção da Base Nacional Comum, sendo eles: (a) a Constituição Federal de 1988; (b) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Ldben) de 1996; (c) Parâmetros curriculares nacionais (PCN) de 1997; (d) PCN de 1998; (e) PCN de 2000; (f) Programa Currículo em Movimento de 2008; (g) Documento final do CONAE (Conferência Nacional da Educação) em 2010; (h) Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) em 2010; (i) DCN para a educação infantil em 2010; (j) DCN para o ensino fundamental de 9 anos em 2011; (k) DCN para o Ensino Médio em 2012; (l) Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) em 2012; (m) Pacto Nacional de Fortalecimento do Ensino Médio (PNFEM) em 2013; (n) PNE em 2014; (o) 2ª Conferência Nacional pela Educação (CONAE) em 2014; (p) I Seminário Interinstitucional para elaboração da BNC em 2015; (q) 1ª versão da BNCC em 2015; (r) 2ª versão da BNCC em 2016; (s) 27 seminários estaduais para discussão da BNCC em agosto de 2016; e (t) 3ª versão da BNCC em dezembro de 2017.
O processo de elaboração da BNCC contou com professores e leitores convidados em regime de colaboração. Os convidados foram distribuídos e organizados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), representando todos os estados da Federação e pesquisadores vinculados a 35 Universidades – instituídos pelo MEC por meio da Portaria nº 592, de 17 de junho de 2015, como responsáveis pela primeira versão da BNCC. A equipe final foi constituída por duas coordenadoras, 14 assessores e 108 especialistas. No campo da Educação Física, a equipe foi constituída por um assessor professor do Ensino Superior, com quem ficou o cargo de coordenação, e 12 professores, sendo seis da Educação Básica e seis professores universitários. ( NEIRA; SOUZA JUNIOR, 2016).
A origem para a elaboração do documento foi o Seminário Internacional “Base Nacional Comum: o que podemos aprender com as evidências nacionais e internacionais”, realizado no dia 8 de julho de 2015, em Brasília. Organizado pela UNDIME e CONSED, com apoio do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular, o evento teve a participação de especialistas nacionais e internacionais do Reino Unido, Chile, Austrália e Estados Unidos, objetivando o compartilhamento de experiências e construções curriculares.
A partir da breve explanação sobre a temática exposta, este artigo de caráter documental e exploratório tem por objetivo identificar as possíveis teorias pedagógicas que fundamentam o documento BNCC, em sua proposta geral, na especificidade da educação física escolar, e as determinações dessas concepções para a prática escolar. Assim, utilizamos o método de categorização e interpretação hermenêutica-dialética de Minayo (1992), a fim de extrair as categorias políticas empíricas.
2 A BNCC e suas possíveis concepções pedagógicas
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece como prioridade o desenvolvimento de habilidades e competências específicas em cada área, privilegiando dimensões do conhecimento como: experimentação, fruição, construção de valores e protagonismo comunitário. ( BRASIL, 2017).
A partir das análises da BNCC, destacamos três características específicas do documento que nos ajudarão a desvelar aproximações com suas possíveis bases teóricas. A primeira delas diz respeito a constituição das habilidades, objetivada pelo documento como a construção de um conjunto de habilidades básicas necessárias para todos os alunos da educação básica. A segunda está relacionada a entender que a aprendizagem deve ser de acordo com as necessidades, possibilidades e interesses dos estudantes, dando sentido ao que se aprende, e que atenda as demandas da sociedade contemporânea. A terceira concerne em estimular o aluno a desenvolver competências para aprender a aprender, sendo autônomo em um mundo tecnológico cada vez com maiores informações, proativos e respeitando as diferenças e diversidades culturais ( BRASIL, 2017). Acreditamos que essas características e princípios fundamentais estabelecidos na BNCC possuem relações com a teoria construtivista, pois o foco sempre será o aluno, que é responsável por construir seu próprio conhecimento por meio da fruição e da experimentação, bem como por aprender a aprender.
Duarte ( 2005, p. 50) sintetiza como seria para o construtivismo o processo de aprendizagem do aluno:
Para o construtivismo a aprendizagem seria um processo de construção individual do sujeito e este não copia a realidade mas constrói a partir de suas representações internas. A interpretação pessoal rege o processo de conhecer, o qual desenvolve seu significado através da experiência. A aprendizagem é situada e deve dar-se em cenários realistas; o cotidiano do sujeito e ele próprio trazem os conteúdos necessários para que corra a aprendizagem.
Ainda assevera:
O ensino a escola devem levar o aluno a “aprender a aprender”. Sua realidade e seu cotidiano são as referências. Conteúdos devem ser reduzidos aos que puderem ser realmente compreendidos pelo aluno. A educação é uma prática social da mesma forma que a família, o clube, mas é artificial por tentar impor ao aluno “conteúdos” que estão fora do seu mundo, ignorando os conhecimentos que ele possui. Isso deve ser eliminado.
Já em relação a imagem e posicionamento do professor para com sua prática escolar, Duarte (2005) destaca o seu papel enquanto facilitador no construtivismo:
Professor não ensina – [...] o professor ajuda o aluno a construir o conhecimento a partir de seus conhecimentos prévios, e diante de algo novo deve, segundo Tolchinski (1997, p. 111), reconhecer que a única possibilidade para que as experiências escolares fiquem em pé de igualdade com as não-escolares reside no conhecimento de que a atribuição de significado está sempre em função do que o aluno já sabe, sendo que estes saberes prévios devem encontrar na escola situações para sua manifestação.
Compartilhando do mesmo processo reflexivo, Cazumbá (2018) afirma que o documento da BNCC, no empenho do “aprender a aprender”, apresenta aproximações perceptíveis com a teoria construtivista, sendo uma perspectiva a-histórica, objetivando a adaptação do homem a realidade e afastando-o da realidade concreta, na qual “[...] são mais desejáveis as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais estão ausentes a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e experiências” (DUARTE, 2011, p. 2, apudCazumbá, 2018, p. 74-75).
Mas, quais são as implicações para a prática escolar se uma política educacional como a BNCC apontar aproximações com uma tendência pedagógica construtivista? Para Duarte (2005), além da priorização de habilidades e competências em detrimento da apropriação de conhecimento pelos alunos, o Construtivismo constitui um retrocesso e não um avanço, pois conduz a negação da importância da apropriação do conhecimento também pelo professor em seu processo de formação, contribuindo para sua desqualificação e desprofissionalização. Um exemplo do esvaziamento provocado pela inserção dos aspectos construtivistas na educação retratado por Newton Duarte foi um relato apresentado pela TV Globo, em 1999, apresentando figuras de “professor-modelo” a cada mês, em um dos casos, o modelo foi um professor de História que trabalhava em condições precárias (estrutura física, econômica e social). Segundo Duarte ( 2005, p. 43), esse professor não “enchia” a cabeça dos alunos com coisas “arcaicas”, histórias antigas e ultrapassadas. Suas aulas consistiam em que cada um descobrisse sua própria história e de sua família:
[...] ao mesmo tempo em que descobria que falar e escrever sobre sua história e ouvir a história de seus colegas é mais importante do que amontoados de fatos passados com outras pessoas em outros tempos e em outros locais. Assim a aula se tornava mais “criativa”, “realista”, “dinâmica” e “interessante”.
Essa campanha intensificava o estranhamento sobre a falta de um ambiente equipado e estruturado para o trabalho de um professor qualificado, inserindo a imagem de um professor “missionário”, que trabalhava incansavelmente para educar os pobres, dando-lhes o pouco que possuía com fé e amor para o desenvolvimento do país. Esse movimento guiou para a campanha “Voluntário na educação é amigo da escola”, clamando por pessoas dotadas de conhecimento não científico que poderiam atuar no ambiente escolar (costureira, modelo, padeiro, juiz, pedreiro etc.) e desqualificando ainda mais o professor em seu mercado de trabalho. ( DUARTE, 2005).
No final do ano 2000, a Revista Nova Escola publicou uma reportagem intitulada “É hora de cuidar da sua carreira”, em que a figura central era o professor e as mudanças que este deveria ter em sua formação, devido as novidades tecnológicas levadas pela onda da “nova sociedade”. Com as informações chegando de forma mais rápida via internet, Iara Prado 1 explicou que para o professor conseguir se manter no novo mercado educacional, era preciso que este não continuasse mais como mero transmissor de conhecimentos, mas devendo “[...] procurar desenvolver em seus alunos a criatividade e a autonomia na busca desses conhecimentos”. ( DUARTE, 2005, p. 44). A secretária ainda afirmou que o motivo dos professores continuarem a trabalhar dessa maneira “antiquada” dava-se pela formação excessivamente acadêmica recebida na universidade com características arcaicas, não se relacionando com as atualizações tecnológicas e metodológicas no contexto do momento, nem contribuindo, dessa forma, com as exigências para o profissional que se alicerçaria principalmente na formação do sujeito autônomo.
As políticas neoliberais aliadas à filosofia pós-moderna e às concepções pedagógicas baseadas no construtivismo, segundo Duarte (2005), determinam o âmbito social, incluindo a educação, isso causa consequências drásticas para a manutenção das desigualdades. No que tange a formação de professores, Duarte (2005) descreve as políticas neoliberais como totalizantes e totalitárias, com o ideário baseado na ilusão de que o indivíduo é responsável por tudo – portanto tudo depende dele – e com a naturalização das desigualdades. A própria figura do professor que ministra aulas em locais improvisados e inserido em uma realidade pobre tal qual dos alunos, reforçando a ideia de que a manutenção da sua condição social jamais será alterada, independentemente de seu esforço individual ou coletivo, é visto como algo natural e saudável. Esse processo individualista 2 é ainda mais aparente com o aumento do desemprego, em que cada vez mais os indivíduos precisam renunciar a seus direitos para “ter um lugar ao sol” no mundo competitivo de “cada um por si”, aumentando assim a exploração ( DUARTE, 2005). No trabalho docente, isso se apresenta de maneira clara:
[...] se fôssemos perguntar aos professores quanto eles ganham por mês, verificaríamos que o salário é irrisório e que, para compensá-lo, eles são obrigados a submeter-se a jornadas triplas de trabalho sempre em condições péssimas, o que prejudica seu desempenho profissional.
Essas características descritas anteriormente, segundo Duarte (2005), são aceitas por boa parte dos próprios construtivistas. Ao afirmar que o construtivismo não aceita a existência de um conhecimento objetivo e universal, e que a construção dos sentidos e significados deve ser fruto da realidade individual “[...] também nega a capacidade do ser humano de conhecer a realidade de forma objetiva e, consequentemente, também transforma o conhecimento em uma construção individual”. ( DUARTE, 2005, p. 51). Dessa forma, rompe a possibilidade de um conhecimento racional e de uma visão que possibilite envolver a totalidade da produção humana, controlando assim os rumos da sociedade.
Assim, compartilhamos das análises de Duarte ( 2005, p. 52) sobre as políticas neoliberais e tendências pós-modernas na educação, ao considerar que:
A escola empobrece cada vez mais; o conhecimento acumulado pela humanidade torna-se algo para poucos; o senso comum invade a escola disfarçado de “sabedoria popular” (sabedoria esta cheia de crendices mistificadoras e retrógradas), e o professor deixa de ser um intelectual para se tornar um mero “técnico” ou “acompanhante” do processo de construção do indivíduo.
3 BNCC e suas possíveis concepções político-pedagógicas para a Educação Física
O ensino proposto pela Base Nacional Comum Curricular apresenta habilidades e competências específicas para todas as áreas da educação. Para a especificidade da Educação Física, o documento sistematiza dez competências específicas, sendo elas: (1) compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual; (2) planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se envolver no processo de ampliação do acervo cultural nesse campo; (3) refletir, criticamente, sobre as relações entre a realização das práticas corporais e os processos de saúde/doença, inclusive no contexto das atividades laborais; (4) identificar a multiplicidade de padrões de desempenho, saúde, beleza e estética corporal, analisando, criticamente, os modelos disseminados na mídia e discutir posturas consumistas e preconceituosas; (5) identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes; (6) interpretar e recriar os valores, sentidos e significados atribuídos às diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas participam; (7) reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos; (8) usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o envolvimento em contextos de lazer, ampliar as redes de sociabilidade e a promoção da saúde; (9) reconhecer o acesso às práticas corporais como direito do cidadão, propondo e produzindo alternativas para sua realização no contexto comunitário; e (10) experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras, jogos, danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais de aventura, valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo. ( BRASIL, 2017)
Ao tratar a especificidade da educação física como cultura corporal de movimento, a BNCC sugere a adoção da abordagem pedagógica crítico-emancipatória de Elenor Kunz. Tal abordagem possui valor inquestionável para a área da Educação Física, qual, em linhas gerais, tem por conceito o ensino dos esportes em uma educação que auxilie na reflexão crítica e emancipatória das crianças e jovens ( DARIDO, 2001). Para Kunz (1994) a abordagem crítico-emancipatória preconiza uma transformação didático-pedagógica a partir de uma didática comunicativa para a compreensão de mundo, em um processo autorreflexivo, sendo uma concepção que: “[...] busca alcançar, objetivos primordiais do ensino, e através das atividades com o movimento humano, o desenvolvimento de competências como a autonomia, a competência social e a competência objetiva”. ( KUNZ, 1994, p. 107, grifo nosso).
[...] o ensino escolar para uma formação crítico-emancipatória deve considerar cada área específica, hoje denominada disciplina, como um campo de pesquisa e estudo, pretende preparar o aluno para uma competência do agir. [...] Mudar a concepção da relação Ensino-aprendizagem significa, também, que os alunos sejam capacitados para atuarem, agirem de forma independente, isto é, que eles possam, nas aulas, reconhecer por si nas possibilidades de atuar; que eles mesmos possam, por exemplo, de acordo com suas condições, estabelecer e definir de forma responsável as situações e o desenrolar dos movimentos no esporte, ou no jogo, bem como participar nas decisões da estruturação e organização das aulas. Para adquirirem uma competência social e um agir independente através do processo de ensino, os alunos deverão adquirir também determinado Saber, determinados conhecimentos que, sem dúvida, não podem ser alcançados somente pelo fazer prático.
O uso e adoção pela BNCC por termos como “competências”, “saberes”, “autonomia”, a formação de uma “consciência cidadã” e o privilégio pelo saber-fazer, saber-pensar e o saber-sentir auxiliam a estabelecer as possíveis relações do documento (BNCC) com a base teórica de Kunz (1994). Mas, por que um documento curricular nacional, dentro de um contexto político neoliberal e de busca pela perpetuação da sociedade capitalista, adotaria uma perspectiva crítica-emancipatória? A resposta é simples: tal concepção da Educação Física não visa a transformação das relações sociais para uma possível emancipação humana.
Segundo Taffarel e Morschbacher (2013), Elenor Kunz é reconhecido por ser um autor adepto da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e por ter suas posições teóricas no campo da fenomenologia. As aproximações entre sua base teórica com o documento da BNCC, especificidade da educação física, apresentam-se com maior clareza se pensarmos na compreensão do conceito de emancipação adotado por Kunz (1994) e as condições políticas concretas da presente sociedade regida pelo capital, em um contexto neoliberal e pós-moderno.
Pelos pressupostos marxistas, não devemos confundir emancipação humana com emancipação política. A emancipação política tem por parte integrante a reflexão e construção da cidadania, entretanto, não fornece os elementos necessários para a emancipação humana. A emancipação humana, segundo Tonet (2005) supõe a erradicação do capital e todas suas categorias, não o aperfeiçoamento da cidadania, mas sua completa superação, em um possível trabalho associado 3. Para isso, é preciso homens livres, iguais e proprietários, efetivamente, e não apenas formalmente. Para Tonet (2005) é impossível estabelecer a emancipação humana na sociedade capitalista, pois a produção de desigualdade crescente é necessária para sua manutenção. Não é possível a construção de uma comunidade autêntica sob a égide do capital. Políticas de bem-estar social, direitos e constituição cidadã não eliminam a desigualdade em sua raiz.
Dessa forma, uma educação física fundamentada na abordagem crítico-emancipatória, como apresenta ser a BNCC, não fundamenta os elementos teórico-conceituais necessários para uma compreensão e transformação social pelos pressupostos marxianos, demonstrando contradição: está em uma perspectiva crítica de sociedade, por um lado, e atendendo aos interesses de reprodução do capital, por outro.
4 Breves considerações com as categorias marxianas
Até o momento, pudemos entender como a BNCC apresenta seus objetivos e princípios político-pedagógicos, estabelecendo e identificando relações com as possíveis concepções em que o documento se fundamenta. Cabe-nos agora apresentar as categorias políticas que destacamos com a análise documental e exploratória, sendo elas: “descentralização”, “contradição” e “hegemonia”, e a subcategoria “subjetividade”.
Primeiramente, é importante deixar claro de onde parte nossa análise sobre o documento da BNCC. Partimos das influências dos organismos internacionais, como o Banco Mundial, ONU e Unesco; de institutos como o Instituto Ayrton Senna, Instituto Itaú Unibanco e Fundação Lemann. Procuramos compreender, por meio das contradições de classe e interesses de quem escreveu e influenciou o documento, que é parte resultante de uma série de políticas iniciadas na década de 1990.
Os organismos internacionais liderados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) pressionaram, desde a década de 1990, para que os países subdesenvolvidos readequassem seus currículos educacionais (políticas educacionais), acompanhando seus interesses, orientadas pelo neoliberalismo e o neoconservadorismo. Podemos destacar, dentre os interesses reformistas de conferências e fóruns mundiais de Educação Para Todos, a Declaração de Jomtien (1990), a Declaração de Nova Delhi (1993), o Relatório Delors (1998) e o Marco de Ação de Dakar (2000). ( RABELO; SEGUNDO; JIMENEZ, 2009).
Um exemplo em que podemos visualizar para qual direção caminharam as políticas educacionais está na ideia de educação do relatório Delors:
[...] parece impor-se, cada vez mais, o conceito de educação ao longo de toda a vida, dadas as vantagens que oferece em matéria de flexibilidade, diversidade e acessibilidade no tempo e no espaço. É a idéia de educação permanente que deve ser repensada e ampliada. É que, além das necessárias adaptações relacionadas com as alterações da vida profissional, ela deve ser encarada como uma construção contínua da pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da sua capacidade de discernir e agir. Deve levar cada um a tomar consciência de si próprio e do meio ambiente que o rodeia, e a desempenhar o papel social que lhe cabe enquanto trabalhador e cidadão.
( DELORS, 1998, p. 18, grifos nossos).
Observa-se o movimento em que as políticas caminharam, desde a década de 1990 até a BNCC, em 2017. Esse projeto de política educacional objetiva uma descentralização 4 da responsabilidade de apropriação do conhecimento. A escola não mais deve ser responsável por ensinar o conhecimento que há de mais elaborado pela cultura humana. A priorização, neste momento, está na aquisição de habilidades e competências, no desenvolvimento de saberes e aptidões para o trabalho, ou seja, na construção das capacidades subjetivas 5 dos seres. A escola precisa desenvolver crianças criativas, participativas, resilientes e proativas. A sociedade requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender. Os sujeitos precisam ser autônomos para tomada de decisões, todos elementos que mostram como deve ser o cidadão no mundo moderno. Se na PCN havia uma preocupação com a empregabilidade, na BNCC há uma preocupação para um sujeito empreendedor, em conseguir habilitar sujeitos para os desafios do mundo social, com foco nas capacidades subjetivas.
Nesse processo de construção das políticas para a educação, grupos neoconservadores buscam espaço nos currículos educacionais. Observemos quais países participaram dos seminários de construção da BNCC: Reino Unido, Chile, Austrália e Estados Unidos. Fundações e Institutos: Instituto Ayrton Senna, Instituto Itaú Unibanco e Fundação Lemann. Influências de Organismos internacionais como Banco mundial, ONU e Unesco. Para cada grupo o documento deve ter uma função. Para os conservadores, a educação deve evitar assuntos como gênero e espaço das mulheres no mundo, visibilidade nos esportes e discriminação. Para os democratas participativos, os aspectos relacionados a cidadania e autonomia devem ser priorizados. Para os epicentros capitalistas, dá-se preferência à formação de cidadãos e força de trabalho qualificada. A busca pela hegemonia 6 da classe burguesa sobre o proletariado é evidente no campo da educação, tendo observado para qual finalidade este documento se direciona.
Por fim, a contradição 7 é evidenciada nas políticas do contexto pós-moderno e neoliberal, dentre elas a BNCC, ao ponto que tais documentos são movidos pelos interesses da sociedade burguesa e para o desenvolvimento do capital por meio da educação, desconsiderando que, para este fim, a pobreza e a miséria devem ser perpetuadas. Não há como desenvolver uma educação de qualidade e emancipadora, de acordo com os princípios marxianos, a partir do momento em que sua única e exclusiva função está atrelada ao desenvolvimento da sociedade capitalista.
5 Considerações finais
Nas análises mediadas pelos estudiosos Newton Duarte, Celi Taffarel e Ivo Tonet, ao discorrer sobre alguns princípios norteadores da BNCC, visualizamos que o documento apresenta características similares às concepções construtivistas para a educação, e crítico-emancipatória para a educação física.
Para a área educativa, em geral, identificamos uma priorização pelo desenvolvimento das capacidades subjetivas. O conhecimento historicamente elaborado é substituído pelo desenvolvimento de competências e habilidades específicas, de saberes superficiais, da autonomia proativa e da capacidade de aprender a aprender, se aproximando dos ideais objetivados pela concepção construtivista.
Já para a especificidade da educação física, a aproximação com a concepção crítico-emancipatória é apenas mais uma das contradições no documento. Ao mesmo tempo em que apresenta uma percepção crítica para com a sociedade, não fornece os elementos necessários para a compreensão de sua totalidade e uma possível transformação das relações sociais, sendo insuficiente para materializar a emancipação humana.
Martineli et al.(2016) sintetizam que concepções que objetivam e indicam ações como “explorar”, “fruir”, “reconhecer” e “criar” não viabilizam a construção de conceitos científicos pelos alunos. Estas concepções, abordadas na BNCC, valorizam apenas os conhecimentos e experiências cotidianas.
Assim, objetivando compreender a BNCC por meio das contradições de classe e interesses de quem a escreveu, concluímos que as concepções político-pedagógicas fundamentadoras do documento colaboram para um esvaziamento histórico e para a manutenção e perpetuação de uma sociedade desigual, dividida em classes, sendo a continuação de um processo iniciado na década de 1990, integrante das políticas neoliberais e pós-modernas.